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Resumo/ Abstract
Eles no usam black-tie: a forma como contedo histrico-ideolgicoO
presente artigo analisa comparativamente a pea Eles no usam
black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri (1958) e o filme homnimo
(1981) com direo de Leon Hirszman. De- monstramos que h uma
dicotomiano texto de Guarnie-rique se equilibrana configurao da
forma interna da pea teatral e, verificamos que, na transposio da
linguagem teatral para a linguagem cinematogrfica, e pelas opes da
adaptao em momentos diversos de nossa histria polti-ca, essa balana
se desequilibra. Desta forma, percebemos como, a partir de nossa
matria esttica, podemos com-preender o nosso devir
histrico.Palavras-chave: teatro; cinema; histria; arte e
poltica.
Arena and the engagement in modern Brazilian theatre
The present article analyses comparatively the play Eles no usam
black-tie, by Gianfrancesco Guarnieri (1958), and the homonym movie
(1981) with the direction of Leon Hirsz-man. We demonstrated that
there is a dichotomy in Guar-nieris text that balances in the
internal shape configuration of the theatrical play and we verify
that in the transposition from the theatrical language to the
cinematographic lan-guage, and by the adaptation options in several
moments of our political history, this scale unbalances. In this
way, we noticed how from our esthetic matter we can compre-hend our
historical obligation and that even with the same content, the
works are different in their formal options, in other words,
modifying the way of the presentation of the contents, we modify
the content itself.Keywords: theater; cinema; history; arts and
politics.
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Walter Benjamin, em uma conferncia proferida em 27 de abril de
1934, no Instituto para o Estudo do Fascismo (BENJAMIN, 1994),
prope um debate em torno da questo do lugar do autor da obra de
arte (seja ela literria, teatral, fotogrfica ou musical) na
sociedade da poca e sua possibilidade de interferir nessa
sociedade. Para dar incio a sua reflexo, Benjamin analisa a
discusso entre forma e contedo, criticando o prprio debate sobre as
relaes entre essas categorias, enquanto categorias independentes,
como um debate estril. O que Benjamin procura estabelecer no incio
de sua re-flexo, como pressuposto para desenvolver todo o debate do
texto, uma maneira de se olhar para a obra literria que integre
dialeticamente as categorias de forma e contedo. Afirma o autor que
toda obra um contedo que se apresenta numa forma, e que as relaes
de anlise, e por que no dizer de julgamento, devem consider-las em
conjunto numa relao dialtica em que a forma tambm contedo.
Considera Benjamin que uma obra de arte literria s existe enquanto
forma e que essa forma s se manifesta a partir de um contedo. Para
concretizarmos mais o pensamento de Benja-
Eles no usam black-tie: a forma como contedo
histrico-ideolgico
Berilo Luigi Deir NosellaDoutorando em Histria e Historiografia
do Teatro pelo PPGT UNIRIO. Mestre em Literatura e Crtica Literria
pela [email protected]
[...] este objeto no consiste apenas em trazer luz s as crises
polticas do passado, as aven-turas guerreiras e diplomticas de
outrora, em estudar perpetuamente o Estado e os Estados, mas, sim,
o Homem, desde o incio o homem, homem que age, aflito, sofrendo e
trabalhando, criando estes magnficos encantamentos de arte e
literatura, construindo, medida de suas necessidades, as grandes
religies e as grandes filosofias, dotando-se, mental e
sentimental-mente, de um futuro humano que possa projetar para alm
de si mesmo e que o leva a li-bertar-se de seus humildes princpios
de bruto, de pobre, mal dotado pela natureza, inferior a tantos
brutos, poderosos, ferozes e bem armados.
Lucien Febvre1958A vida de certa forma no-dramtica. Ela no
conhece sim ou no, branco ou preto, tudo ou nada.
Bertolt Brecht
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30 ] Berilo Luigi Deir Nosella
min, poderamos afirmar sem medo que esse contedo aqui expresso
pelo autor, liga-se diretamente com a matria a partir da qual a
obra se origina, e esta diz respeito diretamente s relaes que a
obra em questo apresenta, e se baseia, com o meio do qual ela se
origina.
Esse pressuposto de anlise apresentado por Benjamin tambm se
mostra como pressuposto no presente texto. No se trata aqui de
debat-lo conceitualmente, apenas de traar linhas de filiao terica
para desenvolver a anlise que se pretende da obra Eles no usam
black-tie, de Gianfrancesco Guarnieri, a partir da hiptese de que
h, internamente obra, uma dicotomia formal e conteudstica que se
relacionam como duas linhas paralelas que (ao contrrio do que
aprendemos na geometria) se cruzam no momento do desenlace dramtico
do texto. Procuraremos demonstrar rapidamente como essas paralelas
presentes no texto de Guarnieri, mesmo que possamos considerar a
tendncia do autor a uma delas, se equilibram com pesos iguais na
configurao da forma interna da pea. Comparativamente, e para
verificarmos essa estrutura, analisaremos o filme Eles no usam
black-tie, de Leon Hirszman, realizado quase 30 anos depois, a fim
de perceber como, na transposio formal da linguagem teatral para a
linguagem cinematogrfica e pelas opes da adaptao, essa balana se
desequilibra. Assim, nesta anlise comparativa procuraremos
demonstrar como, com mesmos con-tedos, as obras se diferenciam nas
opes formais, ou seja, que modificando a forma como apresen-tao dos
contedos, modifica-se o prprio contedo de uma obra, retornando e
concordando com o pressuposto de Benjamin acima apresentado.
Antes de iniciarmos a anlise propriamente dita, precisamos
apresentar um outro pressuposto fundamental para o texto que aqui
se desenvolve. Na tradio dos estudos literrios alemes, que
re-montam a Hegel, Lukcs e finalmente ao prprio Benjamin, h uma
tradio de diviso da produo literria em gneros, em que a cada um dos
gneros corresponde, para os alemes, um mbito da vida real, uma
dimenso da vida1. A tradio alem dividiu as nossas experincias no
mundo em trs dimenses, s quais correspondem trs gneros literrios. A
dimenso da interioridade, da subjetivi-dade, corresponde ao gnero
lrico. A dimenso pblica, da vida coletiva, ou seja, a esfera da
poltica, dos negcios, das guerras, corresponde ao gnero pico. E a
terceira dimenso, que corresponde ao mbito da vida privada, quer
dizer a famlia, os amores, corresponde ao gnero dramtico. Estes
pres-supostos tericos so claramente incorporados pelos teatrlogos
alemes, principalmente Piscator e Brecht, na definio do conceito de
teatro pico.
1 HEGEL, Cursos de Esttica, volume IV: a poesia, principalmente
os captulos sobre As diferenas do gnero da poesia (p. 79-218).
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[ 31Eles no usam black-tie
Ir at o pensamento alemo para falar de um texto teatral
brasileiro (considerado to profunda-mente brasileiro) no , como
poderia parecer, virtuosismo intelectual. A pea Eles no usam
black-tie escrita por volta de 1955 e 1956, porm preferimos
considerar, mais precisa, a data de estreia da mesma em 1958 no
Teatro de Arena em So Paulo. Alm da maior preciso com relao data, o
Teatro de Arena um grupo cujas propostas e processos artsticos e
produtivos se ligam diretamente a essa pea tanto como marco
histrico quanto filiao ideolgica. O Teatro de Arena buscava,
fun-damentalmente, estabelecer um tipo de encenao (e a se
integravam princpios de interpretao, concepo cnica e dramaturgia)
propriamente brasileira, na melhor tradio do nosso Modernis- mo2. O
texto, Eles no usam black-tie, nasce em concordncia com o projeto
do Arena, de dentro de um Seminrio de Dramaturgia promovido pelo
grupo, a fim de encontrar esse texto nacional num processo que
pressupunha o coletivo. Assim somos levados a acreditar que, mesmo
tendo sado dos punhos pessoais de Guarnieri, at a estreia em 1958,
o texto provavelmente sofreu modificaes e sugestes de importantes
profissionais ligados ao Arena, como Augusto Boal, Jos Renato ou
Chico de Assis. A prpria deciso de encenar esse texto se d nessa
direo. Em 1958, o Arena passava por dificuldades financeiras srias
e j se sabia que no haveria meios de mant-lo. Dentro desse quadro,
o diretor Jos Renato, um dos principais fundadores e diretores do
grupo, decide montar o texto de Guarnieri afinal; se o Arena ter de
acabar, que termine com um texto que expresse de forma com-pleta as
motivaes mais profundas do grupo3. Fizemos esta breve apresentao do
Teatro de Arena primeiro para mostrar que o texto em questo no um
texto qualquer escolhido para ser montado pelo Arena, e sim um
texto que se vincula muito diretamente com o grupo enquanto
motivaes est-tico-ideolgicas de produo, uma vez que nasce no seu
interior. E vale afirmar que com essa mon-tagem que o Teatro de
Arena tem seu estouro de pblico. A pea acaba permanecendo mais de
um ano em cartaz e o grupo, que estava fechando, se estabelece como
uma das referncias fundamentais
2 Um dos muitos aspectos da pea Eles no usam black-tie
condizentes com as aspiraes nacionais-populares do Arena, que no
condiz aprofundarmos nesse trabalho mas me parece importante citar,
o uso da linguagem oral, coloquial nos dilogos da pea: A questo da
linguagem, como forma de expresso desse nacional-popular pretendida
pelo Arena, trouxe para o palco a chamada linguagem do povo; o que
para eles significava tentar colocar nos dilogos a maneira real das
chamadas classes populares, como se expressavam, desrespeitando
todas as regras gramaticais e recheando os dilogos de grias e
maneirismos como forma de alcanar esse objetivo (PASCOAL, 1998, p.
63).3 ... quando o Arena entrou naquela fase ruim, naquela crise,
que parecia que o barco ia afundar mesmo, o Z Renato resol-veu como
canto de cisne mesmo montar Eles no usam black-tie. Ele dizia:
Vamos fazer o Black-tie, porque j que vai acabar mesmo, vamos
acabar com uma pea nacional. Podemos fazer um espetculo razovel
(GUARNIERI, Depoimentos ao SNT. In: ALMEIDA, 1981, p. 65).
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32 ] Berilo Luigi Deir Nosella
do teatro nacional at por pelo menos mais dez anos, s saindo de
cena por conta do endurecimento da ditadura em 1968. A segunda razo
desta apresentao afirmar a filiao terica do Arena a um diretor e
terico de teatro alemo, que citamos como fundamental na definio de
teatro pico, que Erwin Piscator, e, claramente, por meio deste,
experincia do Volksbbhne alemo enquanto modelo de um coletivo de
produo teatral na forma de cooperativa com seu pblico, onde, por
meio de as-sinaturas, este se filia ao coletivo teatral afirmando
uma relao de aprovao esttica e ideolgica que vai alm da compra
avulsa de ingressos numa noite de espetculos. Dessa forma, mesmo
que no haja evidncias de uma influncia formal direta do modelo do
Teatro pico alemo no texto de Guarnieri, ficam aqui, nas relaes
mais amplas do coletivo Teatro de Arena, de onde nasce o Eles no
usam black-tie, justificados os pressupostos apresentados no incio
do texto. E assim, iniciemos a anlise do texto propriamente
dito.
Eles no usam black-tie uma pea de teatro que estruturalmente se
divide em trs atos, tratando do dilema entre um pai, Otvio, e um
filho, Tio, que, a partir de vises diferentes do mundo em relao sua
condio de classe, fazem escolhas divergentes e consolidam uma
ruptura na relao familiar, pai e filho, que os uniria para alm das
convices polticas. O texto apresenta a trajetria, as ideias, as
angstias e motivaes e, consequentemente, as escolhas dos dois
personagens antagnicos, chegando ao desenlace no confronto dessas
duas foras. Sendo assim, poderamos resumir dizendo que a pea trata
de uma famlia, moradora de uma favela do Rio de Janeiro, que tem
sua subsistncia garantida pelo trabalho de operrio numa fbrica
exercido por Otvio e Tio (pai e filho). Dentro desse quadro, o
texto tem como eixo central da histria e do conflito a realizao de
uma greve na fbrica em questo. Otvio um velho militante
sindicalista, que j passou por vrias lutas pela classe operria,
inclusive tendo vivido um perodo preso por conta de suas atividades
militantes. Nesse perodo de priso de Otvio, o filho, Tio, mandado
cidade para ser educado pelos padrinhos, dada as condies de misria
em que se encontra a famlia. Fazem parte dessa famlia a mulher de
Otvio, e me de Tio, Romana, e o irmo Chiquinho. Paralelamente a
essa histria, uma persona-gem externa famlia, mas que se integra a
ela, Maria, namorada, que se tornar noiva, de Tio. Aqui se
apresenta o outro ncleo formal interno da pea, a histria de Tio com
Maria. So tambm personagens fundamentais na pea Terezinha, uma
moradora da favela, namoradinha do filho mais novo, Chiquinho, e
Jesuno, operrio da fbrica e amigo de Tio. Vejamos como Guarnieri
organiza formalmente a presena desses dois ncleos no interior do
texto teatral.
A pea se passa toda no barraco da famlia de Tio. Inicia com a
chegada de Tio e Maria noite, vindos do cinema, durante uma forte
chuva. Chiquinho e Romana dormem e Otvio no est em casa
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[ 33Eles no usam black-tie
ainda. Sozinhos, Maria revela que est grvida de Tio e eles
decidem se casar e, portanto, ficar noivos dali a duas semanas.
Aqui se inicia o desenrolar de um dos ncleos do texto, que, em
concordncia com o pressuposto das divises em gnero apresentados no
incio, chamaremos de ncleo dramtico da obra. Logo Chiquinho acorda
e na sequncia chega Otvio. J na primeira fala do dilogo em que se
faz presente Otvio, apresentado o segundo ncleo do texto, a greve,
que chamaremos de ncleo pico.
OTVIO Farra?... Farra vo v eles l na fbrica. Sai o aumento nem
que seja a tiro!... Querendo podem aproveit o guarda-chuva, t
furado mas serve... Eu acho graa dsses caras, contrariam a lei numa
poro de coisas. Na hora de pag o aumento querem se apoi na lei. Vai
se preparando, Tio. Num dou duas semanas e vai estour uma bruta
greve que eles vo v se paga ou no. (vai at o mvel e pega uma
garrafa de pinga). Pra combat a friagem... Se no pag, greve...
Assim que ...
Esse primeiro ato se desenvolve com essa apresentao dos dois
ncleos e das personagens, as j citadas acima, e de Brulio,
companheiro de fbrica de Otvio e militante de longa data junto com
Otvio. Ainda no primeiro ato, transcorrem as duas semanas que
antecedem o noivado e a greve, e este termina com a festa de
noivado de Tio (sempre no barraco da famlia) e com a chegada de
Bru-lio, que vem da assembleia do sindicato dos operrios com a
notcia de que foi aprovada a greve geral para segunda-feira
(estamos no sbado). Novamente, dentro do desenrolar dos
acontecimentos do ncleo dramtico (a festa de noivado de Tio) se faz
presente, com a chegada de Brulio e a notcia de que este portador,
o ncleo pico da pea. E o primeiro ato termina com a notcia, trazida
de fora do barraco, do coletivo da favela, de que nasceram gmeos,
como um prenncio de boas novas:
ROMANA (que comea a gritar de fora irrompe aos berros) Eu falei!
Gmeos. A Cndida teve gmeos... Minha simpatia no falha! Pessoal a
festa muda por 36, a Cndida teve gmeos...
No segundo ato ocorrem os acontecimentos de preparao para o
desenlace, ou seja, a preparao da greve e o desenvolvimento
dramtico das personagens quanto s suas motivaes para as escolhas
futuras. No caso de Tio, motivaes que se colocam a meio caminho
entre a greve e sua situao em relao a Maria e ao filho que est por
vir. O ato se inicia com um dilogo entre Romana e Tio, onde so
discutidos os acontecimentos da festa de noivado do dia anterior.
Tio e Otvio, movidos pela bebida, se desentenderam trazendo tona o
choque entre as diferentes vises de mundo. Essa diferena se
expressa na indignao de Tio com a militncia do pai que tanto
sofrimento traz para a
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34 ] Berilo Luigi Deir Nosella
famlia. Mais frente falaremos sobre a opo de Guarnieri em no
colocar em cena essa discusso, e sim transp-la do primeiro para o
segundo ato em forma de relato de Romana ao filho, que, por conta
da bebida, nem se lembra direito do ocorrido. O dilogo interrompido
pela personagem de Terezi-nha, que vem correndo anunciar que Otvio
est quase brigando no bar e a razo da briga a greve. Tambm em forma
de relato trazido pela personagem Terezinha, que faz s vezes de
mensageiro, a greve volta cena.
TEREZINHA (entra correndo). Seu Otvio ta quase brigando no
botequim!...ROMANA Nossa Senhora, pronto... Esse Otvio!...TEREZINHA
Ta quase; ainda no ta, no! por causa da greve. Seu Antnio disse que
greve coisa de vagabundo. A, seu Otvio disse que vagabundo era quem
ganhava dinheiro com a barriga encostada na caixa. A, seu Antnio
disse que quem no consegue dinheiro porque no gosta de trabalhar. A
seu Otvio disse que seu Antnio era ladro e caspitalista. A, eles
ficaram berrando que no entendi mais nada!...
Todo o restante do ato uma sucesso de dilogos apresentando as
bases do dilema de Tio e sucessivamente interrompidos pelo assunto
da greve, de interesse de Otvio, sempre em forma de relato dos
acontecimentos que antecedem e fazem parte da preparao da mesma.
Primeiramente no prprio dilogo inicial de Romana e Tio, conforme j
citado interrompido por Terezinha. Depois entre Romana e Maria:
MARIA Tio demora?ROMANA Daqui a pouco ta aqui! Mas fala com ele,
viu... fala mesmo... Se tu ta com cisma, o melh franqueza...MARIA
Mas a senhora no achou que ele tava esquisito?ROMANA Preocupado...
Noivado, casamento, greve... bebedeira! Isso passa.MARIA Eu chego a
pens que ele capaz de fur a greve!ROMANA Tio? Deixa disso... Tio
filho de Otvio, o maior greveiro carioca... Mas porque?MARIA Fala
em greve, Tio emburra... Ontem ele tava meio tonto, disse uma poro
de coisas, que isso no vida... Que faz greve todo o ano no d futuro
pra ningum... Que a gente nunca ia t sossego!... Ele ta com medo
que a greve no d certo e que seu Otvio, ele e o resto da ruma perca
o emprego...ROMANA Bobagem!... E depois, as greve que Otvio se
meteu sempre deu certo... Tio ta bbado... Mas fala com ele... melh
franqueza... Se ele tiv com vontade de faz bobagem tu pode at
aconselh...
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[ 35Eles no usam black-tie
Interrompido pelo aparecimento de Jesuno, amigo de fbrica de
Tio, que traz cena o tema da greve novamente. Daqui se encadeia o
principal dilogo do ato, entre Tio e Jesuno. Nesse dilogo se
consolida a tomada de deciso de Tio e se apresenta o desenho de seu
personagem da forma mais acabada:
TIO Mas o jeito... Esse negcio no d futuro, Jesuno... Greve!
Greve! E da? A turma fez greve o ano passado, j ta em outra... e
assim por diante. Tu consegue um aumento numa greve, eles aumentam
o produto, conduo, comida, tudo!... Tu ta sempre com a corda no
pescoo...JESUNO O jeito o cara se defend como pode!...TIO Sabe,
Zuno. Maria vai t um filho meu.JESUNO O que?TIO Maria vai t um
filho meu!JESUNO Ta brincando!...TIO Ia brinc? Preciso cas no ms
que vem... E te juro pela alma de mina me que eu caso com Maria e
no fao ela pass necessidade. O negcio consegu gente com boas
relao... Da subi...
Na sequncia do dilogo, Jesuno apresenta um outro lado da tomada
de posio de furar a greve, que a relao com os companheiros de
trabalho (e no caso de Tio, est implcito, a relao com a famlia,
sendo o pai um militante e um dos principais organizadores da
greve). Aqui Jesuno prope que se fure a greve escondido para no
ficar mal nem com os patres nem com sua classe. Tio categrico em
negar a proposta de Jesuno, dizendo que se for pra furar a greve
ser de forma aberta, assumindo sua posio e as consequncias dela. Ao
apresentar o desenho das opes, as motivaes e o carter da personagem
central do ncleo dramtico do texto, Guarnieri expe, obviamente, o
ponto mximo da evoluo desse ncleo. Aqui Tio se apresenta como um
perfeito heri dramtico, na tradio dos grandes heris trgicos gregos,
Tio posto diante de uma fatalidade do destino em relao qual deve
tomar uma posio e, de carter elevado, o personagem no foge a seu
destino, toma sua posio, e arca com as consequncias dela. Porm, Tio
no um heri trgico grego, sim um modelo de heri do drama clssico
burgus (sculo XVIII e XIX), uma vez que, ao contrrio dos heris
gregos, sua deciso e sacrifcio no implicam uma liderana, uma
responsabilidade em relao ao coletivo. Trata-se de uma deciso
motivada pelas necessidades individuais do personagem, seu
bem-estar e de seus entes mais prximos. Poderamos afirmar que Tio
uma flor que nasceu no jardim errado. Esse dilogo tambm
interrompido pelo assunto da greve com a entrada de Otvio
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36 ] Berilo Luigi Deir Nosella
e Brulio em cena anunciando a demisso de trs operrios lideres da
militncia, o que se trata, se-gundo os prprios personagens, de uma
tentativa de met medo na gente.
O ltimo dilogo do segundo ato entre Tio e Maria; aqui o autor
deixa claro que tomar a deciso contra a greve tomar uma deciso
solitria. Nem mesmo aqueles que Tio procura proteger com seu ato,
no caso Maria, o aprovam:
MARIA (abraa Tio fortemente). Tio, no te mete em encrenca
amanh!TIO Que encrenca!?MARIA No sei. No te mete em encrenca!TIO No
tem susto!MARIA Pensa na turma, Tio. Aqui todo mundo te qu bem. E
eu mais do que ningum...TIO Ta preocupada com qu?MARIA Comoc!
Porque quando fala em greve tu te aborrece...TIO No pensa nisso. No
assunto em que mulh se mete...MARIA sim!... O que que tu tem
medo...TIO Medo! Tu tambm me vem fal em medo? Medo de nada! Quero
viv bem comoc... s! Greve me aborrece poque sempre d bolo, a gente
pode perd emprego... Ah! No pensa nisso... o que eu fiz pra nosso
bem!MARIA No te mete em encrenca!TIO Tu no confia em mim?MARIA
Confio!...TIO Ento, no pensa mais... Fica quietinha, sem pens.
Pensa s no Durval! Dele tu precisa cuid...
Na lgica dos ncleos paralelos, Tio reafirma aqui sua firme posio
baseada na sua viso de mundo. Furar a greve no apenas uma questo de
medo, nem de influncias e nem interesses mes-quinhos. Mesmo o
quadro geral se apresentando como contrrio a sua tomada de deciso,
Tio firme em sua deciso. E assim termina o segundo ato como um ato
preparatrio para o terceiro.
Antes de finalizarmos a anlise do segundo ato, faamos uma breve
considerao quanto ao de-senrolar dos ncleos paralelos (dramtico e
pico) no interior desse ato. Na poca da encenao da pea, o crtico
Sbato Magaldi afirmou que o segundo ato perde, em relao ao primeiro
e ao terceiro, em fora dramtica. Somos obrigados a concordar com
Sbato, mas no concordamos com um juzo de valor quanto qualidade
cnica desse em relao ao restante da pea. Na verdade, nesse ato
que
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[ 37Eles no usam black-tie
Guarnieri faz uso, de forma mais acabada, dos prprios recursos
dramticos em favor do ncleo pico do texto, por isso essa sensao de
perda de fora dramtica. Percebemos isso j no incio, em que ele
utiliza o dilogo (elemento dramtico por definio) para transformar
em narrao (elemento pico) a discusso entre Otvio e Tio, bbados, na
festa de noivado que encerra o primeiro ato. Encen-la,
efetivamente, teria com certeza efeitos dramticos emocionais muito
mais fortes do que transform-la em dado narrativo. Todo o restante
do ato, tambm se resume a dilogos, porm todos eles tm como objetivo
verbalizar de forma narrativa as contradies entre as motivaes dos
diferen-tes personagens, que se fossem efetivamente trazidas cena
em forma de embates diretos entre essas personagens, ou seja, em ao
cnica, com certeza se carregariam de carga dramtica e acabariam
antecipando o desenlace que est guardado para o terceiro ato. O
nico dilogo direto o ltimo, entre Maria e Tio, mas esse acaba no
ocorrendo, pois Tio corta o embate que se anuncia com sua posio
machista de que o assunto greve no para ser tratado com mulheres.
Novamente os ncleos se aproximam mas seguem suas trajetrias
paralelas.
Por fim, o terceiro ato. Neste ato temos a efetivao da greve, a
consolidao da deciso de Tio em furar a greve, a priso de Otvio
durante a realizao de piquete na porta da fbrica e a ida de Romana
brigar na delegacia, para soltar o marido. Nesse ato, em que os
assuntos do ncleo pico do texto se evidenciam, pois so as relaes e
os embates com o ncleo dramtico do texto que vo desembocar no
desfecho, que fica evidente a opo formal pelo ncleo dramtico. Ao
contrrio do ato anterior, em que o recurso do dilogo reestruturado
como relato, narrao, fortalece o ncleo pico, nesse esvazia-o
completamente ao retirar de cena todos os acontecimento do plano
pblico, ou seja, picos.
Os acontecimentos do ato em si so novamente dilogos ocorridos
dentro de casa, aqui conduzi-dos pela personagem Romana, que fica
em casa enquanto Tio e Otvio vo viver os acontecimentos na fbrica.
Enquanto o piquete se realiza, Tio fura a greve e Otvio preso, ns
leitores acompa-nhamos Romana lendo as cartas, se angustiando com
os rumos que estas lhe mostram, seguimos um dilogo dela com
Chiquinho e Terezinha sobre o filme que eles viram na noite
anterior e sobre lavar e passar roupa. Apenas num momento rpido
Romana pergunta a Terezinha se viu os operrios da fbrica, mas a
menina no tem nenhuma informao que antecipe os acontecimentos.
Depois disso chega Maria, que, num dilogo que leva a personagem de
Romana a seu pice enquanto cons-truo no texto, conta que est
grvida. Poderamos dizer que aqui h a sobreposio total do ncleo
dramtico sobre o ncleo pico. Esse dilogo quebrado pela chegada de
Tio e na sequncia de Brulio, mensageiro das ms notcias, relatando a
Romana e Maria a traio de Tio, como um dos dezoito fura-greves, e a
priso de Otvio. Se no ato anterior esse recurso narrativo
enfraquece o con-
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38 ] Berilo Luigi Deir Nosella
tedo dramtico do texto, aqui o efeito o contrrio, no discurso
inflamado e empolgado de Brulio, o caso, que faz parte do ncleo
pico da pea (greve, piquete), ganha fora dramtica.
fundamental destacar a importncia e os contornos que a
personagem Romana ganha nesse ato como personagem de equilbrio
nessa balana. Sem perder a doura da Me que ela representa na pea,
possui a frieza necessria para no tornar melodramticos os elementos
que nesse terceiro ato afloram (a revelao da gravidez, a priso do
marido e a expulso, que ainda ocorrer, do filho da favela). No caso
da gravidez, ela antecipa revelao de Maria, e a recebe com
simplicidade, apenas mais um fato com o qual eles tero que lidar,
como tudo na vida. No caso da priso do marido, por exemplo, a reao
dela apenas dar as ordens a todos e ir com Brulio para a delegacia
trazer seu homem para casa. No caso da expulso do filho, ela tem
uma postura de carinho e compreenso, porm sem desautorizar Otvio, e
mesmo muito doce com ele, finaliza com a seguinte mxima a Tio: Tu
vai v que melh pass fome no meio de amigo, do que pass fome no meio
de estranho!.
A sequncia final da pea o acerto de contas. Tio tem que arcar
com as consequncias de seus atos diante do Pai, da Me (que j
expusemos acima) e da noiva Maria. Com o pai, o dilogo tem forte
teor dramtico, diria at melodramtico, no fato de o autor ter optado
por realiz-lo em terceira pes-soa, demonstrando a decepo e o
desprezo de Otvio pela atitude de Tio:
TIO Papai...OTVIO Me desculpe, mas seu pai ainda no chegou. Ele
deixou um recado comigo, mandou diz pra voc que ficou muito
admirado, que se enganou. E pediu pra voc tom outro rumo, porque
essa no casa de fura-greve!
Porm at esse momento como se a balana no pendesse, afinal a
atitude de Otvio, que embora se coloque em defesa dos ideais
coletivos presentes na pea, e portanto do contedo pico do texto, se
desenrola no nvel do privado. muito mais a decepo de um pai para
com um filho do que uma lio moral ou discurso poltico contra a
atitude de Tio. Essa sensao reforada pela integridade do carter de
Tio, o carter do heri burgus. como se Tio j soubesse que teria que
deixar a casa e a favela e encara isso como um destino engendrado
pela sua opo. Dessa forma, no no embate de Otvio com Tio que o
autor apresenta sua posio de militante do movimento estudantil, do
PCB e integrante do grupo de teatro mais engajado politicamente no
Brasil do momento; ele o faz atravs de Maria. No na expulso de Tio
que reside a derrota de sua viso de mundo, mas sim na recusa da
noiva em acompanh-lo, na opo de Maria pela favela, pelo seu povo e
sua classe. Ainda que essa
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[ 39Eles no usam black-tie
escolha se baseie numa viso, que permeia a pea como um todo,
extremamente romntica da favela e da solidariedade de classe que
ali se faz presente, nessa construo no muito plausvel que o autor
apresenta sua viso ideolgica. Existe um dado que fundamental
observarmos, mesmo dei-xando clara essa opo no final: sabemos, por
meio de estudos e crticas da poca, que muitos crticos e
espectadores se sensibilizaram com a posio tomada por Tio, e nesse
fato que baseamos nossa hiptese, de que mesmo se tratando de uma
pea com alto grau de engajamento poltico e que trata de questes de
classe na perspectiva da classe diretamente interessada, os
operrios, e atravs do seu mais forte instrumento de luta, a greve,
a opo pelo ponto de vista de classe se equilibra na escolha de
elementos formais que valorizam o ncleo dramtico do texto, fazendo
com que olhemos pra ele, na maior parte das vezes, atravs dos olhos
de Tio e no de Otvio4.
1981
Tudo que o palco empresta ao filme, tudo o que o cinema empresta
ao teatro, arrisca-se a renunciar sua prpria natureza. O filme
falado elevou ao mais alto grau essa concluso que remonta s
primeiras idades do cinema. O filme, mesmo falando, deve criar
meios de expresso bem diferentes daqueles inerentes ao palco. No
teatro, a expresso veiculada pelo verbo; o que se v de importncia
secundria comparado ao que se ouve. No cinema, o meio de expresso
primacial a imagem, e a parte verbal ou sonora no deve ser
preponderante. Poder-se-ia at dizer que um cego perante uma obra
dramtica, um surdo perante um filme, se perderem, ambos, uma parte
importante da obra apresentada, no lhes perdem o essencial.
Ren Clair
Nesse ponto nos compete, como fortalecimento da hiptese acima
apresentada, olharmos para o filme de 1981, dirigido por Leon
Hirszman, adaptado pelo prprio Guarnieri e roteirizado pelos dois.
No vem ao caso proceder a uma anlise do filme nos detalhes, como
foi feito com a pea, uma vez
4 admirvel, com efeito, a iseno com que a pea, jogando pai
contra filho, equilibra os dois pratos da balana. Apenas no final
intervm o autor, fazendo a noiva abandonar o operrio que, traindo a
greve, trara os seus amigos e companheiros. Algumas espectadoras
protestaram contra semelhante desfecho em nome da psicologia
feminina. Mas no se trata, aqui, de psicologia e sim de moral: o
autor necessitava externar de algum jeito o seu pensamento, dizer
afinal de que lado estava, dei-xando a neutralidade do puro
naturalismo para entrar no terreno em que desejava colocar-se, o da
pea de ideias e mesmo de ideias polticas. um direito seu, que s
deixaramos de lhe reconhecer se o texto escorregasse para a
propaganda, coisa que ele tem sempre a dignidade artstica de evitar
(PRADO, 1964, p. 134).
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40 ] Berilo Luigi Deir Nosella
que o texto o nosso foco, e sim perceber como, na transposio de
uma linguagem para outra, e nas opes da adaptao, os autores
procuram corrigir luz das mudanas histricas os equvocos formais da
pea5.
O primeiro ponto em defesa do ncleo pico que salta aos olhos
logo de cara diz respeito trans-posio de linguagens. Sem nos
aprofundarmos nas infindveis possibilidades formais que o fazer
artstico oferece aos criadores, e, portanto, sem levantarmos a
discusso das possibilidades de se fazer dramaturgia que apresente
em cena os mais amplos espaos pblicos6, ou de se fazer um filme em
que no se saia de um cmodo no interior de uma casa7, podemos
afirmar como certo que o cinema, enquanto linguagem, essencialmente
pico, ao contrrio do teatro, essencialmente dramtico. Basta
observarmos essa essncia presente na prpria inveno do cinema, ou
seja, nos temas dos filmes dos irmos Lumire: trens chegando a
estaes, praas e ruas cheias de gente, famlias tomando caf da manh
nos parques ou operrios saindo de fbricas. No caso da adaptao da
obra teatral para a cinematogrfica, isso fica explcito: enquanto a
pea se restringe espacialmente ao interior do barraco de Otvio e
sua famlia, permanecendo todo o espao externo preso aos dilogos dos
personagens, o filme ganha o espao pblico, o bar, a praa, as ruas e
a fbrica.
Mas esse ponto natural, intrnseco linguagem cinematogrfica, no
suficiente para afirmar que no filme os autores atualizam suas
convices em favor do ncleo pico, ou seja, em prol da viso
5 Os termos entre parnteses aqui escolhidos (corrigir e
equvocos) dizem respeito s intenes dos autores quanto adap-tao do
texto teatral para o cinema em 1981, no so de forma nenhuma um
critrio de julgamento da qualidade literria ou cnica da pea de
1958, apenas seguem a lgica da hiptese apresentada nesse trabalho
de que o equilbrio quanto tese central do texto de 1958 se
apresenta numa certa disjuno entre os dois ncleos apresentados, o
dramtico (na forma) e o pico (no contedo). Essa hiptese no nova, e
as opes apresentadas pelo prprio autor na adaptao para o cinema
anos depois denotam a conscincia deste em relao a ela. Eles no usam
black-tie pode ser resumida de dois pontos de vistas opostos,
conflitantes e igualmente defensveis. Uma espcie de antinomia
esttica, se nos for permitido abusar desse concei-to, que Dcio de
Almeida Prado descreveu nos devidos termos, tendo o cuidado de
defender um deles, mas sem explicitar o que estava em jogo (...)
trata-se de um flagrante desencontro entre forma e contedo, numa
contradio propriamente dita que acaba dando bons argumentos para
leitores que optem por uma ou outra (COSTA, 1996, p. 24).6 As peas
histricas de Shakespeare j seriam um bom exemplo, para no chegarmos
propriamente no teatro pico no scu-lo XX, em que encenaes no s
trouxeram os espaos pblicos para a cena, como muitas vezes, numa
atitude mais radical, levaram a cena para seu espao pblico de
origem: A mais ambiciosa h de ter sido a Tomada do Palcio de
Inverno, obra coletiva em todos os aspectos, encenada a 07/11/1920
por Yevreinov (uma espcie de coordenador de direo), contando com 15
mil participantes e cerca de 100 mil espectadores. Aspectos dessa
experincia podem ser vistos no filme Outubro, de Eisenstein (COSTA,
1998, p. 17). E se esse exemplo for longe demais, podemos ficar nas
inmeras encenaes da Paixo de Cristo na tradio da cultura popular em
nosso pas.7 Tambm para no nos estendermos em exemplos, citemos o
filme Cenas de um casamento, de Ingmar Bergman.
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[ 41Eles no usam black-tie
pblica, do coletivo, corrigem o elemento dramtico do texto
teatral. Antes de nos debruarmos sobre os aspectos especficos das
mudanas formais empreendidas na adaptao, gostaramos de le-vantar
alguns pressupostos histricos. De uma obra outra, transcorrem quase
30 anos e um perodo crucial na histria brasileira, que a ditadura
militar. Talvez a principal diferena entre o texto e a pea, nesse
sentido, seja o fato de que no texto de 1958 a dicotomia entre Tio
e Otvio muito clara e dividida. Sendo Otvio o velho militante
empenhado e confiante na greve, possuidor de um discurso um tanto
radical de um velho militante do PCB8 e com certo rano pela
intelectualidade partidria, se apresenta profundamente otimista com
a organizao da classe operria. Condizente com esse clima, a greve
no texto teatral vencedora. No filme essa posio de Otvio se
modifica; como velho militante experiente, sabe detectar o momento
de desarticulao pelo qual passa a classe operria, e chega a se
colocar contra a aprovao da greve por consider-la precipitada. Para
equilibrar essa posio, o filme introduz um novo personagem,
Santino, agitador e militante mais novo e radical nas aes e nas
ideias, que incita quase de forma irracional os companheiros
operrios greve. No-vamente condizente com o clima, a greve no filme
fracassa. No so, no caso apenas opes formais, so histricas. Em
1958, aps a morte de Vargas e em pleno governo JK, a economia
encontra-se em franca ascendncia, o PC sai da clandestinidade, a
classe operria encontra-se no auge de sua orga-nizao sindical e a
utopia revolucionria est flor da pele. J em 1981, aps mais de 15
anos de dita-dura militar, a esquerda encontra-se dispersa e
desorganizada, os sindicatos foram completamente atrelados ao
Estado, e a desarticulao da classe operria clara e evidente.
Poderamos contestar nos perguntando sobre o grande movimento das
Diretas J e da fundao do PT, mas so movimentos ligados a motivaes
amplas, como o fim da ditadura, que realmente cooptam um grande
nmero de pessoas (estudantes, trabalhadores, intelectuais, artistas
etc.). Esse um movimento muito diverso da organizao partidria e
sindical necessria para articulao de manifestaes de luta de carter
mais especficos como uma greve em uma fbrica. Fora a represso, com
extrema violncia, que anda em voga nesse perodo. Esse novo Otvio do
filme, e seu companheiro Brulio, se apresentam como o re-
8 Otvio militante de base formado durante a vigncia da chamada
poltica obreirista do PCB. O leitor/espectador infere que no se
trata de um dirigente, em vista de dois comportamentos que se
explicam mutuamente: primeiro, ele trabalha na fbrica e exerce
alguma liderana entre os seus companheiros; segundo, mesmo sendo
capaz de perceber essa espcie de ascendncia, a sua responsabilidade
sobre o movimento no tal que o obrigue a trocar a festa de noivado
do filho mais velho pela assembleia que decidiria a greve. Sua
adeso ao obreirismo anti-intelectualista do partido, eventualmente
uma so-brevivncia anacrnica entre outras daquela organizao, se
explicita numa espcie de exploso ressentida e aparentemente
despropositada, num contexto em que o tema da conversa era cinema e
o filho, provocador, pede a sua opinio, chamando-o de vanguarda
esclarecida (COSTA, 1996, p. 25).
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42 ] Berilo Luigi Deir Nosella
trato desse novo movimento e desse novo lder, disposto luta, mas
tambm ao dilogo, lder prprio desse momento em que nasce o maior
partido do Brasil em nossos dias atuais e que formou, enquanto
liderana, o atual Presidente da Repblica.
Feitas essas consideraes, vamos s principais diferenas entre o
texto de 1958 e o filme de 1981. Alm do equilbrio entre os ncleos
que a prpria linguagem cinematogrfica nos fornece, nos
trans-portando pelos espaos pblicos, h mudanas claras no personagem
Tio e em acontecimentos que o envolvem. Essas mudanas retiram dele
o peso do heri dramtico, nos distanciando assim da personagem e,
consequentemente, nos afastando do seu ponto de vista. Primeiro,
Tio no apresenta diante de Jesuno a mesma fibra moral que mostra no
texto, sendo praticamente aliciado pelo amigo. Jesuno, no filme, se
apresenta como um traidor convicto da classe, inclusive entregando
colegas de profisso, que so lideranas no sindicato, aos patres da
fbrica. Jesuno chega a aconselhar Tio a fazer o mesmo, insinuando
que ele pode entregar o amigo Brulio e o prprio pai; no fim, sugere
que ele entregue Santino. No decorrer do filme, Santino demitido da
fbrica e resta no ar a dvida se Tio teria entregado o operrio; com
base em sua nova configurao moral como personagem, no difcil de
imaginar que ele o tenha feito. O filme tambm intensifica o peso
dos problemas pessoais de Tio que o faro optar pela no adeso greve.
Alm do filho e do casamento, no filme, a fam-lia de Maria
introduzida. O personagem do pai, desempregado, se entrega ao vcio
da bebida at o momento em que arruma um emprego, e uma grande
esperana e alegria enche a casa de Maria. Porm no primeiro dia de
trabalho, o pai bebe antes de voltar pra casa e morto por um
assaltante no caminho. Com esse acontecimento intensificada a
responsabilidade de Tio, que agora dever ir morar com Maria na casa
da me para cuidar, no s de Maria e do filho, mas tambm da me e do
irmo da mulher.
Porm, o fato fundamental na diferena entre o texto e o filme se
apresenta no dia da greve. Pos-sibilitado por seus recursos tcnicos
e de linguagem, o filme pe em cena o dia da greve, a porta da
fbrica, os piquetes organizados por Otvio, Brulio, Santino e
companheiros e a forte represso que esses sofrem. Tambm,
diferentemente do texto, Maria, contra a vontade de Tio, vai para a
porta da fbrica em apoio aos companheiros. O momento em que Tio
fura a greve entrando na fbrica posto em cena, e este coincide com
o momento da priso de Otvio, e isso fundamental. Ao con-trrio do
texto, a priso de Otvio presenciada por Tio, que simplesmente vira
as costas e entra na fbrica para trabalhar. Tambm Maria apanha na
porta da fbrica e quase perde o filho. Este conjunto de
acontecimentos termina por desequilibrar a balana. Se na pea a
rigidez de Otvio com o filho por ser uma rigidez do campo privado
(de pai para filho) mas que dizia respeito ao campo pblico (das
convices polticas, pois eram apenas essas que Tio havia ferido no
texto) enfraquecia a
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[ 43Eles no usam black-tie
posio deste e equilibrava a balana. No filme, Otvio tem sua poro
de pai, sua dimenso privada, justificada na atitude covarde do
filho que se esconde dentro da fbrica enquanto o pai apanha e vai
preso e a me de seu filho tambm apanha e quase perde o filho. Tio,
ao contrrio do texto, no apre-senta a mesma fibra moral e fora
enquanto heri dramtico. No filme, ele perde a fora argumen-tativa
no momento em que, por conta de sua deciso, abandona violncia
aqueles pelos quais ele deveria se sacrificar. Maria no o abandona
no filme apenas pela opo de no abandonar seu lugar e sua gente, ela
o abandona pela sua covardia e traio aos companheiros e a ela
enquanto sua mulher e me de seu filho. Nesse quadro, tambm o
personagem de Otvio ganha fora em relao ao de Tio.
Dessa forma, podemos afirmar que, no filme, a posio favorvel
viso coletiva, ao ncleo pico, clara, e isso feito pela intensificao
de certos contedos dramticos em formato pico. E sem modificaes no
tema e nos dilogos, percebemos como as opes formais em relao aos
contedos em questo no so e no podem ser inconsequentes, pois essas
opes se ligam diretamente aos ob-jetivos e materiais que se tm como
autor.
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