asília O 35 C br CIDADE-CONCRETO, PURGATÓRIO DA SECA E DO ESPAÇO VAZIO
asília O35 CbrC I DA D E - C O N C R E TO, P U R G ATÓ R I O DA S E C A E D O E S PAÇ O VA Z I O
fotografia Rafaella Panceri
poesiaLuiz Martins da Silva
projeto gráficoRafaella Panceri
agradecimentosPaula Évelyn, Susana Dobal e Luiz Martins da Silva
No dia 15 de outubro de 2014, Brasília registrou a temperatura mais alta do ano. Os termômetros
marcaram 35ºC na hora mais quente. A umidade do ar ficou em 14%, percentual abaixo do recomendado
pela Organização Mundial da Saúde. O limite é de 20%. Por isso, a Defesa Civil decretou estado de
alerta no Distrito Federal. De acordo com o INMET – Instituto Nacional de Meteorologia, esse fenômeno
pode ser explicado por uma massa de ar seco que se formou na área central do país. A tarde de 15 de
outubro foi a segunda mais quente da história climática de Brasília. A maior temperatura já registrada
na cidade foi de 35,8°C em 28 de outubro de 2008.
Debaixo de temperaturas altíssimas, não era raro encontrar pessoas buscando abrigo em marquises,
pontos de táxi, de ônibus e na sombra desenhada pelas árvores. Alguns transformavam guarda-chuvas
em guarda-sóis, outros levavam à cabeça folhas de papel, pastas de plástico e bolsas de qualquer
formato e tamanho. Na falta dos objetos, as mãos eram protagonistas no bloqueio da luz que intentava
contra os olhos – sempre semicerrados, em busca de óculos escuros.
asília O35 Cbr
As construções do Eixo Monumental, neste trabalho, assumem nova forma. São marquises, coberturas
mais que banais, com sua essência revelada: abrigo. Essa transfiguração ocorre porque assim como
água, alimentação e vestuário são necessidades básicas à natureza humana, abrigar-se do sol torna-se
tão instintivo quanto obrigatório debaixo de temperaturas recorde. E o sol em Brasília, nesses dias es-
caldantes, é democrático. Esturrica as maçãs do rosto dos ricos e dos pobres, invade as mansões e as
construções de alvenaria igualmente e sem a menor cerimônia.
Brasília 35ºC é cidade-concreto, purgatório da seca e do espaço vazio. Na tentativa de salvar-lhe a alma
do inferno que é a seca, lembro Clarice Lispector, que na crônica Brasília:1962 nos dá alívio ao dizer
que a alma aqui, ao menos a alma, não faz sombra no chão. Se os corpos são galvanizados, suam por
todos os corpos do mundo e escondem-se nas sombras, a alma está a salvo e tem lugar garantido além
do concreto em chamas.
Esquálido ombro,Escasso negócio,
Proveito de sombra,Fugaz equinócio.
Equilíbrio tangente,Ninguém aparece,Cabeça mecânica
A suster uma prece.
Relógio de pedra,Palácio vazio,Memória em parábolaQue o vento assovia.
Um ombro humanoescora a estética
do anjo em ângulo,Mecenas da vida.
Vendedor ambulante,Que não perambula,Freguês da espera,Comércio de silêncios.
Da terra ao céu,Abrigo vertical.No exato esguio,Geometria astral.
Esquinas de que?Colunatas, sim.Vidas sem dobras,Sertão sem fim.
Eu fui,Eu vim,Eu vou,Eu espero.
Sinos silentes,Apóstolos e pombos.
Esperar que a féFidelize fieis.
Bento e liberto,Outrora caverna.O jovem rupestre,Da cela ao século.
O poder,O pombal,O museu,Orai por nós.
Sob a marquise,Obra de Marte,Espero em mármoreA sombra da sorte.
Nem Atlas, nem Zeus.Já fui candango.Mas, na seca dos céus,Pulmão de calango.