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Boltanski e Thévenot - A sociologia da capacidade crítica

Mar 02, 2016

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    A SOCIOLOGIA DA CAPACIDADE CRTICA

    Luc Boltanski e Laurent Thvenot cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, Paris

    Traduo de Marcos de Aquino Santos, a partir do artigo The sociology of critical

    capacity, publicado em European Journal of Social Theory 2(3): 359377 Copyright

    1999 Sage Publications: London, Thousand Oaks, CA and New Delhi.

    Luc Boltanski professor na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales e diretor do

    Groupe de Sociologie Politique et Morale. Suas obras mais recentes incluem Le nouvel

    esprit du capitalisme, com ve Chiapello, e La condition foetale: une sociologie de

    lengendrement et de lavortement. [e-mail: [email protected]]

    Laurent Thvenot professor na cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, diretor

    do Groupe de Sociologie Politique et Morale e pesquisador snior no Centre dtudes

    de lEmploi, Paris. Dentre suas publicaes mais recentes destacam-se De la

    justification: les conomies de la grandeur, com Luc Bolltanski, e Laction au pluriel:

    sociologie des rgimes dengagement. [e-mail: [email protected]]

    Marcos de Aquino Santos doutorando no Programa de Ps-Graduao em Sociologia

    e Antropologia do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais da Universidade Federal do

    Rio de Janeiro, orientado pelo professor doutor Jos Ricardo Ramalho e financiado com

    bolsa de estudos pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior,

    do Governo Federal. [e-mail: [email protected]; tels: 2269-8722; 9316-4434]

    Resumo

    Este artigo defende que vrias situaes na vida social podem ser analisadas em seu

    requisito de justificao da ao. particularmente em situaes de disputa que surge

    uma necessidade de esclarecer as bases nas quais distribuda a responsabilidade pelos

    desvios e novos acordos podem ser alcanados. A partir do fato de que existe uma

    pluralidade de modos de justificao mutuamente incompatveis, as disputas podem ser

    entendidas como desacordos acerca da violao ou cumprimento da regra de

    justificao aceita, ou ainda como desacordos sobre qual modo de justificao deve ser

  • 2

    empregado. O artigo desenvolve uma gramtica dos referidos modos de justificao,

    chamados de ordens de grandeza (grandeur), e sustenta que a capacidade crtica

    humana torna-se visvel na ocorrncia cotidiana de disputas sobre os critrios da

    justificao. Ao mesmo tempo, sublinhado que nem todas as situaes sociais podem

    ser interpretadas com o recurso a este senso de justia, que reside em uma noo de

    equivalncia. Regimes de amor, violncia ou familiaridade so sistematicamente

    distintos dos regimes de justificao.

    Palavras-chave: ao, coordenao, crtica, disputa, justificao.

    Abstract

    This article argues that many situations in social life can be analyzed by their

    requirement for the justification of action. It is in particular in situations of dispute that a

    need arises to explicate the grounds on which responsibility for errors is distributed and

    on which new agreement can be reached. Since a plurality of mutually incompatible

    modes of justification exists, disputes can be understood as disagreements either about

    whether the accepted rule of justification has not been violated or about which mode of

    justification to apply at all. The article develops a grammar of such modes of

    justification, called orders of worth (grandeur), and argues that the human capacity for

    criticism becomes visible in the daily occurrence of disputes over criteria for

    justification. At the same time, it is underlined that not all social situations can be

    interpreted with the help of such a sense of justice, which resides on a notion of

    equivalence. Regimes of love, of violence or of familiarity are systematically distinct

    from regimes of justification.

    Keywords: action, coordination, criticism, dispute, justification.

    Nota do tradutor

    Procuramos oferecer ao leitor uma amostra daquilo que vem sendo produzido

    em matria de teoria social no mbito do Groupe de Sociologie Politique et Morale, da

    cole des Hautes tudes en Sciences Sociales, de Paris, formado por pesquisadores em

    Sociologia, Antropologia, Cincia Poltica e Filosofia. Para tanto, este artigo se nos

    afigura assaz exemplar a respeito do posicionamento comum que une as diferentes

    pesquisas ali realizadas. Publicado originalmente em 1999, sua finalidade era a de

    apresentar de maneira concisa a linha de argumentao desenvolvida em De la

    justification, de 1991, a volumosa obra que aglutina e pormenoriza o conjunto de idias

  • 3

    do grupo. Trata-se de uma cincia social de grande repercusso na Frana e aos

    poucos tornando-se eminente em diversas outras partes do mundo, a incluindo o Brasil

    que destaca o desempenho pragmtico de tipos gerais mobilizados pelos atores nas

    disputas sobre a adequao dos seus posicionamentos ou na coordenao das suas

    aes; um arcabouo terico que busca compreender as gramticas sobre as quais

    repousam as reivindicaes de justia e as denncias de injustia nos arranjos coletivos.

    At o presente momento no havia traduo para o portugus de nenhum

    documento expositivo que articulasse os principais fundamentos desse quadro terico,

    formulado como divergncia da "sociologia crtica", em favor de uma "sociologia da

    crtica", mais aparelhada observao de como as pessoas, em situaes especficas,

    recorrem s "ordens de grandeza" (cits) como sustentculo da legitimidade de suas

    operaes crticas. Assim, ao publicar este artigo, acreditamos contribuir para o

    preenchimento da no-desprezvel lacuna de inteligibilidade que subjaz no nosso debate

    acadmico quando este se d em torno de vocbulos pertencentes a outro idioma.

    Todavia, sem pretender determinar em definitivo os correspondentes nacionais s

    expresses integrantes da vertente terica aqui presente, a traduo que ora vem a lume

    pode ser igualmente colocada como objeto de discusso, visto que no h ainda

    consenso sobre a melhor maneira de transportar o alcance de significado de alguns

    conceitos, sendo o de cit o mais notrio deles. Nossa preferncia por ordem de

    grandeza condizente com o termo em ingls order of worth, utilizado no texto.

    Sem mais demora, entregamos comunidade cientfica este que dever ser o

    primeiro de muitos artigos de Luc Boltanski e Laurent Thvenot no Brasil.

    Marcos de Aquino Santos

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    O momento crtico

    Este texto focalizar a anlise de determinadas ocasies que desempenham um

    papel importante na vida social[1]. A fim de nomear tais ocasies, usaremos o termo

    momentos crticos (moments critiques), que faz referncia, ao mesmo tempo, atividade

    crtica das pessoas e raridade de um momento de crise. O que pertinente para o

    argumento a reflexividade deste momento crtico. A situao inicial mais ou menos

    a seguinte: as pessoas, envolvidas em relaes costumeiras, fazendo coisas juntas a

    saber, em poltica, trabalho, sindicalismo e tendo que coordenar suas aes, do-se

    conta de que h algo errado; que elas no conseguem mais conviver; que algo mudou.

    Dar-se conta de algo possui uma dupla significao. O termo aponta ao mesmo

    tempo para um movimento reflexivo interior e para uma performance no mundo

    exterior. No processo de se dar conta de que algo est errado deve-se tomar distncia do

    momento presente e retroceder ao passado. Coisas antigas, palavras esquecidas, atos

    concludos, voltam mente da pessoa atravs de um processo seletivo que os relaciona

    a fim de produzir uma narrativa que faa sentido. Essa volta retrospectiva interrompe o

    curso da ao.

    Porm essa quebra no curso da ao possui tambm outro motivo. A pessoa que

    se d conta de que algo no est funcionando raramente permanece em silncio. Ela no

    guarda os seus sentimentos para si. O momento em que se d conta de que algo no est

    funcionando , na maioria das vezes, aquele em que percebe no poder mais suportar

    esse estado de coisas. A pessoa deve, por essa razo, expressar descontentamento em

    relao s outras com quem estivera desempenhando, at ento, uma ao conjunta.

    A demonstrao desse descontentamento pode terminar em um escndalo. O

    escndalo propriamente dito assume diferentes formas. Pode facilmente se converter em

    violncia, contudo no investigaremos essa possibilidade.

    Mais freqentemente, o escndalo torna-se uma discusso na qual crticas,

    acusaes e queixas so trocadas. Ele assim se desdobra em uma controvrsia. A

    palavra escndalo sugere querelas domsticas, e a palavra controvrsia litgio

    judicial. O primeiro visto como informal, enquanto que a segunda conduzida pelo

    sistema judicial. No entanto, h uma profuso de casos intermedirios, como, por

    exemplo, as discusses em lojas ou reparties, entre clientes e funcionrios, ou os

    desentendimentos na rua, entre motoristas. Investigamos os traos comuns destas

    situaes bem diversas e assim tentamos delinear uma estrutura geral para a anlise dos

    processos de disputa em uma sociedade complexa.

  • 5

    Uma primeira caracterstica dessas situaes que as pessoas nelas envolvidas

    encontram-se sujeitas a um imperativo de justificao. Aquela que critica as outras

    precisa produzir justificaes a fim de dar suporte a suas crticas, assim como a pessoa

    alvejada precisa justificar suas aes para defender sua causa. Estas justificaes

    precisam seguir regras de aceitabilidade. No podemos dizer, por exemplo: Eu no

    concordo contigo porque no vou com a sua cara. E no h razo para pensar que estas

    regras de aceitabilidade sejam diferentes para aquele que critica e para aquele que deve

    responder s crticas. Assim, um quadro de anlise da atividade de disputa deve, com as

    mesmas ferramentas, ser hbil em ocupar-se das crticas, a qualquer ordem, social ou

    situacional, assim como da sua justificao.

    Alm disso, essas situaes so necessariamente provisrias porque quebram o

    curso corriqueiro da ao. Ningum pode viver constantemente em um estado de crise.

    Logo, um dos modos de sair de uma crise retornar a um acordo. O quadro de anlise

    deve, portanto, ser capaz de manejar o acordo e o desacordo com as mesmas

    ferramentas.

    Finalmente, estas disputas no so meramente uma questo de linguagem.

    Disputas envolvem no apenas seres humanos, mas tambm um grande nmero de

    objetos: em uma disputa profissional, por exemplo, um computador cujos dados foram

    apagados; em uma disputa entre herdeiros, uma casa ou um terreno; ou, em um bate-

    boca domstico, os pratos que devem ser lavados, e assim por diante. O quadro deve ser

    delineado de modo que possa lidar com disputas no mundo real, isto , deve ser capaz

    de descrever a maneira pela qual as disputas associam pessoas e coisas.

    O estabelecimento de equivalncia

    Vamos focalizar o momento em que as pessoas entram em disputa. Um aspecto

    importante desse momento diz respeito ao estabelecimento de equivalncia. A fim de

    criticar e esclarecer a algum o que que est ocorrendo de errado, preciso

    mentalmente reunir diferentes grupos de pessoas e objetos e fazer conexes entre eles.

    preciso, por exemplo, conectar eventos e detalhes retirados do passado para exibir as

    caractersticas pertinentes por eles partilhadas. A operao de aproximar diferentes itens

    ou fatos deve ser justificada com a referncia a um princpio de equivalncia que

    esclarea o que eles tm em comum.[2]

    Mas o prprio acordo baseado na mesma espcie de operaes. Para tornar

    possvel um acordo, pessoas particulares necessitam despir-se de sua singularidade e

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    convergir na direo de uma forma de generalidade que transcenda as pessoas e as

    situaes nas quais elas se relacionam. Logo as pessoas, ao buscar o acordo, precisam

    pr em evidncia uma conveno de equivalncia que lhes externa.

    Consideremos, por exemplo, uma discusso entre dois motoristas depois de uma

    batida. A indignao furiosa do primeiro pode ser proveniente de uma srie heterognea

    de aborrecimentos que ele sofrera naquele dia: sua mulher adoentara-se; seu filho tirara

    pssimas notas no colgio; ele fora humilhado pelo chefe; ele est preocupado com uma

    dor na garganta (que talvez seja cncer) e, somado a isso, este estpido bate em seu belo

    carro novo. A j demais! Porm, o segundo motorista tambm h de possuir uma

    srie de razes pessoais para se queixar contra um mundo torpe: sua me morrera justo

    no dia anterior; seus impostos aumentaram; seu ltimo livro fora recusado pelo editor e,

    alm do mais, h este idiota, no meio do caminho. A j demais! Caso eles queiram

    escapar da violncia, precisam ser capazes de abolir, como privados, a maioria destes

    motivos de descontentamento, e convergir na direo de uma definio comum dos

    objetos pertinentes situao tais como as leis do trnsito, o estado dos pneus, etc.

    No obstante, para convergir nessa classificao dos itens pertinentes e no pertinentes

    eles devem compartilhar uma capacidade comum de enxergar o que cabe na situao e

    sob que relao. Eles necessitam, por isso, de uma definio comum da forma de

    generalidade que permite conectar esta situao a outras identificadas como similares.

    A possibilidade de fazer referncia a um princpio de equivalncia tambm um

    pr-requisito para qualquer clculo. Para acusar ou criticar de maneira consistente,

    preciso, portanto, munir-se de certa habilidade de calcular. Se voc quer, por exemplo,

    dizer numa voz zangada aos colegas com quem est escrevendo um livro: sou sempre

    eu quem tem de xerocar e fazer todas as tarefas, enquanto vocs lem livros

    estimulantes sentados confortavelmente em suas poltronas, voc precisa reunir e pr

    sob equivalncia vrias operaes completamente espalhadas e heterogneas. Diremos

    que a necessidade de realar a equivalncia um aspecto essencial do mtodo ou regime

    seguido pelas pessoas quando precisam conduzir-se em uma disputa. A tal regime de

    justificao daremos o nome de regime de justia.

    Ao contrrio, no curso habitual da ao comum as equivalncias no esto

    sujeitas reflexo deliberada. Em vez disso, as equivalncias que mantm a

    coordenao das aes podem estar, por exemplo, encapsuladas nos objetos ou

    presentes em regras objetivadas. O exemplo mais freqentemente citado provavelmente

    a estandardizao do tempo e dos calendrios.

    Em outro modo de coordenao, que chamaremos de um regime afetivo (rgime

  • 7

    dagap) (BOLTANSKI, 1990), as pessoas cooperam ativamente no processo de deixar

    de lado as equivalncias, de modo a tornar difceis as operaes de acumulao e

    clculo requeridas para culpar e criticar. Um bate-boca emocionalmente intenso, que

    envolve pessoas conectadas por lao afetivo, est situado precisamente na fronteira

    entre um regime de ao que se dirige a recusar a medio de equivalncia e, do outro

    lado, um regime de ao em que as pessoas trazem tona medidas de equivalncia e

    pem nfase nelas. Cenas assim foram freqentemente apresentadas em obras literrias.

    Mas na maioria dos casos, os escritores introduzem tal cena na descrio de

    relacionamentos amorosos. Contudo, como mostra o trabalho de campo, esta espcie de

    cena fronteiria tambm muito freqente entre pessoas envolvidas em relaes

    profissionais. A pessoa que se desloca de um regime a outro olha para os eventos

    passados de forma desencantada: Como era possvel que eu fosse to tolo; quanta

    ingenuidade a minha; que fantasias eu alimentara! Eu batera xrox nos ltimos vinte

    anos ou (em outro contexto) eu lavara pratos, etc., sem receber nada em retribuio.

    Agora, eu me dou conta... Porm, este momento de desassossego no , como

    freqentemente reivindicado por aqueles que o experimentam, uma hora da verdade. O

    regime no qual se faz clculos no mais verdadeiro, no mais real, do que o regime

    no qual as pessoas inibem suas habilidades de clculo. a mudana na percepo de

    mundo originada de um rpido deslocamento de um regime a outro que d a iluso de

    uma verdade evidente.

    O regime de justificao, que requer convenes coletivas de equivalncia,

    somente imperioso quando regimes de coordenao mais locais baseados tanto em

    comodidade pessoal quanto em utilizao costumeira no esto sendo suficientes

    para lidar com a adversidade da situao e determinar o que conveniente ou

    apropriado (THVENOT, 1990b). No regime de familiaridade (THVENOT, 1994)

    uma pessoa est intimamente ajustada a um ambiente familiar, seja a sua casa ou local

    de trabalho. As dinmicas de tal ajustamento so altamente dependentes de traos

    pessoais e locais que no esto claramente disponveis a um observador no

    familiarizado. Todos os maneirismos parecero bizarros a qualquer observador

    desprovido do conhecimento ntimo que constitui o carter da personalizao como

    decorrncia de um caminho de acomodao duradoura e parcialmente mtua com o

    entorno. Agora imaginem que a pessoa, ao partir, deve deixar o lugar a um recm-

    chegado no familiarizado. H uma necessidade de pr em ordem o lugar a fim de dar a

    ele a condio apropriada a um regime inteiramente diferente de ajustamento, alicerado

    em uma ao regular e metdica baseada em propsitos e funcionalidades. Isto envolve

  • 8

    destruir uma poro considervel do contedo familiar do complexo emaranhado de um

    habitat. Equipamentos altamente personalizados no se encaixam no formato de

    propsitos regulares e annimos, a partir de artefatos funcionais. Necessita-se que os

    objetos satisfaam a propsitos normais e que sejam restauradas a seu estado normal as

    coisas saturadas pelo uso. A linguagem comum, com sua denominao concisa das

    aes e dos objetos, suficiente para dominar este regime de ajustamento. Isto est em

    acentuado contraste com a comodidade pessoal (onde a linguagem altamente gestual e

    corporal) e tambm com as convenes coletivas (onde a linguagem estritamente

    convencionalizada). Funcionem as coisas incorretamente e uma disputa ganhe forma, as

    pessoas em discusso rejeitam a admisso implcita da normalidade de uma ao ou das

    boas condies de um objeto. Elas agora referir-se-o a princpios de eficincia, ou de

    segurana, por exemplo, que sejam gerais, para justificar sua reclamao. Elas iro

    ancorar seus argumentos em requisitos convencionais mais amplos, requisitos esses que

    os entes, tanto humanos quanto no-humanos, devem preencher para serem

    qualificados. Elas iro submeter as qualificaes a uma prova referente s convenes.

    No curso de uma disputa, a referncia a um princpio de equivalncia tambm

    uma operao bsica executada necessariamente a fim de levantar uma reivindicao de

    justia, revelar uma injustia e demandar uma reparao. A fim de afastar a violncia da

    situao, os descontentes precisam demonstrar os seus motivos associando-os a

    comprovaes e justificaes e precisam fazer isso de tal modo que possam ser

    atendidos.

    possvel associar casos bem diferentes se se aceita a idia de que as disputas

    sobre o justo sempre dizem respeito a um desacordo cujo objeto a importncia ou a

    grandeza (la grandeur) relativa dos diferentes seres presentes na situao.

    Ocupemo-nos de um problema bem comum: o de como, no decorrer de uma

    refeio, distribuir a comida entre os convidados. Quando a mesa grande, os

    convidados no podem servir-se sozinhos, como fazem em um buffet meal. No decorrer

    da refeio, a questo da ordem do servio no pode ser evitada. E esta questo deve ser

    apresentada publicamente. Pode-se, claro, tentar escapar do problema, escolhendo

    amoldar a ordem temporal a uma ordem espacial que neutraliza o significado social de

    ser servido primeiro. Este o caso quando, abandonando qualquer conceito de servir

    algumas pessoas antes de outras, o anfitrio faz circularem despreocupadamente as

    travessas na mesa. Mas em todos os outros casos, a ordem temporal do servio

    suscetvel de ser interpretada como uma ordem de precedncia de acordo com a

    importncia ou a grandeza relativa dos convidados.

  • 9

    Porm o cumprimento dessa ordem pode ser dificultado, particularmente quando

    surge a possibilidade da existncia simultnea de diferentes ordens de grandeza.

    melhor apresentar as iguarias primeiro av ou ao chefe do anfitrio? A possibilidade

    de protesto origina-se da presena, na mesma situao, de diferentes ordens possveis.

    Um acordo tcito entre os participantes acerca da espcie de qualidades que deve ser

    enfatizada pela ordem do servio a condio de um evento harmonioso e sem

    dificuldades. Mas a pr-condio deste acordo um reconhecimento comum de uma

    equivalncia convencional que possa sustentar um juzo acerca da importncia ou

    grandeza relativa das pessoas envolvidas. Mesmo que a referncia a essa conveno no

    seja explcita, ela deve ser clara o suficiente para produzir uma situao que parea

    repousar numa ordem natural.

    A possibilidade de um acordo legtimo

    Uma das principais caractersticas da espcie de acordo que temos em mente a

    sua exposio crtica e a confrontao com ela, de modo real ou potencial. Eis a razo

    pela qual ele deve ser justificado: para ser capaz de opor-lhe uma resistncia, caso

    atacado. Nosso objeto no , portanto, um acordo mtuo e circunstancial entre

    indivduos (que poderia ser considerado indefensvel e assim logicamente

    inconsistente), e sim um acordo justificado que alveja enfrentar a crtica e cuja

    compatibilidade com um requisito de generalizao pode ser observada.

    Por enfatizar o processo de justificao, queremos considerar seriamente a

    questo da legitimidade do acordo, ao contrrio de exclu-la em favor de uma

    explanao arranjada exclusivamente em termos de casualidade, conluio ou fora.

    Certamente no subestimamos a importncia da dominao, da fora, dos interesses e

    mesmo do artifcio, da fraude e da enganao na vida social. No entanto, uma

    representao do mundo social completamente baseada na dissimulao e na fraude

    deixaria de gozar da capacidade de explicar as experincias dos prprios atores sociais.

    O principal problema da sociologia crtica a sua inabilidade em entender as

    operaes crticas empreendidas pelos atores. Uma sociologia que deseja estudar tais

    operaes uma sociologia que se debrua sobre a crtica como seu objeto de estudo

    especfico deve, portanto, abandonar (se no, temporariamente apenas) a postura

    crtica, a fim de reconhecer os princpios normativos que sustentam a atividade crtica

    das pessoas comuns. Se quisermos levar a srio as reivindicaes dos atores quando

    estes denunciam a injustia social, criticam as relaes de poder ou desvelam as razes

  • 10

    ocultas de seus adversrios, devemos conceb-los como dotados de uma habilidade para

    diferenciar maneiras legtimas e ilegtimas de apresentar crticas e justificaes. , mais

    precisamente, esta competncia caracterizadora do sentido ordinrio de justia que as

    pessoas cumprem em suas disputas. Tentaremos delinear agora a anlise desta

    competncia. Nosso objetivo descrever o senso de justia dos atores ou, mais

    precisamente, seu senso de injustia e construir modelos de competncia com os quais

    os atores devem estar equipados para enfrentar situaes crticas comuns. Esta

    abordagem afasta-se, assim, da tarefa da filosofia moral, que descobrir alguns

    procedimentos e eixos normativos que conduzem justia, embora seja possvel

    construir um modelo normativo de justia a respeito do senso de justia do ator, fato que

    explicitaremos.[3]

    Pode-se dar a conhecer o requisito de legitimidade atravs de uma afirmao

    bem prtica: uma crtica ou uma justificao pode ser tida como legtima em uma

    situao concreta quando o seu formulador puder mant-la quaisquer que sejam as

    caractersticas sociais que os seus interlocutores recm-chegados puderem apresentar. O

    efeito do requisito de legitimidade , portanto, pr em movimento um processo de

    generalizao.

    O modelo do senso de justia

    Em situaes sob requisito de justificao, as pessoas devem basear suas

    posturas em uma grandeza legtima. Porm, tal afirmao no implica que todas as

    formas de comportamento devam ser reunidas sob um nico princpio de equivalncia.

    Nosso trabalho objetiva construir uma estratgia de investigao no campo sociolgico

    como fez Michael Walzer na filosofia da justia que possa habilitar-nos a escapar de

    ter que escolher entre um universalismo formal e a espcie de pluralismo ilimitado que

    tem sido freqentemente a reao das disciplinas empricas, como histria ou

    sociologia, a posies transcendentais.

    Para a sociologia clssica, a pluralidade de valores um efeito da pluralidade de

    grupos sociais. No obstante, em tal estrutura a questo do acordo entre pessoas que

    pertencem a grupos diferentes difcil de responder sem o recurso a uma explicao

    baseada sobretudo na dominao, no poder ou na fora. Teorias morais devotadas

    anlise das pr-condies de uma sociedade justa so, ao contrrio, na maioria das vezes

    dedicadas busca de um mtodo universal capaz de dar suporte fundao de uma

    conveno geral. A utilidade de tais construes para o trabalho sociolgico depende

  • 11

    essencialmente de que elas se tornem sistemticas e consistentes. No entanto, elas

    podem ser vistas como utopias quando confrontadas com a diversidade de situaes nas

    quais os membros de uma sociedade complexa esto envolvidos.

    Podemos escapar da alternativa entre universalismo formal e pluralismo

    ilimitado, considerando a possibilidade de um pluralismo limitado de princpios de

    equivalncia possveis de serem usados para dar suporte a crticas e acordos

    (BOLTANSKI e THVENOT, 1991). A referncia a diferentes espcies de bem-

    comum que torna possvel classificar diferentes maneiras de decidir a respeito do

    estado de grandeza de uma pessoa. Neste modelo, ento, as diferentes formas de

    equivalncia no so relacionadas a diferentes grupos como o so na sociologia

    clssica mas a diferentes situaes. Segue-se que uma pessoa deve a fim de agir de

    maneira normal ser hbil em se deslocar, durante o espao de um dia ou mesmo de

    uma hora, entre situaes que pertencem a diferentes formas de equivalncia. Os

    diferentes princpios de equivalncia so formalmente incompatveis entre si, desde que

    cada um deles seja reconhecido na situao na qual sua validade estabelecida como

    universal. Decorre que as pessoas, quando esto em uma dada situao, devem ter a

    habilidade de ignorar, ou esquecer, os princpios nos quais basearam suas justificaes

    quando estiveram envolvidas em outras situaes.

    A fim de descobrir a grandeza legtima disponvel s pessoas quando estas

    devem, nas situaes costumeiras, explicitar seus fundamentos e produzir justificaes,

    a nossa estratgia foi a que se segue. Iniciamos a partir de dois pontos diferentes,

    aparentemente bem distantes um do outro, entre os quais retrocedemos e avanamos.

    Mais precisamente, usamos trs corpora de dados. Dados empricos recolhidos em

    nosso trabalho de campo acerca do processo de disputa constituram o primeiro corpus.

    Essa linha de pesquisa (realizada com um grupo de estudantes de graduao e

    coordenada em um seminrio) municiou-nos com um grande conjunto de argumentos e

    dispositivos situacionais dos quais podemos extrair justificaes usadas freqentemente

    no cotidiano. Lembremos de uma situao muito familiar no nosso prprio meio, por

    exemplo, uma controversa discusso sobre a importncia de um livro recentemente

    publicado por um colega. Pode-se argumentar que este livro muito bem conhecido ou

    que ele est vendendo muito bem. Mas possvel contrapor-se a estes elogios

    argumentando, por exemplo, que tal livro no o resultado de um trabalho realmente

    sistemtico ou, sob outro ponto de vista, que ele no muito criativo. As grandezas ou

    os patamares de importncia atribudos s pessoas ou objetos tornam-se especialmente

    salientes quando a situao torna-se uma disputa, de modo que o estudo de tais

  • 12

    situaes uma ocasio muito boa para detect-los.

    O segundo corpus utilizado feito de um conjunto de textos clssicos oriundos

    do campo da filosofia poltica. Essa escolha foi motivada pelo fato de que, durante o

    curso de disputas empiricamente observadas, as pessoas no necessariamente

    desenvolvem clculos sistemticos dos quais o analista poderia derivar os princpios de

    equivalncia que sustentam o processo de avaliao e qualificao. Tais exigncias de

    sistematicidade que levam a uma clarificao de princpios, ao contrrio, encontram-se

    justamente no mago de filosofias polticas que devem, para serem convincentes,

    demonstrar que o bem-comum no qual elas se baseiam apropriadamente

    fundamentado. Ento, comparando diferentes construes filosficas de natureza

    poltica, identificamos diferentes princpios de equivalncia e construmos um modelo

    da maneira pela qual eles podem sustentar legtimas reivindicaes de justia.

    Usamos ento este caminho indireto pela filosofia poltica a fim de aperfeioar o

    nosso entendimento das competncias que os atores cumprem quando devem justificar

    suas aes ou crticas. O processo de disputa no pode ser reduzido nem a uma

    expresso direta de interesses egostas, muito menos a uma confrontao anrquica e

    incessante de vises de mundo heterogneas. Observando o curso das disputas, ou, mais

    precisamente, de disputas nas quais a violncia est excluda, no se podem deixar de

    observar os requisitos comuns que formam o comportamento das pessoas envolvidas.

    Por exemplo, elas devem basear seus argumentos numa forte evidncia, expressando

    deste modo a sua vontade de convergir na direo de uma resoluo do seu desacordo.

    Construes polticas podem ser usadas como ferramentas poderosas para elucidar estes

    requisitos e revelar as premissas que na maioria das vezes encontram-se encapsuladas

    nos argumentos intercambiados no curso da ao. Nosso uso destes textos cannicos

    tem sido, portanto, instrumental e, por isso, agudamente, desvia-se da tradio

    filosfica. No estudamos estes textos por si mesmos, nem como resultantes de um

    contexto social ou histrico, mas como gramticas gerais do vnculo poltico.

    claro que no sugerimos que os membros habituais de nossa sociedade na

    realidade leram as obras que usamos para delinear os modelos de competncia que as

    pessoas cumprem quando esto envolvidas em disputas. Mas as ordens de grandeza

    elucidadas e formalizadas nessas filosofias polticas encontram-se tambm

    corporificadas nos dispositivos de objetos que compem as situaes cotidianas. Elas

    esto neste momento encapsuladas no mago de um grande nmero de instituies

    comuns e dispositivos sociais, como eleies, sindicatos, mdia, apresentaes artsticas

    e cerimnias familiares.

  • 13

    Enfocando a operao de justificao e crtica, nosso interesse recai menos sobre

    as filosofias polticas que enfatizam o poder ou a fora, do que sobre aquelas dedicadas

    a assentar um equilbrio social e poltico. Estas construes tm em comum o fato de

    imaginar um mundo no qual os seres humanos so claramente separados dos outros

    seres e se renem pela virtude de uma igualdade fundamental. Estas filosofias polticas

    podem, portanto, ser caracterizadas pela nfase que depositam em uma humanidade

    comum. Nas diferentes construes que usamos como recursos para elucidar o sentido

    ordinrio de justia, as pessoas so iguais quanto ao seu pertencimento comum

    humanidade. Mas, conforme a comparao de textos de diferentes tradies demonstra,

    cada uma destas construes prope um princpio especfico de ordem ou equivalncia

    que possa ser executado, a fim de especificar em que consiste a grandeza dos grandes

    (les grands) e, conseqentemente, em que basear uma ordem justificvel entre as

    pessoas.

    Uma pessoa envolvida na crtica deve ser dotada da habilidade de se transportar

    de uma forma de justificao a outra, mantendo-se fiel a esses mesmos requerimentos.

    A tentativa de explicitar estes requerimentos, comuns a diferentes ordens, leva-nos a

    trazer tona um modelo comum (modele de cit) compartilhado por todas as ordens de

    grandeza e que explica a possibilidade de deslocamento de uma a outra ou a de

    construo de compromissos. A presena, no centro do modelo, de dois diferentes

    requisitos bsicos primeiro, um requisito de humanidade comum e, segundo, um

    requisito de ordem produz uma tenso, uma vez que as pessoas so iguais quanto a

    seu pertencimento humanidade, ao mesmo tempo em que so colocadas dentro de uma

    hierarquia, de acordo com um princpio de ordem especfico. Segue-se que, neste

    modelo, a distino entre pessoas (os seres humanos em seus estados antes de qualquer

    forma de qualificao) e estados de pessoas (que se referem ao processo de

    qualificao) crucial. Uma concepo na qual os estados de pessoas sua grandeza ou

    importncia so definitivos deve, portanto, estar em desacordo com o princpio de

    humanidade comum.[4] O momento crtico precisamente o momento em que uma

    discordncia acerca do estado de grandeza das pessoas se manifesta. Algum, por

    exemplo, far a seguinte crtica: O melhor computador no foi destinado ao melhor

    programador. Ou, em outra situao: O filho mais velho, aquele que tem direito s

    terras dadas como herana, na verdade no o que possui as qualidades morais

    requeridas para administr-las. A manifestao desta discordncia cria uma incerteza

    acerca da grandeza relativa dos seres envolvidos, o que produz inquietude. A fim de

    resolver esta incerteza, um juzo, enraizado na situao, necessrio. Para entender

  • 14

    como este juzo se consuma, devemos prestar ateno s condies pragmticas de

    atribuio de grandeza a uma pessoa. Alcanaremos ento a questo acerca dos objetos

    e da relao entre seres humanos e coisas. Para analisar o caso do programador cuja

    competncia profissional foi posta de lado, ou o do primognito cujas qualidades morais

    foram refutadas, temos que investigar as correlaes entre as pessoas e uma pluralidade

    de objetos, materiais ou no, tais como mquinas, programas de computador,

    regulamentos, credenciais, leis de herana, atributos do solo, etc. No queremos lidar

    com estes objetos como meros suportes de significado simblico, como freqentemente

    fazem os socilogos. Queremos, pelo contrrio, mostrar o caminho pelo qual as pessoas,

    para enfrentar a incerteza, dispem das coisas, dos objetos, dos dispositivos usados

    como referentes estveis, nos quais testes de realidade ou provas podem ser baseados.

    Estas provas permitem aos juzos alcanar um acordo fundamentado e legtimo e,

    portanto, fornecem a possibilidade de finalizar disputas.

    A fim de demonstrar os mundos de objetos dos quais dispor para a realizao de

    uma prova de realidade, examinamos um terceiro corpus, constitudo de algumas obras

    contemporneas que pretendem servir de manuais ou cartilhas do comportamento

    correto em empresas contemporneas. Estes guias so escritos por leigos e reivindicam

    uma funo pedaggica. Posto que se designam a ensinar s pessoas a maneira correta

    de organizar novas situaes e enfrentar as atuais, eles contm referncias a um grande

    nmero de objetos informais que esto, claro, ausentes dos tratados filosficos sobre

    poltica. Era importante, para ns, escolher guias diferentes, cada um deles dedicado

    demonstrao de uma maneira particular de definir a grandeza, mas todos consagrados

    ao uso no mesmo espao social, que, neste caso, o espao da empresa contempornea.

    A razo a seguinte. Como dito anteriormente, levantamos a hiptese de que as mesmas

    pessoas devem, no mesmo dia e no mesmo espao social, utilizar diferentes dispositivos

    de fixao de valor, incluindo a referncia a tipos diferentes de grandeza, quando se

    deslocam de uma situao a outra. As empresas so atualmente uma esfera bastante

    adequada para testar essa hiptese. A co-presena, na empresa contempornea, de

    recursos heterogneos, levando a diferentes formas de coerncia e baseada em

    diferentes princpios de justia, particularmente impressionante. Situaes prximas

    no espao e no tempo so justificadas de acordo com diferentes princpios. E as mesmas

    pessoas precisam atravessar essas situaes. Tomemos o caso, por exemplo, de um

    engenheiro aeronutico que no mesmo dia pode ter que projetar um teste experimental

    de um novo prottipo, em seguida conduzir uma discusso com gerentes comerciais

    sobre os melhores argumentos tcnicos que podem ser usados para vender uma nova

  • 15

    mquina, em seguida participar de um almoo para o qual foi convidado um senador (i.

    e. como um dispositivo de relaes pblicas), e, no fim do dia, despir o palet e

    comparecer ao encontro do sindicato dos executivos do CFDT local. O mesmo

    indivduo pode mais tarde voltar casa, ser repreendido por sua mulher por ter chegado

    tarde e, depois de tudo, assistir a um concerto de um jovem pianista inspirado e recm-

    descoberto.

    Escolhemos guias de prticas cotidianas contemporneos que poderiam ser

    equiparados aos textos polticos clssicos dos quais extramos os princpios de ordem

    desempenhados em diferentes situaes dirias. Executamos ento esta operao

    bastante desrespeitosa de processar estes guias mundanos de ao prtica juntamente s

    obras imortais dos filsofos polticos.

    Os mundos comuns

    Ofereceremos agora uma curta descrio destes mundos comuns, mostrando

    para cada um deles: primeiro, os diferentes princpios de ordem subjacentes obtidos dos

    textos clssicos; e segundo, os seres (pessoas ou coisas) que habitam estes mundos,

    descritos nos correspondentes guias prticos. Em De la justification (1991) tratamos de

    destacar seis mundos (ver Tabela 1). Supomos que estes seis mundos so suficientes

    para descrever as justificaes que funcionam na maioria das situaes ordinrias.

    Contudo, este no um nmero mgico, evidentemente. Estes mundos so construes

    histricas e alguns deles so cada vez menos capazes de fundamentar justificaes,

    enquanto outros esto emergindo. Pode-se perguntar, por exemplo, se uma grandeza

    ambiental, ou uma grandeza comunicacional no estariam vindo tona no momento.

    Tabela 1

    Ordens de grandeza

    Inspirada Domstica Cvica da Opinio Mercantil Industrial Modo de avaliao (grandeza)

    Graa, no-conformismo, criatividade

    Estima, reputao

    Interesse coletivo

    Renome Preo Produtividade, eficincia

    Formato da informao pertinente

    Emocional Oral, exemplar, anedtico

    Formal, oficial Semitico Monetrio Mensurvel: critrios, estatsticas

  • 16

    Relao elementar

    Paixo Confiana Solidariedade Reconhecimento Troca Vnculo funcional

    Qualificao humana

    Criatividade, ingenuidade

    Autoridade Igualdade Celebridade Desejo, poder aquisitivo

    Competncia profissional, percia

    O mundo da inspirao

    A construo deste mundo baseada em A cidade de Deus, de Santo Agostinho,

    e em seu tratado dedicado ao problema da graa. Neste mundo, a grandeza vista como

    uma relao imediata com uma fonte externa da qual irrompe toda grandeza possvel.

    Esta grandeza repousa na obteno de um estado de graa e , portanto, completamente

    independente do reconhecimento por outros. Ela surge, particularmente, no corpo fsico

    quando preparado pelo ascetismo, e especialmente atravs das emoes. Suas

    expresses so diversas e multiformes: santidade, criatividade, sensibilidade artstica,

    imaginao, etc. A referncia a este mundo feita, no obstante, a cada vez que as

    pessoas alcanam a grandeza sem incomodar-se com as opinies dos outros. , por

    exemplo, o caso dos artistas. Os artistas no necessariamente rejeitam os smbolos de

    reputao ou o reconhecimento financeiro, mas eles devem, para serem aceitos,

    estabelecer um compromisso, sempre difcil de cumprir, com outra espcie de grandeza,

    digamos, por exemplo, a do renome ou a mercantil. Mesmo quando alcanam

    reconhecimento, eles nunca enxergam em seu sucesso a base real do valor de sua obra

    ou deles mesmos.

    A fim de apresentar os objetos do mundo inspirado utilizamos um guia prtico

    dedicado ao desenvolvimento da criatividade dos executivos escrito por um consultor

    em criatividade, cujo ttulo La crativit en pratique. Assim como no tocante aos

    outros guias que mencionaremos mais tarde, pode-se extrair desta obra uma lista de

    termos referentes a pessoas, objetos, qualidades e modos tpicos de travar relaes. Sem

    entrar em detalhes, pode-se mostrar que, no mundo da inspirao, os seres pertinentes

    so, por exemplo, espritos, loucos, artistas, crianas. Estes seres so conceituados e

    grandes quando so peculiares, extraordinrios, emocionantes. Seu modo tpico de agir

    sonhar, imaginar, rebelar-se, ou ter experincias estimulantes.

  • 17

    O mundo domstico

    O mundo domstico foi extrado de um comentrio na obra de Bossuet La

    politique tire des propres paroles de lcriture sainte. Em um mundo domstico, a

    grandeza das pessoas depende de uma hierarquia de confiana baseada em uma cadeia

    de dependncias pessoais. O elo poltico entre os seres visto como uma generalizao

    do parentesco e baseado nas relaes face-a-face e no respeito tradio. A pessoa

    no pode, neste mundo, deixar de pertencer a um grupo, uma famlia, uma linhagem,

    uma posio. Na construo poltica de Bossuet, o rei, considerado o maior ser,

    comparvel a um pai, que se sacrifica por seus subordinados. Neste modelo se deve,

    para avaliar a grandeza de algum, conhecer seu lugar na rede de dependncias da qual

    esta pessoa retira sua prpria autoridade.

    A fim de descrever os objetos do mundo domstico na atualidade, utilizamos um

    guia prtico que ensina boas maneiras e relaes humanas dentro da empresa,

    endereado a trabalhadores expostos mobilidade social e promovidos a posies de

    maior responsabilidade (intitulado Savoir vivre et promotion). Nesse livro, as pessoas

    importantes e conceituadas so chefes, patres, ou mesmo parentes. Suas principais

    qualidades so aquelas que lhes fazem distintas, francas, leais e de carter. Os objetos

    tpicos so, por exemplo, os cartes de visita, os presentes, as heranas, as casas, os

    ttulos. Dentre as maneiras apropriadas de estabelecer relaes, anotamos o ato de

    recomendar algum, a gerao de descendentes, a educao, a reproduo ou a

    apresentao de um convite.

    O mundo do renome

    O mundo do renome foi extrado do Leviat, de Hobbes, particularmente do

    captulo dedicado honra. Se em um mundo domstico a grandeza tem valor apenas em

    uma cadeia hierrquica de seres, no mundo do renome a grandeza unicamente o

    resultado da opinio das outras pessoas. A medida da grandeza das pessoas depende de

    sinais convencionais de avaliao pblica. Esta espcie de grandeza baseada nada

    mais do que no nmero de indivduos que concedem seu reconhecimento. , por isto,

    inteiramente no-relacionada ao domnio das dependncias pessoais, e sem ligao com

    a impresso que as pessoas fazem de si mesmas. Por esta razo, podem nascer disputas

    quando vem luz uma divergncia entre a auto-imagem e o reconhecimento dos outros:

    neste mundo, o reconhecimento das outras pessoas a realidade.

  • 18

    Como guia, utilizamos um livro de treinamento em relaes pblicas, Principes

    et techniques des relations publiques. As pessoas pertencentes a este mundo so as bem

    conhecidas celebridades, as estrelas, os lderes de opinio, os jornalistas. Elas so

    conceituadas e grandes quando so famosas, reconhecidas, de sucesso, ou convincentes.

    Os objetos correntes neste mundo so as marcas, os emblemas, os transmissores e

    receptores de mensagens, os press releases e os booklets. O modo correto de travar

    relaes , ento, influenciar, identificar-se com algum, causar a simpatia de algum ou

    falar sobre ele, ou bisbilhotar e disseminar rumores.

    O mundo cvico

    Provavelmente nenhuma obra apresenta melhor explicao sobre o que um

    mundo cvico, ao menos em sua verso francesa, deva ser, do que o Contrato social de

    Rousseau. No sistema cvico, como na comunidade domstica de acordo com Bossuet, a

    paz civil depende da autoridade de um soberano cuja posio, acima da luxria egosta

    dos indivduos, assegura o bem-comum. Porm, o soberano de Rousseau incorpreo.

    No mundo cvico, um soberano formado pela convergncia das vontades dos homens,

    que, na qualidade de cidados, abandonam seus interesses particulares e se conduzem

    exclusivamente na direo do bem-comum. Esta grandeza cvica contrape-se s

    dependncias pessoais, nas quais a grandeza domstica baseada, bem como s

    opinies dos outros, que constituem a grandeza do renome. No mundo cvico, as

    pessoas so pequenas se vistas como particulares, seguidoras dos ditames de uma

    vontade egosta, e, ao contrrio, relevantes e dignas se percebidas como membros da

    soberania incorprea, que diz respeito exclusivamente ao interesse geral. Para listar os

    principais objetos, pessoas e dispositivos de um mundo cvico, e descrever as situaes

    empresariais erigidas de acordo com esta lgica, utilizamos dois guias de sindicato,

    editados pelo CFDT, que se complementam um ao outro, Pour lire ou dsigner les

    dlgus (Como eleger ou nomear representantes) e La section syndicale (O setor

    sindical). O modo pelo qual organizada a fora de trabalho regulado por leis sociais

    que resultam do esforo, no sculo dezenove, por satisfazer a um princpio de

    equivalncia cvico.

    A peculiaridade do mundo cvico est em pr o acento nos seres que no so

    individuais e sim coletivos. Os seres humanos individuais podem ser vistos como

    relevantes e valorosos apenas enquanto pertencentes a um grupo ou enquanto

    representantes de uma personalidade coletiva. Neste mundo, as pessoas importantes so,

  • 19

    portanto, federaes, comunidades pblicas, representantes ou responsveis. Suas

    qualidades lhes conferem um carter oficial ou estatutrio. Os objetos pertinentes so

    tanto imateriais, tais como leis, cdigos, processos, quanto materiais, como sedes de

    sindicatos ou urnas, por exemplo. As relaes dignas so aquelas que envolvem ou

    mobilizam as pessoas para uma ao coletiva.

    O mundo mercantil

    A Riqueza das Naes (principalmente os primeiros captulos, que descrevem

    como um mercado funciona), de Adam Smith, apresenta argumentos que baseiam no

    mercado um sistema poltico harmonioso. O lao mercantil coordena os indivduos

    atravs da mediao de bens escassos, cuja aquisio pretendida por todos. Esta

    competio entre apetites individuais subordina aos desejos dos outros o preo relativo

    posse de uma mercadoria. O desejo sereno de riqueza, como Albert Hirschman

    escreve em As paixes e os interesses (HIRSCHMAN, 1981), citando Francis

    Hutcheson, permite a construo de uma ordem harmoniosa que transcende a confuso

    de interesses individuais.

    O mundo mercantil no deve ser confundido com a esfera das relaes

    econmicas. Tentamos mostrar, pelo contrrio, que as aes econmicas so baseadas

    em pelo menos duas formas de coordenao, uma pelo mercado e a outra por uma

    ordem industrial, cada uma delas servindo de apoio a uma prova de realidade diferente.

    No pudemos encontrar um guia francs contemporneo que pudesse ser

    utilizado para descrever os objetos concernentes ao mundo mercantil de hoje. Ns, por

    esse motivo, recorremos a uma traduo francesa de um livro estadunidense que ensina

    a arte dos negcios a um pblico vasto, What they dont teach you at Harvard Business

    School. Para os nossos objetivos esse livro de particular interesse, pois atribui o xito

    nos negcios a uma experincia visivelmente desconectada da produo industrial: o

    autor fez uma fortuna vendendo nomes de pessoas famosas a agncias de publicidade.

    Em um mundo mercantil, as pessoas importantes so os compradores e os

    vendedores. Eles so grandes quando so ricos. Suas principais qualidades os

    apresentam como oportunistas em detectar e aproveitar as oportunidades do mercado,

    desvinculados de qualquer lao pessoal e emocionalmente sob controle. Eles se

    conectam um ao outro atravs de relaes de competio.

    O mundo industrial

  • 20

    O princpio de equivalncia industrial foi extrado da obra de Saint-Simon,

    fundador da sociologia francesa. Neste mundo, a grandeza baseada na eficincia. Ela

    pode ser medida em uma escala de capacidades profissionais. Conectada produo de

    bens industriais, a grandeza industrial conservada na maneira pela qual dispositivos

    organizacionais orientam para o futuro o planejamento e os investimentos.

    Para descrever os objetos do mundo industrial utilizamos um guia de

    produtividade, Productivit et conditions de travail. Em um mundo industrial os

    grandes so os especialistas. As palavras usadas para descrever suas qualidades pessoais

    tambm podem ser utilizadas para qualificar coisas. Elas, pessoas e coisas, so

    estimadas quando so eficientes, produtivas, operacionais. Elas empregam ferramentas,

    mtodos, critrios, projetos, valores, grficos, etc. Suas relaes podem ser tidas como

    harmoniosas quando organizadas, mensurveis, funcionais, padronizadas.

    Crticas e Compromissos

    A crtica pode ser interna a um mundo quando so percebidas falhas ou defeitos,

    e seres so re-qualificados ou descobertos como pertinentes. Ou ela pode ser mais

    radical e baseada em uma exterioridade. Nesse caso, a avaliao crtica vem de fora e se

    fia em um mundo alternativo. precisamente porque as pessoas, ao contrrio das

    coisas, podem existir em uma pluralidade de mundos que elas sempre tm a

    possibilidade de denunciar uma situao como injusta (mesmo que a crtica seja frouxa

    em relao aos requisitos que devem ser preenchidos). No modelo que delineamos, uma

    capacidade crtica pode, portanto, ser considerada uma disposio caracteristicamente

    antropolgica.

    Pode-se demonstrar empiricamente que a maior parte das crticas hoje

    costumeiras viabiliza-se por relacionar dois (ou mais) dos diferentes mundos que

    esquematicamente descrevemos. Porm o objetivo da crtica pode ser mais ou menos

    radical. Podemos, portanto, fazer uma distino entre duas formas de crtica baseadas

    em exterioridade.

    Uma primeira forma de crtica consiste em denunciar uma prova de realidade

    concernente a determinado mundo, revelando a presena, dentro do prprio dispositivo

    de prova, de seres exgenos (ou intrusos), pertinentes a outro mundo. Consideremos,

    por exemplo, um exame escolar estabelecido para medir as capacidades de um aluno, e

  • 21

    que, portanto, pode ser tido como industrial, principalmente. Pode-se denunciar o aluno

    por ele ter demonstrado, durante o teste, o seu prestgio e riqueza de famlia atravs de

    suas roupas, seus modos, sua pronncia distinta, seu palet elegante e assim por diante.

    E pode-se, ao mesmo tempo, denunciar o professor acusando-o de ter, consciente ou

    inconscientemente, considerado em seu julgamento esses sinais de opulncia que no

    deveriam pertencer avaliao escolar. A situao ento criticada como injusta

    porque uma grandeza concernente a um mundo foi deslocada a outro. A esta forma,

    denominaremos transporte de grandeza. O princpio bsico no qual a prova baseada

    no contestado. Neste caso, a denncia exclusivamente focada no desvelamento da

    grandeza, prpria a outro mundo, que as pessoas so acusadas de ter introduzido na

    situao de prova. O processo de reparao consistiria ento em realizar uma nova e

    purificada prova.

    Mas a crtica pode ser muito mais radical. Delinearemos agora uma segunda

    forma, na qual o alvo da crtica o prprio princpio de equivalncia no qual a prova de

    realidade baseada. Neste caso, o objetivo da crtica substituir a prova corrente por

    outra, pertinente a outro mundo. A disputa ento no est mais direcionada aos rumos

    que a prova deve seguir a fim de ser justa, e sim questo de saber que espcie de

    prova, concernente a que mundo, seria realmente cabvel na situao. Imaginemos

    novamente a situao de um exame escolar. Mas desta vez a prova acontece num dia em

    que os estudantes esto l fora em protesto por direitos civis. A polcia foi trazida. O

    alvoroo toma conta da rua diante das janelas. Um professor poderia denunciar a

    maneira pela qual seus colegas continuam a administrar o teste enquanto os estudantes

    esto do lado de fora sendo espancados pela polcia. Ele pode dizer algo como: O que

    realmente importa agora no que acontea o exame, mas que demonstremos nossa

    solidariedade com os estudantes.

    Como sugere este ltimo exemplo, quanto mais impura uma situao (no sentido

    de conter objetos concernentes a diferentes mundos), mais fcil denunci-la. Isto

    significa, na nossa estria, falar, por um lado, em professores, quadros-negros, horrios,

    etc., e, por outro, em protesto, direitos, psteres com lemas polticos, reivindicaes de

    solidariedade, etc. Tais situaes sero denominadas situaes ambguas (situations

    troubles). Estas espcies de situaes, que contm objetos de vrios mundos, so

    particularmente suscetveis crtica. Provavelmente esta a razo pela qual as situaes

    nas quais importantes provas de realidade so realizadas geralmente so aparelhadas de

    modo a serem to puras quanto possvel. Os objetos de outros mundos so removidos a

    fim de desencorajar a crtica e tornar difcil a contestao da prova. Do intercruzamento

  • 22

    dos seis mundo mencionados acima, retiramos uma matriz a partir da qual pudemos

    traar as crticas legtimas mais freqentes em nossa sociedade. Assim, por exemplo,

    pode-se contar com um princpio de equivalncia cvico para denunciar as associaes

    pessoais do mundo domstico. Tal o caso quando, por exemplo, os sindicalistas

    denunciam o paternalismo no local de trabalho. Mas pode-se tambm, inversamente,

    criticar do ponto de vista do mundo domstico o modo cvico de relacionar pessoas e,

    como se diz, denunciar o efeito totalitrio das relaes jurdicas, que destroem as

    relaes genunas, humanas e calorosas entre os indivduos.

    A explorao emprica desta matriz pode tambm revelar quais de seus

    elementos so os mais sobrecarregados. Na Frana, por exemplo, o desvelamento, a

    partir de um ponto de vista cvico, de ligaes domsticas encobertas extremamente

    freqente. esta estimativa feita pelas pessoas que lhes serve, por exemplo, para

    sustentar as numerosas denncias de escndalos. este o caso quando, por exemplo,

    algum descobre a relao de parentesco ou amizade que une secretamente o prefeito,

    com a insgnia de seu ofcio, ao investidor a quem a assemblia legislativa da cidade

    reservou o direito de construir a nova rea de lazer.

    Quando uma crtica radical desafia o prprio princpio no qual a situao

    baseada, a disputa se transforma numa competio entre duas diferentes provas de

    realidade. As pessoas envolvidas, caso queiram encerrar tal disputa, devem buscar

    retornar a uma prova unitria.

    Mas pode-se considerar outro modo de encerrar uma disputa e obter um acordo:

    assinalando um compromisso entre os dois mundos. Em um compromisso, as pessoas

    conservam, intencionalmente, uma inclinao ao bem-comum pela cooperao em

    manter presentes seres concernentes a diferentes mundos, sem buscar esclarecer o

    princpio no qual seu acordo baseado.[5]

    No entanto, compromissos so fceis de denunciar. Quando as pessoas firmam

    um compromisso, elas agem como se pudessem contar com um princpio superior no

    qual basear uma equivalncia entre objetos de diferentes mundos. A referncia, por

    exemplo, aos direitos dos trabalhadores um compromisso entre o mundo cvico (onde

    cidados possuem direitos) e o industrial (onde os trabalhadores so respeitveis e

    grandes, na medida em que se opem aos ociosos). Neste caso, os direitos das pessoas

    como cidados em um mundo cvico so especificados em relao sua participao no

    mundo industrial. Estas vulnerveis construes argumentativas (visto que tal

    aproximao no sobreviver quando sua consistncia for questionada) podem ser

    fortalecidas atravs de sua concretizao em objetos ou instituies, feitas das coisas

  • 23

    concernentes aos mundos associados pelo compromisso (como na Frana, por exemplo,

    o Conseil conomique et social, que rene em uma instituio objetivada elementos dos

    mundos cvico, industrial e, at mesmo, domstico).

    O trmino da disputa

    As duas possibilidades que mencionamos a prova de realidade e o

    compromisso no so os nicos caminhos possveis de serem seguidos a fim de

    abandonar o momento crtico e retornar ao curso habitual da ao. Freqentemente, as

    pessoas desistem da disputa sem estabelecer um novo acordo confirmado por uma prova

    de realidade. Se quisermos compreender esses intrincados desfechos, provavelmente

    devemos deixar o domnio da justia, que depende de um princpio de equivalncia, e

    voltar o leme a outras lgicas de ao que, como no caso das relaes afetivas, pem de

    lado a referncia a uma equivalncia. em tais lgicas que o perdo se baseia

    (BOLTANSKI, 1990). Mencionar a perda do interesse na disputa e o perdo no

    evadir-se das cincias sociais. As espcies de relao travadas sem nenhuma referncia

    equivalncia podem tambm, com toda a certeza, ser explicadas atravs de uma

    anlise sociolgica, e at mesmo emprica, assim como a ausncia de crtica no

    meramente negativa, muito menos o simples resultado de dominao e alienao.

    Freqentemente exigida das pessoas uma participao ativa e uma capacidade especial

    para no perceber ou, ao menos, no tornar manifesto aquilo que esteja funcionando

    mal. Sem esta capacidade, as relaes humanas cotidianas seriam simplesmente

    impossveis.

    Notas

    [1] Uma primeira verso deste texto foi uma conferncia dada por Luc Boltanski no

    Institute for Advanced Study, Princeton, e beneficiou-se da leitura atenta, comentrios e

    assistncia de Terry Nardin. O argumento apresentado aqui de forma resumida foi

    desenvolvido em Boltanski e Thvenot (1987; 1991) e Boltanski (1990).

    [2] A respeito desse estabelecimento de equivalncia, ver, em ingls, Boltanski (1987),

    Boltanski e Thvenot (1983), Thvenot (1984).

  • 24

    [3] Para uma comparao deste senso de justia com as teorias da justia de John Rawls

    e Michael Walzer, ver Thvenot (1992) e o artigo Justification et Compromis no

    Dictionaire dthique et de philosophie morale (CANTO-SPERBER, 1996, pp. 789-94).

    Paul Ricoeur comparou os modelos de justia de Walzer e o nosso em relao ao lugar

    destinado poltica (RICOEUR, 1995).

    [4] Ver, nesta perspectiva, a tentativa de Alexis Carrel de construir uma cit

    eugnique e suas conseqncias na histria da demografia e da estatstica

    (THVENOT, 1990a).

    [5] Nesta perspectiva, podemos considerar as organizaes como compromissos

    organizados e relativamente durveis entre mundos diferentes. As organizaes diferem

    entre si no que diz respeito espcie de mundos que elas envolvem, e espcie de

    compromissos que lhes do suporte.

    Referncias

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    Cambridge, Cambridge University Press / Paris, ditions de la Maison des Sciences de

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    d. Mtaili.

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    ____ (1991) De la justification. Les conomies de la grandeur. Paris, Gallimard.

  • 25

    CANTO-SPERBER, Monique, ed. (1996) Dictionnaire dthique et de philosophie

    morale. Paris, PUF.

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