SOUZA, Mrcio. Breve Histria da Amaznia. So Paulo: Marco Zero,
1993 SUMRIO Por que uma histria da Amaznia? 9 Primeira Parte: A
Amaznia Indgena 11 Segunda Parte: A Conquista 21 Terceira Parte: A
Colonizao 45 Quarta Parte: Soldados, cientistas e viajantes 75
Quinta Parte: A Amaznia e o Imprio do Brasil 95 Sexta Parte: A
Cabanagem 109 Stima Parte: O Ciclo da Borracha 127 Oitava Parte: A
sociedade extrativa 145 Nona Parte: A fronteira econmica 159
Bibliografia 169 Agradecemos a colaborao das seguintes instituies:
Fundao Biblioteca Nacional, Museus de Belm, Fundao Cultural do
Municpio (Belm), Secretaria de Estado da Cultura do Par, Sistema
Estadual de Bibliotecas Pblicas do Par, na pessoa de sua
coordenadora Valda Cunha da Silva, Subsecretaria de Estado da
Cultura do Amazonas, Fundao Universidade do Amazonas. Origens do
homem Amaznico Pg. 11 As sociedades complexas da Amaznia Pg. 12
Caadores e coletas Pg. 13 Os primeiros horticultores Pg. 13
Sambaquis a.C. (cultura) Pg. 14 Ilha de Maraj Pg. 15 Os Tuxauas de
Santarm e Maraj Pg. 15 Chegada dos europeus no Sc. XVI Pg. 16
Cultura da selva tropical Pg. 16, 17, 18 Mitos e lendas Pg. 18 O
legado econmico do passado Pg. 18 Indstria farmacutica Pg. 19 O 1
europeu (Pizon) Pg. 21, 22 Frncico Orellana (expedio) Pg. 22 O
eldorado Pg. 23 As primeiras tentativas espanholas na Amaznia Pg.
23 Gonzalo Pizarro (expedio) Pg. 24 O cronista da expedio (Gaspar
de Carvajal) Pg. 25 Orellana (com os Tuxauas guerreiros) Pg. 26 A
revelao da Amaznia Pg. 29 Primeiros colonos (os alemes) Pg. 30
Outras tentativas espanholas (J. A. Maldonado) Pg. 30 P. Ursua,
Guzman e L. de Aguiar Pg. 31 Antecedentes de um brbaro Pg. 33
Importncia dos relatos Pg. 34
Os Andes barram os espanhis Pg. 34 Novas investidas europias Pg.
34 A reao lusitana Pg. 35 Pedro Teixeira Pg. 35 O choque cultural
no cessar mais Pg. 35 A lgica da conquista formou a colonizao Pg.
37 Cristianismo, Mercantilismo Pg. 38 A explicao teolgica do
direito colonial Pg. 39 A inquietante presena dos ndios Pg. 40 O
Padre Vieira na Amaznia Pg. 41 O legado dos cronistas e relatores
(Lit. Colonial) Pg. 42 O modelo colonial holands Pg. 46 Suriname
Pg. 46 O modelo francs (colonizao) Pg. 47 O modelo espanhol Pg. 49
Missionrios e ndios (doenas) Pg. 49 Minerao X ouro Pg. 50 O modelo
portugus Pg. 51 A evoluo da Administrao portuguesa Pg. 52 Unio do
territrio Pg. 52 A resistncia dos povos indgenas (Tupinamb) Pg. 53
Portugal anexado a Espanha Pg. 54 Pedro Teixeira Pg. 55 Samuel
Fritz (Jesuta) Pg. 56 Extrativismo Sc. XVII e XVIII (economia
livre) Pg. 58, 59 Os Muras (Padre Sampaio - jesuta) Pg. 59
Ajuricaba Pg. 60 Outras rebelies na Amaznia Pg. 63 A Era Pombalina
Pg. 64 Inquisio no Gro-Par (Marqus de Pombal) Pg. 65 Francisco
Xavier de M. Furtado Pg. 68 A Administrao de Lobo D'Almada Pg. 69
Mrio Ypiranga Monteiro (a colnia letrgica) Pg. 70 O equilbrio
econmico de mercantilismo na Amaznia Pg. 72 A colonizao lusitana
Pg. 72 Expropriao do ndio Pg. 74 Outros cientistas Pg. 77
Paramaribo Pg. 82 Stedman e a mulata Joana (histria de amor) Pg. 83
Muhuraida Pg. 84, 85, 86 Antnio Giuseppe Landi (arquiteto,
desenhista, urbano) Pg. 88, 89 Alexandre R. Ferreira (cientista e
naturalista) Pg. 90 Tapuias Pg. 91 A Amaznia portuguesa (Gro-Par e
R. Negro) Pg. 96 O cenrio poltico no processo da independncia Pg.
97 Arthur Reis Pg. 98 A represso s idias exticas Pg. 100 Felipe
Patroni Pg. 100 A notcia da independncia chega a B. do Par Pg. 102
A independncia chega ao Rio Negro Pg. 105 Sculo XIX crise econmica
na Amaznia Pg. 105, 106 Efeitos da regncia no Gro-Par e Rio Negro
Pg. 110 Um golpe derruba o Visconde de Goiana Pg. 111 Priso do
Cnego Batista Campos Pg. 112 Fuga do Cnego Batista Campos Pg. 113
Rebelio na Barra do Rio Negro Pg. 113 A regncia nomeia dois homens
sanguinrios Pg. 114 Conflito ideolgico com a Igreja Catlica Pg. 116
Nova fuga de Batista Campos Pg. 117
Guerra civil Pg. 117 Morte de Batista Campos Pg. 118 A queda de
Belm do Par Pg. 119 Os revolucionrios divididos (Malcher, Francisco
Vinagre) Pg. 120 O governo de Eduardo Angelim Pg. 121 A Cabanagem
espalha-se pela Amaznia Pg. 122 A reao do regime do Rio de Janeiro
Pg. 122 Lies de um banho de sangue (Cabanagem) Pg. 124 A indstria
primitiva Pg. 128 Uma nova matria-prima dos trpicos Pg. 129 Efeitos
da economia do ltex nas outras Amaznias Pg. 129 O escndalo do
Putamaio Pg. 132, 133 A guerra da borracha no deserto acidental Pg.
133 O cosmopolitismo do ciclo da borracha Pg. 134 A ideologia do
ciclo da borracha Pg. 135 Os componentes humanos da sociedade do
ltex Pg. 136 Um capitalismo de fronteira Pg. 136 Amaznia e a
Administrao Federal Pg. 137 Os coronis da borracha e barrancos Pg.
138 O lado oculto do fastgio (Vandeville) Pg. 139 Euclides da
Cunha, Plcido de Castro Pg. 140 A ostentao Pg. 140 Intrpretes da
idade de ouro Pg. 142 A 1 Universidade da Idade do Ouro Pg. 143 A
quebra do monoplio Pg. 146 Retrato de um desastre (o fim do ciclo)
Pg. 146 A reintegrao difcil depois da I Guerra Mundial Pg. 147
Medidas de pouco impacto (contornar a crise) Pg. 148 Reflexos do
tenentismo na Amaznia Pg. 149 Solido e abandono (Amaznia) Pg. 150
Situao em Manaus nos anos 30 Pg. 151 Henry Ford na Amaznia - 1939
Pg. 151 Getlio Vargas na Amaznia - 1940 Pg. 151 A Batalha da
Borracha Pg. 152 SPEVEA - Criao Pg. 153 ICOMI Pg. 154 A Amaznia da
redemocratizao Pg. 155 Aspectos culturais Pg. 157 A operao Amaznia
(ocupar e integrar) Pg. 159 Avano das lutas sociais na Amaznia
Colombiana Pg. 160 O retalhamento da Amaznia brasileira Pg. 160
Megaprojetos Pg. 161 Os 1s. grandes projetos Pg. 161 A
Transamaznica Pg. 162 A Zona Franca de Manaus Pg. 163 A agresso ao
Ecossistema Pg. 164 Os conflitos de terra Pg. 165 A dinmica da
sociedade Amaznica Pg. 166 O narcotrfico Pg. 166 Amaznia Legal Pg.
168 Por que uma histria da Amaznia? Recentemente, quando organizava
uma lista de livros de leitura obrigatria para meus alunos do curso
Images of the Amazon, do Departamento de Espanhol e Portugus da
Universidade Berkeley, defrontei-me com o fato de no existir um
nico livro de Histria da Amaznia. Para cobrir o assunto, fui
obrigado a selecionar vrios ttulos, todos parciais, o que
dificultou e aumentou a carga de trabalho dos estudantes. Existem
obras de Histria do Amazonas, do Par, do Acre, das regies
amaznicas dos pases hispnicos, algumas delas excelentes, mas a
disperso complica muito a vida daqueles que desejam apenas uma
introduo geral e no pretendem se tornar especialistas. , de outro
lado, muito desestimulante, para os leitores em geral, se estes
desejarem conhecer os grandes traos do processo histrico da regio.
Essa lacuna uma prova do quanto ainda precisam avanar os estudos
amaznicos. Foi pensando nos alunos dos meus cursos e nos meus
leitores que continuamente me pedem a indicao de um livro sobre o
tema - pedido sempre frustrado - que decidi escrever este livro.
Mas vou logo afirmando que este trabalho no preenche, nem de longe,
a lacuna existente. Uma verdadeira Histria da Amaznia, abrangendo
no apenas a Amaznia brasileira, mas tambm aquelas que falam
espanhol, ingls e holands, seria uma obra de mais flego e exigiria
bem mais esforo que este texto, deliberadamente sinttico,
modestamente escrito e destinado apenas a servir de introduo. Um
outro aspecto que necessita ser ressaltado que a Histria da Amaznia
precisa ser escrita o mais urgentemente possvel, e por autor ou
autores da regio. No devemos esquecer que, nos ltimos tempos, quase
todas as opinies e propostas algumas absurdas - para o futuro e o
desenvolvimento da Amaznia foram sendo afoitamente apresentadas por
gente sem nenhuma ou quase nenhuma experincia amaznica. Um recente
historiador norte-americano, por exemplo, em livro que pretendia
fazer a histria do rio Amazonas, ignorou solenemente aspectos
cruciais da conturbada vida poltica da Amaznia no alvorecer do
sculo XX e introduziu um captulo inteiro sobre as caadas e as
aventuras de Theodore Roosevelt, ex-presidente norteamericano que
esteve pelas selvas do Mato Grosso e Rondnia no comeo do sculo,
como se isto fosse um importante momento da histria regional.
Diga-se de passagem, o feito do senhor Roosevelt foi descobrir
certo rio que todo mundo j conhecia. Este livro, portanto, deve ser
compreendido na sua circunstncia. obra despretensiosa, em que
buscou um estilo simples e descomplicado, sem didatismo, vazado
numa linguagem de fcil compreenso, que ressaltasse os aspectos
dramticos, surpreendentes e audaciosos de uma trajetria histrica
carregada de dramas e muitos desencontros. Por tudo isso, livro que
vejo destinado aos professores do segundo grau, aos seus alunos,
aos universitrios brasileiros, como espcie de roteiro de chegada a
um pedao imenso mas pouco conhecido da Amrica do Sul. Finalmente,
um texto para ser lido por aqueles leitores curiosos, que desejarem
sinceramente entrar em contato com uma tradio magnfica e dolorosa,
escrita com emoo e simpatia em relao a certos agentes sociais quase
sempre esquecidos, como os ndios e os caboclos. M.S. PRIMEIRA PARTE
A AMAZNIA INDGENA (2000 a.C. - 800 a.C.) ORIGENS DO HOMEM AMAZNICO
Desde o incio tema de especulao, a origem do homem na Amaznia foi
cercada de muitas fantasias e teorias imaginosas. Tal qual a
tentativa de explicar a presena humana no Novo Mundo, as marcas
deixadas pelos homens na Amaznia suscitaram inmeras hipteses. Para
a presena do homem no Novo Mundo, a teoria mais aceita a de que o
homem surgiu primeiro na sia e, como a geologia mostra que o
continente americano j se encontrava em sua forma atual quando a
humanidade apareceu, pode-se aceitar a hiptese de que migrantes
atravessaram o estreito de Behring, h 24.000 anos, ocupando e
colonizando as Amricas. Algumas dessas levas de migrantes asiticos,
ou seus descendentes, acabaram chegando ao vale do rio Amazonas.
provvel que essas primeiras levas de migrantes
cruzaram a grande floresta por volta de 15.000 anos atrs, dando
incio colonizao da Amaznia. AS TEORIAS FANTSTICAS Muitas hipteses
imaginosas foram levantadas a propsito da ocupao humana da Amaznia.
As mais curiosas, por exemplo, falam das audaciosas viagens de
certos navegantes do Oriente Prximo, como os fencios, hebreus e
rabes, sem esquecer o suposto comrcio que os habitantes da
desaparecida Atlntida teriam mantido com a regio. Alm das explicaes
baseadas no esprito aventureiro dos antigos marinheiros, havia
aquelas que apelavam para a especulao filosfica e religiosa, como a
elaborada pelo telogo espanhol dom Arius Montanus, que criou em
1571 uma teoria baseada na Bblia. Segundo ele, descendentes de No
receberam de herana o Novo Mundo: Ophis ficou com o Peru e Jobal
com o Brasil. Em 1607, o fidalgo Gregorio Garcia, tambm espanhol,
escreveu alentado estudo mostrando as afinidades morais,
intelectuais e lingsticas entre os judeus e os ndios. Para Garcia,
os ndios eram descendentes das dez tribos perdidas quando os
assrios atacaram Israel em 721 a.C. Para outros, a Amaznia teria
sido alcanada pela expedio chinesa comandada pelo monge budista Hui
Cheng, em 499 d.C., da o aspecto fsico oriental apresentado pelos
ndios. Na verdade, ainda que a populao amaznica evidencie o seu
estoque gentico asitico, ela resultou numa constelao bastante
diferenciada de tipos fsicos, produto de uma diversificada
contribuio biolgica e cultural, gerando um conjunto de comunidades
humanas, cada uma delas distinta e ntida em sua identidade, como
bem afirmou o antroplogo Claude Lvi-Strauss: "Este grande e isolado
segmento da humanidade consistiu de uma multitude de sociedades,
maiores ou menores, que tiveram pouco contato entre si e, para
completar as diferenas causadas pela separao, h outras diferenas
igualmente importantes causadas pela proximidade: o desejo de se
distinguirem, de se colocarem parte, de serem cada uma elas
mesmas".1 AS SOCIEDADES COMPLEXAS DA AMAZNIA At bem pouco tempo a
regio amaznica era considerada uma rea de poucos recursos, o que
limitava as possibilidades de os grupos humanos desenvolveram ali
uma sociedade avanada. Ainda recentemente, as evidncias
arqueolgicas ou documentais sobre as antigas sociedades complexas
da Amaznia ou eram simplesmente negadas ou atribudas presena
passageira de grupos andinos e mesoamericanos. Para completar,
aceitava-se como prova de adaptao ao trpico mido o estilo de vida
dos atuais povos indgenas, que vivem em pequenas aldeias e se
organizaram a partir de uma economia de subsistncia. Os mais
recentes estudos comeam a constatar que a Amaznia foi no passado um
ambiente rico e diversificado de sociedade humanas, com a
demonstrao da existncia de ocupao, desde o perodo Pleistoceno, ou
Holoceno (100 mil a 10 mil a.C.), por sociedades de caadores e
coletores, donos de elaboradas culturas de tecnologia da pedra, alm
de algumas das mais antigas sociedades sedentrias, fabricantes de
cermica e agricultores equatoriais. Um passado formado por
sociedades de grande complexidade econmica e sofisticao cultural.
OS GRUPOS DE CAADORES E COLETORES Os escassos sinais de ocupao
humana na Amaznia durante o perodo Pleistoceno, ou Holoceno, foram
encontrados em algumas cavernas, abrigos naturais e sambaquis.
importante observar que os antigos caadores e coletores da Amaznia
no eram exatamente primitivos em termos de tecnologia e esttica,
mas tambm pouco lembravam
os povos indgenas atuais, que supostamente so seus
sobreviventes. Os primeiros habitantes da Amaznia formaram uma
continuidade de alta sofisticao. Abrangeram desde os paleoindgenas
at os pr-ceramistas arcaicos e ceramistas arcaicos avanados,
estabelecendo uma vasta e variada rede de sociedades de subsistncia
sustentadas por economias especializadas em pesca de larga escala e
caa intensiva, alm de agricultura de amplo espectro, cultivando
plantas e tambm criando animais. A existncia de artefatos
fabricados por certo povos, encontrados em diversas reas da regio,
prova de que havia um intenso sistema de comrcio de viagens de
longa distncia e de comunicao. Na localidade de Abrigo do Sol, no
Mato Grosso, ferramentas utilizadas para cavar petroglifos nas
cavernas foram datadas entre 10.000 e 7.000 anos a.C. Outros
artefatos de pedra encontrados nos antiplanos das Guianas
venezuelanas e na Repblica da Guiana, bem como nas barrancas do rio
Tapajs, foram datados, a partir de seus grupos estilsticos, como de
um perodo entre 8.000 e 4.000 a.C. OS PRIMEIROS HORTICULTORES A
lenta transio da caa e coleta para a agricultura ocupou o perodo de
4.000 a 2.000 a.C. Restos de alimentos, de plantas e de animais
encontrados em cavernas e abrigos situados na Venezuela e no Brasil
foram datados entre 6.000 e 2.000 a.C., registrando a presena
nessas reas de povos coletores. Os principais sinais da transio
foram localizados nos muitos sambaquis descobertos prximos boca do
Amazonas e no Orenoco, na costa do Suriname, e em certas partes do
baixo Amazonas. As camadas mais antigas no continham cermica, porm
as mais recentes apresentavam um conjunto de formas surpreendentes
datadas de aproximadamente 4.000 a.C., nos sambaquis da Guiana, e
3.000 a.C., e nos achados da localidade de Mina, na boca do
Amazonas. Esses achados e os exemplares de cermica encontrados nos
sambaquis da localidade de Taperinha, prximo a Santarm, baixo
Amazonas, so evidncias de que as culturas amaznicas j cultivavam a
arte da cermica pelo menos um milnio antes dos povos andinos. Fio
por essa mesma poca que as pequenas povoaes de horticultores
comearam a ganhar importncia, aos poucos congregando um maior nmero
de populao, graas aos avanos na tecnologia do cultivo. Por volta de
3.000 a.C. as sociedades de horticultores passam a marcar sua
presena na regio. O estilo da cermica, por exemplo, recebe fortes
modificaes, agora apresentando formas zoomrficas e motivos de
decorao com figuras de animais, utilizando tcnicas de pintura e
inciso. As figuras de animais so imediatamente reconhecidas nessas
cermicas de fortes conotaes antropomrficas, associadas com uma
cosmogonia que implica em abundncia de caa, fertilidade humana e
poderes do xam em se relacionar com as foras da natureza
corporificadas pelos animais. claro que pouco se sabe dos ritos
antigos, mas lentamente esse passado est vindo tona comas
descobertas de stios de enterros cerimoniais e restos de
aglomerados humanos. muito provvel que essas sociedades baseassem
suas economias na plantao de razes como a mandioca, que j vinha
sendo cultivada desde pelo menos 5.000 a.C., conforme provas
encontradas no Orenoco. Por isso, as mais recentes teorias sobre a
natureza das sociedades humanas de coletores e sua adaptao nos
trpicos esto ganhando terreno a cada descoberta de novas evidncias
arqueolgicas, alm das provas etnogrficas tradicionais. Eis porque
se pode afirmar hoje que a introduo do cultivo da mandioca na
vrzea, durante o primeiro milnio a.C., foi um fator decisivo, assim
como a chegada da cultura do milho na mesma rea de cultivo
significou um maior excedente de alimentos para a estocagem. Mas a
adio da vrzea na economia dos povos horticultores, com os depsitos
sazonais de fertilizantes naturais, criou um rico suprimento de
alimentos, que inclua os peixes, os mamferos aquticos e as
tartarugas. Os primeiros amaznidas experimentaram um grande
desenvolvimento por volta de 2.000 a.C, transformando-se em
sociedades hierarquizadas, densamente povoadas,
que se estendiam por quilmetros ao longo das margens do rio
Amazonas. Essas imensas populaes, que contavam com milhares de
habitantes, deixaram marcas arqueolgicas conhecidas como locais de
"terra preta indgena". O mais conhecido deles encontra-se nos
arredores da cidade de Santarm, Par, exatamente um dos centros de
uma poderosa sociedade de tuxauas, guerreiros que dominaram o rio
Tapajs at o final do sculo XVII, j no perodo de dominao europia. Os
tuxauas de Santarm, tais como os tuxauas de Maraj, de
Tupinambarana, dos mura, dos mundurucu e omgua, com suas cidades de
vinte mil a cinqenta mil habitantes, recebiam tributos de seus
sditos e contavam com numerosa fora de trabalho, inclusive de
escravos. Essa massa trabalhadora construiu enormes complexos
defensivos, povoados e locais de culto, alm de fazer canais e abrir
lagos para viabilizar as comunicaes fluviais. A maior estrutura de
stios arqueolgicos indicando a existncia dessas civilizaes antigas
pode ser encontrada nos antiplanos da Amaznia boliviana, no mdio
Orenoco e na ilha de Maraj. Na ilha de Maraj, floresceu uma das
mais admirveis civilizaes do grande vale, mas provavelmente j
estava extinta ou decadente por ocasio da chegada dos europeus. No
entanto, os restos arqueolgicos so impressionantes, com quarenta
stios descobertos numa superfcie de 10 a 15 quilmetros quadrados.
Embora poucos stios tenham sido escavados e as reas de cemitrios
tenham atrado saqueadores em busca das soberbas cermicas que
serviam de urnas funerrias, os resultados so intrigantes e
surpreendentes. Dentre as escavaes da ilha de Maraj, a que mais se
destaca a do monte de Teso dos Bichos. Ali, entre 400 a.C. e 1300
d.C., existiu uma populao estimada entre quinhentas e mil pessoas.
Fazia parte de um complexo de povoados pertencentes a uma sociedade
de tuxauas, senhores da boca do Amazonas. Essa sociedade
apresentava um alto desenvolvimento tecnolgico e uma ordem social
bem definida. As mulheres se encarregavam-se dos trabalhos
agrcolas, cuidavam do preparo da alimentao e habitavam casas
coletivas. Os homens eram responsveis pela caa, guerra, pelas
atividades religiosas e viviam em habitaes masculinas prximas ao
centro cerimonial, uma plataforma de barro construda na ala oeste.
Toda a povoao ocupava cerca de 2,5 hectares. O estudo dos
esqueletos encontrados em teso dos Bichos mostra que os moradores
da ilha eram muito parecidos com os amaznidas atuais, embora dez
centmetros mais altos. As mulheres eram baixas e bem proporcionadas
e os homens musculosos, indicando uma dieta rica de protena animal
e comida de origem vegetal. O formato craniano prova que eram
amaznidas e no andinos. Teso dos Bichos deve ter mantido uma
concentrao humana por dois milnios sem maiores problemas, sem
disputas ou superpopulao. Muitos dos hbitos e costumes
posteriormente herdados pelos povos indgenas e pelas populaes
caboclas, foram criados e desenvolvidos por essas sociedades
antigas. A preferncia por certos peixes, como o pirarucu, e o uso
de refrescos fermentados, como o alu, era muito comum entre as
gentes de Maraj, ou de Tupinambarana, do Solimes ou do altiplano
boliviano mas o processo de despopulao, ocorrido com a chegada dos
europeus, fez com que os povos indgenas modernos retrocedessem para
um tipo de vida anterior ao surgimento dessas economias intensivas,
comandadas por poderosos tuxauas. A AMAZNIA NO ERA UM VAZIO
DEMOGRFICO Quando os europeus chegaram, no sculo XVI, a Amaznia era
habitada por um conjunto de sociedades hierarquizadas, de alta
densidade demogrfica, que ocupavam o solo com povoaes em escala
urbana, possuam sistema intensivo de produo de ferramentas e
cermicas, agricultura diversificada, uma cultura de rituais e
ideologia vinculadas a um sistema poltico centralizado e uma
sociedade fortemente estratificada. Essas sociedades foram
derrotadas pelos conquistadores, e seus remanescentes foram
obrigados a buscar a resistncia, o isolamento ou a subservincia. O
que havia sido construdo em pouco menos de dez mil anos foi
aniquilado em menos de cem anos, soterrado em pouco mais de 250
anos e negado em quase meio milnio de terror e morte.
Foi durante os milnios que antecederam a chegada dos europeus
que os povos da Amaznia desenvolveram o padro cultural denominado
de Cultura da Selva Tropical. A Amaznia, como bem indicam os
artefatos arqueolgicos encontrados na regio, nunca foi habitada por
outra cultura que no essa. A Cultura da Selva Tropical um exemplo
do sucesso adaptativo das populaes amaznicas, assim como o so os
Padres Andino e Caribenho de Cultura em seus respectivos nichos
ambientais. J tivemos a oportunidade de observar que velhos
preconceitos, arraigados num extremo determinismo ambiental,
procuraram emprestar Cultura da Selva Tropical um certo
primitivismo, um estgio de barbrie que fixava a Amaznia num patamar
abaixo do Padro Caribenho e muito distante do Padro Andino. De tal
forma esses preconceitos foram disseminados que at mesmo certos
autores bem-intencionados acabaram sucumbindo a eles, ao tentar
explicar a presena de populaes complexas na regio como fruto da
migrao ou influncia dos Andes ou do Caribe. Os ltimos avanos da
arqueologia na Amaznia vm corroborar a tese de que a Cultura da
Selva Tropical foi capaz no apenas de formar sociedades
perfeitamente integradas s condies ambientais, como tambm de
estabelecer sociedades complexas e politicamente surpreendentes.
Assim, est provado que, ao chegar, os primeiros europeus
encontraram sociedades compostas por comunidades populosas, com
mais de mil habitantes, chefiadas por tuxauas com autoridade
coercitiva e poder sobre muitos sditos e aldeias; tcnicas de guerra
sofisticadas; estrutura religiosas hierrquicas e divindades que
eram simbolizadas por dolos e mantidas em templos guardados por
sacerdotes responsveis pelo culto, uma economia com produo de
excedente e trabalho baseado num sistema de protoclasses sociais.
Essas sociedades foram registradas nas diversas crnicas e relatos
de espanhis e portugueses que as contataram em suas primeiras
viagens ao longo dos grandes rios. Tais sociedades, baseadas na
economia, floresceram por volta de 1500 d.C. e, por estarem
localizadas nas margens do ri o Amazonas e certos afluentes
maiores, foram as primeiras a sofrer os efeitos do contato com os
europeus, sendo derrotadas pelos aracabuzes, pela escravizao, pelo
cristianismo e pelas doenas. Mas a Cultura da Selva Tropical no se
apresentava, em termos de evoluo qualitativa, como uma coisa
uniforme. Os povos da terra firme, os que viviam nas cabeceias dos
rios ou em terras menos frteis, mostravam-se mais modestos em
comparao com as naes do rio Amazonas. Havia uma grande diferena
entre a grande nao Omgua, que dominou durante muitos sculos o rio
Solimes, e os nmades e frgeis Wai Wai, habitantes dos altiplanos da
Guiana, embora ambas as naes partilhassem de uma economia comum,
baseada na mxima explorao dos recursos alimentcios dos rios e lagos
e, secundariamente, na caa de animais e pssaros da floresta. O QUE
A CULTURA DA FLORESTA TROPICAL? Mas o que a Cultura da Floresta
Tropical? Como os nveis de complexidade cultural se estabeleceram
de formas muito diferentes entre os povos das margens do Amazonas e
aqueles do interior, a Cultura da Floresta Tropical deve ser
definida a partir dos elementos comuns mais compartilhados, que so
os econmicos. A Cultura da Floresta Tropical um sistema social
baseado na agricultura intensiva de tubrculos, e est to
profundamente vinculada ao cultivo que sua origem quase se torna
indistinguvel da origem da maioria das plantas cultivadas.
Portanto, levando em considerao as afinidades entre os diversos
povos, a Cultura da Floresta Tropical , pode-se dizer, a cultura da
mandioca. A mandioca (Manihot utilissima) um arbusto alto, com
folhas longas em forma de palmas, de cor verde-escura, que cresce
at mais ou menos 1 ou 1,5 metro de altura. um gnero exclusivo da
Amrica, sendo endmico entre a baixa Califrnia e o norte da
Argentina. O PASSADO NA MEMRIA DOS MITOS E LENDAS
Os mitos e lendas dos atuais povos indgenas ainda guardam certas
lembranas desse passado perdido. As rotas comerciais que ligavam a
selva amaznica s grandes civilizaes andinas ainda continuam traadas
nas entranhas da mata virgem, reconhecidas apenas pelo olhar dos
que sabem distinguir antigas veredas dissimuladas pelas folhagens.
por essas rotas que um ndio tukano do norte amaznico pode visitar
seus parentes do sudoeste, seguindo o mesmo curso que levava
produtos da floresta ao Cusco e de l trazia artefatos de ouro,
tecidos e pontas de flecha de bronze. Feitos hericos dos tempos que
se perdem nas brumas ressoam em picos como a saga do tuxaua Buoop e
sua amada Cucu, marco central da literatura oral dos ndios tariana,
em que a conquista do norte amaznico pelos aruaque est fielmente
descrita, como a mostrar que, assim como as culturas j haviam
atingido alturas, os dramas humanos mais intensos, como as guerras,
as paixes e a aventura, no comearam exatamente com os
conquistadores europeus. O LEGADO ECONMICO DO PASSADO Um jovem ndio
mehinaku disse certa vez que um mito como um sonho sonhado por
muitos e contado por bastante gente. E, como os sonhos so sublimaes
de acontecimentos reais, no de se estranhar, portanto, que o olhar
de um ndio sobre a floresta seja diverso do olhar de um
estrangeiro, tal como a percepo que eles tm de seu passado e do uso
de conhecimentos acumulados em milnios de experincia emprica seja
algo mais que um conjunto de prticas primitivas e brbaras. Sem a
utilizao da roda ou animais de trao, os povos indgenas descobriram
e domesticaram mais da metade dos sete gros alimentcios
correntemente comercializados no mundo de hoje, alm de parte
substancial dos produtos agrcolas das prateleiras dos
supermercados. o milho, a batata doce, a macaxeira, o tomate, o
amendoim, a pimenta, o chocolate, a baunilha, o abacaxi, o mamo, o
maracuj e o abacate. Para se ter uma idia da contribuio dos povos
indgenas para a agricultura atual, basta imaginar como seria a
nossa vida se apenas contssemos com espcimes nativas do hemisfrio
norte. Teramos basicamente uma oferta de alcachofra, sementes de
girassol, avel, nozes e groselha. Ou seja, a utilizao dos recursos
vegetais dos ndios da floresta tropical fez com que a agricultura
moderna fosse mais diversificada e de alta produtividade. Os
Estados Unidos, por exemplo, escaparam de ser um pas de groselhas
para se transformar numa potncia agrcola incomparvel. Somente o
mercado mundial do milho rende mais de US$ 12 bilhes anuais. Outro
segmento da economia moderna que muito tem lucrado com as milenares
descobertas indgenas a indstria farmacutica. Nas ltimas dcadas,
algumas dezenas de pesquisadores intitulados de etno-botnicos,
buscaram conhecer os segredos dos velhos pajs e encontraram indcios
de que substncias extradas de plantas da floresta podiam curar ou
controlar certas doenas. A comercializao de substncias extradas de
plantas tropicais excede a US$ 6 bilhes dlares por ano, apenas nos
Estados Unidos, mas nenhum centavo revertido em benefcio dos povos
indgenas que originalmente possuam o conhecimento. Eis porque, ao
dissipar as brumas ainda densas de um passado perdido, com o
reconhecimento cada vez maior das conquistas culturais e econmicas
das antigas civilizaes que povoaram a regio antes dos europeus, no
apenas ficar estabelecido um trao de unio entre a selva e nossos
supermercados e farmcias, mas estar sendo dada a verdadeira razo
para a valorizao dos recursos naturais da Amaznia e o direito
histrico de suas populaes usufrurem dessas riquezas. SEGUNDA PARTE
A CONQUISTA INVENTANDO A AMAZNIA Entre a chegada dos primeiros
europeus e o fim do sistema colonial, 250 anos se passaram. Foram
tempos de conflito e de muito sangue derramado, em que um mundo
acabou em horror e um outro comeou a ser construdo em meio ao
assombro. A Amaznia foi inventada nesse tempo, porque antes era a
terra do vero constante,
a terra em que se ia jovem e voltava velho, a terra do sem-fim,
o mundo primevo da selva tropical e suas sociedades tribais
densamente povoando a vrzea e espalhando-se pela terra firme. Em
250 anos, os europeus se mostraram extremamente repetitivos.
Chegaram em busca de riqueza e se deram conta da falta de
mo-de-obra. Assaltaram as populaes indgenas, apresaram escravos,
mas a carncia de mo-de-obra persistiu. Esse ciclo comeou muitas
vezes, com as populaes indgenas pagando um preo elevado. A Amaznia
como hoje a conhecemos fruto dessa cega perseverana. Os
colonizadores pensaram em construir uma unidade produtiva, mas s
lograram demarcar uma fronteira econmica. O PRIMEIRO EUROPEU Em
1499, um capito espanhol mandou seu galeo rumar ao sul, singrando
as guas do Caribe, e se deu conta de que estava navegando em gua
doce. Ele mandou que recolhessem amostras da gua, provou e ficou
surpreso ao saber que navegava num mar de gua potvel. O nome dele
era Vicente Yaes Pinzon e tinha sido companheiro de Cristvo
Colombo. Pinzon desembarcou onde hoje fica a cidade do recife e
tomou posse daquela terra em nome do rei da Espanha. Ele tinha
velejado ao longo da atual costa brasileira, desembarcado algumas
vezes, mas sempre confrontando por bem-armados e ferozes nativos.
Como era norma entre os conquistadores, Pinzon achou que tinha
atingido a ndia. Ele acreditava ter navegado para alm da cidade de
Catai e atingido um territrio no muito distante do Ganges. A
presena de gua potvel avanando mar afora foi interpretada por
Pinzon como resultado da "correnteza de muitos rios a descer de
montanhas". Pinzon mandou que o galeo apontasse para a terra e
ancorou na boca daquele imenso rio. Em volta, at onde a vista
alcanava, havia um labirinto de ilhas, algumas to grandes que
facilmente poderiam ser confundidas com o continente. A gua tinha
perdido o azul-turquesa do oceano Atlntico e ganhado uma colorao
pardacenta que reverberava em tons de bronze os raios do sol
poente. Pinzon deu ao rio o nome de "Santa Maria de la Mar Dulce".
FRANCISCO ORELLANA Foi um jovem espanhol da Estremadura, Francisco
Orellana, o primeiro europeu a conduzir uma expedio pelo Mar Dulce
descoberto pelo capito Pinzon. Sabemos muito pouco sobre a vida de
Orellana, mas provvel que ele tivesse alguma ligao com a famlia
Pizarro e viesse da mesma provncia, da cidade de Trujilo, onde
nascera por volta de 1511. Aparentemente ele deixou a Espanha ainda
adolescente, viajando para as ndias em busca de riqueza, como
tantos outros espanhis. Era muito corajoso, de temperamento
explosivo, e h registro de sua passagem, em servio, pela Nicargua,
antes de tomar parte da conquista do Peru, durante a qual se
revelou um fiel partidrio dos irmos Pizarro e, tambm, perdeu um
olho. Em 1540, Francisco Orellana conseguiu vencer os ndios da
costa equatoriana e fundou a cidade de Santiago de Guayaquil. No
mesmo ano, Gonzalo Pizarro chega a Quito, na qualidade de
governador da provncia, e comea a organizar uma ambiciosa expedio
para conquistar e tomar posse dos desconhecidos territrios
orientais. Gonzalo Pizarro pensava em dois objetivos. Primeiro,
encontrar as terras do interior do continente, o outro lado da
muralha andina, onde se dizia que a canela crescia em grande
profuso. Embora o lucrativo negcio das especiarias estivesse em mos
dos portugueses, Pizarro sonhava em romper com esse monoplio. O
segundo objetivo, mais fantasioso mas no menos improvvel que o
territrio da canela, era encontrar o fabuloso reino do El Dorado. O
EL DORADO Uma das lendas mais persistentes e que mais incendiou a
imaginao dos conquistadores foi a do El Dorado. Pas fabuloso,
situado em algum lugar do noroeste
amaznico, dele se dizia ser to rico e cheio de tesouros que,
segundo a lenda, o chefe da tribo recebia em todo o corpo uma
camada de ouro em p e a seguir se banhava num lago vulcnico. A
lenda do El Dorado era to recorrente nos primeiros anos da
conquista da Amaznia que muitos aventureiros encontraram um destino
trgico na sua busca. Sir Walter Raleigh andou buscando esse pas em
sua ltima e desastrada expedio ao Orenoco, seguindo os espanhis na
Venezuela. Em busca do El Dorado tambm foram para as selvas outros
europeus, como portugueses, franceses, holandeses e irlandeses.
Embora as informaes sobre o El Dorado tenham vindo exclusivamente
de lendas indgenas, os espanhis acreditam nelas cegamente. Mas no
se deve estranhar esse fato, porque os espanhis tiveram experincias
to extravagantes no Novo Mundo que o El Dorado no parecia menos
real. AS PRIMEIRAS TENTATIVAS ESPANHOLAS NA AMAZNIA Gonzalo Pizarro
no foi exatamente o primeiro espanhol a organizar uma expedio para
entrar na selva tropical. Em 1538, por exemplo, Pedro de Anzures
liderou 300 espanhis, 4.000 ndios e, inexplicavelmente, algumas
moas mais bonitas de Cusco, atravs das escarpas orientais dos
Andes, chegando at a selva. Anzures tambm tinha ouvido falar do El
Dorado, mas os rigores da natureza o obrigaram a voltar. A expedio
resultou em sofrimentos terrveis, com os espanhis tendo de comer os
prprios cavalos e sucumbindo s doenas e fome. Morreram de fome 143
espanhis e os outros chegaram a Cusco como mortos-vivos. A maioria
dos ndios morreu, e os que sobreviveram se alimentaram dos cadveres
dos que tinham morrido de fome. A EXPEDIO DE GONZALO PIZARRO Em
fevereiro de 1541, Gonalo Pizarro partiu de Quito, conduzindo 220
cavaleiros armados e encouraados, milhares de lhamas para
transporte de alimentos, 2.000 porcos, 2.000 ces de caa - enormes e
ferozes ces que os espanhis atiavam contra os ndios, dando origem
expresso "atirar aos ces", largamente utilizada ainda hoje. A tropa
era tambm reforada por 4.000 ndios da montanha, condenados a morrer
no clima mido e calorento da selva. Francisco Orellana, que estava
em Guaiaquil, chega depois da partida da expedio, exausto e quase
sem dinheiro, devido aos gastos para equipar seus 23 seguidores.
Assim mesmo, embora com pouco comida e ignorando as advertncias das
autoridades de Quito, Orellana segue em busca de seu lder,
sobrevivendo aos ataques de ndios e logrando alcanar a tropa quando
j estava quase passando fome. Orellana e seus seguidores estavam
sem nada, apenas com suas armas, mas foram recebidos com alegria
por Gonzalo, que deu a Orellana o ttulo de comandante geral das
foras combinadas. Desde as primeiras semanas, a expedio sofre
pesadas baixas. Em menos de quinze dias, mais de 100 ndios j tinham
morrido de frio e maltratos. Mas, quando entraram na selva, as
coisas ficaram ainda piores. Chovia muito e a gua enferrujava os
equipamentos e limitava a visibilidade. O terreno era pantanoso,
com lama e muitos rios para atravessar. Cavalgar num terreno como
esse era impossvel, o que fragilizava os espanhis. Quando as
condies realmente se tornaram difceis, Pizarro decidiu avanar com
oitenta espanhis a p. Caminharam durante dois meses, com algumas
baixas, e encontraram rvores de canela, mas to afastadas umas das
outras que no ofereciam interesse econmico. Ao encontrar ndios,
Pizarro perguntava onde ficavam os vales e as plancies, mas esta
era uma informao que ningum sabia dar. Invariavelmente Pizarro
atiava seus ces contra os ndios ou matava um por um com requintes e
crueldade. Finalmente, depois de muitas privaes, Pizarro decidiu
voltar. Mas encontraram uma tribo que lhes falou de um reino
poderoso, muito rico, que existia mais abaixo do rio. Esta era uma
histria que qualquer um teria inventado para se ver livre daqueles
arrogantes visitantes, mas os ndios no contavam com a
brutalidade
de Pizarro. O chefe da tribo foi feito prisioneiro, e os que
resistiram foram trucidados a tiros de arcabuz. Quase dez meses
depois, eles ainda estavam no rio Napo, tinham perdido praticamente
todos os ndios trazidos de Quito e comido quase todos os porcos.
Pizarro no tinha muitas opes e a mais razovel teria sido voltar.
Mas os espanhis no estavam no Novo Mundo para praticar a cautela e
o senso comum. Por isso, quando Orellana se ofereceu para embarcar
no bergantim e descer o rio em busca de comida, Pizarro aceitou,
mas advertindo-o que deveria regressar em menos de quinze dias. O
bergantim foi carregado comas armas de fogo, toda a carga pesada e
um pouco de comida. Orellana ia comandar sessenta homens, inclusive
um cronista, frei Gaspar de Carvajal, conterrneo de Orellana e
Pizarro, que tinha vindo ao Peru para estabelecer o primeiro
convento dominicano no pas. O CRONISTA DA EXPEDIO Abrimos as pginas
de frei Gaspar de Carvajal, em "Relacion del Nuevo Descubrimiento
del Famoso Rio Grande de las Amazonas", e o que vemos uma linguagem
mediadora para a ao missionria da conquista. O mundo que Carvajal
transforma em escritura um mundo que se abre em suas surpresas para
pr prova a vocao missionria. uma paisagem que no contm apenas
novidades surpreendentes, coisas portentosas, bizarras alimrias,
mas tambm, e sobretudo, uma limitao que no pode ultrapassar os
dogmas da f. Descendo o grande rio, enfrentando duras provaes, a
paisagem no seno paisagem para o destino maior do cristianismo
sobre a terra. Esse ascetismo retrico est sempre a um passo do
exerccio de tapar os ouvidos aos gritos dos exterminados e
escravizados. A gama de observaes nesse relato curiosamente ingnua.
H muitas noes que, se consideradas do ponto de vista da cultura
europia, foram dosadas por Carvajal com forte acento medievalista.
Ele era um homem mergulhado na mstica salvacionista da
contra-reforma e procurava sempre reforar suas prprias convices,
limitando o visvel da regio observada e ampliando os seus mistrios.
A Amaznia inaugurava-se para o Ocidente numa linguagem que a
furtava inteiramente e que preferia a alternativa de uma conveno
quase sempre arbitrria. Mas, a partir do instante em que o
bergantim levanta ferros, no texto de frei Gaspar de Carvajal que
podemos acompanhar a trajetria de Orellana. A DESCIDA PELO REINO
DOS TUXAUA GUERREIROS Carvajal conta que, j no terceiro dia de
viagem, o bergantim abalroou um tronco flutuante e um rombo se
abriu no caso da embarcao. O fato s no acabou com a viagem porque
estavam perto da margem, em guas rasas, e puderam rebocar o
bergantim para o seco, onde o consertaram. Mas estavam sem nenhuma
comida e, nos trs dias seguintes, embora navegassem em boa
velocidade devido correnteza, atravessaram uma regio totalmente
desabitada. No dia 1 de janeiro de 1542, eles navegavam ainda pelo
rio Napo e ouviram distante rumor de tambores. Orellana ordenou uma
severa vigilncia, com os homens armados e prontos para repelir
qualquer ataque. Dois dias depois, eles encontraram a aldeia. Os
ndios mostravam suas armas e no pareciam amigveis, mas os espanhis
atacaram com tanta ferocidade que a aldeia foi tomada em questo de
minutos. Para a sorte dos homens de Orellana, havia muita comida, e
eles tiveram seu primeiro almoo decente em semanas. Quando os ndios
voltaram, no final da tarde, Orellana demonstrou seu talento para
idiomas e, usando uma lngua que ele tinha aprendido com ndios do
rio Coca, conseguiu que lhe indicassem o chefe. Quando este se
apresentou, Orellana deu-lhe um abrao e presentes, conquistando sua
confiana. Para Orellana, era hora de voltar para Pizarro. A viagem
estava sendo muito penosa e navegar contra correnteza no ia ser
fcil. Mas o regresso no estava nos planos dos demais espanhis, e
alguns logo procuraram Orellana e argumentaram que a melhor opo
seria seguir em frente, baixando o rio. De incio, Orellana
resistiu, mas os homens comearam a deixar claro que estavam
dispostos a tudo, at mesmo a trair seu comandante. Como homem
prtico, Orellana aceitou lider-los na viagem rio abaixo e decidiu
mandar construir um barco maior. Num ltimo esforo para manter um
contato com Pizarro, Orellana pediu a ajuda de voluntrios e mandou
trs emissrios, que partiram de volta no dia 2 de fevereiro de 1542.
A viagem prosseguiu, sempre com a ajuda dos ndios, que lhes
ofereciam alimentos. Orellana dera ordens para que os ndios fossem
tratados com amizade, e essa poltica estava dando bons resultados.
Orellana sabia como se aproximar deles e aprendia rapidamente seus
idiomas. Carvajal comenta que "depois de Deus, o seu entendimento
das lnguas foi o fator pelo qual ns no sucumbimos". Quando
finalmente entraram nas guas do grande rio, foram informados de que
estavam no territrio do grande Aparia, um poderoso chefe tribal.
Emissrios haviam interceptado os espanhis, oferecido aves e
tartarugas como presente e informado que eram enviados pessoalmente
por Aparia. Os espanhis foram, assim, guiados at o aldeamento do
grande chefe, onde foram bem recebidos, puderam descansar e de onde
partiram em 24 de abril de 1542. Em duas semanas, as duas embarcaes
tinham deixado o territrio de Aparia e penetrado nas terras do
chefe Machiparo, que no foi cordial e combateu os espanhis durante
vrios dias. As margens do grande rio eram densamente povoadas, mas
raramente Orellana lograva desembarcar e conseguir alimentos. No
dia 3 de junho eles alcanaram a boca do rio Negro. Carvajal
descreve o fenmeno do encontro das guas, com as guas escuras do
Negro correndo por entre o amarelo do grande rio, at a absoro
total, sem deixar trao. O nome de rio Negro foi dado pelo prprio
Orellana, sendo o nico dos nomes que permanece at hoje. A expedio
prossegue e, no dia 7 de junho, vspera de Corpus Christi, os
espanhis tomaram um pequeno povoado, quase s de mulheres, de onde
comearam a recolher toda a comida que pudessem carregar. No final
do dia, os homens da aldeia regressaram e deram com os espanhis
ocupando suas casas. Tentaram um ataque, mas recuaram perante as
armas de fogo, reagrupando-se na floresta. Por volta da meianoite,
os ndios atacaram e comearam a infligir algumas baixas aos
espanhis, que estavam dormindo. Orellana ento gritou para os seus
homens: "Vergonha! Vergonha, cavalheiros, eles no so nada. A eles!"
E a situao se inverteu contra os ndios. Essa foi uma das poucas
ocasies em que Orellana agiu como um tpico conquistador espanhol,
ordenando que a aldeia fosse incendiada e mandando enforcar os
prisioneiros. Ao partir, aps a missa de Corpus Christi, deixaram
para trs alguns ndios na ponta da corda e as casas, em chamas.
Depois desse incidente, Orellana e seus homens nunca mais
acampariam em aldeias indgenas, restringindo os desembarques ao
mnimo necessrio. Mas alguns dias depois, conforme j tinham sido
avisados pelo chefe Aparia, eles entraram no territrio da rainha
Amurians, ou a "Grande Chefe". Era uma rea bastante, com enorme
populao, mas bastante hostil. Na primeira tentativa dos espanhis de
desembarcarem para conseguir comida, mereceram um ataque to feroz
que tiveram de disputar cada centmetro de cho at conseguir voltar
aos barcos, onde uma esquadra de canoas j os cercava. Entre os
feridos estava frei Gaspar de Carvajal, que recebeu uma flechada na
coxa e, mais tarde, em outra escaramua, uma flechada num dos olhos.
O que mais tinha espantado os espanhis era a presena de mulheres
entre os guerreiros. Carvajal as descreve como mulheres de alta
estatura, pele branca, cabelos longos amarrados em tranas, robustas
e nuas, vestidas apenas com uma tanga. Um ndio que cara prisioneiro
no primeiro combate serviu de informante a respeito daquelas
mulheres. Interrogado por Orellana, ele contou que as mulheres
viviam no interior da selva e todo aquele territrio lhes pertencia.
Suas aldeias eram feitas de pedra e somente mulheres podiam viver
nelas. Quando desejavam homens, elas atacavam os reinos vizinhos e
capturavam os guerreiros. Se a criana nascida fosse mulher, era
criada e ensinada nas artes da guerra que elas to bem conheciam. Se
fosse homem, a criana, quando no era morta, era entregue ao pai. A
histria narrada pelo ndio a mesma que seria contada para sir Walter
Raleigh e repetida 200 anos depois para o cientista Charles Marie
de La Condamine,
bem como para Spruce, 300 anos mais tarde. Mulheres guerreiras
comandadas por uma matriarca um mito comum aos povos do rio Negro,
mdio Amazonas e Orenoco. Da talvez a presena constante da histria
ao longo dos sculos, com uma fora capaz de convencer La Condamine,
Spruce e o historiador Southey, sem falar da ambigidade de Humbold
a respeito do assunto. Quando a atingiram a boca do Tapajs, os
ataques cessaram. Os espanhis estavam exaustos e assustados com um
tipo de arma que os sditos das mulheres guerreiras usavam, e lhes
era desconhecido. Tratava-se da flecha embebida em curare, e o fato
de os ndios terem usado tal arma contra os espanhis mostra muito
bem o quanto estavam desesperados, pois normalmente s utilizavam
flechas envenenadas para a caa, no para a guerra. Ao atingir a boca
do rio Tapajs, os espanhis tiveram sua ltima batalha com os ndios.
Quase acabou em desastre, porque o bergantim menor se chocou contra
um tronco, comeou a afundar e teve de ser levado a uma praia, para
ser consertado. Mal chegaram terra, foram atacados pelos ndios, e
Orellana, mais uma vez, mostrou seu talento de comandante,
dividindo seus homens em duas tropas, metade para consertar o barco
e a outra para resistir ao ataque. Quando conseguiram navegador,
buscaram um lugar deserto, onde tivessem condies de realmente
consertar as embarcaes e prepar-las para a navegao no mar. durante
dezoito dias eles trabalharam, confeccionando novos mastros,
costurando os velames e adicionando um convs superior e bombas
rudimentares. Ao chegar boca do rio, eles tiveram dificuldades em
navegar vela. Todo o avano que faziam com os panos contravento era
perdido na preamar. Finalmente, no dia 29 de agosto de 1542, eles
deixaram o grande rio e, quase sem comida, sem bssola, sem piloto
ou mapas, avanaram para o norte. Nesse mesmo dia os barcos se
separaram, levados pelas correntes. O bergantim maior, no qual
Orellana e Carvajal viajavam, passou ao norte de Trindade e, depois
de escapar das correntes do golfo do Paria, deu no porto de pesca
da ilha chamada Cubgua, onde j estava o bergantim menor, e foram
bem recebidos, tratados e alimentados. Quando a aventura de
Orellana se tornou conhecida, o grande rio nunca mais foi chamado
de Mar Dulce. Agora era o rio das Amazonas. Frei Gaspar de
Carvajal, depois de passar um bom perodo na Espanha, regressou ao
Peru e viveu at os 80 anos, ocupando vrios postos na hierarquia
eclesistica de Lima. Quanto a Orellana, seu primeiro ato de
regressar Espanha foi requerer ao rei ttulo de governador das
terras que tinha descoberto e que agora ele chamava de Nova
Andalusia. O ttulo lhe foi outorgado, mas o rei no lhe forneceu
recursos financeiros para equipar uma nova expedio. Mesmo assim,
Orellana no esmoreceu: emprestou dinheiro, empenhou tudo o que
tinha e armou quatro navios, que os fiscais reais consideraram
inadequados para a empreitada. Sem permisso para partir, vendo seus
homens beira de uma rebelio e vislumbrando um futuro de misria na
Espanha, Orellana partiu assim mesmo. Mas a roda da fortuna girava
agora contra ele. Uma doena abate a tripulao quando param em
Tenerife para abastecimento. Noventa e oito homens morrem neste
porto, e Orellana agora s pode contar com trs navios. Mais tarde,
outro navio naufraga, antes de atingirem a boca do Amazonas.
Finalmente, Orellana atinge o arquiplago de Maraj e tenta avanar
rio Amazonas acima. A expedio contava com poucos sobreviventes,
insuficientes para fundar uma colnia. Orellana, doente, perde-se no
labirinto de ilhas e nem sequer consegue encontrar o brao principal
do rio Amazonas. Num dia qualquer do final de agosto, faminto e
desesperado, ele morre. Seu corpo enterrado numa das margens do
Amazonas, provavelmente o nico tmulo digno dele. A REVELAO DA
AMAZNIA Como a narrativa de frei Gaspar de Carvajal vem provar, a
revelao da Amaznia foi um verdadeiro impacto para os europeus. Uma
verdadeira coliso cultural, racial e social, que, como em toda a
Amrica Latina, provocou as mesmas contradies que se repetiram ao
longo do caminho da empresa desbravadora. Tanto os espanhis
quanto os outros europeus no haviam experimentado, alm do
contato com a tradicionalssima cultura do Oriente, um conflito de
tamanha proporo como o que se operou na Amaznia. E, se nas reas do
litoral atlntico e pacfico esse conflito foi sumariamente esmagado,
na Amaznia ele se tornou crnico. Milnios de formao cultural
desenvolvida no trato da selva tropical separavam os povos indgenas
dos europeus. Por isso, o contato jamais seria pacfico e uma
coexistncia bem-sucedida se tornaria impraticvel em terras
amaznicas. O fato de as sociedades indgenas transitarem
satisfatoriamente pela regio, obrigando o branco europeu a acat-las
sem seus mtodos de sobrevivncia e trato com a realidade, j era um
ultraje inconsciente para o cristo civilizado. Em nenhum momento
Carvajal esboa qualquer referncia a respeito da supremacia cultural
do ndio na Amaznia. Para o cronista, somente um ponto era comum
entre o ndio e o branco: a violncia com que atacavam ou se
defendiam. Por isso, as sociedades indgenas deveriam ser
erradicadas e os povos amaznicos destribalizados e postos a servio
da empresa colonial. As crnicas dos primeiros viajantes so de
escrupulosa sobriedade em relao aos sofrimentos dos ndios. Por meio
desses escritos instala-se para sempre a incapacidade de reconhecer
o ndio em sua alteridade. Negaram ao ndio o direito de ser ndio.
Ele, o selvagem, vai pagar um alto preo pela sua participao na
Comunho dos Santos. E com o seqestro da alteridade do ndio, ficou
seqestrada tambm a Amaznia. OS ALEMES: PRIMEIROS COLONOS Mais os
fracassos de Pizarro e Orellana no foram suficientes para impedir
que outros exploradores tentassem a sorte na Amaznia. Entre 1530 e
1168(?), dezenas de expedies descem dos Andes para a selva
tropical, enfrentando os mais terrveis obstculos, doenas, fome e
perigos, em busca de riquezas infinitas. Contrariando as crnicas da
conquista da Amrica, no foram espanhis ou portugueses os primeiros
europeus a tentar um modelo de colonizao na Amaznia. Foram,
surpreendentemente, os alemes. Em 1528, o imperador Carlos V, da
Espanha, outorgou aos comerciantes da cidade de Augsburg o direito
de posse de uma parte da costa da Venezuela. Os alemes ali se
estabeleceram sob a direo de Ambrosio de Alfinger, que dois anos
depois comandou uma expedio de 200 espanhis e alemes em direo
Amaznia. Durante a expedio, Alfinger mostrou-se extremamente cruel
com os ndios. O alemo aprisionava os ndios e os mantinha
acorrentados pelo pescoo - em srie - a um grilho e uma longa
corrente, o que dificultava a soltura de qualquer um deles, com
exceo daqueles que ficavam nas pontas. Assim, era muito comum
Alfinger mandar decapitar aqueles que ficavam cansados ou doentes,
para evitar que a corrente fosse desfeita. A expedio durou um ano,
e no final os ndios se rebelaram e assassinaram Ambrosio de
Alfinger. Em 1536, George de Spires, sucessor de Alfinger, conduziu
outra expedio, atingindo os rios Vaups e Caquet, cobrindo uma
distncia de 800 milhas. A expedio no teve nenhum lucro e nem
conseguiu estabelecer colonos na rea, embora no haja notcias de
choques com os ndios. Em 1541, outro alemo, de nome Philip von
Huten, viajou pelo rio Caquet, por onde perambulou quase um ano,
faminto e desorientado, conduzido apenas pelas histrias contadas
pelos ndios sobre o fabuloso El Dorado. Ao voltar para o litoral da
Venezuela, encontrou a povoao alem ocupada por piratas espanhis, e
foi decapitado. No mesmo ano as autoridades espanholas retiraram
dos alemes a concesso daquele territrio, encerrando, assim, a
participao teutnica na conquista da Amaznia. OUTRAS TENTATIVAS
ESPANHOLAS Enquanto isso, os espanhis estavam ativos em busca do El
Dorado. Em 1566 foi a vez de Juan Alvarez Maldonado, o mais
formidvel cavaleiro do peru, que desceu
dos Andes com uma tropa bem-provisionada. Mas, ao chegar selva,
irrompe uma rebelio que divide em duas a expedio. As duas partes
lutam entre si com uma ferocidade que as leva beira da extino, e os
sobreviventes so facilmente capturados pelos ndios e mortos.
Maldonado consegue sobreviver e regressa a Lima trs anos depois. Na
mesma poca realizou-se a expedio de Martin de Proveda, que levou
sua tropa pelo rio Putumayo e terminou em Bogot, sem encontrar ouro
ou canela. PEDRO DE URSUA, GUZMAN E LOPE DE AGUIRRE Mas a expedio
mais famosa do perodo foi a realizada em 1560 por Pedro de Ursua,
Fernando de Guzman e o desvairado Lope de Aguirre. Tudo comeou
quando uma populao inteira de ndios do litoral brasileiro,
provavelmente tupinambarana, chegou a Quito, onde pediram asilo.
Eles estavam fugindo das atrocidades dos portugueses e tinham
iniciado sua migrao h dez anos, fugindo dos horrores que estavam
acontecendo no litoral atlntico. Esses ndios contaram aos espanhis
que haviam encontrado muito ouro, especialmente na terra dos omgua.
No era novidade associar ouro com os omgua, porque esses ndios h
muito negociavam peas de ouro por pedaos de ferro, com os
portugueses, e tinham chegado a oferecer o mesmo tipo de barganha
aos espanhis. Pedro de Ursua acredita nos relatos dos ndios e
resolve organizar uma expedio. Ursua era um homem cauteloso,
conhecia os desastres pelos quais as outras expedies tinham
passado. Por isso, comea estabelecendo um posto s margens do rio
Huallaga, onde constri alguns botes e manda um grupo avanado
coletar comida e conhecer o terreno. Mas desde o incio as coisas no
andaram bem. Ursua sabia dos rigores do terreno, mas no podia
imaginar at onde iria a ferocidade de seus compatriotas. J nas
semanas iniciais, ele obrigado a sufocar tentativas de motins e
insubordinao. Ursua, que decidira levar sua amante, dona Inez de
Atienza, no teve a mesma cautela na escolha de seus homens. O Peru
tinha acabado de atravessar um perodo turbulento de guerra civil
entre os espanhis e agora tentava organizar uma administrao. Mas
havia muitos homens procurados pela Justia por sedio, e foi
justamente entre esses descontentes que Ursua foi escolher. E em
pouco tempo os incidentes foramse transformando em revolta aberta.
Para alguns historiadores, Ursua no estava comandando uma expedio
composta por aventureiros e conquistadores, mas por bandidos e
assassinos. Por isso, embora ele fosse um comandante rigoroso, que
punia os amotinados e desertores, a disciplina nunca foi totalmente
estabelecida. Para completar, Ursua no era um fidalgo, no tinha
essa distino capaz de submeter seus homens. O nico na expedio que
tinha um ttulo era Fernando Guzman, sempre inclinado a apoiar
Ursua, at o dia que este mandou prender seu criado. Da em diante,
Guzman aceitou a proposta dos rebeldes e decidiu comandar a
expedio, depois de abandonar Ursua e seus seguidores numa das
margens do rio. nesse momento que entra o verdadeiro responsvel
pela situao, o terrvel Lope de Aguirre. Aguirre era um homem
revoltado, que s pensava em poder e agia por meio de surtos de
selvageria e petulncia. Quando Gusman optou pelo simples abandono
de Ursua e seus partidrios, Aguirre achou pouco e no concordou.
Esperou por um momento favorvel, at que um dia Ursua atou sua rede
numa margem do rio Putumayo, meio afastados dos outros, e resolveu
descansar. Aguirre veio, ento, com outros homens de sua confiana.
Ursua perguntou o que eles desejavam, mas a resposta foram golpes
de espada que o feriram de morte. Apavorados, alguns homens
tentaram se eximir, escrevendo uma carta ao rei, afirmando lealdade
e tentando explicar o seu gesto sob a justificativa de que Ursua
era um tirano. Mas, ao apresentarem o documento a Aguirre, este o
assinou pondo ao lado de seu nome o epteto de traidor, deixando
claro que nenhum deles merecia o perdo das autoridades espanholas.
E, para completar a rebeldia, Aguirre apontou Guzman como prncipe
do peru, ao mesmo tempo que concedia pedaos de terra no territrio
para os amotinados.
Inez de Atienza teve sua garganta cortada pessoalmente por
Aguirre, que tambm fez questo de executar todos os que haviam
demonstrado qualquer sentimento em relao a Ursua. Ao chegarem boca
do Juru, Aguirre reuniu seus homens e caram sobre Guzman,
massacrando todos os seus partidrios. Da em diante, a sucesso de
crimes e assassinatos enorme. A expedio desce o Amazonas em noventa
e quatro dias, e mais setenta dias no mar, at atingir a localidade
de Margarita, uma ilha do Caribe. Aguirre desembarcou numa praia
prxima a Margarita e atacou a vila de surpresa, dominando-a em
pouco tempo. Seus dias de tirano aterrorizaram os habitantes, pois
ningum estava a salvo e, sob a menor suspeita, a pena sempre era a
morte. Quando j estava de aterrorizar Margarita, Aguirre rumou para
o continente e tomou a localidade de Barburata, de onde logo avanou
terra adentro, em direo ao Peru. De Barburata, Aguirre mandou uma
carta ao rei da Espanha, cujo teor considerado um testemunho de
loucura e megalomania. Nessa carta Aguirre afirmava que pretendia
tomar o Peru e se transformar num monarca. Mas, no caminho, uma
tropa de espanhis intercepta o esfarrapado exrcito e o desbarata.
Sozinho, abandonado em sua tenda, apenas na companhia de sua filha,
o ensandecido Aguirre sabe que chegou sua vez. E busca um fim
condizente consigo mesmo: acaba com a vida da filha a punhaladas,
no momento em que chegam os soldados, fazendo com que at mesmo
aqueles homens duros e calejados hesitem diante do quadro. Um
deles, revoltado, aponta o arcabuz e atira, acertando-o de leve. -
Errou o alvo - ele grita, sarcstico. Um outro soldado, tambm
enfurecido, dispara seu arcabuz e acerta diretamente no peito de
Aguirre. - Este fechou as contas - foram suas ltimas palavras,
antes de cair morto. ANTECEDENTES DE UM BRBARO Pouco se sabe da
vida de Aguirre antes de ele aparecer na crnica negra da conquista.
O inca Garcilaso de La Veja faz referncia a um homem chamado
Aguirre em certa passagem de sua obra, e, se for a mesma pessoa, o
fato de certa forma explica o dio que o homem tinha s autoridades
peruanas. Segundo Garcilaso, uma tropa de 200 soldados espanhis
deixou a cidade de Potosi, em 1548, usando ndios para transportar
suas bagagens. De acordo com a lei, os ndios no deveriam ser usados
para tal servio. As autoridades resolveram escolher um soldado para
receber a punio, como exemplo, e esse soldado era Aguirre. Como
Aguirre no tinha dinheiro para pagar a multa, foi condenado a
receber 200 chibatadas. Insultado, e por considerar a chibata uma
punio degradante, Aguirre peticionou, informando que preferia ser
condenado morte. Mas as autoridades no lhe deram ouvido: ele foi
atado a um cavalo, levado ao tronco, onde foi despido e aoitado.
Para se vingar, Aguirre esperou meses que o juiz deixasse o cargo e
passou a segui-lo por todos os lugares, at encontrar-se frente a
frente com seu desafeto, algum tempo depois, em Cusco, quando o
matou com golpes de espada. Amigos de Aguirre esconderam-no das
autoridades, e conta Garcilaso que ele fugiu de Cusco disfarado de
escravo negro. A viagem de Aguirre no teve um relator. Logo no
incio ele assassinou o frade cronista, e sua expedio somente
mereceu a ateno de um texto em 1623, quando o padre Simo escreveu o
excelente relato "La expedicion de Pedro de Ursua y Lope de Aguirre
en la busca del El Dorado e Omgua". IMPORTNCIA DOS RELATOS durante
a fase da conquista e da penetrao que o relato pessoal e surpreso
dos viajantes vai desempenhar na cultura o papel que a economia da
coleta e pesquisa da selva representou para a economia da
conquista. Foram esses relatos que serviram, posteriormente, em
grande parte, para orientao, classificao e interpretao
da regio como literatura e cincia; foram eles, perscrutadores do
fantstico e do maravilhoso, que permitiram o conhecimento das
coisas visveis e invisveis, anunciando a futura expresso do enigma
regional numa peculiar escritura. A Amaznia abria-se aos olhos do
Ocidente com seus rios enormes dantes nunca vistos e a selva pela
primeira vez deixando-se envolver. Uma viso de deslumbrados que no
esperavam conhecer tantas novidades. As narrativas dos primeiros
viajantes imitaram essa perplexidade e, como representao - quer
fossem uma lio ou necessidade -, ofereciam ao mundo uma nova
cosmogonia: dramaturgia de novas vidas ou espelho de novas
possibilidades, tal era o esprito de todas elas, enunciando e
formulando o direito de conquistar dos desbravadores europeus. OS
ANDES BARRAM OS ESPANHIS No final do sculo XVI, os espanhis
pareciam cansados e pouco preocupados com a Amaznia. Trabalhavam
arduamente para manter e fazer prosperar suas colnias
sul-americanas e caribenhas, enquanto os portugueses se mostravam
mais interessados em suas povoaes no litoral sul do Brasil. Em
1850, com a morte de Dom Sebastio, rei de Portugal, a Espanha anexa
o pas e fica soberana toda a pennsula ibrica. A sujeio de Portugal
vai durar at 1640, com a vitria surpreendente das tropas
portuguesas em Aljubarrota. NOVAS INVESTIDAS EUROPIAS Mas
justamente no final do sculo XVI que os outros europeus vo redobrar
suas tentativas de marcar presena na regio. Ingleses, franceses,
irlandeses e holandeses vo aparecer e fundar fortificaes e
povoados. Desde 1595, depois da primeira viagem de sir Walter
Raleigh ao Orenoco, os ingleses demonstraram interesse em
estabelecer plantaes na Amaznia. Os primeiros, no entanto, seriam
os holandeses. Em 1599, eles navegaram sem problemas atravs do rio
Amazonas e estabeleceram dois fortes, Orange e Nassau, no rio
Xingu. Comearam a plantar acar e tabaco e a estabelecer contato
pacfico com os ndios. Em 1604, a vez dos ingleses se estabelecerem
no Orenoco e, em 1610, sir Thomas Roe navega rio Amazonas acima,
criando duas colnias na boca do rio. Assim, por volta de 1620,
vrias povoaes de europeus podiam ser encontradas na Amaznia
oriental, tais como a dos irlandeses na Ilha dos Porcos, a dos
ingleses nos rios Jar e Paru, os franceses no Maranho e os
holandeses nos rios Gurup e Xingu. A REAO LUSITANA Os portugueses
logo se mostraram preocupados e resolveram agir. Em 1615, uma
expedio comandada por Francisco Caldeira Castelo Branco expulsou os
franceses do Maranho e avanou para o norte, fundando a cidade de
Santa Maria de Belm, na baa do Guajar. Em 1623, chega a vez dos
outros europeus. O governador de Belm toma os fortes de Orange e
Nassau, derrotando foras combinadas de ingleses, franceses e
holandeses. Finalmente, em 1625, sob o comando de Pedro Teixeira,
os portugueses esmagam os ltimos postos dos ingleses, irlandeses e
holandeses ainda existentes. Numa das batalhas, tropas irlandesas
se entregam, confiando no fato de serem catlicos. Pedro Teixeira,
no entanto, no era exatamente um homem religioso e 54 deles foram
massacrados e os restantes feitos prisioneiros. Em dez anos, os
portugueses se tornaram os ocupantes indisputveis da Amaznia. PEDRO
TEIXEIRA Tanto os ingleses quanto os holandeses limitaram-se a
estabelecer um posto colonial na boca do rio Essequibo. Quando a
Pedro Teixeira, seu nome ficou to associado regio quanto o de
Orellana, j que ele foi o primeiro a realizar a viagem pelo
Amazonas, do oceano Atlntico em direo aos Andes - uma expedio
que
foi exemplo de disciplina, logstica e organizao dos portugueses.
O padre Christobal de Acua escreveu os relatos dessa expedio,
fazendo pela primeira vez a descrio sucinta dos habitantes das
margens do Amazonas. Quase cem anos tinham se passado desde
Orellana, quando Pedro Teixeira despontou em Quito, recebido com
muitas festas e mal-disfarada desconfiana pelos espanhis. Para a
maioria dos povos da Amaznia, todo esse vai-e-vem de europeus
ensandecidos pela cobia tinha sido pouco percebido. Mas o prprio
padre de Acua quem vai relatar ter encontrado tropas de portugueses
preadores de ndios at mesmo nas lonjuras do Tapajs. Os anos
despreocupados dos povos indgenas tinham chegado ao fim. O CHOQUE
CULTURAL NO CESSAR MAIS importante que nos detenhamos nesse choque
da histria para notarmos como os povos originrios da Amaznia, fora
participante do ministrio da regio, passam a ser o objeto do
colonialismo na primeira e decisiva subjugao. o momento em que a
regio vai ter seu universo pluricultural e mtico devassado e
destrudo, desmontado pela catequese e pela violncia e lanado na
contradio. Durante a colonizao como era o vale pensado? Como os
relatores organizaram a figura da regio? E, se verdade que as
coisas reveladas possuam um valor alm do relatrio, como possvel
pelo menos estabelecer a forma segundo a qual esses escritos
constituram uma primeira demonstrao de expresso tpica de uma regio
lanada na contradio? Afinal, em "Nuevo Descubrimiento del Gran Rio
de las Amazonas", o padre Christobal de Acua (1641) j havia
reduzido o ndio categoria da zoologia fantstica: "Dizen que cercano
su habitacin, a la vanda del Sur en Tierra firme, viuen, entre
otras, dos naciones. La una de enanos, tan chicos como criaturas
muy tiernas, que se llama Guayazis, la otra de una gente que todos
ellos tienen los pies al reus, de suerte quien no conociendo los
quisiese seguir sus huellas, caminaria siempre al contrrio que
ellos. Llmanse Mutayus, y son tributarios a estos Tupinambs
(...)".1 Esta exposio pblica de uma suposta natureza aberrante do
ndio, vinda de uma tradio medieval j identificada, aparece nos
relatos do sculo XVI como parte da convenincia em massacrar a
realidade. O escrnio do ndio como ente primitivo e brbaro
instaura-se na moldura da paisagem paradisaca. Quando a aventura
espiritual passa a se exercitar como um plano de saque e
escravizao, no veremos surgir um Bartolomeu de Las Casas que grite
contra o genocdio como prtica constante dos colonizadores, posio
que muito honra o pensamento espanhol. Veremos, sem dvida, debates
escolsticos sobre a natureza humana do ndio. E, quando acontece um
desentendimento srio entre o destino terreno e a preparao do ndio
para o cu, este ser apenas transferido da zoologia fantstica para
um captulo do direito cannico. Em todo caso, ser negada sempre sua
alternativa como cultura. O ndio nunca ter voz, como bem podemos
notar no mais esclarecido dos cronistas, o jesuta Joo Daniel
(1776), em "Tesouro Descoberto do Rio Amazonas". Joo Daniel, vtima
da perseguio pombalina, morrer na priso por representar uma
corrente de pensamento mais prxima do Renascimento, mais humanista
que os zelos legalistas dos preadores: "(...) s desde o ano de 1615
t 1652, como refere o mesmo Padre Vieira, tinham morto os
portugueses com morte violenta para cima de dois milhes de ndios,
fora os que cada um chacinava s escondidas. Deste cmputo se pode
inferir quo inumerveis eram os ndios, quo numerosas as suas
povoaes, e quo juntas as suas aldeias, de que agora apenas se acham
as relquias. E se os curiosos leitores perguntam: como se matavam
to livremente, e com tal excesso os ndios? Podem ver a resposta nos
autores que falam nesta matria. Eu s direi, que havia tanta
facilidade nos brancos em matar ndios, como em atar mosquitos, com
a circunstncia de que estavam em tal desamparo e consternao os
tapuias, que tudo tinham contra si, de sorte, que chegando os
brancos a alguma sua povoao, faziam deles quanto queriam; e se eles
estimulados o matavam, era j caso de arrancamento, e bastante para
se mandar logo contra eles uma escolta, que a ferro e fogo tudo
consumia (...)"2 Contra aquele mundo anterior ao pecado original,
de um aparente fatalismo to contrrio ao otimismo expansionista da
contra-reforma, os portugueses carregavam,
em suas caravelas e na ponta de seus arcabuzes, a prosa da
verdade teolgica do mundo sobre a terra e sua gente submetida. Era
conveniente que os relatos se aproximassem da natureza e se
afastassem dos simulacros de assustadora humanidade. Os ndios
estavam confinados ao captulo da queda e da infidelidade teolgica
original. Mesmo Joo Daniel, que se estende muitas vezes em denncias
e acusaes contra os leigos preadores e que, quando trata dos ndios,
se aproxima da etnografia como se conhece hoje, no consegue escapar
dessa certeza: "(...) Tinha este missionrio praticado, e descido do
mato uma nao, e como era zelozssimo, depois de arrumar, e dispor
estes, partiu outra vez para o centro do serto a praticar outras
naes. Eis que um dia, antes de chegar o prazo da sua torna viagem,
estando os primeiros roda de uma grande fogueira deu um pau, dos
que estavam no fogo um grande estalo, e ouvindo-o os tapuias,
gritaram - a vem o padre, a vem o padre! - e no se enganaram,
porque da a pouco espao chegou, sem ser esperado. E quem lho disse,
seno o diabo naquele sinal do estrondo, e estalo do pau? Desta, e
muitas outras semelhantes profecias bem se infere, que j por si
mesmo, e j (por) pactos comunica muito com eles o diabo, de cuja
comunicao nasce o no acreditarem aos seus missionrios, quando lhes
prope os mistrios da f, e as obrigaes de catlicos, porque o demnio
lhes ensina o contrrio (...) Bem sei, que podia ser algum anjo, mas
como estes favores so mais raros, e poucos os merecimentos para
eles, especialmente em tapuia, fica menos verossmil este juzo".3 A
LGICA DA CONQUISTA FORMOU A COLONIZAO Os conquistadores trabalhavam
com paixo, e a prtica da escravizao daqueles homens desnudos e que
pactuavam com o diabo era, para eles, uma prtica justa. Eram
selvagens concupiscentes e com poucos merecimentos, o outro, o
reverso da humanidade, aqueles que estavam no limbo da luz divina.
Os relatores no podiam escapar desse carter nem podemos obrig-los a
contrariar uma estrutura fechada como a da empresa portuguesa. Eles
tinham que partilhar de tudo e nunca suscitar conceitos fora da
mecnica teolgica. OS DIFERENTES MODELOS COLONIAIS DOS ESPANHIS E
PORTUGUESES Os portugueses mais do que os espanhis, souberam
manipular o cristianismo como uma ideologia do mercantilismo,
estreitando o corredor de observaes dos relatores, eliminando
sempre os pruridos iluministas que tentassem se infiltrar na viso
da terra conquistada. O conquistador espanhol, fazendo constantes
apelos idia de servio (de Deus e ao rei), ampliou consideravelmente
o seu significado. No se v, ao longo da conquista do vale pelos
portugueses, lances de alucinao e febre de saque, como procedem
sempre os espanhis. No somente os portugueses no se defrontaram com
culturas militarmente organizadas como a dos incas, maias e
astecas, como traziam uma concepo estruturada para se apossar da
terra e nela se estabelecer como senhores. Os povos amaznicos
tinham uma concepo mtica do mundo, os portugueses, uma teologia
aguerrida. Era a luta entre o "logos" e o "homem autoritrio".
Partilhando e alimentando-se dessa mstica agressiva, os cronistas
escreveram a interpretao necessria para os portugueses se tornarem
verdadeiramente ofensivos. Essas observaes seriam ociosas se
levantadas do ponto de vista tico e se os seus efeitos j tivessem
cessado. Mas as conseqncias ideolgicas e histricas que disso se
formaram merecem renovar a polemica que comeou com o prprio frei
Bartolomeu de Las Casas, em outro nvel, claro, sem se preocupar com
a validade ou no do mtodo da colonizao portuguesa nos sculos XVI e
XVII. E, j que esse fato hoje inexorvel, s podemos rever uma
postura em relao aos seus efeitos. A bem da verdade, conquistadores
ibricos no foram sempre os demonacos destruidores e assassinos da
negra legenda, nem os cavaleiros e santos da cruzada espiritual,
como descreve a legenda branca. Na empresa colonial, sendo o fim
preciso a conquista de novas regies extrativistas e agrcolas,
equiparvel a crueldade de um Bento Maciel Parente ingenuidade de um
Frei Gaspar
de Carvajal, que fechava os olhos s chacinas e torturas
perpetradas contra os ndios para escrever fantasias sobre as
lendrias "amazonas", que formavam uma tribo s de mulheres
guerreiras. Essas narrativas no somente se identificavam com as
marcas da colonizao, mas tambm com sua linguagem. Assim, toda a
espessura do exterior, os ecos da simulao, e o nexo da analogia, so
apanhados, e relatadas todas as experincias: "(...) golfeira e
muito crianola, toda cheia de grandssimos arvoredos que testificam
sua fecundia, ch, pouco montuosa e to branda, que por vio se pode
andar descalo. Deste clima e deste terreno debaixo da Zona trrida
(de que os antigos no tiveram notcia, e foram de parecer que seria
inabitvel), depois que a experincia mostrou o desengano, houve
autores que imaginaro, que aqui devia ser o Paraso de deleites,
onde nossos primeiros Paes foram gerados".4 Tudo mantido
exteriormente, sustentado e informado por essa prova que mantm a
regio a distncia e louva o detalhe. por meio desse jogo que a
louvao da natureza exuberante tem incio, mas a regio continuar a
ser o que sempre foi, capitulando virgem aos espanhis e
portugueses. A conquista permanece uma figura de retrica e a
narrativa fechada sobre si mesma. A EXPLICAO TEOLGICA DO DIREITO
COLONIAL Terra golfeira e muito crianola, paraso de deleites,
cenrio extico, frutas deliciosas e animais curiosos pareciam dizer
o quanto a regio deveria dobrar-se ao jugo colonial, render-se,
doar-se ou integrar-se para que a empresa tivesse o sucesso que "El
Rei" e o mercantilismo esperavam. Os relatores atravessaram este
maravilhoso acervo humano sem ao menos se dar conta de que ele
poderia dar algo ao futuro. E somente muitos anos mais tarde, sob a
experincia de cientistas e viajantes ilustres, livres dessa
preconceituosa teologia, ainda que carregados de preconceitos em
relao ao clima e ao povo, que foi possvel levantar algo do vu que
embotava as marcas originais da Amaznia originria. A natureza
amaznica surgia para o cronista da mesma forma primeira em que Deus
a havia legado aos destinos do mercantilismo. As maravilhas
naturais eram um sinal da certeza absoluta da transparncia teolgica
do mundo. As narrativas contavam sobretudo aquilo que Deus havia
designado na nomeao da Gnesis. Assim como o rio era grande e as
rvores possuam realeza, a posse dos colonizadores ibricos j estava
ungida nessas similitudes. Bastava que o Papa decretasse
solenemente um tratado, para que a linguagem reconhecida se
transformasse em poltica. A INQUIETANTE PRESENA DOS NDIOS O desfio,
porm, vinha daqueles homens selvagens, os filhos degradados da
Torre de Babel, separados e castigados da Comunho dos Santos. Por
isso, a louvao da natureza que Deus doara aos conquistadores, alm
de reconhecer e classificar o visvel, levava os cronistas a
desvanecer o direito de posse do ndio, criatura que vivia no espao
vazio deixado na memria pela disperso da humanidade. Mas o ndio
tambm possua memria que inquietava e, se no dava ao hbito de louvar
a natureza, reconhecida com veemncia o seu direito a ela:
"Concordamos que h um s Deus, mas quanto o que diz o Papa, de ser o
Senhor do Universo e que havia feito merc destas terras ao Rei de
Castela, este Papa somente poderia ser um bbado quando o fez, pois
dava o que no era seu. E este Rei que pedia e tomava esta merc,
devia ser louco, pois pedia o que era dos outros. Pois venham
tom-la, que colocaremos as vossas cabeas nos mastros (...)"5
Respostas como esta, de um tuxaua da regio do Sinu, na atual
Colmbia, desconcertavam os conquistadores. Sendo os ndios tambm
derivados daquela humanidade esquecida da dispora, era preciso
traz-los fora para a Aliana de Deus, isto , integrlos na empresa
econmica da colonizao. Os conquistadores viram e observaram dos
ndios a vivncia nas matas, exatamente aquilo que os povos indgenas
preservavam fragmentariamente da primeira
nomeao teolgica. Como os judeus, esses filhos desgarrados de
Israel precisavam ouvir a boa nova, sorverem as palavras da nova
lei trazida pelo cristianismo. Da o rigor das investidas militares
e a forma de crnica com projetos de observao etnogrfica. Esse rigor
teolgico domina em sua segurana todo o perodo da conquista: no
refletir o que foi visto nos elementos "selvagens", mas o que os
europeus sabiam da natureza humana, ou seja, o conhecimento da
natureza humana elaborado pelos doutores da Igreja e que se
esgotava na graa divina. Foi a partir da comparao idealizada desses
brbaros margem do cristianismo com o cristo civilizado que a
cultura europia do Iluminismo criou o conceito de "homem natural",
verso leiga da natureza humana. Os racionalistas do sculo XVIII
sublimaram a voracidade da conquista do Novo Mundo, para dela
extrair o "homem natural", um novo ndio vestido pelos
enciclopedistas, ressurgido como legislador puro diante da legislao
romana, obsoleta e feudal. O melhor exemplo est no captulo XXXI de
"Dos Canibais", nos "Ensaios" de Michel de Montaigne (1580), e na
novela de Voltaire (1767) "O Ingnuo, Histria Verdadeira". No texto
de Montaigne, ndios tupinambs do Brasil visitam a Corte de Carlos
IX, em Ruo, e mostram-se horrorizados comas diferenas de classe; em
Voltaire, um ndio huro, da Amrica do Norte, pe em xeque as
estruturas da sociedade europia, simplesmente pelo fato de levar a
srio e s ltimas conseqncias essas mesmas estruturas. Mas antes
desse renascimento racionalista, em que realmente o ndio permanece
ainda distante, o "selvagem" atravessou o projeto de restituir os
fatos ao seu concatenamento teolgico. Todos os cronistas
trabalharam nesse sentido, pois a observao cientfica, como se
conhece hoje, s aparece no fim do perodo colonial. Frei Gaspar de
Carvajal, Christobal de Acua, padre Joo Daniel ou o capito Symo
Estacio da Sylveira especializaram os conhecimentos, ao mesmo tempo
segundo a forma teolgica, imvel e perfeita, e segundo a linguagem
econmica do mercantilismo, perecvel, mltipla e dividida.
Encontramos essa viagem tambm em Maurcio de Heriarte, na sua
"Descrio dos Estados do Maranho, Par, Gurup e o Rio das Amazonas",
que engloba o que v num texto de muitas citaes e figuras de
vizinhanas; em Joo Felipe de Betendorf, na "Crnica da Misso dos
Padres da Companhia e Jesus no Estado do Maranho", subordinado tudo
prescrio da contra-reforma; e em Jos de Morais, na "Histria da
Companhia de Jesus na Extinta Provncia do Gro-Par", que pe tambm em
destaque esse privilgio teolgico sobre a linguagem. O PADRE ANTNIO
VIEIRA De certo modo, escapa dessa unidade o padre Antnio Vieira,
que chegou ao Par em 1655. Esse importantssimo representante da
crnica colonial brasileira fica profundamente escandalizado com a
inrcia e a promiscuidade da capital provincial do vale, revelando
em suas pginas um sabor crtico muito especial, num outro extremo do
costume literrio de ver a regio. Essa primazia da crtica de
costumes em Vieira no , apesar de tudo, um fenmeno suficiente para
escapar da similidade teolgica. Antes de se opor aos baixos
costumes dos colonos, ele mergulha nas impresses da natureza, em
que "os homens so uma gente a quem os rios lhes rouba a terra" e
fala dos "destroos e roubo que os rios fizeram terra". Depois,
feroz defensor que era da utopia jesuta, do direito universal de
todos os povos se unirem livremente em Cristo, sem olhar para os
ndios preados e descidos, ele investe contra a corrupo moral dos
colonos, mais interessados em contabilizar os ganhos que embelezar
o reino de Deus: "Novelas e novelos so duas moedas correntes desta
terra: mas tem uma diferena, que as novelas armam-se sobre nada, e
os novelos armam-se sobre muito, para tudo ser moeda falsa".6
Antonio Vieira assim revelava a diferena superficial dos interesses
religiosos coma dinmica comercial da provncia. um dos raros
momentos de variante
nos discursos, importante num quadro sempre uniforme. Sabe-se,
tambm, que a fria de Vieira foi menos fruto da observao que uma
irritao direta e justificativa em relao vigarice de certos
comerciantes quanto a seus interesses particulares. Mas esse
desagradvel acidente, pondo o cronista em situao delicada, revelou
com clareza o destino da colonizao ibrica: uma moeda falsa
circulando na regio. O LEGADO DOS CRONISTAS E RELATORES A
literatura colonial de crnicas e relaes legou uma forma determinada
de expressar a regio, particularmente curiosa e assustadoramente
viva. Perdendo suas bases agressivas, as bases ideolgicas que lhe
davam consistncia, essa literatura repete-se quatro sculos e meio
depois, ainda mais conformista e mistificadora que antes. Ao no
distinguir propositadamente o visto do acontecido, o relatado do
observado, construindo-se quase sempre numa louvao desenfreada da
natureza exuberante, mas uma natureza de exuberncia utilitria,
abrindo as portas sua explorao econmica, hoje esse tipo de discurso
apresenta-se com a mesma retrica salvacionista e o mesmo esforo
reducionista em relao aos nativos. O esprito simulador do discurso
colonial legou o velho e gasto conceito de "Amaznia, reserva
natural da humanidade". Contraditoriamente, sua permanncia hoje a
comemorao do assalto indiscriminado floresta, da transformao da
selva em deserto e da tentao de vergar a espinha para as diversas
aes retricas de solidariedade que deseja congelar o primitivo.
Discurso colonial e discurso preservacionista so aparies do mesmo
estoque de arrogncia. Na mo direita, o processo de extermnio dos
ndios e a violao na natureza por uma lgica econmica ensandecida. Na
mo esquerda, o blsamo de um discurso que no mais que a velha tradio
do banquete de palavras, das metforas discrepantes que pintam tudo
em levitaes da gramtica e do significado, numa anacrnica dimenso
equatorial do barroco, para que o homem das selvas nunca se liberte
do primitivismo. TERCEIRA PARTE A COLONIZAO O CENRIO DA ECONOMIA
COLONIAL O perodo colonial deixou traos profundos na Amaznia. Do
mesmo modo como em outras regies marcadas pela conquista, o
processo histrico da Amaznia est perfeitamente inscrito no grande
choque que foi a chegada dos europeus no continente americano. As
investidas dos conquistadores plasmaram as razes histricas e
sintetizaram a controvertida trajetria dos modelos coloniais na
regio. Os supostos avanos do sculo XX no foram capazes de destruir
os laos da regio com a terrvel e fascinante experincia colonial. No
geral, a histria da Amaznia neste aspecto pouco parece diferir das
outras histrias continentais. Portugueses e espanhis enfrentaram a
escassez de mo-de-obra e encontraram nas culturas indgenas uma
resistncia muito grande para se adequar a uma economia de salrios.
A agricultura tropical de trabalho extensivo dos povos indgenas,
altamente desenvolvida, no se coadunava com o extrativismo e a
agricultura de trabalho intensivo dos europeus. Na costa do Brasil
as tentativas iniciais de usar o brao indgena foram substitudas
quase imediatamente pela importao de escravos africanos. Apenas em
algumas reas da colonizao, onde o trabalho escravo era impraticvel,
como na Amaznia, os europeus continuaram tentando forar os ndios
para dentro da lgica econmica da colonizao. O MODELO COLONIAL
HONLANDS Em 1667 uma parte do territrio da Guiana, o Suriname,
invadida e conquistada pelos holandeses, comandados por Crijnssen.
Ali, aps diversas tentativas
de colonizao por parte de ingleses e franceses, j existia uma
sociedade de quatro mil habitantes, inclusive de escravos, que
trabalhavam em pelo menos cento e oitenta fazendas agrcolas. A alta
produtividade e os lucros auferidos pelos colonos do Suriname com
que os ingleses os atacassem, mas as disposies do Tratado de Breda
(1667) davam posse legal aos holandeses, que haviam trocado sua
possesso na ilha de Manhattan por aquele pedao da Amaznia. Tendo
sido o Suriname confirmado como colnia da Zelndia-Netherlands,
muitos fazendeiros britnicos abandonaram suas fazendas e fugiram
para Tobago, levando seus capitais e escravaria. Nos dez anos
seguintes, os holandeses ocuparam as fazendas deixadas pelos
ingleses, mas no conseguiram impedir que a colnia entrasse em
decadncia. Finalmente, em 1683, o Suriname foi vendido a uma
empresa, a Sociedade do Suriname, que investiu e deu um novo
impulso ao territrio. O governador Van Sommelsdyck, homem de grande
experincia administrativa, um dos scios da empresa, organizou a
colnia, abriu novas reas de colonizao, atraiu capitais de
comerciantes de Amsterd e garantiu o suprimento de brao escravo. A
produtividade agrcola foi bastante aumentada com as drenagens em
larga escala do litoral prximo a Paramaribo, centro urbano
protegido pelo Forte Zelndia. Cacau, caf, cana-de-acar e algodo
foram as culturas prediletas durante quase dois sculos. Em 1750, o
Suriname tinha aproximadamente quinhentas fazendas altamente
industrializadas, produzindo dez mil toneladas de acar, sete mil
toneladas de caf, cem toneladas de cacau e cinqenta toneladas de
algodo. Esse modelo de colnia-empresa, que os holandeses montaram
no Suriname, era em escala bem modesta, do ponto de vista
territorial e fundirio, se comparado com os modelos agrcolas de
outros territrios, como as fazendas da Amrica do Sul. Mas a alta
produtividade permitiu que comerciantes holandeses oferecessem seus
produtos tropicais a preos que tiravam o sono de seus concorrentes,
em qualquer parte do mundo. O MODELO FRANCS Enquanto os ingleses e
holandeses se limitaram a fundar pequenas colnias no esturio do rio
Amazonas, a Frana concebeu um ambicioso projeto de conquista do
vasto territrio, que ia da boca do Orenoco, ao norte, at a linha do
Maranho, a sudeste. Em 1603, Ren de Montbarrot recebe do Rei da
Frana o ttulo de Comandante Geral para o Amazonas e Trinidad, arma
dois navios e chega ao Oiapoque em abril do ano seguinte. A
expedio, comandada por La Ravardiere, encontra a regio em plena
guerra, com algumas tribos confederadas em luta contra as tribos
Caribe da regio de Caiena. A expedio, com poucos homens para
enfrentar a hostilidade dos nativos, limitase a recolher
pau-brasil. Oito anos depois, La Ravardiere retorna com uma forte
armada e ocupa a ilha do Maranho, fundando a cidade de So Lus, de
onde os franceses foram expulsos em 1615 por tropas portuguesas. Em
1623, Jess de Forest e Louis le Maire, comandando um grupo de
protestantes franceses refugiados na Holanda, so enviados pela
Companhia das ndias Ocidentais para fazer reconhecimento e fundar
colnias na costa da Guiana. Novamente a instalao dos franceses
dificultada pela hostilidade dos nativos. Em outubro de 1624, morre
Jess de Forest e os franceses no conseguem evitar envolver-se nas
constantes lutas intertribais. Em maio de 1625, os sobreviventes
franceses embarcaram num navio holands e regressam Europa. Muitos
deles retornaro ao continente americano, participando da fundao da
cidade de Nova Iorque. Finalmente, em 1653, os franceses tentam a
conquista de uma parte da Amaznia de forma mais organizada. O
cardeal Mazarino concede o territrio da Guiana a um grupo de doze
nobres, fundado por Royville, cujo objetivo era o estabelecimento
de colonos europeus e a converso dos selvagens. Naquele mesmo ano,
a expedio composta de oitocentos colonos desembarca na Guiana.
Esses "Senhores Associados" vo dar tnica do modelo colonial
francs.
Os nobres senhores eram homens da Idade Mdia, perdidos nas
mudanas do Renascimento, e no se deve estranhar que tenham tentado
repetir na selva tropical o velho sistema feudal j em runas na
Europa. Royville, Poncet de Brtigny, todos eles vivam na iluso de
seus ttulos e no delrio orgulhoso de seus poderes feudais. Homens
brutais e autoritrios, suas disputas degeneraram em mortes antes
mesmo de desembarcarem na Amaznia. Royville assassinado em sua
cama, e, depois de uma srie de motins, outros assassinatos e
sumrias excees, o comando da expedio acaba nas mos de Vertaumont,
um fidalgo cruel e vingativo. Em meio a essas disputas mortais, os
oitocentos colonos se viram tratados quase como escravos e, uma vez
na Guiana, foram obrigados a praticar pilhagem contra os ndios. Em
pouco tempo a situao ficou insustentvel e os ndios, desesperados
pelos constantes ataques e maus tratos, decidiram massacrar os
franceses. Os colonos pagaram, ento, um preo altssimo: seiscentos
perderam a vida e os sobreviventes, quase mortos de fome e misria,
foram obrigados a pedir misericrdia aos ndios, que lhes deram trs
grandes pirogas, com as quais navegaram at o Suriname, onde pediram
refgio. Os franceses conseguiram se estabelecer em Caiena,
penetraram lentamente na regio do Oiapoque, e, em 1697, sob ordens
do governador Frolles, entram novamente no vale do Amazonas. Uma
pequena tropa, bem armada e treinada, ocupa sem resistncia os
fortes portugueses do Paru e Macap, mas a alegria dura pouco
porque, algumas semanas depois, um contingente de soldados
portugueses, sob comando de Antnio de Albuquerque, retoma as duas
fortificaes e prende todos os franceses, inclusive o Padre de La
Mousse, que pretendia fundar misso entre os ndios. Com essa expedio
malograda, os franceses desistem de ocupar o vale do Amazonas, e o
territrio compreendido entre o Oiapoque e o Araguari ficar em
litgio por dois sculos, at que uma arbitragem do Conselho Federal
Suo se pronuncia, em 1900, a favor do Brasil. A Frana, no entanto,
ser a nica potncia europia a manter um enclave colonial na Amaznia,
e na Amrica: a Guiana dita francesa. O MODELO ESPANHOL Barrados
pelas muralhas andinas que dificultavam a penetrao no vale
amaznico, os espanhis praticamente abandonaram a regio aps
sucessivos malogros ocorridos ainda