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Provao escolar e consagrao social.As classes preparatrias para
as grandes escolas1
Pierre Bourdieu
Resumo
Provao escolar e consagrao social. A ao pedaggica no produz
somente efeitos tcnicos (saberes e saber--fazer inculcados); ela
tambm tem uma eficcia propriamente mgica de iniciao e de consagrao
que pode ser particularmente percebida no caso das escolas de
elite, ou seja, no caso das instituies encarregadas de conferir uma
formao aos que so chamados a entrar na classe dominante. A partir
de uma enquete realizada nas classes preparatrias para as grandes
escolas (Khgnes, taupes) e nas grandes escolas (em particular
Escola Normal Superior e Escola Politcnica), foram analisados os
efeitos tcnicos exercidos pela organizao escolar desses
estabelecimentos, sobretudo as incitaes, as obrigaes e os controles
permanentes postos em prtica nessas instituies para reduzir a
existncia dos alunos a uma sucesso ininterrupta de atividades
escolares, as quais esto no princpio da aquisio do que se pode
chamar de cultura de urgncia, capacidade de mobilizar rapidamente
as ideias e de tratar honrosamente qualquer questo. Mas todas essas
operaes tcnicas dos processos educativos so sobredeterminadas
simbolicamente e preenchem, tambm, uma funo de consagrao. Assim,
pode-se descrev-las como momentos de um ritual de consagrao que
tende a produzir uma nobreza separada, socialmente distinta,
sagrada.
1 Este artigo foi publicado pela Revue Actes de la recherche en
sciences sociales. Ano de 1981, volume 39, nmero 1, p. 3-70, com o
ttulo preuves scolaires et conscration sociale: les classes
prparatoires aux grandes coles. O texto original, em francs, est
disponvel no stio:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1981_num_39_1_2124.
A traduo para o portugus foi realizada por Tiago Ribeiro Santos e
Silvana Rodrigues de Souza Sato e a reviso tcnica por Ione Ribeiro
Valle. Informamos que a pedido da Revue Actes de la recherche en
sciences sociales no adequamos a formatao do texto ao projeto
grfico de nossa revista, garantindo a formatao mais prxima possvel
da original. Justificamos tambm a ausncia das palavras-chaves na
publicao da verso em Lngua Portuguesa, visto que o original no as
possui.
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Epreuve scolaire et conscration sociale [Les classes
prparatoires aux grandes coles]
Rsum
Epreuve scolaire et conscration sociale. Laction pdagogique ne
produit pas seulement des effets techniques (savoirs et
savoir-faire inculqus); elle a aussi une efficacit proprement
magique dinitiation et de conscra-tion qui se laisse plus
particulirement apercevoir dans le cas des coles dlite, cest--dire
dans le cas des institutions charges de confrer une formation ceux
qui sont appels entrer dans la classe dominante. A partir dune
enqute mene dans les classes prparatoires aux grandes coles
(khgnes, taupes) et dans les grandes coles (en particulier cole
normale suprieure et Ecole polytechnique), on a analys les effets
tech-niques exercs par lorganisation scolaire de ces tablissements,
notamment les incitations, les contraintes et les contrles
permanents qui sont mis en uvre dans ces institutions pour rduire
lexistence des lves une succession ininterrompue dactivits
scolaires et qui sont au principe de lacquisition de ce quon peut
appeler une culture durgence, capacit mobiliser rapidement les ides
et traiter honorablement nimporte quelle question. Mais toutes ces
oprations techniques des processus ducatifs sont surdtermines
symboliquement et remplissent, par surcrot, une fonction de
conscration. Aussi, peut-on les dcrire comme autant de moments dun
rituel de conscration qui tend produire une noblesse spare,
socialement distingue, sacre.
Prueba escolar y consagracin social - Las aulas preparatorias
para las grandes escuelas
Resumen
Prueba escolar y consagracin social. La accin pedaggica no slo
produce efectos tcnicos (saberes y saber-hacer inculcados); ella
tambin tiene una eficacia propiamente mgica de iniciacin y de
consagracin que se puede percibir sobre todo en el caso de las
escuelas de lite, es decir, en el caso de las instituciones
encargadas de una formacin que permite a los que son llamados a
entrar en la clase dominante. A partir de una encuesta realizada en
las clases preparatorias para las grandes escuelas (Khgnes, taupes)
y en las grandes escuelas (particularmente Escuela Normal Superior
y Escuela Politcnica), fueron analisados los efectos tcnicos
ejercidos por la organizacin escolar de estos establecimientos, en
especial los incentivos, las obligaciones y los controles
permanentes establecidos en esas instituciones para reducir la
existencia de los estudiantes a una sucesin ininterrumpida de
actividades escolares, las cuales estn en el principio de la
adquisicin de lo que se puede llamar cultura de urgencia, capacidad
de movilizar rpidamente las ideas y de tratar honorablemen-te
cualquier tema. Pero todas estas operaciones tcnicas de los
procesos educativos son sobre determinadas simblicamente y llenan,
tambin, una funcin de consagracin. As, se puede describir como
momentos de un ritual de consagracin que tiende a producir una
nobleza separada, socialmente distinta, sagrada.
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Pierre Bourdieu 21
Provao escolar e consagrao social.As classes preparatrias para
as grandes escolas
Este ou aquele, por exemplo, considera o trabalho, os negcios
como sua vocao. Ei-los portanto
transformados em trabalho sagrado, em negcios sagra-dos, em
sagrado.
(Marx, A ideologia alem)
A ao de educao exerce um efeito real e, se nesse o caso, como
ela o produz? O efeito da
ao educativa pura e simplesmente tcnica o que autorizaria a
aplicar a essa instncia de produo
dos produtores a lgica econmica do clculo dos custos e dos
benefcios? Ou ela de outra ordem,
como sugerem os que, em nome dos valores sagrados da cultura, no
aceitam que se possa reduzir a
educao preparao para o mtier ou, prosaicamente, a uma funo
tcnica tecnicamente definida
no aparelho de produo? Mas, os mesmos que admitem que a funo da
educao seja comunicar
no somente os saberes e o saber-fazer tecnicamente exigidos para
o exerccio de uma funo, mas
tambm as disposies constitutivas do ideal humano realizado que
define a excelncia a um dado
momento do tempo, estariam prontos para reconhecer que a ao
pedaggica que produz essa maneira
permanente de ser e de fazer exerce uma eficcia estritamente
mgica de consagrao? O ensino mais
eficaz pode fazer outra coisa alm de ensinar o peixe a nadar? Ou
seja, o que no pouca coisa,
consagrar, em todos os sentidos da palavra, sua aptido para
nadar? Mas necessrio escolher entre a
hiptese tecnicista ou tecnocrtica que s quer conhecer a eficcia
propriamente tcnica de formao,
medida em saberes e em saber-fazer acumulados, e a que evoca a
eficcia propriamente mgica de
iniciao e de consagrao? No h condies e efeitos tcnicos da ao
simblica?
Para responder a essas questes2, foi preciso escolher um objeto
que as colocasse e as resolvesse
pela sua prpria existncia: um objeto situado e datado, prprio
portanto para ser observado e analisado
empiricamente, as classes preparatrias s grandes escolas3, mas
tratado como caso particular do universo das formas possveis que se
muniu, em tempos e lugares diversos, a escola de elite,
instituio
encarregada de conferir uma formao e uma consagrao aos que so
chamados a entrar na classe
dominante da qual, em sua maioria, vieram (eis o paradoxo).
Pode-se assim submergir na particularidade
de uma instituio particular para apreender, da maneira mais
completa e mais concreta possvel, o que
h de invariante e varivel na sua funo e nos mecanismos atravs
dos quais ela preenche sua funo
tanto na sua dimenso tcnica quanto na sua dimenso mgica. E
propor uma anlise que, escapando
2 As pesquisas sobre as quais se apoia esta anlise foram
realizadas em colaborao com Yvette Delsaut e Monique de Saint
Martin, junto ao Centre de sociologie europenne (CSE).3 As grandes
escolas formam os futuros dirigentes principalmente nas reas
tecnolgicas e administrativas, propondo-lhes um ensino mltiplo ou
especfico (com a durao de no mnimo cinco anos aps o liceu)
reconhecido pelo Estado e assegurando-lhes as melhores
oportunidades de acesso aos cargos pblicos e empresariais de maior
prestgio. (N.T.)
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL22
da alternativa da descrio fechada e da generalizao vazia,
encontra no caso particular apreendido
como variante histrica os elementos de um modelo transistrico,
capaz de dar conta tanto das variaes
quanto das invariantes.
Tomando como exemplo, nesse caso, a lgica da provao inicitica,
que implica a recluso e a ascese e que se apoia sobre qualquer
atividade, lnguas mortas, crquete, futebol ou artes marciais, para
produzir a distino, poder-se-ia interrogar sistematicamente as
variaes que a forma e a natureza das provaes impostas podem
apresentar segundo as tradies nacionais e tentar ligar, por
exemplo, o culto do esporte de equipe das public schools da era
vitoriana, no somente ao anti-intelectualismo que outro efeito das
mesmas causas e que se observa nas outras aristocracias (por
exemplo no Japo), mas, diretamente, s disposies de uma elite
imperial, fundada nos valores militares de loyalty e de submisso
aos interesses do grupo. Mais precisamente, se todas as classes
dominantes pedem s instituies escolares as quais elas confiam seus
herdeiros para preencher uma funo de sociodicia, essa funo no
varia, na sua definio, segundo os fundamentos do poder e do estilo
de vida da classe que se trata de reproduzir ou da frao de classe
que, no momento considerado, domina no centro da classe
dominante?
Para apreender em toda sua complexidade os mecanismos especficos
pelos quais o
sistema escolar produz seus efeitos tcnicos e, sobretudo, seus
efeitos propriamente simblicos, foi necessrio analisar em detalhe a
relao objetiva que est no princpio dessa dupla eficcia:
ou seja, a relao entre as caractersticas objetivas da organizao
escolar e as disposies
socialmente constitudas dos agentes. O milagre da eficcia
simblica desaparece quando se
observa que essa espcie de ao mgica triunfa somente quando
aquele que a experimenta
contribui para sua eficcia, na medida em que est predisposto por
um trabalho pedaggico
prvio a reconhec-la e a suport-la. por isso que a anlise deve
apreender as estruturas
objetivas, que se dedicam observao imediata, na organizao do
tempo e do espao, nas
disciplinas, nas tcnicas de trabalho, e tambm s disposies e
representaes, que contribuem
para a eficcia das estruturas objetivas e que somente podem ser
compreendidas e explicadas,
principalmente nas suas variaes, se se oferece os meios para
lig-las s suas condies
sociais de produo. por isso que a enquete que funda as anlises
aqui propostas precisou reunir um conjunto de
mtodos que as fronteiras entre as disciplinas (entre a
sociologia e a etnologia, a sociologia e a histria,
a sociologia e a psicologia social, etc.) mantm separadas na
rotina ordinria da cincia social. Essa
integrao imposta pelo fato de que nem todos os mtodos permitem
apreender no mesmo grau todos
os fatos. Assim por exemplo preciso repetir sem cessar , o
questionrio fechado, instrumento de
predileo do socilogo, uma soluo, um substituto econmico,
principalmente quando administrado
por escrito, de formas mais caras, mas tambm mais fecundas,
quando so socialmente (e sobretudo
juridicamente) possveis, como a entrevista aprofundada ou a
observao direta. Nunca se acabaria de
enumerar todas as coisas que ele no pode apreender, porque so
fortemente censuradas e profundamente
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Pierre Bourdieu 23
rejeitadas, portanto, acessveis somente a um longo e lento
deciframento de indcios indiretos, seja
porque mantidas secretas por permitirem contradizer a imagem que
a pesquisa (ou o grupo ao qual ele
o porta-voz) pretende dar de si mesma, ou simplesmente pessoais
ou privadas e reservadas s
confidncias, que no podem se dirigir ao primeiro que aparece,
seja porque so simplesmente deixadas
no estado prtico e somente podem ser apreendidas de fora e por
um terceiro, por meio de uma longa
observao, atravs dos detalhes frequentemente mais nfimos das
prticas ou dos discursos4. Mas o
essencial est menos nos limites dos diferentes instrumentos do
que na ignorncia desses limites que
leva a fazer com que tudo o que eles no apreendem no exista ou,
pior, com que tudo o que eles fazem
existir apesar de tudo exista. A resistncia das enquetes s
tcnicas de objetivao mais brutais ou
ao uso mais brutal e mais mecnico dessas tcnicas nem sempre se
inspira numa nica preocupao:
defender a verdade contra o desvelamento; ela tambm pode ser uma
defesa contra a simplificao
reducionista, insensvel s nuances, aos detalhes, s diferenas, e
incapaz de dar razo experincia
encantada ou mistificada, mas como tal, completamente real, que
fazem do universo objetivado os que
tm uma experincia subjetiva, ou, se se quer, indgena.
Esse retorno reflexivo sobre os instrumentos e os trmites da
pesquisa se impe ainda mais
quando se trata de analisar, num caso particular e
particularmente familiar, um processo de consagrao
bem feito, como todo fenmeno de crena, visando colocar o
pesquisador diante da alternativa de
exterioridade brutalmente redutora e da participao encantada,
dois olhares sobre o objeto mais ou
menos favorecidos pelas diferentes tcnicas disponveis,
questionrio fechado, anlise estatstica,
entrevista livre, interrogao de informantes, observao
etnogrfica, anlise de documentos de
arquivos, de textos literrios, e, last but not least,
autoanlise. O que torna particularmente difcil a
objetivao completa dos jogos intelectuais , paradoxalmente, o
fato de que os intelectuais, que se
definem objetivamente pela pretenso ao monoplio de sua prpria
objetivao, multiplicam as quase
objetivaes de suas prprias determinaes. Assim, as brincadeiras
de instituio sobre a instituio, as que florescem por exemplo
durante os rituais do trote, neutralizam e desmontam a parte de
verdade que comportam: a pretenso lucidez e distncia irnica que
se exprime apenas uma
maneira especialmente dissimulada de aceitar os pressupostos de
uma instituio que espera que seus
membros mantenham distncia em relao instituio5. Assim, entre
outras coisas, a necessidade de interrogar, mais do que nunca, o
estatuto epistemolgico implicitamente conferido s citaes
4 Um indcio dos limites que as cincias sociais se impem ou
aceitam sem saber pode ser visto no fato de que os especialistas
quase nunca evocam sem dvida porque no esto expostos a encontr-los
os obstculos jurdicos para a obteno e publicao da informao que
fazem com que setores inteiros do universo social estejam fora das
apreciaes da cincia. O segredo, que uma forma de propriedade
privada, juridicamente protegida como tal, e tambm uma das espcies
do sagrado, defendido contra o desvelamento sacrlego, indissocivel
do poder, fazendo com que o pesquisador, quer queira ou no, quer
saiba ou no, esteja sempre engajado numa relao de foras com seu
objeto, frequentemente, sem outra escolha que no enganar ou ser
enganado.5 Eis um exemplo entre mil dessa relao de falsa liberdade:
A escola normal tem como primeira virtude no existir, o que,
convenha-se, muito raro (R. Brasillach. Notre avant-guerre. Paris:
Plon, pp. 55-57, citado em A. Peyrefitte (d). Rue dUlm, Chroniques
de la vie normalienne. Paris: Flammarion, 2 d., 1963, p. 163).
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL24
de trechos de entrevistas, de textos, de documentos, que o uso
distrado da rotina profissional leva
a tratar indiferentemente como prova emprica das teses avanadas
(o que pe a questo do nmero
e da representatividade) ou como confirmao terica das anlises
propostas (o que atribui ao autor
dos propsitos citados uma lucidez cientfica milagrosa), quando
eles no esto l, simplesmente,
como datum brutum, abandonado ao leitor por um pesquisador
demissionrio. O que significaria
por exemplo o fato de citar um texto em que Zola diz muito bem,
e sem dvida porque ele est
particularmente bem situado para v-los, e diz-los, alguns dos
melhores aspectos escondidos da
Escola Normal Superior (ENS) e dos normalistas: Algum que tenha
se banhado no ar da Escola
Normal estar impregnado dele pelo resto da vida. O crebro guarda
um odor montono e mofado
de professorado, que lembra sempre das atitudes speras, das
necessidades de palmatria, de surdos
desejos impotentes de velhos rapazes que fracassaram com
mulheres. Quando esses galhardos
so espirituosos e ousados, quando tm novas ideias, o que
acontece s vezes, eles as cortam em
pedacinhos ou as deformam pelo tom pedaggico de seu esprito,
tornando-os inaceitveis. Eles no
so, no podem ser originais, porque so produto de um adubo
particular. Se voc semear professores,
jamais colher criadores6? Estratgia sutil de distanciamento,
como na Rua dUlm onde se observa
um liberalismo de aristocratas, ou instrumento de persuaso,
voltado destruio da crena que
ope a autoridade autoridade? E, de modo mais sutil, que valor de
verdade se poderia atribuir
citao um ou outro testemunho de khgneux7 ao revelar a verdade
sobre a preparao na khgne
ao bacharelado8: A qualidade dos professores decepciona muito,
salvo excees. Eles nos foram
a rotina. Eles no nos permitem muita independncia na organizao
do trabalho. Esse ensino da
khgne se volta unicamente aprovao no concurso de final de ano.
Utilizam-se apenas esquemas,
truques. No se modifica nada. Esse ensino no um ensino de
cultura, no instigante. Ele no
nos traz grande coisa fora do interesse imediato pelo concurso.
Casos excepcionais de lucidez, que
se precisaria explicar e desmentir, das anlises sobre o efeito
de imposio da crena ou expresses
tpicas da conscincia dupla que define a f como m f?
Essa outra forma de no realizao, mais perniciosa ainda, que
produz o uso distrado e
mundano de conceitos emprestados da etnografia ou da histria,
como rito de passagem, man-darinato, casta ou nobreza: quando no se
pede simplesmente para duplicar num frisson de
exotismo a evocao narcsica de um folclore exclusivo, esses
conceitos de senso comum semieru-dito, que aparentemente favorecem
a objetivao pelo efeito de distanciamento, permitem, de fato,
como com frequncia o caso nas cincias humanas, contentar-se com
a meia-compreenso que
possibilita a familiaridade e economizar uma verdadeira anlise,
discernindo a instituio vaga de
6 Zola. Une campagne. Paris: G. Charpentier, 1882, pp. 247-250,
citado em A. Peyrefitte, op. cit., pp. 348-349.7 As classes
preparatrias (Khgnes) preparam para o ingresso na Escola Normal
Superior. Seus alunos so chamados de khgneux. (N.T.)8 Exames
nacionais realizados no final dos estudos do liceu (ou do ensino
mdio) visando conferir o grau de bacharel. (N.T.)
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Pierre Bourdieu 25
uma instituio indgena, uma instituio confusa de uma instituio
estrangeira, enfim, obscu-rum per obscurius9. Enfim, mesmo que
suponha uma recusa metdica de toda inteno apologtica ou polmica, a
prpria objetivao cientfica deve se imaginar situada no espao das
relaes da instituio
analisada, observadas na realidade das prticas sociais: ou seja,
entre a cumplicidade, ingnua
ou sutilmente irnica, que sociologicamente atribuda aos que tm
direito e aos acionistas, e a
distncia arrogante ou sarcstica do desprezo ou do ressentimento.
Mesmo que o trabalho necessrio
realizao da objetivao, e que trata tanto da relao com o objeto
quanto do objeto, permita
escapar da alternativa da complacncia e do escrnio; e se desafie
a reduzir a relao com o objeto
que se manifesta no produto do trabalho de objetivao relao de
pertencimento ou de excluso
que une objetivamente ao seu objeto o sujeito da objetivao,
normalista ou no normalista estudando
os normalistas, mas tambm judeus ou no judeus analisando a
questo judaica, etc.
A enquete por questionrio junto a alunos das classes
preparatrias realizada em maro de 1968 nas classes de primeiro ano
superior (khgnes) dos liceus Condorcet, Fnelon, Louis-le-Grand,
Molire em Paris, Krichen em Brest, Blaise Pascal em
Clermont-Ferrand, Faidherbe em Lille, do Parc em Lyon, Pierre de
Fermat em Toulouse (n=330) e em classes de matemticas especiais
(taupes10) do tipo A, A e B dos liceus Honor de Balzac,
Condorcet, Louis-le-Grand, Saint-Louis em Paris, Pasteur em
Neuilly-sur-Seine, Blaise Pascal em Clermont-Ferrand, Faidherbe em
Lille, do Parc em Lyon, Pierre de Fermat em Toulouse e a escola
Sainte-Genevive em Versailles (n= 881). Tendo em vista que o objeto
da enquete era estudar a khgne e a taupe como classes preparatrias
para as grandes escolas, ou seja, como instituies dominadas pela
lgica do concurso, escolheu-se construir a amostra de maneira que
seja representativa da populao dos estudantes integrveis: o que
significa dar s diferentes classes preparatrias no o peso da
populao de seus alunos no conjunto de alunos inscritos, mas o peso
de seus admitidos nos concursos no conjunto de alunos admitidos nas
maiores grandes escolas. Assim os khgneux parisienses, que
forneceram 60,5% dos admitidos nos concursos dUlm-letras e
Svres-letras em 1967, representam 58,5% dos alunos da amostra
(enquanto eles representam apenas 52% dos inscritos em khgne em
1967-1968); e os grandes liceus parisienses, Louis-le-Grand, Henri
IV e Fnelon, que forneceram 49,5% dos admitidos em Ulm e Svres
(sees literrias) em 1967, representam 48% da amostra (enquanto eles
constituem somente 31% da populao dos alunos inscritos em khgne).
Segundo a mesma lgica, os taupins de Louis-le-Grand, Saint-Louis e
da escola Sainte-Genevive em Versailles, que, em 1967, forneceram
43% dos admitidos nas sees cientficas da Escola Normal Superior da
Rua dUlm, 39% dos admitidos na Politcnica e 36% das admitidos na
Escola Central, representam 37% dos alunos interrogados (mas
somente 20%
9 Ilustrao exemplar desta anlise, a introduo de Georges Pompidou
na Rua dUlm (que comea por um desafio lanado ao socilogo: O
socilogo pode portanto com toda certeza perceber a existncia de um
politcnico. Mas o normalista, onde encontr-lo?). Se normalista como
se prncipe de sangue. Nada de externo o define. Mas isso se sabe,
isso se v, ainda que seja educado e mesmo humano no mostrar-se aos
outros (...). Essa qualidade consubstan-cial. No se torna, nasce-se
normalista, como se nasce cavaleiro. O concurso to somente
fidalguia. A cerimnia tem seus ritos, a viglia de armas se
desenrola nos lugares de descanso dispostos como convm sob a proteo
de nossos reis: Saint-Louis, Henri IV, Louis-le-Grand. Os guardies
do Santo-Graal, cuja assembleia toma na ocasio o nome do jri,
reconhecem seus jovens pares e os chamam para junto de si (G.
Pompidou, in A. Peyrefitte, op. cit., pp. 14-15).10 Classes de
matemticas especiais que preparam para o ingresso nas grandes
escolas e na Escola Politcnica; seus alunos so chamados de taupins.
(N.T.)
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL26
dos alunos inscritos de 1967-1968 em matemticas especiais).
Igualmente, as grandes escolas provincianas, particularmente o
Liceu do Parc em Lyon, receberam na amostra um peso superior ao
peso da populao de seus alunos no conjunto de alunos das classes
preparatrias.
Para viabilizar a comparao, tambm foram utilizados os resultados
de duas enquetes anteriores, uma junto a uma amostra de 6.000
estudantes de cincias e outra junto a uma amostra de 2.300
estudantes de letras. Realizou-se entre fevereiro e maro de 1968
uma srie de entrevistas (n=40) com alunos das classes preparatrias
e estudantes das faculdades e uma enquete por meio de entrevistas
aprofundadas (n=160) junto a uma populao de 40 professores de
khgne, 40 professores de taupe de Paris e da provncia, 40
professores de matemtica e de fsica, 40 professores de francs,
latim e grego das faculdades de cincias e de letras de Paris e da
provncia. Enfim, recorreu-se a diversos informantes (diretores de
grandes liceus, ex-professores e ex-alunos de khgne e de taupe,
etc.) e a diferentes fontes escritas (boletins internos, revistas,
trabalhos comemorativos, romances, etc.), relacionados ao aspecto
mais ritualizado da vida nas classes preparatrias (grias, ritos de
passagem, etc.), ao mesmo tempo em que se procurou recensear todas
as expresses da experincia ntima (ou secreta) dos efeitos
produzidos pelo processo de consagrao e de produo da crena.
Todo o longo, lento, e difcil trabalho que foi rapidamente
evocado aqui, condio para uma
verdadeira ruptura com as evidncias: a compreenso pela metade
que possibilita a familiaridade
deixa na verdade escapar todos os efeitos que se dissimulam sob
o mais visvel dentre eles, o mais
rapidamente evocado e revocado como seleo e que precisa ser
completamente analisado se se
quer dar verdadeiramente conta da transformao profunda, durvel
e, quando se analisa melhor,
misteriosa que opera a mgica social da consagrao.
Os efeitos tcnicos da organizao dualista
Os khgneux se sentem pertencentes a uma elite, enquanto os
estudantes sabem que a faculdade acolhe todo mundo. Parece o que a
assistncia pblica faz em relao s clnicas. Numa clnica, o doente
mais bem assistido, provido, tratado tambm; ainda que o mdico no
pertena classe dos professores do hospital, ele cuida com ateno de
seus doentes que o veem com frequncia: isso a khgne, enquanto no
hospital, mesmo com a presena de grandes professores, as pessoas so
menos bem cuidadas (Professor de khgne, latim). Um professor no
precisa descobrir a filosofia. Ela foi encontrada antes dele. Seu
trabalho um trabalho de pedagogia: uma iniciao, fazer compreender
textos filosficos que no se pode abordar diretamente. Todo meu
tempo de trabalho est voltado preparao da aula. Meu ideal seria
conhecer de cor todos os grandes textos filosficos para t-los
disposio durante as aulas (Professor de khgne, filosofia).
O que distingue as classes preparatrias de todas as outras
instituies de ensino superior
(inclusive as que garantem a indistino do local de trabalho e da
residncia, como o campus, ou a
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Pierre Bourdieu 27
vida comunitria dos condiscpulos, como a cidade universitria) o
sistema dos meios institucionais,
incitaes, obrigaes e controles, que posto em prtica para reduzir
a existncia daqueles que
ainda se chamam, aqui, de alunos (em oposio a estudantes) a uma
sucesso ininterrupta de
atividades escolares intensivas, rigorosamente regradas e
controladas, tanto no seu momento quanto
no seu ritmo. O importante, do ponto de vista do efeito
pedaggico, menos o que ensinado do que
o que ensinado atravs das condies nas quais se efetua o ensino:
o essencial do que transmitido
situa-se no no contedo aparente, programas, cursos, etc., mas na
prpria organizao da ao
pedaggica. Se as disciplinas da vida comunitria e a recluso que
o internado produz representam
o aspecto mais visvel de uma pedagogia que tende a concentrar
toda a existncia em torno de
preocupaes exclusivamente escolares, preciso evitar atribuir ao
internato o que deriva de fato de
uma organizao rigorosa do trabalho.
Muitos autores atribuem ao confinamento os efeitos exercidos
pelas escolas de elite, mesmo que se esteja longe de confirmar que
essa caracterstica visvel seja a condio sine qua non do
funcionamento dessas instituies como instituies totais. No caso das
khgnes e das taupes, o internato no parece ser o princpio de
diferenas sistemticas nas prticas. Nota-se unicamente que, entre os
khgneux, os internos, seja qual for sua origem social, esto mais
inclinados a praticar um esporte e sobretudo um esporte coletivo
(futebol, rgbi, basquete); que apenas os filhos de professores se
distinguem dos externos de mesma origem porque, com frequncia,
militam no agrupamento poltico, num sindicato de estudantes, numa
associao cultural, citam com mais frequncia o marxismo entre as
escolas de pensamento, se colocam com mais frequncia nos extremos
na escala poltica. Pode-se comprovar que o efeito propriamente
organizacional muito mais poderoso que o efeito do internato e da
clausura no fato de que a diferena entre os internos e os externos
, sendo tudo igual, menos acentuada, especialmente no que concerne
quantidade de trabalho escolar ou ao uso do tempo livre, do que a
diferena entre os alunos das classes preparatrias tomados no seu
conjunto e os estudantes. Assim, os externos que fazem os deveres
tanto quanto os internos trabalham com mais frequncia que eles no
domingo e vo com menos frequncia no cinema. No se observa diferena
significativa nos outros usos do tempo livre, quer se trate da
leitura de jornais (seno que os externos leem com mais regularidade
um jornal dirio, enquanto os internos leem mais regularmente um
semanrio) ou das prticas culturais (seno que os externos das taupes
frequentam mais o teatro enquanto os internos vo com mais frequncia
ao concerto)11.
11 De fato, toca-se sem dvida nos limites do que a enquete por
questionrio e a anlise estatstica podem apreender. Primeiramente,
porque sem dvida era ingnuo esperar apreender, mesmo para as
questes indiretas mais sutilmente concebidas, o que define na sua
verdade prtica, muitas vezes ignorada pelos prprios agentes, as
maneiras de conceder, de organizar e de realizar o trabalho, a
representao da cultura e da prtica intelectual a engajada, etc.
(isso se v pelo embarao que suscitaram as questes sobre a maneira
de preparar e redigir a ltima dissertao). Em seguida, porque, para
levar completamente em conta diferenas constatadas, seria necessrio
considerar toda uma constelao de variveis, geralmente ligadas entre
si, como a profisso do pai do aluno e tambm a trajetria da famlia
de origem, o estabelecimento escolar, o tempo na classe (quadrado,
bica, 3/2, 5/2), o sexo, o estatuto do interno ou do externo. Alm
da fragilidade dos efetivos assim isolados, a anlise se confronta
com o fato de que todas as variveis fundamentais idade, sexo,
origem social, esto estreitamente ligadas ao grau de seleo (ou
seja, hierarquia dos estabelecimentos).
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL28
A recluso
Quando se pergunta aos taupins da Escola Sainte-Genevive de que
escola de pensamento (no plano religioso, filosfico, poltico,
econmico) eles se sentem mais prximos, eles apenas reconhecem sua
ignorncia de tudo o que
no do domnio do ensino da taupe e a impossibilidade de se
interessarem por outra coisa: Nenhuma; tenho mais
coisa para fazer do que me interessar por isso; No se tem tempo
para pensar em problemas to importantes; Eu
no tenho tempo para pensar em outra coisa alm dos concursos; Se
ainda se pudesse pensar em outra coisa alm
da matemtica ou da fsica?.
que na verdade a vida do taupin tal como eles a evocam no
permite nenhuma escapada: Regime de trabalho
absolutamente desmedido, suscetvel de traumatizar um esprito em
via de formao; excluso de toda participao
na vida exterior pois impede de se manter ao par ou, sobretudo,
de se interessar por alguma coisa; O ensino no
nico. um embrutecimento total com o nico objetivo de obter um
diploma. Eu s espero no ter perdido totalmente
a minha juventude assim, nem o gosto de viver....
Nesse universo perfeitamente fechado, a maioria dos alunos, com
exceo da matemtica e da instruo religiosa,
tem como outra atividade intelectual apenas a leitura de Spirou
ou de Tintin, como testemunham, alm das declaraes
dos alunos interrogados, este trecho de um debate sobre a
importncia do francs nos concursos:
M. Sentilhes Se se estuda estatstica, aqui em casa, percebem-se,
por razes materiais, claro, que eles no tm
muito tempo. E, os poucos minutos que tm livres, eles querem
consagrar ao descanso. Ento, que descanso esse?
Eles tm livros disposio. Que livros vo lhes permitir descansar?
Vocs podem imaginar. Eles vo primeiramente
comear por Spirou, que evidentemente no demanda nenhum esforo;
universo da psicologia elementar. Depois, os
Spirou, Tintin ilustrados no demandam nenhum esforo de imaginao,
nenhum esforo de criao, mesmo que para
ler seja preciso criar o texto lido, refaz-lo de certa forma,
fazer a metade do caminho. Eles escolhem portanto obras
como essas ilustradas: Tintin, Spirou, etc... que no demandam
esse esforo de criao. Outro tipo de livro que eles leem
de bom grado, e isso muito mais grave, pois tem um prejuzo
imediato e tenaz, o romance policial; para relaxamento
eles tambm leem revistas cientficas. Pois esse um universo
convencional, bastante abstrato e no fundo isso no difere
muito dos exerccios habituais aos quais esto acostumados. O que
faz com que se atirem sobre romances policiais, e a
eles vo se afogar. E, de fato, o que isso lhes trar, o que lhes
restar: preciso reconhecer, absolutamente nada. Eles
esquecero tudo algumas horas depois.
M. Domin Eu quero trazer um testemunho sobre essa questo do
romance policial: outro dia na sala de aula, no
sei por que, eu falei de romances policiais, de leitura de
romances policiais e disse: h taupins que leram 50 romances
policiais durante sua taupe e avanaram bastante e ento ouvi um
grande redemoinho na sala e me disseram cum
grano salis 50 por ms.
Servir, Bulletin des anciens lves de Lcole Sainte-Genevive, 58,
avril 1963, pp. 59-60.
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Pierre Bourdieu 29
Essa pedagogia deve sua fora extrema ao fato de que, como todo
ensino tradicional, ela silencia
o essencial, imposto como evidente, sem exame, e dedicado a
fugir da discusso e da crtica conscientes12. Os Mohave, relata
Devereux, tm o costume de recitar os textos tradicionais,
conhecidos de memria e
geralmente frmulas em curtas frases, com uma dico entrecortada,
fortemente acentuada e rpida; esse
modo de recitao ainda mais indissocivel do texto recitado quando
os informantes mais dispostos
tm dificuldades de diminuir seu ritmo para permitir o registro
do texto13. Esse um efeito produzido pela pedagogia implcita e
total das classes preparatrias na medida
em que os contedos transmitidos tendem a permanecer
indissociveis do conjunto de teses no
tticas e de peties de princpio inconscientes, objetivamente
inscritas na situao de aprendizagem
e que a literatura edificante atribui ao esprito inimitvel da
taupe ou da khgne, da Escola Normal ou da Politcnica. Toda definio
da cultura e da relao com a cultura, do trabalho intelectual e
da funo dos intelectuais na diviso do trabalho leva subordinao
da atividade intelectual aos
imperativos da urgncia.
Um trabalho louco
Minha vida diria se tornou uma corrida contra o relgio. Eu me
levantava de manh s sete horas e meia, me lavava
e me vestia s pressas; para ganhar tempo, eu me barbeava somente
duas ou trs vezes por semana, de maneira que
s vezes eu parecia mais um mendigo do que um estudante; eu
andava to mal penteado quanto barbeado; quanto
a minha gravata, prefiro no dizer nada. Eu engolia em p uma
tigela de caf com leite, depois desabava escada a
baixo e pegava o metr; para ganhar tempo, eu trabalhava no metr
enquanto a afluncia no era muito grande, lia
minha gramtica latina ou ento traduzia meus textos latinos e
gregos do programa de graduao de uma das obras
da coleo Guillaume Bud. Eu utilizava minha prpria traduo desse
livro, colocava-a diante do texto original,
evitando ter que recorrer ao dicionrio; coisa que era
rigorosamente impossvel no metr. O que mais me incomodava
era a dificuldade de escrever: minha mo tremia e precisava
esperar as paradas para grifar algumas palavras s
pressas. Eu chegava enfim estao Jussieu onde descia. Eu
geralmente estava atrasado. Eu comecei indo ao liceu
de bicicleta, mas percebi que no chegava mais rpido, ao
contrrio, e que a subida da montanha Sainte-Genevive
era mais sufocante do que parecia; alm disso, perdia o tempo que
utilizava bem ou mal no metr decifrando Homero
ou Plato. (...)Eu raramente voltava para casa para o almoo: era
perder muito tempo. Eu tambm no queria comer no liceu, no
que l se comesse mal, mas porque precisava passar mais horas
estudando, e a tagalerice de l era para mim uma
tentao muito forte. Ento eu ficava na Biblioteca
Sainte-Genevive, prxima, at na hora do almoo. (...)
Por volta do meio-dia, eu atravessava a Praa do Panthon e ia
almoar num pequeno restaurante na Rue des Fosss-
Saint-Jacques. Eu comia rpido, muito rpido mesmo, em detrimento
do meu estmago, sacrificado sistematicamente
pelo meu crebro; ele no demoraria a se vingar de meu desdm. De
estmago cheio, eu voltava a Sainte-Ginette.
O trabalho no incio da tarde me era particularmente penoso; eu
deveria parar um pouco, mas a vontade de aprender
12 Eu dei aos alunos um plano corrigido com cada dever tratado.
O resto se ensina antes por exemplo; eles veem como eu preparo
minha aula. Isso divertia meus ex-alunos e eles chamavam de minha
arte das transies (Professor da khgne, histria).13 G. Devereux.
Mohave Voice and Speech Mannerisms. Word, V, 8, dc. 1949, pp.
268-272.
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL30
quase sempre dominava a preocupao com minha sade, e eu me
deixava levar rapidamente pela corrente de escravo.
s duas horas e meia, eu voltava ao liceu e ficava at s quatro
horas e meia: a maior parte do tempo eu pegava o
metr para trabalhar na minha casa at o jantar. Eu frequentava
pouco a biblioteca da Sorbonne; l se encontrava
muitas moas, cuja presena fazia lembrar que eu talvez fosse
apenas um imbecil por querer pensar ao invs de viver;
e menos ainda em Luxemburgo, pelas mesmas razes.
Eu continuava trabalhando aps o jantar, at s onze horas da
noite; mas eu jamais conseguia adormecer antes da
meia-noite, pois j estava ameaado pela insnia: essa era uma das
formas de protesto do meu estmago brutalizado.
Assim, minha maior alegria era a generosa manh de domingo, e o
momento mais penoso da jornada era o despertador.
Frequentemente eu lia durante as refeies. Eu no perdia um minuto
do meu tempo, e no era fcil trabalhar das oito
horas da manh s onze horas da noite. (...)
Eu exagerava no meu esforo, trabalhava domingos e feriados como
nos outros dias; eu quase nunca ia ao teatro e
menos ainda ao cinema. Eu no frequentava o estdio que de longe,
ainda mais que o esforo fsico, acrescentava-se
brutalmente ao esforo intelectual, tendo como efeito habitual
prolongar minhas insnias. (...)
Eu no era o nico a trabalhar to duramente; Caulin, para citar
apenas ele, trabalhava ao menos o mesmo tanto que
eu, e outros tambm, que intil nomear; a mesma ambio atazanava
todos levando-nos a querer ultrapassar uns
aos outros.
A. Sernin. Lapprenti philosophe. Roman dun khagneux, suivi de
Rveries-passions. Paris: d. France-Empire, 1981, pp. 26-30.
A urgncia escolar
As tcnicas de trabalho, os mtodos de pensamento e a definio
correlativa da cultura e
da relao com a cultura so impostos atravs da prpria organizao do
trabalho. Como se a ao
da instituio e dos professores que agem em seu nome consistisse
antes de tudo em criar a
situao de urgncia, e mesmo de pnico, na qual os recm-chegados
devem encontrar, a exemplo
dos condiscpulos mais antigos ou dos mestres, os meios e os
recursos necessrios para sobreviver14. Como nos colgios jesutas em
que se passava duas vezes mais tempo a exercitar os alunos do que
a
dar aulas15, a ao primordial da instituio consiste, neste caso,
em criar as condies de uso intenso do tempo, em fazer trabalhar com
esforo, rapidez, precipitao; eis a condio de sobrevivncia e
adaptao s exigncias da instituio16. Ainda que se possa sem
abstrao relacionar a um padro comum as produes dos
estudantes das faculdades de letras e cincias e as dos
estudantes das classes preparatrias literrias
14 Eu me baseio () na ideia de que os que esto l escolheram
estar l porque eram dignos; se eles no funcionam, pior para eles,
isso se recuperar uma outra vez, eu confio Eu no sinto ter os
mesmos deveres daqueles que tenho diante de uma classe do segundo
ano, onde no se pode deixar chafurdar os que chafurdam. Enquanto l,
apesar de tudo, preciso fazer com que paguem um preo alto pelo que
pedem, eu me censuro menos (Professor de khgne, letras).15 F.
Charmot. La pdagogie des Jsuites. Paris: SPES, 1943, p. 221.16 A
administrao organiza a vida do liceu em funo do concurso: sem
direito a sair depois da refeio, por exemplo, se se semi-interno;
no se pode perder tempo. Se um professor falta, a supervisora
anuncia e distribui o trabalho aos alunos, dizendo no final: Bom, e
bem, vocs tm duas horas para trabalhar, nada de perder tempo (Aluno
de khgne, Fnelon, 20 anos).
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Pierre Bourdieu 31
e cientficas, uma vez que diferem no seu contedo, sua forma e
seu esprito, conclui-se a partir de
uma estimativa fundada nas declaraes dos alunos e dos mestres
dos dois tipos de instituies que
a produtividade incomparavelmente mais elevada nas classes
preparatrias do que nas faculdades.
Assim, os alunos de taupe fazem a cada ano duas a trs vezes mais
deveres de matemtica e de fsica (cerca de 20 a 25 em cada
disciplina) que os estudantes de matemtica e de fsica da
faculdade de cincias, sem contar os deveres de francs e de
lnguas; alm disso, enquanto em
taupe quase todos os alunos entregam quase todos os deveres que
so propostos (num ritmo que no mais elevado do que nas faculdades),
a maioria dos estudantes produz somente um ou dois
deveres dos trs durante um perodo muito mais curto, seja de
novembro a abril17. O efeito mais
especfico do enquadramento total das classes preparatrias
consiste no fato de que elas conseguem
obter da quase totalidade dos alunos a produtividade mxima: por
isso que trs quartos (73%) dos
alunos de taupe se impem regularmente exerccios suplementares
(na base de 5 horas ao menos por semana para um quinto deles),
disciplina desconhecida dos estudantes de cincias (somente
6% deles declaram fazer com frequncia e 43,5% ocasionalmente
trabalhos que no so propostos
pelos professores). A mesma diferena separa as classes
preparatrias literrias das faculdades de
letras. A homogeneidade extrema das prticas dos khgneux que, no
Liceu Louis-le-Grand, por exemplo, redigem durante um ano escolar
de dez a doze dissertaes, fazem 30 a 35 verses e
temas, sem contar os trabalhos do mesmo tipo produzidos na
ocasio dos concursos brancos, se
ope grande disperso das prticas escolares dos estudantes de
letras que se aproximam somente
como exceo da produtividade dos khgneux: se os mais zelosos dos
estudantes de letras clssicas chegam a fazer, ao menos aps a
instaurao do controle contnuo, um dever por semana de
latim, grego ou francs durante quatro a seis meses por ano, na
poca da enquete, os estudantes
de filosofia de Paris no produziam mais do que uma dissertao por
ano (entre as duas ou trs que
lhes foram propostas), ou seja, o mnimo indispensvel para se
tornar conhecido de um assistente
ou de um professor, ao passo que boa parte dos inscritos,
ouvintes ocasionais dos ensinamentos,
produz somente os trabalhos obrigatrios ao exame.
A produtividade elevada das classes preparatrias supe um
conjunto de condies institucionais, tais como a imposio explcita de
disciplinas e de controles escolares e a colocao
em prtica de um sistema de incitaes destinadas a encorajar a
competio no interior do grupo dos
condiscpulos. Assim, a presena nas aulas obrigatria e os
professores preenchem sem evasiva
suas funes disciplinares de controle das faltas. Salvo algumas
raras excees, alis imediatamente
denunciadas pelos prprios alunos, os professores impem muitos
trabalhos e exerccios, dos quais
eles exigem entrega pontual e corrigem de acordo com normas
escolares da tradio escolar.
17 A distncia em relao s classes preparatrias seria sem dvida
ainda maior se, ao invs de limitar a comparao s disciplinas
diretamente comparveis, letras clssicas, matemtica e fsica, se se
analisasse disciplinas menos cannicas, como a sociologia, a
psicologia e as lnguas.
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL32
Todos entregam os deveres. fcil no entreg-los! Mas, eles no
ousariam! Se precisar estar ausente no dever vigiado, previnam-me,
vocs fazem em casa e me entregam na segunda-feira (Professor de
khgne, latim-grego). Do-se orientaes materiais aos alunos para os
deveres? Sim (sorriso), eu quero que a margem seja na direita e que
seja dupla. Eu tambm quero que haja uma interlinha entre os
pargrafos. Eu quero que eles forneam um plano completo do dever com
suas cpias. Eu dou um zero no quinto erro de ortografia; ou seja,
eu nem mesmo o corrijo; quando chego ao quinto, nem continuo a ler,
eu dou zero e largo a caneta (Professor de khgne, letras-latim).
preciso fazer ao menos dois rascunhos. A margem muito importante,
sempre peo uma margem larga para as correes, infelizmente muito
abundantes. Eu exijo a maior legibilidade para o tema. Toda letra
mal formada contada como uma falha, como no concurso (Professor de
khgne, latim-grego).
Aos deveres acrescentam-se os concursos brancos e as preparaes
ou os problemas. Na khgne, a tradio transmitida pelos antigos e as
incitaes expressas dos professores impem a meia-hora cotidiana de
traduo improvisada de textos gregos e latinos. A maioria dos
exerccios
d lugar atribuio de notas, frequentemente proclamadas
solenemente: quase metade dos
professores de taupe interrogados lia diante da turma as notas
de deveres, a maior parte do tempo na ordem da classificao; dentre
os que renunciaram a essas prticas, alguns continuam fixando a
classificao trimestral, outros se contentam em mencionar em cada
trabalho ao lado da nota a nota
mdia do conjunto de alunos. Se os professores das classes
preparatrias parecem utilizar cada vez menos as tcnicas mais
vistosas de estimulao para emulao (como a proclamao comentada dos
concursos brancos, a leitura das notas na ordem inversa da
classificao, etc.), raro que se
privem completamente da eficcia dessas tcnicas tradicionais de
incitao ao trabalho, como a
evocao implcita ou explcita ao concurso.
Eu fao referncia constante ao concurso. Eu tento mostrar-lhes
que isso no brincadeira. Eu lhes digo se esto altura de se
inscrever. Tecnicamente, eu lhe digo como isso acontece (Professor
de khgne, histria). Frequentemente eu lhes digo, sim, infelizmente,
uma referncia: no concurso vocs no alcanaro a mdia, ateno mais do
que trs meses. Um frisson desliza pela sua coluna. Eles no ficam
afobados, no, mas h um defeito essencial nessas classes alis
admirveis: a obsesso do concurso,
sobretudo pelos bicas18. Ele vive um pouco com isso como uma
obsesso permanente (Professor de khgne, francs-latim).
Visando o rendimento mximo, impe-se toda uma relao com o
trabalho intelectual, relao
instrumental, pragmtica. Basta submeter a aprendizagem presso da
urgncia para inculcar tambm disposies altamente valorizadas que
escapam conscincia e ao questionamento porque jamais
conseguem se afirmar como valores. por isso por exemplo que a
urgncia da khgne no tende somente a relegar ao segundo ranking
todas as atividades que, como a leitura dos autores, no so
18 Diferentes termos, utilizados para caracterizar alunos e
ex-alunos das khgnes e das taupes, distribudos ao longo do artigo
no foram traduzidos porque, por fazerem parte da linguagem falada,
no encontram um termo similar na lngua portuguesa e, se o
encontram, no apresentam o mesmo sentido. (N.T.)
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Pierre Bourdieu 33
nem facilmente aceitas num dado momento nem diretamente
controlveis em benefcio dos trabalhos
expressamente prescritos e controlados, tais como verses ou
temas; ela chega mesmo a impor uma
leitura rpida, quer se trate da leitura dos textos antigos,
sempre realizada contra o relgio (na base
por exemplo de trinta versos latinos ou gregos por meia-hora,
como a prova oral do concurso) ou
dos textos filosficos e literrios: para uma estranha inverso de
sinal, ela tende a condenar como
dilantetismo pouco funcional (ou, na lngua indgena, pouco pago)
a meditao numa pgina ou a
reflexo aprofundada sobre um tema.
Eu geralmente trabalho entre 50 e 60 horas por semana a mais que
as aulas. Eu calculei para ver quanto eu trabalhava e cheguei a 85
horas por semana, incluindo as aulas. Eu passo mais da metade desse
tempo nos trabalhos controlados e isso em detrimento do resto. As
leituras vm em seguida, as aulas no final (Khgneux, Louis-le-Grand,
20 anos). Os alunos no tm tempo de respirar, eles j tm muito
trabalho, o programa muito pesado. Tudo centrado numa tarefa
precisa: o concurso. Quando se trata dos programas, no h lugar para
as atividades anexas (Professor de taupe, matemtica). Raros so os
alunos de taupe que encontram tempo para ler obras desprovidas de
rentabilidade escolar: a metade dos alunos de Sainte-Genevive e do
Liceu Blaise Pascal em Clermont-Ferrand, mais de um quarto (28%)
dos taupins de Louis-le-Grand no abriram um livro sem relao com o
trabalho escolar ao longo de um trimestre contra somente 18% dos
estudantes do segundo ano de matemtica e fsica inscritos na
faculdade de cincias de Paris. Mais significativo ainda o fato de
que os taupins tm leituras menos numerosas e clssicas, os autores
mais citados sendo Malraux, Servan-Schreiber (Le dfi amricain),
Camus, Sartre (de Sainte-Genevive), Camus, Dostoevsky, Proust e
Anouilh (de Louis-le-Grand), Saint-Exupry e Steinbeck (de
Clermont-Ferrand) , que os estudantes das faculdades que se mostram
mais abertos aos debates literrios, filosficos ou polticos da
atualidade (citando frequentemente autores como Joyce, Brecht, Lnin
ou Vian)19.
Essa preocupao constante com o uso mais econmico do tempo produz
uma disposio aparentemente desenvolta e desinteressada e na
realidade estritamente calculista. A necessidade de responder a
toda questo possvel evitando recorrer a pesquisas aprofundadas impe
o recurso
s receitas e s artimanhas da arte de dissertar, que permitem
enganar20 ao infinito, mascarando
as lacunas e dando ares de originalidade aos tpicos mais usados
e mais imperativamente
19 A concentrao de todas as atividades em torno dos concursos se
impe com um rigor cada vez mais forte medida que se desce na
hierarquia das origens sociais (o que faz com que as injrias
escolares, polar, pohu, chiadeur, forte em tema, estigmatizem de
forma negada os hbitos de classe): assim os taupins vindos das
classes populares encontram menos tempo para ler regularmente um
cotidiano ou um semanrio, para participar de um agrupamento
cultural, sindical ou mesmo poltico. Menos chances tambm de tocar
um instrumento de msica, de frequentar as salas de concerto, os
teatros, a amplitude da distncia tendendo a aumentar quando se
observa as atividades que, como as prticas culturais mais nobres,
exigem, apesar da disponibilidade, as disposies produzidas pela
primeira educao. Nada de surpreendente se os alunos vindos das
classes populares esto menos inclinados a desejar que se introduzam
novas matrias no ensino da taupe.20 Do original, pcufier.
(N.T.)
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL34
esperados21; ou ainda o uso dos trechos escolhidos ou dos
manuais, desses produtos da rotina escolar predispostos a fornecer
os meios para responder a baixo custo s urgncias escolares, e,
geralmente, s tcnicas de trabalho, que esto mais prximas dos
fios do prtico do que dos
mtodos e das tcnicas do pesquisador22.
Ei-nos no nosso momento crucial. Aps quase quinze dias,
retomamos todos os autores da graduao, os repassamos rapidamente,
nos preparamos para todas as questes que podem ser feitas. No se
trata somente de ter lido e de conhecer a fundo as obras do
programa, essa a parte mais importante, mas no a nica. preciso
saber as edies, a data dessas edies; preciso estar pronto para
fazer aproximaes, comparaes, apreciaes rpidas, etc. isso que, na
linguagem vulgar da Escola, se chama de fios. O conhecimento desses
fios a grande superioridade da Escola Normal no exame oral da
graduao. Os estrangeiros ficam bastante surpresos ao nos verem dar
com certeza, detalhes histricos, bibliogrficos de cada autor, ao
contar anedotas e o resto. Eles no veem o que est por baixo das
cartas, esses fios (F. Sarcey. Journal de jeunesse, in A.
Peyrefitte, op. cit., p. 203).
Mas o mais importante que a situao de urgncia impe uma submisso
total disciplina e
s instrues dos mestres e dos ex, espontaneamente investidos da
autoridade indiscutida que oferece
a experincia. Forados a desistir, para sobreviver, da ambio de
aprofundar seus conhecimentos ou
de estend-los a domnios no diretamente reconhecidos pela tradio
escolar, khgneux e taupins tendem a se satisfazer com um ensino
rotineiro e rotinizante. Sem dvida porque, num sistema dominado
pelo imperativo da eficcia, difcil conceber formas de transmisso
mais rentveis do que
aquelas impostas por uma tradio nascida da subordinao
incondicional a esse imperativo.
Preencher as cabeas. Os caracteres especficos das classes
preparatrias exigem conceder uma prioridade real a esse objetivo.
Na verdade, exceto para os alunos mais dotados, o sucesso nos
concursos condicionado por um trabalho rigoroso e estrito, uma
espcie de preparativo intenso para o degrau superior. Assim, o
aluno levado a se preocupar com a utilidade imediata de seu
trabalho em relao aos concursos, mais do que com o interesse
intrnseco da matria estudada. Por sua vez, o professor dever
respeitar a regra do jogo, pois os alunos esto l para ser admitidos
numa Grande Escola. A aquisio dos conhecimentos do programa e das
pequenas tcnicas anexas portanto primordial, sendo a formao dos
espritos secundria. (P. Carrara, Professor de fsica, Servir, 76,
dc., 1967, p. 72). Quando se pergunta se o ensino das classes
preparatrias deveria tratar de matrias no ligadas diretamente ao
concurso, 66% dos khgneux (68,5% e 76,5% dos
21 O pcu (ou PQ) uma unidade elementar de discurso,
frequentemente emprestada de um curso ou de um manual, por vezes
convencionada ad hoc pelo prprio utilizador, que pode ser posto em
conjuntos discursivos mais diversos ao preo das adaptaes e dos
retoques necessrios. O bom PQ (ou topo) se define pelo fato de que
capaz de resservir em diferentes ocasies e mesmo em diferentes
dissertaes (de filosofia, de francs e de histria) de um mesmo
concurso. Ao contrrio, o PQ inutilizvel o que, por sua complexidade
ou seu rigor excessivo, no serve s utilizaes mltiplas. A capacidade
de pcufier [enganar] que o khgneux reivindica, consiste no domnio
da ars combinatoria que permite engendrar infinitamente discursos
confundindo os pcus.22 Interrogados sobre os instrumentos de
trabalho que utilizaram para preparer sua ltima dissertao, os
khgneux de Louis-le-Grand citam com muito mais frequncia os Lagarde
e Michard, Chassang e Senninger, Castex e Surer, trechos escolhidos
de Bordas, os pequenos clssicos Larousse, do que obras crticas ou
edies originais.
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Pierre Bourdieu 35
alunos vindos das classes populares e das classes mdias contra
62% dos originrios da classe dominante) e 62% dos taupins respondem
negativamente ou se abstm: essa adeso massiva definio da cultura
implicada no programa e na organizao do trabalho se exprime tambm
no fato de que os taupins, que frequentemente afirmam (em 85% dos
casos) no poder manter-se informados sobre as pesquisas matemticas
e fsicas contemporneas, julgam todavia, numa importante proporo
(56,5% dos casos), que o ensino das taupes superior ao das
faculdades no que concerne ao contedo do ensino.
Sem dvida tambm porque a organizao do trabalho que no deixa nem
liberdade nem
distncia em relao s exigncias da rotina escolar contribui com o
efeito de fechamento que faz com que os alunos das classes
preparatrias, mais inclinados a apresentar um julgamento pessimista
sobre
os mestres e sobre seu ensino, no vo alm de uma espcie de
resignao ao inevitvel.
As exigncias de um uso sobrecarregado do tempo impedem na
verdade os khgneux e os taupins de acompanhar as aulas ou os
trabalhos prticos da faculdade, as quais frequentemente so
apresentadas em seus aspectos mais desfavorveis, sobretudo no
perodo recente (desordem, nvel medocre dos estudantes, etc.): 29%
dos taupins e 37,5% dos khgneux dizem ter sonhado com o momento de
entrar na faculdade: 1% e 10% somente (de Paris) frequentam a um
ensino23. A ruptura de fato engendrada naturalmente pela recusa do
desconhecido ou, ao menos, pela resignao satisfeita com a unidade
social elementar: A taupe uma clula. H fronteiras que raramente so
atravessadas. muito raro um taupin ir para outra taupe para fazer
um exerccio. Certo ou errado, um taupin estima que seu curso seja o
melhor (Professor de taupe, matemtica). Convidados a propor mudanas
no concurso de ingresso na Escola Normal, a maioria dos khgneux se
contenta em sugerir modificaes menores, como a supresso da prova de
histria antiga ou do tema latim (reservado alis, pelo decreto de 24
de junho 1968, aos que escolheram a opo letras clssicas), a reduo
do programa de histria ou a introduo de novas provas, muito prximas
do programa atual (histria da arte, tema grego, lngua viva, histria
da Idade-Mdia, histria contempornea e, muito raramente 2,5% ,
cincias humanas), quando no aproveitam a ocasio para defender o
esprito do concurso: Sobretudo no no sentido da especializao que se
ope bastante ao esprito da khgne. Um pouco de cada coisa e nadica
de nada, francesa Montaigne (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos).
Critrios de personalidade, de independncia e de no conformidade com
o ideal sorbnico cf. Rabelais (Khgneux, Condorcet, 19 anos). Quanto
aos taupins, eles se limitam a sugerir a supresso das provas da
educao fsica, de desenho industrial ou de desenho da arte, dos
problemas de qumica, ou o espaamento das provas escritas.
Se se acrescenta que essa ao intensiva de inculcao se exerce
sobre adolescentes que foram
selecionados e se selecionaram em funo de sua disposio em relao
Escola, ou seja, de sua
docilidade, ao menos em funo de suas atitudes escolares, e que,
encerrados durante trs ou quatro
anos num universo protegido e livres de toda preocupao material,
sabem do mundo pouco mais do
23 Esse efeito de fechamento tambm se exerce sobre os
professores, pois quando se pergunta se gostavam ou gostaram de
ensinar no ensino superior respondem em maioria negativamente: Eu
detesto os costumes e as mistificaes do ensino superior. As
carreiras no esto abertas ao mrito, mas a cooptao (Professor de
taupe, matemtica). Eu prefiro os alunos mais enquadrados e que,
parece-me, escolheram uma opo como meus alunos das classes
preparatrias (Professor de taupe, matemtica). Na faculdade no se
conhece os estudantes. Esse no um trabalho de ensino. (Professor da
taupe, fsica). No porque gosto do ensino que no gosto da
especializao (Professor da khgne, letras).
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL36
que aprenderam nos livros , ou seja, nos trechos escolhidos dos
autores gregos e latinos, dos escritores
franceses do sculo XVII, e na filosofia perene das questes de
classe e dos concursos , reconhece-
se que sua natureza produzir inteligncias foradas (no sentido da
horticultura) que, quase como escreve Sartre evocando algumas
leituras de seus vinte anos, compreendem tudo luminosamente e no
compreendem absolutamente nada24. o que diz muito bem Durkheim ao
descrever o ensino dos Jesutas: A cultura que eles (os Jesutas)
davam era extraordinariamente intensiva e forada.
Sente-se (...) como um esforo imenso para levar quase
violentamente os espritos a uma espcie de
precocidade artificial e aparente. Da, essa multido de deveres
escritos, essa obrigao para o aluno
de estender sem cessar os resultados de sua atividade, de
produzir prematuramente e de maneira inconsiderada. Havia no
aspecto geral do ensino universitrio algo menos precoce, menos
premente,
menos vertiginoso25.Na verdade, no h aspecto em que a oposio
entre as classes preparatrias e as faculdades
seja mais brutalmente evidente: enquanto 62% dos taupins
caracterizam o bom aluno de taupe pela sua atitude de trabalhar
rpido e somente 15% por sua atitude de trabalhar em profundidade,
69,5%
dos estudantes do segundo de matemtica e fsica mantm a atitude
de trabalho aprofundado graas
qualidade dominante do bom estudante (contra 18% para a rapidez
no trabalho); do mesmo modo,
23,5% dos estudantes de MP2 contra somente 11% dos taupins
atribuem o bom estudante de faculdade atitude de inveno (mais que
atitude de utilizao de um saber adquirido). Essas observaes tm
como efeito lembrar que quando os produtos de um sistema de
formao supem como realizao
absoluta da excelncia humana as atitudes intelectuais e as
disposies ticas que lhes foram impostas
pelas condies de aprendizagem, eles se contentam em fazer da
necessidade virtude, esquecendo
que suas virtudes tm como contrapartida a renncia de todas as
possibilidades anuladas pelas
condies particulares que as tornaram possveis.
Um corpo de treinadores
Toda lgica de um sistema dominado pelo concurso, com suas
dissertaes em tempos
limitados sobre temas com limites indecisos que exigem mais o
domnio da retrica e das tcnicas
de exposio do que a reflexo e a pesquisa, com seus problemas de
matemtica que priorizam
o clculo mecnico ao invs do esprito de inveno, faz do professor
das classes preparatrias
24 J.P. Sartre. Critique de la raison dialectique. Paris: NRF
(Nouvelle Revue Franaise], 1960, p. 23.25 . Durkheim. Lvolution
pdagogique en France. Paris: Alcan, 1938, t. II, pp. 107-108.
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Pierre Bourdieu 37
uma espcie de treinador26: contribuindo para criar as condies
favorveis a um treinamento intensivo, mais do que a um ensino
direto e explcito, que ele inculca, alm de certo tipo de
cultura
e de relao com a cultura, o domnio prtico de certo nmero de
tcnicas que permitem responder
urgncia escolar.
Tambm uma categoria muito respeitvel e muito eficaz da
inteligncia: fazer algo solicitado em tal tempo, em tais condies;
isso no escravido, um sinal de plasticidade de esprito (Professor
de khgne, francs). Damos mtodos de trabalho. Eles se sentem
obrigados a aprender a trabalhar, a no se dispersar (Professor de
khgne, alemo). Eu creio que lhes ensinamos a trabalhar rpido, a
percorrer domnios em um tempo restrito (Professor de khgne,
francs). A importncia do professor reside no fato de nos dar um
quadro de trabalho. Ele nos mais til pelo que nos ensina do que
pelo que aprendemos (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos).
Recrutados entre a elite dos professores do ensino secundrio,
frequentemente chamados a
participar das bancas dos grandes concursos de admisso dos
professores do ensino secundrio
(agregao27, CAPES28, etc.), quase sempre levados a terminar sua
carreira de professores exemplares como inspetores gerais do ensino
secundrio, os professores de classes preparatrias assumem
totalmente um papel total. Completamente dedicados funo
professoral, diferentemente dos professores das faculdades que se
dividem (em graus diversos) entre o ensino e a pesquisa, entre
o campo universitrio e o campo intelectual (ou cientfico), eles
praticamente no tm atividade de
pesquisa (chegando a consagrar o tempo roubado de seus alunos a
outras atividades) e, se no
publicaram, ao menos com muita frequncia vislumbram publicar
manuais.
Esses mestres no podem esperar outras gratificaes que as que
possibilitam o exerccio de sua
profisso, ou seja, essencialmente o prestgio que lhes assegura
uma alta taxa de sucesso no concurso
e o respeito, que pode chegar dependncia pessoal de seus alunos.
Sua ao pedaggica a de
repetidores que priorizam a organizao do exerccio e o
enquadramento do trabalho de aprendizagem transmisso do saber: as
aulas que eles do visam antes de tudo fornecer conhecimentos
diretamente
teis ao concurso. E, sobretudo, eles passam os temas de
exerccios, corrigem os trabalhos, fornecem
as correes, controlam os progressos da aprendizagem por meio de
interrogaes escritas ou orais,
26 Pode-se ver nas classes preparatrias uma antecipao das
instituies de treinamento intensivo que so organizadas hoje para os
atletas: Toda equipe, quatro ou cinco por dia, em duas sesses,
adicione os quilmetros. Sete primeiros meses, oito, depois dez ().
Para conservar a moral intacta, Daland (o treinador) organiza
sesses variadas, todas voltadas competio. Nada de nadar com um brao
s na semissonolncia. Quer se trate do movimento dos ps, dos braos,
ou do nado fundo, o essencial , parece, tentar vencer seu colega de
clube, que hoje o adversrio. Da talvez venha esse gosto pronunciado
pelas competies que os jovens americanos tem revelado, que s vezes
surpreende, mas que apenas a consequncia do hbito. As distncias a
percorrer, cada dia, nesse esprito de luta, variam tanto quanto os
estilos: das sries de 200 metros em nado borboleta, dos sprints
curtos, longos, das sries de 400 metros e mesmo de 3000 metros que
terminam no sprint (Le Monde, 3 janvier 1970). 27 Do original
agrgation, concurso para atuar como professor de liceu ou de
faculdade e que confere aos aprovados o ttulo de professor agregado
(agrg). (N.T.)28 Certificat dAptitude au Professorat de
lEnseignement du Second Degr (Certificado de Aptido ao Magistrio do
Ensino de Segundo Grau). (N.T.)
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL38
dispondo assim, ao trmino de um ano escolar, de 30 a 50 notas,
geralmente estritamente registradas,
para cada aluno29. Pessoalmente interessados no xito de cada um
de seus alunos e em todo caso dos melhores , eles cumprem todas as
tarefas implicadas na definio completa do papel professoral
(diferentemente dos professores das faculdades e, em particular,
dos professores titulares), eles tendem, como os dirigentes ou os
inspetores dos colgios jesutas, a manter com seus alunos uma
relao total de carter patrimonial que por vezes se estende a
todas as dimenses da existncia30.
O sucesso escolar das diferentes categorias docentes do ensino
secundrio
% m
estr
es a
uxil
iare
s
% c
erti
fica
dos
% a
greg
ados
prof
esso
res d
as c
lass
es
prep
arat
ria
s
ao menos uma meno AB no(s) bacharelado(s) 32,0 58,0 77,0
78,0
Que se apresentaram no Concurso geral 5,5 12,5 34,0 48,5
ao menos um ano em classe preparatria 20,0 34,0 61,5
86,0candidatos a uma ENS 4,0 16,5 43,5 66,5agregados aprovados
antes dos 24 anos - - 20,0 30,5aprovados para a ENS Saint-Cloud ou
Fontenay - 2,0 9,0 19,5aprovados para a ENS Ulm ou Svres - 0,5 10,5
25,5
Fonte: Enquete do Centre de sociologie europenne (CSE) junto aos
professores do ensino secundrio (n=3.500).
Os nmeros designam a porcentagem dos membros de cada categoria
de professores que
possuem cada uma das caractersticas. Estes foram estabelecidos a
partir de uma enquete realizada pelo CSE junto a 3.500 professores
do ensino secundrio. Considerando que eles representam somente
cerca de 3% dos professores da amostra, os professores das
classes preparatrias constituem um grupo
relativamente restrito, no qual os professores das classes
preparatrias mais importantes esto pouco
representados. Pode-se portanto raciocinar a fortiori, pois tudo
parece indicar que as diferenas que separam os professores das
classes preparatrias dos outros professores do secundrio seriam
ainda
maiores se a amostra fosse mais representativa no que concerne
aos professores das classes preparatrias.
29 Para as notas dos deveres, eu sublinhei em azul para os
cubes, em vermelho para os bicas. Evidentemente, eu tenho as notas
de concurso de todo mundo, escrito e oral, de cada ano e relaciono
essas notas noutra pgina para os admitidos. Temos tambm as folhas
de probatrios para passer da hipokhgne a khgne e a classificao
geral da turma, com os coeficientes do concurso de cada trimestre,
por matria. Ver em vermelho as mdias nas dissertaes e em azul nas
lnguas; eu tenho o que equivale a um histograma, o total e a
classificao (Professor de khgne, filosofia).30 Eles podem assim
encontrar as prticas mais tpicas dos jesutas, como esse professor
de matemticas especiais que pede para que cada um dos seus alunos
se torne o supervisor dos outros: Entenda-se que cada aluno deve me
dizer o nome de seu camarada do lado ausente. L, eu passo a confiar
e eles no conseguem me enganar por muito tempo (Professor de taupe,
matemtica).
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Pierre Bourdieu 39
Todos os indicadores concorrem para mostrar que os professores
das classes preparatrias
so recrutados em meio elite dos professores do ensino secundrio;
eles acumulam, na verdade,
todas as caractersticas que definem o produto perfeito do
sistema escolar. Como ex-bons alunos, eles
obtiveram mais cedo os signos de consagrao, os mais procurados e
tambm os mais raros. Tendo
em maioria (78%) obtido ao menos uma meno no bacharelado (assim
como 77% dos professores
agregados contra 58% dos certificados e 32% dos mestres
auxiliares), esses professores, com muito
mais frequncia que outros, se apresentaram ao Concurso geral
(seja 48% contra 34% dos agregados,
12,5% dos certificados, 5,5% dos mestres auxiliares); quase
todos eles passaram ao menos um ano
numa classe preparatria (seja 86% contra 61,5%, 34% e 20%);
66,5% deles se apresentaram no incio
do ano letivo uma Escola Normal Superior (contra 43,5%, 16,5% e
4% dos outros) e obtiveram a
agregao mais cedo que os outros professores agregados (seja,
antes dos 24 anos, 30,5% deles
contra 20% dos outros agregados); 25,5% passaram por Ulm e Svres
contra 10,5% dos agregados
do secundrio, 0,5 dos certificados; 19,5% passaram por Fontenay
ou Saint-Cloud (contra 9% dos
agregados, 2% dos certificados)
Mais selecionadas que os homens, as mulheres que ensinam numa
classe preparatria acumulam
nos ndices mais altos todas essas caractersticas. Tendo obtido
com mais frequncia uma meno no
bacharelado (88% contra 73,5%), elas se apresentaram mais ao
Concurso geral (52% contra 47%),
passaram com mais frequncia por uma classe preparatria (89%
contra 85%) e foram aprovadas na
agregao mais jovens (33% antes dos 24 anos contra 29%).
Escolarmente mais selecionados que os outros professores do
ensino secundrio, os professores
das classes preparatrias tambm so mais selecionados socialmente.
Frequentemente provenientes
da classe dominante (28,5% tendo um av paterno, 49,5% um pai
pertencendo a essa classe contra
19% e 34% dos agregados, 16,5% e 36,5% do conjunto de
professores do ensino secundrio), eles vm
de famlias culturalmente mais ricas do que os outros professores
do secundrio (39,5% tm pai com
um diploma superior no bacharelado contra 34,5% dos professores
agregados e 26,5% do conjunto
de professores do ensino secundrio; 16,5% tm uma me com um
diploma superior de bacharelado
contra 13% dos agregados, 8% do conjunto). No h nada se
surpreendente se as mulheres professoras
nas classes preparatrias vm de meios social e culturalmente mais
privilegiados. Se os professores das classes preparatrias pertencem
a meios mais favorecidos tanto em relao ao status social quanto ao
capital cultural do que os outros professores do secundrio,
eles
talvez se distingam ainda mais claramente dos professores do
superior: com menos frequncia vindos
da classe dominante, eles provm com mais frequncia das classes
mdias e das fraes dominadas
da classe dominante. Prova de que os professores das classes
preparatrias assumem totalmente seu papel de
professor: 84% declaram no ter nenhuma atividade de pesquisa.
Voltados ao ensino, preparao do
ensino, eles com frequncia (em 39,5% dos casos) vislumbram, num
momento ou noutro, preparar
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL40
algum manual escolar; 44% fizeram parte de bancas de concursos
(agregao, CAPES, entrada nas
grandes escolas). Eles vislumbram apenas excepcionalmente passar
ao ensino superior; quando se
pergunta qual atividade exercero em dez anos, quase a totalidade
deles responde (85%) que continuar
ensinando numa classe preparatria (apenas 10,5% pensam no ensino
superior contra 18,5% dos
professores agregados). Em relao s atitudes sindicais, polticas,
religiosas, os professores das
classes preparatrias no parecem se distinguir do conjunto de
professores.
As relaes entre os mestres e os alunos s vezes so mais intensas,
mais indiferenciadas e mais totais do que nas faculdades, como
testemunham, entre outras coisas, os termos que empregam os alunos
de algumas khgnes: Acontece que os bicas vm me encontrar e me
dizem: Mestre, ser que eu posso gazear sua aula?, e eu concordo
facilmente. Sim (sorriso), chama-se de mestre todos os professores
de khgne e eles exclusivamente, ao menos no Henri IV. Isso remonta
ao menos a Alain. O que no quer dizer que gostaramos de nos alinhar
aos sbios, mas esse um termo que se ope ao professor do secundrio.
Voc compreende, ns temos certa familiaridade com nossos alunos,
eles permanecem conosco durante trs anos consecutivos; esse um meio
muito selecionado, j uma elite, no h problema de disciplina. Esse
verdadeiramente o ltimo pilar do ensino grego! (rir). Eu tambm
ensino na Sorbonne, em histria antiga: os alunos desaparecem,
jamais os conhecemos (Professor de khgne, histria). Quando eles se
ausentam (os alunos), eles se desculpam chamando voc de mestre ().
Os alunos chamam voc de mestre sobretudo quando tm algo a ser
perdoado (Professor da khgne, latim). Os professores gostam de
representar seu papel, sobretudo quando ensinam as disciplinas
maiores, e particularmente a filosofia, como o de um mestre de
sabedoria, ou mesmo de um pai espiritual, autorizado a intervir em
todas as questes que tocam direta ou indiretamente a conduta da
vida de trabalho, leituras, preparao dos deveres, organizao das
revises e, at mesmo, horas de sono, regime alimentar, festas, etc.
Nossos alunos, h quatro ou cinco anos, estimulados pelos alunos da
faculdade, queriam a supresso das taupes. Eu disse-lhes: isso
infantilidade; vocs so privilegiados. Vocs se deixam levar por
pessoas que no querem o bem de vocs. Por hoje terminou. Eles no
pedem mais a supresso das taupes. Eles veem a baguna na faculdade.
Eles sabem que no h injustia, que s se quer o seu bem. Eles se
sentem seguros, conduzidos, eles tm um pai espiritual, pais
espirituais (Professor de taupe, matemtica). M.L. durante anos os
recebeu em sua casa (alunos), muitos, muito intimamente, com uma
generosidade, um dom de si e de seu tempo, talvez menos nos ltimos
anos, agora ele est beira da aposentadoria, mas enfim ele teve uma
influncia moral pessoal muito profunda (Professor de khgne, letras,
falando de um professor de filosofia). Cada ano alguns alunos vm me
procurar para emprestar livros, ou isso ao aquilo, e discutem
menos, alis, sobre o que foi feito na aula, sobre o curso ou sobre
o que est sendo dado, do que sobre os problemas que lhes
interessam, sobre os problemas que com que trabalham e sobre os
quais discutem com muita firmeza, e frequentemente com muito vigor,
sobre sua, digamos, concepo filosfica, suas perspectivas de vida,
enfim sua maneira pessoal de ver os problemas; e portanto, no com
os alunos, com um aluno (Professor de khgne, filosofia). H a
poltica que os irrita um pouco, eles tm posies extremas: neste
momento, voc sabe, o comunismo pr-chins. Infelizmente, h quem
sacrifique a sua carreira de khgneux. Eu vi excelentes alunos carem
nisso. Eu tento proteg-los. Eu disse-lhes: vocs se do conta,
preciso que vocs sejam bem sucedidos, depois vocs fazem o que
quiser. Em geral, mantenho relaes com meus ex-alunos, eles vm me
ver, eu tenho grande prazer em v-los, e eles tambm (Professor de
khgne, histria). Todos falam da satisfao que lhes d o sentimento de
exercer uma ao total e durvel com seus alunos e tambm as
manifestaes de gratido que testemunham graas ao sucesso dessa ao:
Tem-se a impresso de que as crianas que se tm entre as suas mos te
reconhecem (). Sim, eles
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Pierre Bourdieu 41
demonstram uma grande confiana. Um pai de famlia te confia seus
filhos para que ele entre na classe X, a gente responsvel diante
dele. Ele confia em voc (Professor da taupe, matemtica). Eu sempre
me satisfao num ambiente pequeno onde possvel criar uma atmosfera e
modelar um pouco a coisa imagem do que se quer (Professor de taupe,
matemtica). Voc sabe, eu sou o professor mais severo de Paris. Eu
mantenho contatos com meus ex-alunos, sempre fica alguma coisa. Eu
causo medo neles. A gente pode se tornar bons amigos, at eles se
impressionam, eles no acreditavam nisso de minha parte, mas sempre
fica alguma coisa (). s vezes alguns ex-alunos enviam sua tese e me
dizem: por favor, no venha nesse dia! (Professor de khgne,
francs).
Colocados no centro dos mecanismos de reproduo do sistema do
qual eles so os produtos
mais bem acabados, os professores de classes preparatrias no
precisam buscar explicitamente o ajustamento de seu ensino s
exigncias de um concurso no qual sempre foram aprovados. A
continuidade to absoluta entre o aluno de khgne ou de taupe que
tinham sido e o professor que se tornaram que basta ser
completamente o que so para apresentar alunos perfeitamente
preparados
diante das bancas que, sendo o produto das mesmas condies de
produo, tm apenas que ser o que
so para estar no esprito do concurso. Eu sou membro da banca de
agregao em histria ().
Corrigindo meus alunos, eu creio estar no esprito do concurso;
os corretores so alis camaradas da
Escola, suas questes poderiam ser as minhas (Professor de khgne,
histria).
O eterno retorno
E, verdade, j falei muito nesta velha e cara casa. Agradeo ao
Senhor Diretor por ter certamente pensado em
me rejuvenescer. Eu falo desde 1911, como aluno, como professor,
como inspetor, em intervalos bastante regulares,
de quinze em quinze anos, para que eu no pense que no h velhice,
mas somente um eterno retorno. ()
Mas eu falava em janeiro 1911 com uma segurana bem maior do que
a de hoje. Eu era jovem. () Eu
era, aps muitas batalhas, aluno da khgne de Louis-le-Grand.
Todos os meus desejos estavam enfim satisfeitos.
Eu tinha ouvido falar que era aqui que melhor se ensinava na
Frana a prtica desse famoso lgos, desse meio de
mentira e de verdade, dessa arte de convencer que faz bem tanto
aos sofistas quanto aos sbios, e portanto, no final
de uma longa vida, eu pensei cada vez mais que ele era um poder
assustador e que talvez fosse o princpio de toda
ordem mas tambm de todas as desordens do mundo. ramos aqui uns
cinquenta jovens rapazes que, por esse poder,
trabalhvamos para nos tornar mestres. Eu no saberia dizer o que
devo a esses camaradas. Pois uma classe de khgne
primeiramente os alunos. () Tnhamos os melhores mestres, Lafont,
Darcy, Belot, e o que eu gostaria de nomear
com uma grande gratido, Henri Durand, porque ele explicava
maravilhosamente bem La Fontaine, e porque ao ouvi-
lo, eu senti pela primeira vez tudo o que poderia ser um
professor de francs, que bruxo evocador das sombras, que
artista, que mediador de todos os artistas e o que mantm e
transmite em sua grandeza e sua beleza o pensamento e
a lngua de seu pas.
Trinta anos mais tarde, na mesma sala, na mesma disciplina, era
minha vez de explicar La Fontaine e tantos
outros escritores, e eu procuraria fazer to bem como meu mestre
Henri Durand. Eu estava em khgne ainda. Eu
teria sido um khgneux toda minha vida. Vejo que eu jamais seria
capaz de falar do que foi meu mtier com a
conveniente frieza polida de uma cerimnia como esta. Queiram me
desculpar. Imagino que h muitos professores
aqui. Estou certo de que eles me compreendem e principalmente se
eu conseguir apresentar bem o que foi minha
especialidade, o ensino do francs, valorizando-o. Todos ns
acreditamos muito no que fazemos. Ensinar a crianas
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL42
sua lngua ensinar-lhes a prtica do que ser para elas uma espcie
de chave universal, e essa certamente a coisa
mais importante. Mas ter a chance de ensin-la na khgne para
jovens pessoas que a amam e que foram reunidas
precisamente para reconhecer seus segredos, suas astcias, suas
potncias, e isso a partir de fatos, de textos os mais
admirveis, procurando perseguir juntos a verdade e a beleza,
enchendo-se de uma ideia, desembaraando o jogo
das foras do pensamento e das formas de linguagem, no, eu no
posso expressar quo imenso pode ser o prazer de
exercer esse mtier, quo maravilhosa so as trocas numa
classe.
J. Guhenno. Allocution, in quatrime centenaire du Lyce
Louis-le-Grand, 1563-1963, tudes, souvenirs, documents. Paris:
[Lyce Louis-le-Grand, 1963], pp. 8-9.
muito difcil fazer a distino entre o que devo khgne, onde eu
estava, e em suma rapidamente, eu tinha 27 anos para onde fui
nomeado como professor; isso, uma espcie de meio-dramalho. O que h
de certo que para algum como eu, isso bem simples, eu no me vejo,
absolutamente, ocupando outro posto, tolo dizer, outro posto alm
desse para mim (Professor de khgne, letras)31. Os khgneux tm, na
verdade, um estatuto especial; voc sabe como , so seus futuros
colegas, se que posso falar assim, e no Liceu de Lyon h uma grande
proporo deles, eles so bastante numerosos, uns dez professores so
ex-khgneux de Lyon (). Os professores so portanto, de certo modo,
meio ex-camaradas. Entre os alunos, se se pode cham-los assim, e os
professores, no h nenhum tipo de distncia, se posso dizer isso;
enfim a discusso se faz de igual para igual (Professor da khgne,
filosofia).
As aulas, particularmente de francs e filosofia, se apresentam
como correes antecipadas de
deveres possveis, eles mesmos inspirados nas provas efetivamente
propostas nos concursos. Tendo
de preparar seus alunos para responder a problemas da Escola, os
professores de khgne so levados a organizar, antecipadamente, suas
aulas de acordo com a dificuldade que seus alunos devero
encontrar
para responder a esses problemas, o limite disso estando
representado pelos manuais de dissertao nos quais se encontram
discursos elaborados em funo de temas de dissertao passadas ou
possveis.32. A maioria dos professores de taupe utiliza temas de
exerccio de coletneas que renem os problemas e as questes
apresentadas em concursos anteriores, eles deveriam, para fugir da
rotina, modific-los
um pouco. Seu papel no desconcentrar, mas preparar montagens, ou
seja, programar os espritos
conforme o programa33. Ocorre que os temas legados pela tradio
escolar tendem a se tornar, mais
31 Reconhece-se a uma expresso exemplar de lamor fati como o
encontro entre a instituio objetivada e a instituio incorporada.32
Essas aprendizagens autorizam e favorecem uma forma de pensamento e
de palavra quase automtica, frequentemente reconhecida como a forma
suprema de improvisao brilhante, que somente o produto da colocao
em prtica de uma sequncia de esquemas escolares. Assim,
considerando as improvisaes que um clebre professor de khgne
propunha num crculo de intelectuais, seus ex-alunos apresentavam na
passagem os ares conhecidos, justia e caridade, explicar e
compreender, razo e desrazo, etc.33 Ainda que frequentemente evitem
sucumbir pura repetio, tanto nas suas aulas quanto nos temas de
exerccio, os professores apenas se ajustam s exigncias da situao
que os alunos, apesar de seus protestos, so os primeiros a lhes
lembrar. Assim, se pode ver, em 1970, os alunos de uma classe
preparatria de Paris fazerem greve por melhores condies de
trabalho, segundo o ttulo do cotidiano (Le Monde, fvrier 1970) que
trazia a notcia.
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Pierre Bourdieu 43
que tpicos que servem de pretexto s variaes de uma tradio
letrada, verdadeiras categorias de pensamento, delimitando o
universo do pensvel e impondo o conjunto claramente circunscrito de
questes suscetveis de serem postas realidade que, quando se impem
ao conjunto de um universo
social, mestres e alunos, juzes e partcipes, produzem a iluso de
um mundo finito, fechado, perfeito.
Na taupe como na khgne, a aula frequentemente se apresenta como
uma espcie de manual oral, oferecendo, de um modo cmodo e
condensado, conhecimentos pr-elaborados para os usos escolares
(tais como as questes de aula), e comum que ela seja ditada e
repetida ao longo dos anos, sofrendo apenas pequenas modificaes: Eu
me esforo para fabricar uma aula dirigida ao mximo, o mximo de
exerccios igualmente bem digeridos, declara um professor da taupe,
enquanto um professor de histria confessa dispensar os bicas de sua
aula quando a assistiram, apenas de uma forma diferente, dois anos
antes.A busca pela maximizao da quantidade de informao transmitida
implica um modo de inculcao dogmtica no qual somente a pr-digesto
professoral pode substituir a falta de trabalho de
assimilao (que exige tempo) permitida por mtodos menos
brutalmente diretivos34. Eu fao aulas de 2 horas, muito magistrais;
eles (os alunos) s vezes interrompem minhas aulas, mas sabem que h
um mnimo para ser assimilado. Eles se do conta que ganham tempo
escutando; eles tm muitas coisas para fazer: no se vem para khgne
como diletante, para se cultivar livremente. A aula magistral, ela
se impe, como no direito se voc quiser. Essas realmente so aulas,
com todas as imperfeies do sistema (Professor de khgne, histria). A
participao dos alunos de Sainte-Genevive no ensino de qualquer modo
meramente aparente (). Os alunos permanecem muito ligados ao
professor e forma de esprito ou ao modo de expor do professor ().
Eles preferem muito, ainda que seja difcil, escutar e ter uma aula
praticamente ditada (Professor de taupe, matemtica).
Visando, antes de tudo, transmitir no menor tempo possvel a
maior quantidade possvel
de conhecimentos teis, a aula frequentemente obedece s regras
mais tradicionais da exposio
escolar, com seu plano claro, pois, falando como Toms de Aquino,
mestre do discurso em trs
pontos, ela deve manifestar o prprio professor no discurso, por
meio de sinais de subdiviso hierarquizados (I, II, III, 1, 2, 3, a,
b, c), com suas introdues, suas transies e suas concluses
segundo os cnones da retrica. Essa pedagogia autoritria e
dogmtica, cujo arbitrrio aparece
para os alunos apenas excepcionalmente, porque est
funcionalmente ligada ao concurso e a suas
exigncias mais especficas, se atribui explicitamente como funo
assegurar uma economia de leituras e de pesquisas pessoais, mais do
que provoc-las.
34 Os professores podem contar com a cumplicidade consentida dos
alunos que querem evitar toda perda de tempo para interromper a
aula com questes ou objees. Somente 9,5% dos taupins e 12% dos
khgneux afirmam haver tomado a palavra na sala, o que poderia
surpreender considerando-se que nos trabalhos prticos da faculdade,
onde as condies so semelhantes, as tomadas da palavra so muito mais
frequentes, seja 38% em MP2. Na verdade, reprovao coletiva
suscitada pelas interrupes, acrescenta-se a autocensura
(particularmente forte nas khgnes e, correlativamente, na Escola
Normal) inspirada pelo medo de ridicularizar-se diante dos
condiscpulos: Eu no gosto de trabalhar na biblioteca, a gente se
sente espionado. No porque eu queira conservar minhas ideias, mas
porque no quero que os outros conheam minhas besteiras. Basta que
os professores saibam, mas eles so pagos para isso e um pouco como
a confisso: fala-se de seus erros para que os corrijam. Tambm por
isso que durante as aulas eu sento na primeira fila, e sempre no
fundo quando estou estudando (Khgneux, Louis-le-Grand, 20
anos).
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PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL44
Eu nunca dou bibliografia, isso no serviria para nada. Eles
devem falar sobre qualque