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Apologia de mileBoutroux
Introduo a: mile Boutroux, Aristteles,
Rio, Editora Record, 2000,Vol. 2 da Biblioteca Record de Filosofia.
Traduo de Olavo de Carvalho e CarlosNougu (1)
Introduo e notas de Olavo de Carvalho
Apesar do previsvel boicote da imprensaincultural, o livro de Constantin Noica,As Seis
oenas do Esprito Humano, fez sucesso e aprimeira edio j est quase esgotada. Aindadurante este ms de janeiro ir para aslivrarias, segundo informa a Record, o Volume2 da Biblioteca de Filosofia que essaprestigiosa editora publica em convnio com oInstituto Brasileiro de Humanidades.Trata-se doAristteles de mile Boutroux, amelhor introduo breve ao pensamento deAristteles que algum j escreveu nestemundo. (O volume 3,A Origem da Linguagem,de Eugen Rosenstock-Huessy, est em fase dereviso.) O. de C.
O texto que se vai ler foi redigido inicialmente
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or mile Boutroux como verbete para aGrande Encyclopdie (Paris, 1886) e depoisincludo pelo autor nos seus tudes dHistoirede la Philosophie (1897). Com seus cento etantos anos de idade, ainda uma das
melhores introdues ao estudo da filosofia deristteles (2), e, fora um ou outro ponto
corrigido pela pesquisa mais recente ~ do qualdou cincia nas notas de rodap ~, dificilmentese encontrar um guia mais seguro paraorientar os primeiros passos do estudante queingressa no assunto.
causa dessa vitalidade reside no s noextenso conhecimento que o autor tinha dasobras do Estagirita e de seus comentadoresantigos e modernos, porm, muito mais queisso, na conaturalidade entre seu esprito e o dmestre que ele celebra como encarnaosuprema do gnio grego.
xcetuando-se talvez F. W. von Schelling elix Ravaisson, que o antecederam sob mais
de um aspecto, ningum no sculo XIX estavamais dotado para apreender a intimidade do
ensamento de Aristteles do que o autor de Dla Contingence des Lois de la Nature (1874),ttulo que, para quem sabe do que se trata, j toda uma declarao de aristotelismo.
ara captar o sentido dessa afinidade, reciso compreender o que Boutroux queriadizer com a "contingncia das leis danatureza".
histria das concepes modernas sobre omundo fsico pode-se dividir, grosso modo, emduas pocas: o imprio do mecanicismo e a erada fsica indeterminista. O primeiro origina-seno sculo XVII, com Galileu, alcanando seuapogeu na centria seguinte com Descartes e
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ewton. A segunda esboa-se no sculo XVIII,com Leibniz, mas no alcana sua plenaexpresso seno dois sculos depois, com Max
lanck e Werner Heisenberg. O confrontodesses dois estilos de pensar a natureza
confirma o dito de Arthur O. Lovejoy segundoo qual toda a histria intelectual do Ocidente apenas um conjunto de notas de rodap a
lato e Aristteles. Pois, no sentido maisrigoroso dos termos, o mecanicismo clssico platnico e o indeterminismo moderno aristotlico.
latnico quer dizer, at certo ponto,itagrico. A noo pitagrica de que Deusescreve o livro da natureza em caracteresmatemticos, longo tempo abandonada noOcidente, foi vigorosamente retomada pelacincia renascentista, dando surgimento concepo mecanicista de que, uma vezapreendidas as equaes fundamentais do
universo, tudo o mais se poderia conhecer pordeduo matemtica.
ada mais distante da verdade histrica doque a crena popular de que a nova cincia sevoltou para a observao do mundo natural,negligenciada pelos escolsticos. A primeiraobjeo que estes levantaram contra a leigalilaica da inrcia foi, precisamente, que ela
se opunha aos fatos observados. Galileuinventou, isto sim, o experimentomatematizado, o que o mesmo que dizer: oexperimento idealizado, que no correspondea nenhum fato particular da experincia, massim "frmula" matemtica por trs dosatos. A cincia assim concebida no lidava
com a natureza dada na experincia, mas com
estruturas gerais que, governandoinvisivelmente os acontecimentos naturais, sso apreensveis sob a forma de relaes
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matemticas. patente a inspirao platnicadeste recuo da mente desde a multiplicidadesensvel unidade de umas quantas frmulas.
atematizao quer dizer, desde logo,
simplificao. A antiga cincia aristotlicatambm buscava a simplificao, mas sempre
elo mtodo de remontar dos seres individuaiss suas espcies por meio da abstrao e daclassificao, permanecendo sempreestreitamente referida aos dados sensveis dosquais havia partido. Na cincia renascentista,o que se busca j no a "essncia" ~ o
contedo intelectualmente apreensvel por trsdos dados sensveis ~, mas apenas a frmula, aequao que relaciona uns aos outros essesdados sensveis, independentemente de qualseja a "natureza" dos seres considerados. Emambos os casos a mente procedia porabstrao: mas uma coisa reduzir vriosentes unidade de seus traos comuns,
suprimindo as variaes acidentais, outracoisa reduzi-los a suas medidas, propores erelaes. A descrio cientfica do mundo perdassim em alcance ontolgico e fora explicativo que ganha em preciso matemtica eaplicabilidade tcnica. Todos os dados noredutveis ao modelo matemtico tinham deser excludos da rea de investigao, embenefcio da coerncia do sistema ~ uma perdaque, de incio, no pareceu grave, porque asrelaes matemticas obtidas podiam, emseguida, ser aplicadas de volta naturezasensvel, demonstrando-se exatas. A busca daexatido vai ento cada vez mais substituindoa busca do quid, da essncia, at o ponto emque se torna possvel produzir uma descrioassombrosamente exata e eficaz de algo que
no se tem a menor idia do que seja.
absolutamente errado dizer que a nova
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cincia "derrubou" ou "contestou" o que querque fosse da cincia antiga. Ela limitou-se amudar de assunto, investigando em outrasdirees e respondendo a novas perguntas queamais tinham interessado cincia antiga.
ortemente influenciada por Aristteles, estaltima no acreditava muito na eficcia domtodo matemtico no domnio das cincias dnatureza. As realidades matemticas, segundo
ristteles, so essencialmente fixas eimutveis, no podendo por isto corresponder
erfeitamente aos fatos da natureza, que , pordefinio, o reino da mutao ~ do nascimento
e da deteriorao (genesiV kai ftoraV , gunesiskai ftors). Uma cincia da natureza querocedesse principalmente por medies e
comparaes matemticas chegaria, nomximo, a leis de probabilidade razovel objetda dialtica, muito abaixo do ideal da certezademonstrativa (apodeixiV, apodixis), que erao objetivo supremo da cincia aristotlica.
as, no primeiro momento, nenhum dosrceres da nova escola pensou nisso. Os
sucessos da fsica matematizada eram toestrondosos que qualquer objeo aristotlicaassumia o ar de uma negao insensata do fatconsumado. Toda a mitologia moderna quecontrasta a imagem de uma cincia medieval
uramente lgico-verbalista com a da novacincia voltada para "a observao danatureza" ~ mitologia que ainda transmitidanas escolas, a despeito de j mil vezesdesmoralizada pela pesquisa histrica ~ nasce,
aradoxalmente, dos sucessos obtidos pelaaplicao de modelos matemticos que s sobaspectos muito determinados e limitadoscorrespondiam realidade observada. Para
azer uma idia de quanto a imagemestereotipada da transio renascentista
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chegou a dominar as conscincias, basta verque at um homem da autoridade de Albert
instein chega a proclamar que Galileulibertou a cincia fsica de um jugo aristotlicode mais de um milnio (3). Ora, na poca de
Galileu, no fazia nem trs sculos que asconcepes fsicas de Aristteles tinhamreingressado em circulao no Ocidente, porintermdio de Sto. Alberto Magno, suscitando,em vez de aprovao geral, uma geralhostilidade que s aos poucos foi vencida. Poroutro lado, fato que o aristotelismo dosescolsticos era de tipo muito atenuado pela
mediao da doutrina crist, e que umaristotelismo strictu sensu s vem a surgir, porironia, justamente no renascentismo italiano,com Pietro Pomponazzi ~ isto , no perodomesmo do qual a cultura de almanaquetransmitida nas escolas e manuais popularesdata o fim da hegemonia aristotlica no
ensamento ocidental.
Qualquer que fosse o caso, o sucesso do modelomatemtico, ampliado pelos desenvolvimentosextraordinrios que lhe deu Newton, conferiunova cincia a autoridade de uma novarevelao sinatica. De lado a lado, ocontinente europeu varrido por uma onda dematematismo, que abrange desde as discusseteolgicas at a jardinagem: Descartes apostana converso dos infiis pela argumentaomore geometrico, enquanto nos jardins deVersalhes a vegetao rebelde disciplinadaat reduzir-se ao formato de um tabuleiro dexadrez. Deslumbrada pela claridade dasequaes que aparentemente tudo explicavam(embora sua fora descritiva viesse justamentede haverem desistido de explicar o que quer
que fosse), ainda no sculo seguinte ~ que oda efetiva propagao europia do
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mecanicismo, por meio da obra de Voltairelements de la Philosophie de Newton (1738) ~a exaltao dos entusiastas chega a ver nanova cincia um novo fiat lux, o retorno aomomento primordial da criao:
God said: "Let Newton be!" ~ and all waslight. (4)
Uma das poucas vozes discordantes Leibniz.atemtico ele prprio, e dos maiores, mas
igualmente versado na filosofia escolstica(principalmente portuguesa), que os novos
ilsofos haviam abandonado sem exame, eleadverte que
"nem toda a natureza do corpo consistesomente na extenso, isto , em grandeza,figura e movimento, mas que importanecessariamente reconhecer nela algo quetenha relao com as almas e que sedesigna habitualmente porforma
substancial... Pode-se at demonstrar que anoo da grandeza, da figura e domovimento no distinta como se imagina,e que encerra algo de imaginrio e derelativo s nossas percepes." (5)
ousadia desse pargrafo era tanta, quehistoricamente seu efeito ficaria retido por
mais dois sculos. A poca que acabava deencontrar mais um argumento para omecanicismo na distino de Bacon entre asqualidades primrias e secundrias dosobjetos, isto , entre a grandeza e asqualidades sensveis, acreditando piamente naobjetividade da primeira e na subjetividadedas ltimas, no podia mesmo engolir, danoite para o dia, a escandalosa proclamaode que a grandeza "tem algo de imaginrio" ede que aquilo que h de real e objetivo nos
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seres o seu individual e irredutvelquid ~ aabominvel "forma substancial" dosescolsticos.
ssim, ficou o dito pelo no dito. A "poca das
uzes" faz-se de avestruz, despede-se de Leibnicom as chacotas de Voltaire (que o caricaturasob o personagem do Dr. Pangloss) e deixa asobjees para depois, sem imaginar querenasceriam com fora centuplicada no sculoX.
eibniz, no entanto, j prev que, pelo caminho
matematizante, as cincias iriam acabardesistindo de toda certeza e tendo de secontentar com as probabilidades razoveis deque falava o velho Aristteles. Retribuindo omal com o bem, ele se pe a pesquisar amatematizao das probabilidades,terminando por descobrir o clculoinfinitesimal, incumbido de determinar a
artir de que ponto uma diferena pequena setorna irrelevante, e construindo assim a nicaesperana de que uma fsica reduzida
robabilidade dialtica possa conservar aindao estatuto de cincia rigorosa. A utilidade dosestudos de Leibniz para a cincia do sculo XX incomensurvel.
as, antes que o legado leibniziano pudesse se
retomado, foi necessrio uma longa batalhaara abalar e enfim destruir as falsas certezasem que se fundavam as ambies totalitriasdo mecanicismo, abrindo assim a possibilidadede um retorno modstia do probabilismoaristotlico-leibniziano.
essa luta, a contribuio de mile Boutroux sem dvida de um valor que nem sempre oshistoriadores lhe tm sabido reconhecer. De laContingence des Lois de la Nature ,
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tempo e ao espao, mas, ao contrrio, suaorma mesma de existncia a mudana no
espao e no tempo. Na natureza, ao contrriodo que acontece no domnio lgico formal,
odem acontecer coisas novas, imprevistas. A
necessidade natural existe, sim, mas umanecessidade condicional e relativa. Mais ainda,no um s e mesmo padro de necessidaderelativa que impera em todo o universo, maseste se divide em estratos, que vo subindo danecessidade mais imperiosa at a quasecompleta indeterminao, no vigorando em
arte alguma nem o absoluto determinismo
nem o acaso completo. Da que, sendoimpossvel alcanar uma perfeita exatidomatemtica nas leis gerais da natureza, amatematizao da cincia natural acabetomando a forma de um raciocnio deaproximao probabilstica. (6)
O contingencialismo de Boutroux, se por um
lado revigora as crticas de Aristteles aomtodo matemtico na filosofia natural, poroutro enuncia da maneira mais enftica o
rograma que mais tarde viria a ser realizadoelo indeterminismo de Planck e Heisenberg.
O mais interessante, no caso, que o prprioristteles, ao enfatizar as limitaes do
mtodo matemtico em fsica, no apenas se
abstm de negar toda utilidade a esse mtodo,mas ele prprio lana as bases para o estudomatemtico do movimento, indo, portanto,muito alm do que, na poca renascentista,
uderam perceber tanto seus seguidoresquanto seus detratores (7). Esta observao,
osta em relevo bem recentemente, mostra queo contingencialismo das leis da natureza estava
bem mais prximo do esprito do aristotelismodo que talvez o prprio Boutroux o houvesseercebido.
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evidente que a dvida de Boutroux no era scom Aristteles. Ele aprendeu muito com ateoria do hbito enunciada pelo seu mestre
lix Ravaisson, ao qualDe la Contingence desLois de la Nature dedicado. Segundo
avaisson, a capacidade de adquirir hbitos uma propriedade geral da natureza.
avaisson define o hbito como
"a maneira de ser geral e permanente,estado de uma existncia consideradaquer no conjunto dos seus elementos,quer na sucesso das suas pocas.
Hbito adquirido aquele que conseqncia de uma mudana.
Mas o que se entende especificamentepor hbito, e que constitui o assuntodeste trabalho, no somente o hbitoadquirido, mas o hbito que, emdecorrncia de uma mudana,
contrado em relao a essa mudanamesma que lhe deu nascimento.
Ora, se o hbito, uma vez adquirido, uma maneira de ser geral, permanente,e se a mudana passageira, ento ohbito subsiste para alm da mudanada qual resultado. Ademais, se ele n
se refere, enquanto hbito e por suaessncia mesma, seno mudana queo engendrou, o hbito subsiste por umamudana que j no e que no ainda: por uma mudana possvel; ~ eio sinal mesmo pelo qual deve serreconhecido." (8)
o entender de Ravaisson e Boutroux, as
roclamadas "leis" da natureza so emverdade hbitos, que, embora possam
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ermanecer estveis por um tempoimpensavelmente longo, nada tm de eterno eimutvel.
O contingencialismo no antecipou apenas a
sica de Planck e Heisenberg. Ele tambmresolveu, antecipadamente, todas ascontradies em que viria a debater-se, emseus confrontos com o mecanicismo dascincias fsicas, a escola alem das "cincias doesprito" (Geisteswissenschaften). O
ressuposto bsico de que parte essa escola adistino estabelecida por Wilhelm Dilthey ~
inspirado em Windelband e Rickert ~ entre"compreenso" e "explicao", a quecorresponde outra, entre "sentido" e "causa".Os fatos da natureza, segundo Dilthey,explicam-se pelas suas causas; os fatos dahistria e da cultura compreendem-se pelo seusentido. Esta radical oposio de mtodosentre cincias da natureza e da cultura foi logo
em seguida relativizada por Max Weber, aoalegar que, embora sem aspirar a formularleis causais de ordem geral, as cincias dacultura no podem abdicar totalmente daexplicao causal nem do instrumentalmatemtico.
sta objeo de Weber foi amplamente aceitaelos cientistas sociais, mas pouqussimos
dentre eles tiveram a ousadia de lev-la ssuas ltimas conseqncias. Queconseqncias? Simplesmente isto: Se omtodo causal e matemtico no pode serexcludo da cincias humanas, quem garanteque, reciprocamente, o mtodo compreensivono possa ser aplicado s cincias danatureza? Falar num sentido dos fatos da
natureza , para o mecanicista de estritaobservncia, antema. A natureza tal comoenfocada pela cincia desde Galileu pura
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coisa objetividade muda. Toda tentativa decaptar nos fatos do universo um sentido, umvalor, pura "criao cultural", para no dizerantropomorfismo primitivo. Mas ser mesmoassim? O combate concepo coisista da
natureza comeou, no nosso sculo, damaneira mais modesta, em crculos demarginais e excludos da comunidadeacadmica. O primeiro deles foi Ren Gunon.
m O Reino da Quantidade e os Sinais dosTempos (1945), ele atacou, com base nacosmologia vedantina, a reduo da cincianatural aos aspectos quantitativos, que separa
artificialmente mundo natural e mundohumano, e exigiu um retorno a antigascosmologias que integravam ambos numaviso da natureza como manifestao visvelde realidades espirituais. Titus Burckhardt,um continuador de Gunon, assim resume acrtica do mestre:
"A mais mnima percepo, o fato deque apreendamos com os sentidos umobjeto qualquer, de que oincorporemos rede de imagensinteriores e de que o esprito oreconhea como verdadeiro e real,constitui um processo indivisvel quedemonstra como, neste mundo,condies de tipo muito variado seinserem umas nas outras, umas emmodo espao-temporal, outras emmodo temporal no espacial e outras,ainda, em modo supra-espacial esupratemporal. Disto resulta que arealidade no consiste em merascoisas, mas representa uma ordem deinconcebvel sutileza e multiplicidade
de nveis. Todos os povos que noestejam deformados pela modernidade
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sabem disso. Ter conscincia damultplice gradao interna daexistncia faz parte da experinciaprimordial humana. S em virtude deuma evoluo muito peculiar do
pensamento foi possvel chegar aoponto de aceitar uma cincia baseadaexclusivamente em dados numricoscomo explicao satisfatria docosmos." (9)
mbora Gunon fosse ainda mais fundo nacrtica, demonstrando, em Les Principes du
Calcul Infinitsimal (1952), que a cinciaquantitativista acabara perdendo a noomesma do que era quantidade e entrando comisto nas mais grotescas contradies, acomunidade acadmica fez questo estrita deignor-lo.
as, aos poucos, crticas semelhantescomearam a brotar de dentro do prpriogrmio. Edmund Husserl, talvez o filsofo demaior influncia nos crculos acadmicoseuropeus de sua poca, mostra, emA Crise dasCincias Europias, que a matematizao daimagem da natureza importa em ignorardiferenas decisivas entre estratos darealidade. Uns anos depois, a antroploga
ary Douglas contesta a noo de que todos
os significados entrevistos na natureza porcivilizaes antigas sejam meras "criaesculturais" arbitrrias, sem conexo com
ropriedades objetivas da natureza: semapoio em dados objetivos da natureza,nenhum simbolismo possvel. (10) Osimbolismo natural no apenas existe mas acondio mesma para a existncia das
culturas. O ataque se radicaliza quandoSeyyed Hossein Nasr, laureado historiadordas cincias, lana sobre a concepo
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intemporais. Estes pressupostoserigiram-se em fundamentos dacincia moderna, e do sculo XVII emdiante os princpios imateriaisgovernantes do universo material
foram concebidos como leis imutveismoldadas por um Deus matemtico.
At a dcada de 60, essa velha idiaparecia mais ou menos inquestionvel;o universo mesmo era visto como umamquina eterna, e portanto o quepoderia ser mais natural do que o fato
de leis o governarem? Mas, com arevoluo cosmolgica causada pelateoria doBig Bang, o cosmos tornou-se mais parecido com um organismoem desenvolvimento do que com umamquina eterna. Ele parece ter nascidouns 15 milhes de anos atrs, e ter-sedesenvolvido e crescido desde ento. A
totalidade da natureza evoluiu; um diano houve tomos, nem molculas,nem estrelas ou planetas, nem cristaisou clulas viventes. Todos essessistemas desenvolveram-se no cursodo tempo. Assim, por quecontinuaramos a pressupor que numuniverso em evoluo as leis que osgovernam foram fixadas de antemo,antes at que o universo viesse aexistir?
Por que no explorar a possibilidadede que as regularidades da naturezatenham efetivamente evoludo? Talvezelas dependam de hbitos que sedesenvolvem organicamente dentro do
universo, antes que de leis impostaspor uma mente matemticapreexistente."
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idia de que as regularidades da natureza seassemelham antes a hbitos do que a leiseternas foi proposta por Sheldrake no livroANew Science of Life: The Hypothesis ofFormative Causation ("Uma Nova Cincia da
Vida: A Hiptese da Causalidade Formativa"),em 1981, e desenvolvida em The Presence ofthe Past: Morphic Resonance and the Habits ofNature ("A Presena do Passado: A
essonncia Mrfica e os Hbitos daatureza", 1988).
Essa hiptese postula que os sistemas
auto-organizantes, de todos os nveisde complexidade como tomos,molculas, cristais, clulas,organismos, sociedades, planetas egalxias , so estruturados porcampos especficos chamados camposmrficos, e que estes campos contmuma espcie de memria coletiva
derivada de coisas anteriores da suamesma espcie. Assim, cada cristal deaspirina, por exemplo, ou cada p decarvalho, moldado por um campoque ele mesmo moldado pelainfluncia cumulativa dos cristais deaspirina e ps de carvalho que osantecederam. A influncia dos sistemassimilares anteriores, agindo atravs oupor meio do espao e do tempo, ocorrepelo processo da ressonncia mrfica,que envolve uma ao do semelhantesobre o semelhante. (14)
aracelso ou Agrippa no diriam isso melhor.
teoria da ressonncia traz de volta,recisamente, as velhas noes da analogia,das simpatias, das correspondncias, enfim as
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similitudes (15) to decisivas na filosofiaantiga e medieval da natureza, que a epistemerenascentista acreditava haver banido parasempre e que, historicamente falando, stinham sobrevivido, a duras penas, no interior
do gueto esotrico perpetuamente assediadoela inquisio cientfica moderna.
cincia deste fim de sculo pode no estarainda totalmente livre da contaminaomecanicista, com o seu cortejo de seqelastotalitrias. Mas a ampliao do horizonte das
erguntas possveis foi tal, que hoje em dia
nenhum filsofo ou cientista pode, semincorrer em pecado de dogmatismo que noassar despercebido a ningum, proclamar a
existncia de um abismo intransponvel entre acincia moderna e a cincia antiga e medieval,nem muito menos instalar-se na primeira coma presuno cega com que, ainda em 1932, um
on Brunschvicg, lendo os sbios do passado,
se sentia um homem adulto a ouvir histrias dcrianas. (16)
as, no sculo passado ~ no sculo de Darwine Spencer, de Haeckel e Comte ~, essa
resuno imperava por toda parte, e oestablishment acadmico fazia coro quaseunnime profecia de Renan:
"A cincia no ter destrudo os sonhosdo passado seno para lhes pr nolugar uma realidade mil vezessuperior." (17)
esafiar essa certeza era expor-se chacota,ao boicote, ao isolamento. E o que maisimpressiona, na filosofia francesa do sculoIX, a vigorosa atualidade que apresenta,ara ns de hoje, o grupo de pensadores que,
dentro da prpria cidadela acadmica,
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ousaram opor-se a esse formidvel consenso.er hoje Renan ou Comte, ou qualquer dos
outros profetas do imprio cientfico-materialista, sentir o cheiro inconfundvel damorte e do passado. Ler Ravaisson, Oll-
aprune, Lachelier, mas principalmenteoutroux, entrar numa atmosfera que
nossa e, em certos momentos, conversar comalgum que nos fala, por antecipao, domesmo tipo de cincia que hoje salta do sculoX para o terceiro milnio.
Curiosamente, muito do pensamento desses
recursores permanece desconhecido daquelesque, por descendncia direta ou at mesmoressonncia mrfica, expem hoje idiasanlogas s suas. No pargrafo de Sheldrakeacima citado, fica bem claro que ele ignora porcompleto que a doutrina dos hbitos danatureza j fora exposta, com todas as letras,com mais de cem anos de antecedncia, por
mile Boutroux, partindo de uma idia de seumestre Flix Ravaisson.
em Ravaisson nem Boutroux jamaisesconderam o que suas idias deviam aSchelling, a Leibniz e sobretudo a Aristteles.
dntica dvida tm hoje, sabendo-o ou no, oshomens de cincia que se abrem ao estudo dosimprevistos, das singularidades irrepetveis,
do misterioso acordo entre ordem e desordemque se observa por toda parte num cosmos bediferente da mquina, escrava da ordemmatemtica, imaginada pela cinciarenascentista. (18)A distino de Aristtelesentre um reino celeste e metafsico, regido porleis eternas, e um mundo sublunar ou natural,submetido mudana e capaz de imitar a
estabilidade do primeiro mediante algummeio-termo entre mudana e permanncia, uma idia que ressoa, com toda a sua fora,
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o h, de fato, compreenso mais humilde,mais objetiva e mais profunda de uma filosofiado que aquela que, em vez de "explic-la" pelo"seu tempo histrico", remetendo-a ao museudas idias inofensivas, (21) busca, ao contrrio
compreender-se a si mesma por ela,revigorando a sua fora e a sua luz originriase demonstrando mais uma vez a verdade dasentena de Hoffmansthal: "Para o esprito,tudo est presente."
O Aristteles que o leitor vai encontrar noresente volume ~ e tambm aquele que se
encontrar nas Lies sobre Aristteles, domesmo autor, a ser publicadas em breve nestacoleo ~ no portanto um dado histrico deuma cultura extinta, exibido por umarquelogo, mas um tesouro filosfico ecientfico revivificado por um intrprete capazde "pr em ao os seus recursos inesgotveis".
io de Janeiro, 31 de Julho de 1999
Olavo de Carvalho
NOTAS
1. Utilizamos para a traduo o texto da 4 ed., Paris, Alcan, 1925. Por motivostcnicos, omitimos nesta edio os acentos das palavras gregas citadas.
2. E, para continuar esses estudos, nada melhor que asLies sobre Aristtelespronunciadas por Boutroux na cole Normale Suprieure entre 1879 e 1879,que sero publicadas proximamente nesta coleo.
3. Albert Einstein e Leopold Infeld,A Evoluo da Fsica, trad. Giasone Rebu,Rio, Zahar, 1976, Cap. I ("A ascenso do conceito mecnico").
4. William Blake.
5. Discours de Mtaphysique, 12.
6. Cf. N. Denyer, "Can physics be exact?", em F. De Gandt e P. Souffrin (eds.),LPhysique dAristote et les Conditions dune Science de la Nature. Actes duColloque organis par le Sminaire dEpistmologie et dHistoire des
Sciences de Nice, Paris, Vrin, 1991, pp. 73-83.7. Cf. F. De Gandt, "Sur la dtermination du mouvement selon Aristote et les
conditions dune mathmatisation", em F. De Gandt e P. Souffrin, op. cit., pp.85-105.
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8. De lHabitude (1838), ed. Jean-Franois Courtine, Paris, Vrin, 1984, p. 1. ~Do Hbito uma das edies programadas para a presente coleo.
9. Ciencia Moderna y Sabidura Tradicional, trad. Jordi Quingles y AlejandroCorniero, Madri, Taurus, 1979, p. 9. ~ Uma coletnea de escritos deBurckhardt sobre o tema est programada para a presente coleo.
10. Smbolos Naturales. Exploraciones en Cosmologa, trad. Carmen Criado,Madri, Alianza Editorial, 1988.
11. The Encounter of Man and Nature. The Spiritual Crisis of Modern Man,Londres, Allen and Unwin, 1968 (H traduo brasileira, O Homem e a
Natureza, Rio, Zahar).
12. Raymond Ruyer,La Gnose de Princeton. Des Savants la Recherche duneRligion, 2 ed., Paris, 1977.
13. Op. cit., p. 59.
14. "The principles of universal habit", publicado em: Peter Lorie and SiddMurray-Clark, History of the Future: a Chronology, Londres, PyramidBooks, 1989, pp. 16-19.
15. V. Michel Foucault,Les Mots et les Choses. Une Archologie des SciencesHumaines, Paris, Gallimard, 1966, pp. 32 ss.
16. Lon Brunchvicg,Les ges de lIntelligence, Paris, P.U.F., 1934 (curso daSorbonne em 1932; 4 ed., 1954).
17. Ernest Renan,LAvenir de la Science, emPages Choisies , Paris, Calmann-Lvy, 1890, p. 231.
18. Que Aristteles visse nos astros uma estabilidade e permanncia divinas,confundindo assim com o reino metafsico uma parte do mundo fsico, evidentemente uma aplicao particular errada de uma distino geral que,em si, permanece vlida. Mas tal era a atmosfera de hostilidadeantiaristotlica (no fundo, antiescolstica ou anticatlica) no Renascimento,que a criana foi jogada fora com a gua do banho: ao rejeitar as concepesastronmicas de Aristteles, a nova cincia desprezou, junto com elas, a finadistino entre o domnio fsico e o metafsico, que j continha em seu bojo aantecipao do probabilismo leibniziano. Confundindo o acidental com oessencial, viciou na raiz suas prprias aspiraes de progresso e acabou por
aprisionar-se, pois dois sculos, na iluso mecanicista.19. V. Ren Thom, "Matire, forme et catastrophes", em M. A. Sinaceur (org.),
Penser avec Aristote, Toulouse, res-Unesco, 1991, pp. 367-398.
20. Andr Canivez, "Aspects de la philosophie franaise", em Yvon Belaval (org.),Histoire de la Philosophie, Paris, Gallimard (Bibliothque de la Pliade),1974, t. III, p. 455.
21. V. Olavo de Carvalho, O Futuro do Pensamento Brasileiro, Rio, Faculdade daCidade Editora, 2 ed., 1997, cap. I, 1, "A histria e o sentido daeternidade".
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