Universidade de Lisboa Faculdade de Farmácia BIOQUÍMICA CLÍNICA NA GRAVIDEZ Rubina Vanessa Dias Cassaca Relatório de estágio orientado pela Professora Doutora Maria João Monteiro dos Santos Ferreira da Silva e coorientado pela Professora Doutora Maria Cristina Crespo Ferreira Silva Marques Mestrado em Análises Clínicas 2017
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Universidade de Lisboa
Faculdade de Farmácia
BIOQUÍMICA CLÍNICA NA GRAVIDEZ
Rubina Vanessa Dias Cassaca
Relatório de estágio orientado pela Professora Doutora Maria João
Monteiro dos Santos Ferreira da Silva e coorientado pela Professora
Doutora Maria Cristina Crespo Ferreira Silva Marques
Mestrado em Análises Clínicas
2017
Universidade de Lisboa
Faculdade de Farmácia
BIOQUÍMICA CLÍNICA NA GRAVIDEZ
Rubina Vanessa Dias Cassaca
Relatório de estágio orientado pela Professora Doutora Maria João
Monteiro dos Santos Ferreira da Silva e coorientado pela Professora
Doutora Maria Cristina Crespo Ferreira Silva Marques
Mestrado em Análises Clínicas
2017
III
Agradecimentos
Agradeço, especialmente, à supervisora de estágio, que acompanhou e prestou
todo o seu apoio, não só durante a realização do estágio, como também na elaboração do
relatório de estágio.
Doutora Ana Catarina Ferreira Rombo (Especialista em Análises Clínicas, do Laboratório
de Análises Clínicas Dr. Joaquim Chaves).
Expresso os meus agradecimentos à orientadora da monografia, pela
disponibilidade, assim como pela contribuição das sua preciosas críticas e sugestões, e à
orientadora do estágio pela revisão do relatório e sugestões.
Doutora Maria João Monteiro dos Santos Ferreira da Silva (Professora Auxiliar, da
Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa) e à Doutora Maria Cristina Crespo
Ferreira Silva Marques (Professora Auxiliar, da Faculdade de Farmácia da Universidade
de Lisboa).
A todos os Técnicos e Especialistas em Análises Clínicas do Laboratório Dr.
Joaquim Chaves dirijo o meu agradecimento, pela disponibilidade e simpatia.
Finalmente, o meu especial agradecimento aos meus pais que sempre me apoiaram
incondicionalmente.
IV
Universidade de Lisboa
Faculdade de Farmácia
RELATÓRIO DE ESTÁGIO
Rubina Vanessa Dias Cassaca
Relatório de estágio orientado pela Professora Doutora Maria Cristina
Crespo Ferreira Silva Marques e supervisionado pela Especialista em
Análises Clínicas, Doutora Ana Catarina Ferreira Rombo
Mestrado em Análises Clínicas
2017
V
RESUMO
O presente relatório de estágio resulta da componente Estágio
Laboratorial/Monografia integrada no plano de estudos do Mestrado em Análises
Clínicas da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Este trabalho descreve
parâmetros analíticos, assim como metodologias e equipamentos contactados durante o
estágio profissional no Laboratório Dr. Joaquim Chaves nas áreas de Microbiologia,
Bioquímica, Hematologia, Imunologia, Radioimunoensaio, Química Analítica e Fase
doença prévia respiratória de origem viral e ventilação mecânica (associado a infeções
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hospitalares), predispõem ao surgimento de infeção. As manifestações clínicas incluem
tosse, produção de expetoração, febre e, por vezes, leucocitose (IX Cong. Bras., 2004).
Os agentes patogénicos com maior prevalência, causadores de infeção no sistema
respiratório inferior, encontram-se descritos na tabela 14.
Tabela 14: Agentes patogénicos causadores de infeção no trato respiratório inferior (IX Cong. Bras., 2004).
Comunidade Meio Hospitalar
Streptococcus pneumoniae
Haemophilus influenzae
Staphylococcus aureus Moraxella catarrhalis
Chlamydia pneumoniae
Legionella pneumophila
Bacilos Gram negativos
Pseudomonas aeruginosa
Staphylococcus aureus
Enterobacter spp. Klebsiella pneumoniae
Acinetobacter spp.
Candida albicans
Escherichia coli
Enterococcus spp.
Colheita:
✓ Expetoração
Um dos principais problemas na colheita de expetoração é a contaminação da
amostra com flora da cavidade bucal. O utente não deve ingerir alimentos antes da
colheita. O procedimento deve ser feito de manhã, após a higiene nasal e bucal (com
água). A expetoração resultante de tosse provocada (tosse profunda), é recolhida num
recipiente estéril. Não são aceites amostras com saliva ou com corrimento nasal.
Procedimento Laboratorial e interpretação de resultados:
Exame direto (coloração de Gram):
Seleciona-se uma porção da amostra rica em pus ou sangue e efetuam-se dois
esfregaços. Uma lâmina é reservada e à outra, aplica-se a coloração. Observa-se o Gram
ao microscópio ótico (ampliação de 100 vezes) a fim de semi-quantificar as células
epiteliais e leucócitos. Observa-se o predomínio microbiológico (ampliação de 1000
vezes) e as características morfológicas. A qualidade da amostra é determinada pela
relação entre o número de células epiteliais e leucócitos e classificada (tabela 15) segundo
os critérios de Murray e Washington.
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Tabela 15: Critérios de classificação para amostras de expetoração (coloração Gram).
Grupo Células epiteliais (100x) Leucócitos (100x)
1 25 10
2 25 10 a 25
3 25 25
4 10 a 25 25
5 < 10 25
Segundo os critérios apresentados na tabela 15, processam-se as amostras dos
grupos 4 e 5, pois são consideradas adequadas para efetuar o exame cultural. Quando a
amostra advém de um doente neutropénico, os critérios anteriores não se aplicam.
Igualmente, não são aplicáveis, quando é solicitado pelo médico, a pesquisa de
Mycobacterium sp. (neste caso a avaliação direta é efetuada através da aplicação de uma
coloração álcool-ácido, onde se identifica e quantifica bacilos álcool-ácido resistentes
(BAAR)). Os critérios de semiquantificação dos BAAR encontram-se descritos na tabela
16.
Tabela 16: Critérios de semiquantificação aplicados a BAAR.
N. º BAAR (1000x) Código de Leitura
0/ 100 campos Negativo
1 - 9/ 100 campos 1 - 9/ 100 campos
10 - 99/ 100 campos 1+
1 – 10/ campo 2+
> 10 3+
Exame cultural:
Seleciona-se uma porção da amostra rica em pus ou sangue, retira-se com uma
ansa descartável e semeia-se nos seguintes meios de cultura (tabela 17):
Tabela 17: Meios de cultura (expetoração).
Meios de Cultura Incubação
COS 48h/ 35 ± 2ºC
MCK 48h/ 35 ± 2ºC
HAEM 48h/ 35 ± 2ºC/Estufa de CO2
Lowenstein* 30 a 60 dias/ 35 ± 2ºC
SGS** 48h/ 35 ± 2ºC
*Cultura realizada para a pesquisa de Mycobacterium tuberculosis, solicitado pelo médico. Observa-se a
cultura após 30 dias de incubação, caso não haja desenvolvimento de colónias prolonga-se a cultura até 60
dias.
** Exame micológico solicitado pelo médico.
Na cultura em meio COS, o importante é a visualização da hemólise de
Streptococcus e Staphylococcus. Caso surjam colónias sugestivas de Staphylococcus
(colónias grandes, brancas a acinzentadas ou bege a amarelas, com ou sem hemólise),
realiza-se o teste serológico de confirmação e o seu respetivo TSA. A presença de
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Streptococcus (colónias pequenas, brancas a acinzentadas com β ou α-hemólise) é
determinada por serologia, com posterior TSA. No meio COS é possível identificar
colónias sugestivas de S. pneumoniae (colónias esverdeadas, devido à α-hemólise), onde
se efetua o seu despiste com o teste da optoquina (caso seja sensível, realiza-se o TSA).
Quando é visualizado cocos Gram negativos no exame direto do esfregaço, o
desenvolvimento no meio COS é sugestivo de Moraxella, onde a partir das colónias
sugestivas procedemos à identificação (carta NH) e TSA.
O meio MCK é útil na pesquisa de Enterobacteriaceae, como a Klebsiella
pneumoniae. As colónias sugestivas de K. pneumoniae (fermentam a lactose - colónias
mucoides, vermelhas a rosa) são isoladas em meio COS, identificadas (Vitek® 2) e
efetuado o TSA. Valoriza-se sempre o desenvolvimento/predomínio de culturas puras de
outros microrganismos Gram negativos, as quais se realizam a ID (carta GN) e o TSA.
No trato respiratório inferior é importante o despiste/deteção de Haemophilus
(meio HAEM), valorizando-se o crescimento sugestivo (colónias pequenas, brilhantes e
esbranquiçadas a acinzentadas). Normalmente, quando há desenvolvimento desta espécie
são observados no exame direto cocobacilos Gram negativos. Realiza-se a ID (carta NH)
e o isolamento (meio HAEM). Se se confirmar, efetua-se o TSA.
O desenvolvimento de colónias não pigmentadas, secas, com aspeto “couve-flor”
no meio Lowenstein, é sugestivo de Mycobacterium tuberculosis. A partir de uma colónia
sugestiva, executa-se a coloração álcool-ácido. O crescimento deve estar de acordo com
o exame direto do esfregaço (observação de BAAR). Se o Gram da cultura confirmar a
presença de BAAR, a identificação da espécie é efetuada por biologia molecular.
Quanto ao exame micológico, só se valoriza a cultura, se houver um crescimento
moderado a acentuado de colónias, pois a colheita é facilmente contaminada por
leveduras da cavidade oral.
2.4.7. Hemocultura
A hemocultura é útil no diagnóstico de infeções sistémicas. A valorização e
interpretação clínica baseia-se no Cumitech 1C (blood cultures IV) da Sociedade
Americana de Microbiologia.
Em certos casos, a septicemia pode estar associada a infeções localizadas, por
exemplo, infeções pulmonares, urinárias e gastrointestinais, sendo mais recorrente em
doentes imunodeprimidos (WHO, 2016).
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Em aerobiose os microrganismos, frequentemente, isolados são: Staphylococcus
spp., Streptococcus spp. e Enterobacteriaceae. Nos indivíduos imunocompetentes é mais
comum o isolamento de Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae e
Escherichia coli, enquanto nos doentes imunodeprimidos é frequente o isolamento de
bactérias Gram negativas, como a Pseudomonas aeruginosa. Em anaerobiose os
microrganismos mais frequentes são bactérias anaeróbias facultativas, como o
Staphylococcus spp. (WHO, 2016).
Colheita:
A colheita de sangue total é realizada para frascos de hemoculturas, os quais
isolam e detetam microrganismos aeróbios e anaeróbios facultativos. A colheita deve ser
efetuada no início da subida da temperatura ou segundo a indicação médica. Antes da
colheita deve-se desinfetar a pele e as tampas dos frascos e o restante procedimento é
igual a uma colheita normal de sangue. O sangue deve ser inserido diretamente nos
frascos. Para a pesquisa de fungos, a colheita é efetuada em frascos de aerobiose (fungos
não se desenvolvem em anaerobiose). São utilizados frascos de hemocultura BacT/Alert
FA Plus, adaptados ao sistema de deteção microbiana BacT/Alert 3D-60.
Procedimento laboratorial e interpretação de resultados:
O sistema BacT/Alert é responsável por emitir o resultado (positivo ou negativo).
Caso o sistema considere o resultado negativo, este é reportado como “estéril”. Se o
resultado cultural for positivo, procede-se ao respetivo exame cultural.
Em câmara de fluxo laminar, após a homogeneização e desinfeção (tampa do
frasco de hemocultura), retira-se com uma seringa 1 ml de sangue. Seguidamente,
adicionam-se 1 a 2 gotas de sangue nos meios de cultura descritos na tabela 18.
Tabela 18: Meios de cultura utilizados na hemocultura.
Amostra Meios de Cultura Incubação
Hemocultura (anaerobiose) COS 48h/ 35 ± 2ºC
Hemocultura (aerobiose) COS 48h/ 35 ± 2ºC em Genbag anaer
SCS 48h/ 35 ± 2ºC em Genbag anaer
No boletim reporta-se a identificação do agente patogénico e as respetivas
sensibilidades e resistências aos fármacos testados.
A sépsis é provocada sobretudo por um único agente, logo espera-se obter culturas
puras. Deve-se ter em consideração que a amostra pode estar contaminada,
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principalmente, quando no exame cultural se observa mais do que um microrganismo,
devido, por exemplo, à contaminação no ato de colheita. Nestes casos deve-se examinar
cautelosamente os resultados culturais, sobretudo quando há desenvolvimento de agentes
colonizadores da pele, como o Streptococcus epidermidis.
Quando há uma sépsis, o agente pode disseminar-se no organismo e invadir outros
órgãos, por exemplo, o sistema urinário (infeção descendente). Nestes casos espera-se
obter o mesmo microrganismo em ambos os produtos.
2.5. Antibiograma
É necessário ter em consideração que os antibióticos se podem comportar de
forma imprevisível, ou seja, nem sempre o que obtemos in vitro se traduz in vivo, pois
existem diversas variáveis que afetam a eficácia do antibiótico, variáveis essas, que não
podem ser testadas in vitro. Quando testamos os antibióticos também é necessário ter em
conta, o local do corpo onde se instalou a infeção, pois a difusão dos antibióticos é
diferente consoante o tecido/local do corpo, bem como a idade do paciente (o antibiótico
prescrito a uma criança não pode interferir com o seu desenvolvimento) e se é uma
grávida, a presença de outras bactérias (culturas mistas e a prevalência da espécie na
cultura), a qualidade da amostra, o status do hospedeiro (especialmente em
imunodeprimidos, em que a flora normal pode causar infeção) e o nível de suscetibilidade
do agente aos antimicrobianos testados.
2.5.1. Microdiluição
O equipamento Vitek® 2 Systems testa os antibióticos (tabela 19) de acordo com a
espécie identificada, tendo em conta as suas resistências naturais. A seleção da carta
depende da situação e considera-se, sempre, a história clínica do paciente na escolha do
perfil de antibióticos. São reportados pelo menos um antibiótico de cada grupo
terapêutico, indicando, preferencialmente, os de primeira linha. É dada preferência aos
antibióticos de administração por via oral (via endovenosa, só em último recurso).
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Tabela 19: Antibióticos testados nas cartas de TSA, adaptadas ao sistema Vitek® 2.
Bacilos Gram negativos Cocos Gram positivos
Ampicilina*
Amoxicilina/Ácido clavulânico*
Cefalotina*1
Cefepime*8
Cefditoren8
Cefotaxima8
Cefoxitina*
Cefuroxima*2
Cefuroxima Axetil*2
Ceftazidima8,10
Cefpodoxime Cefazolina1
Amicacina*
Aztreonam10
Fosfamicina*5
Gentamicina*
Meropenem*
Ertapenem*
Imipenem*
Minociclina
Ácido nalidíxico
Nitrofurantoína*3
Norfloxacina*3 Tetraciclina*
Rifampicina
Ticarcilina
Tircarcilina/Ácido clavulânico
Piperacilina
Pefloxacina
Piperacilina/Tazobactam
Tobramicina*2
Ciprofloxacina*4
Colistina9
Trimetoprim*7
Trimetoprim/Sulfametoxazol*6
Ampicilina*
Ampicilina/Sulbactram*
Benzilpenicilina*
Cefuroxima*2
Cefuroxima Axetil*2
Imipenem*
Gentamicina*
Eritromicina Azitromicina
Clindamicina
Claritromicina
Quinupristine/Dalfopristein
Fosfamicina*5
Ácido Fusídico
Norfloxacina*3
Levofloxacina*
Ciprofloxacina*
Rifampicina
Moxifloxacina Tetraciclina*
Tigeciclina
Nitrofurantoína*3
Trimetoprim/Sulfametoxazol*
Vancomicina
Teicoplanina
Linezolid
Daptomicina
Oxacilina
Tobramicina
1 Marcador das cefalosporinas (se sensível, as restantes cefalosporinas também o são) 2 Indicado para infeções oftálmicas 3 Indicado para infeções urinárias 4 Recomendado para infeções sistémicas 5 Nas infeções urinárias, sempre que sensível, é indicada (recomendação da DGS - Direção-Geral da Saúde) 6 Indicado para infeções urinárias não complicadas, sobretudo, em indivíduos do sexo masculino 7 Utilizado em crianças como profilaxia 8 Reportado no Boletim quando as cefalosporinas de 1ª geração são resistentes 9 Testado só em Pseudomonas 10 Utilizado para testar ESBL (Extended-Spectrum Beta-Lactamases)
* Antibióticos de primeira linha
2.5.2. E-test
É uma técnica quantitativa para a determinação da CMI, baseada na combinação
dos conceitos de difusão e diluição. O teste consiste numa tira que contém um gradiente
exponencial pré-definido e estável de um antimicrobiano, com uma concentração máxima
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e uma mínima (extremidades). Esta é aplicada à superfície da placa, juntamente com o
inoculado da espécie isolada, havendo a libertação imediata e continua para o meio do
antibiótico, formando um gradiente estável. Após a incubação (24 horas), com o
crescimento microbiano observa-se uma elipse simétrica de inibição em redor da tira. A
leitura da CMI é realizada no ponto onde o bordo da elipse interseta a tira e o valor é
traduzido, segundo uma escala, para uma determinada concentração em µg/ml (Mahon
C. et al., 2011). O teste destina-se a bactérias anaeróbias e/ou com um crescimento
fastidioso, pois as tiras não podem ser utilizadas em meios especiais enriquecidos ou
incubações com uma concentração atmosférica de CO2, aumentada. Neste laboratório, o
teste é utilizado para determinar a CMI da penicilina e da vancomicina em N.
gonorrhoeae.
2.5.3. Método de difusão em placa de Kirby-Bauer
Esta técnica determina a suscetibilidade de forma semiquantitativa. O método
consiste na utilização de papel de filtro, impregnado com uma determinada concentração
de um antimicrobiano. O disco é inoculado, juntamente com a espécie bacteriana,
previamente isolada no meio de Mueller-Hinton (não seletivo). Este meio permite uma
boa difusão do antimicrobiano, além disso contém amido (absorve as toxinas libertadas
pelos microrganismos, impedindo que estas interajam com o antibiótico) (Leboffe M. et
al., 2011; Mahon C. et al., 2011). Após a incubação (24 horas), o diâmetro da zona
produzida à volta do disco, devido a inibição do crescimento antimicrobiano, é medido e
a espécie isolada é interpretada como “sensível”, “intermédio” ou “resistente”, de acordo
com o halo medido e a tabela CLSI. Os equivalentes breakpoints da CMI, utilizados para
determinar a resistência ou a suscetibilidade, também são visualizados. As espécies
bacterianas, como o Streptococcus pneumoniae e Streptococcus spp. requerem um meio
mais nutritivo, logo utiliza-se o meio de Muller-Hinton suplementado com 5% de sangue
de carneiro ou cavalo.
Este método (tabela 20) é utilizado em bactérias que não podem ser testadas pelos
métodos anteriores ou para a confirmação de resultados ambíguos obtidos pela
determinação automática.
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Tabela 20: Antibióticos utilizados no método de Kirby-Bauer.
Streptococcus (grupo de B e D de Lancefield)*
Ampicilina
Cefalotina
Tigeciclina
Norfloxacina
Nitrofurantoína
Staphylococcus*
Ampicilina
Cefoxitina2
Gentamicina
Norfloxacina
Nitrofurantoína
Trimetoprim/Sulfametoxazol
Enterococcus*
Ampicilina
Nitrofurantoína Norfloxacina
Cefalotina3
Tetraciclina
ESBL*1
Ceftriaxona
Ceftazidina
Amicacina
Amoxicilina/Ácido clavulânico
Azitromicina
Staphylococcus**
Cefoxitina2
Eritromicina
Amoxicilina
cefamandole
Haemophilus
Amoxicilina
Amoxicilina/Ácido clavulânico
Cefixima Trimetoprim/Sulfametoxazol
Tetraciclina
Moraxella
Amoxicilina/Ácido clavulânico
Cefuroxima
Cefixima
Trimetoprim/Sulfametoxazol
Eritromicina
Campylobacter
Eritromicina
Ciprofloxacina
Ampicilina
Amoxicilina/Ácido clavulânico
Tetraciclina
Gentamicina
Neisseria Ceftriazona Ciprofloxacina
Salmonella
Ampicilina
Amoxicilina/Ácido clavulânico
Trimetoprim/Sulfametoxazol
Ciprofloxacina
Pneumococcus
Oxocilina
Eritromicina
Trimetoprim/Sulfametoxazol
Cefalotina
* Antibióticos testados em infeções urinárias
** Só no exsudado nasal 1 Amoxicilina/ácido clavulânico fica no centro da placa e a uma distância de 20 mm, entre os discos 2 Importante a sua determinação, pois caso seja resistente, a espécie será resistente a todos os β-lactâmicos
(especialmente na deteção de S. aureus MRSA) 3 Enterococcus são naturalmente resistentes, é só para certificar que se trata da espécie em questão
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3. Core Laboratorial
É uma área laboratorial altamente automatizada, onde é processado um grande
volume de amostras diariamente. É a área em que se verifica a maior integração de
metodologias nos sistemas analíticos instalados (cerca de 260 parâmetros analíticos em
diferentes amostras biológicas, nomeadamente no soro, plasma, sangue total, urina e
líquor). O estágio nas valências de Bioquímica, Hematologia, e parte de Imunologia
decorreu nesta área, durante o período entre abril e julho de 2016.
A fim de aumentar a capacidade e a velocidade de processamento de amostras, o
Core possui o sistema de processamento de amostras ADVIA® LabCell. Ao sistema estão
acoplados os equipamentos, IMMULITE® 2000, ADVIA® 2400, ADVIA® 2120 e
ADVIA® Centaur. O ADVIA® LabCell detém um sistema de transporte integrado que
gere, automaticamente, a distribuição das amostras pelos vários equipamentos. A este
sistema está acoplado o Sample Manager, que distribui as amostras para processamento
pelos vários equipamentos acoplados ao sistema central, sendo também responsável pelo
seu arquivo. O sistema de gestão de dados LIS, que está conectado ao ADVIA® LabCell,
realiza o controle do fluxo das amostras pelo sistema. O sistema LIS também permite a
monitorização do estado de cada amostra. A central informática LIS está diretamente
conectada ao sistema informático intermédio ADVIA CentraLink® Data Management
System, o qual permite a visualização do conjunto de resultados adquiridos para o mesmo
utente obtidos pelos vários equipamentos ligados ao sistema central. Os resultados das
determinações analíticas, efetuadas nos diferentes materiais de controlo dos sistemas
analíticos integrados na cadeia robótica, são enviados pelo CentraLink para o software de
Gestão da Qualidade Unity Real Time® online. O CentraLink também está conectado ao
software eDeiaLab, o qual recebe os resultados de todos os parâmetros, efetuados para
um determinado utente, permitindo a validação dos mesmos e, também, a visualização do
histórico dos resultados do paciente (Delta Check).
4. Hematologia
Durante o estágio tive a oportunidade de acompanhar os processos analíticos, no
âmbito da validação técnica e biopatológica de parâmetros hematológicos. No presente
relatório optei por referir os parâmetros mais representativos, em termos de valor
semiológico, nomeadamente parâmetros hematológicos e estudo morfológico do sangue
periférico, determinação de grupos sanguíneos (teste de Coombs e a pesquisa de
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anticorpos irregulares - PAI), velocidade de sedimentação (VS), parâmetros relacionados
com a pesquisa e identificação de variantes de hemoglobina (estudo das
hemoglobinopatias) e estudo da hemóstase, trombofilia e fibrinólise.
As amostras são processadas consoante a sua ordem de entrada, dando-se
prioridade às urgentes. Estas são analisadas segundo a seguinte ordem: hemograma,
hemoglobina glicada (HbA1c), VS, determinação do grupo sanguíneo e, por último,
eletroforese de hemoglobinas. O anticoagulante mais usual, o K3EDTA (sal tripotássico
de EDTA), é utilizado na determinação dos índices hematológicos, no estudo morfológico
do sangue periférico e na determinação da VS. O citrato trissódico (9 volumes de sangue
para 1 de citrato) é usado na colheita de amostras para estudo da hemóstase, trombofilia
e fibrinólise, assim como na determinação do número de plaquetas, caso se verifiquem
agregações espontâneas plaquetárias em EDTA. A heparina é utilizada nas amostras
destinadas à determinação da fosfatase alcalina leucocitária.
4.1. Hemograma
O hemograma compreende a análise e interpretação dos resultados dos elementos
figurados do sangue total em EDTA, de forma quantitativa (contagem celular e índices
hematimétricos dos eritrócitos e plaquetas, efetuado pelo equipamento de ensaio ADVIA®
2120 Hematology System) e qualitativa (estudo morfológico do sangue periférico). Este
inclui o eritrograma, reticulócitos, leucograma e trombocitograma, sendo importante na
avaliação da função hematológica e das doenças relacionadas, bem como na avaliação do
estado geral de saúde, fornecendo informações sobre a quantificação e morfologia celular
(tamanho e forma) e orientado para eventuais testes adicionais.
O eritrograma é constituído pela contagem de eritrócitos (RBC), hemoglobina
(Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM), hemoglobina globular média
(HGM), concentração de hemoglobina globular média (CHGM) e índice de dispersão
eritrocitário (RDW). O hematócrito representa a massa eritrocitária e é um parâmetro
calculado (VGMxRBC/10). A hemoglobina caracteriza a anemia e reflete a capacidade
potencial de transporte de oxigénio. O VGM é útil na classificação da anemia
(microcítica, normocítica ou macrocítica). A CHGM avalia a concentração média de
hemoglobina por unidade de volume de eritrócitos, sendo útil na classificação da anemia
(hipocrómica e normocrómica) e na deteção de esferocitose. O RDW mostra o coeficiente
de variação da distribuição do volume dos eritrócitos, sendo importante na classificação
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da anemia microcítica, assim como na identificação de fragmentação celular, aglutinação
eritrocitária e dimorfismo dos eritrócitos.
A avaliação de reticulócitos abrande o valor percentual, concentração, volume dos
reticulócitos (VGMr), hemoglobina reticulocitária (CHr) e concentração de hemoglobina
reticulocitária globular média (CHGMr). A Contagem de reticulócitos permite o
diagnóstico diferencial entre as anemias arregenerativas e regenerativas, permitindo a
monitorização da sua evolução clínica e resposta ao tratamento. A determinação da
hemoglobina reticulocitária tem o seu maior valor semiológico na identificação das
anemias por deficiência funcional de ferro e monitorização da terapêutica com ferro ou
fármacos estimulantes da eritropoiese.
O leucograma inclui a contagem do número total de leucócitos e a sua contagem
diferencial (em percentagem e em valor absoluto), também designada de fórmula
leucocitária, que integra os valores de neutrófilos (segmentados e não segmentados),
eosinófilos, basófilos, linfócitos e monócitos. É importante na avaliação do número e
distribuição das células brancas, detetando alterações nas mesmas, bem como alterações
atípicas celulares (exemplo: segmentação) e a existência de blastos no sangue periférico.
Como tal, é útil no rastreio de infeções e processos inflamatórios, doenças autoimunes e
doenças oncológicas.
O trombocitograma compreende a contagem total de plaquetas, o volume médio
(VPM) e o coeficiente de distribuição (PDW). O trombocitograma é útil na avaliação da
hemóstase primária e na deteção de doenças que implicam alterações no número de
plaquetas, tais como neoplasias mieloproliferativas e doenças autoimunes e hereditárias.
4.2. Equipamentos de Ensaio:
4.2.1. ADVIA® 2120 Hematology System (SIEMENS)
É um equipamento automatizado de diagnóstico aplicado à determinação de
parâmetros hematológicos, por ensaio colorimétrico e citometria de fluxo, associada a
diversas reações citoquímicas, sobretudo a partir de amostras de sangue total. O
equipamento é composto por uma parte mecânica, em que o Circuito Unificado de Fluídos
(UFC) é o principal componente e uma parte ótica (Conjunto Ótico Peroxidase e Conjunto
Ótico Laser), e fornece os seguintes resultados (Manual ADVIA® 2120/2120i Hematology
Systems, 2010):
Contagens completas do sangue (CBC)
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CBC mais contagens diferenciais dos leucócitos (CBC/diff)
Contagens absolutas de percentagem e índices de reticulócitos (retic)
CBC/diff mais retic (CBC/diff/retic)
CBC/retic
A amostra passa pelo um filtro anti-coágulo sendo, posteriormente, recolhida por
uma válvula de segmentação, que divide a amostra em 5 alíquotas para os diferentes
testes. As alíquotas são enviadas para as câmaras/canais de reação, no conjunto do UFC,
onde a amostra e os reagentes são misturados, ocorrendo uma reação citoquímica.
Existem as seguintes câmaras de reação (Manual ADVIA® 2120/2120i Hematology
Systems, 2010):
Câmara de Reação da Hemoglobina (HGB)
Câmara de Reação de Basófilos (BASO)
Câmara de Reação de Eritrócitos e Plaquetas (RBC/Plt)
Câmara de Reação de Reticulócitos (Retic.)
Câmara de Reação da Peroxidase (PEROX)
No final da reação as misturas (amostra e reagente) são enviadas para análise, nas
células de fluxo, exceto para a hemoglobina (a câmara de reação serve de cuvete ótica,
onde é efetuado a leitura da hemoglobina). Depois da análise, a mistura é eliminada e as
vias e câmaras de reação usadas, são lavadas. Seguidamente, os resultados dos testes são
enviados para o computador a fim de serem editados e revistos (Manual ADVIA®
2120/2120i Hematology Systems, 2010).
O sistema ótico é constituído por 3 conjuntos óticos: o conjunto do colorímetro
para hemoglobina; conjunto ótico da peroxidase; conjunto ótico para os métodos de
análise de basófilos, eritrócitos/plaquetas e reticulócitos (Manual ADVIA® 2120/2120i
Hematology Systems, 2010; Simão D., 2013).
Canal da Hemoglobina:
A determinação da hemoglobina realiza-se por método colorimétrico de
determinação sem cianeto. O processo inicia-se com a lise dos eritrócitos e libertação da
hemoglobina, através da adição do reagente à amostra (câmara de reação). Seguidamente,
o ferro do heme é oxidado, passando do estado ferroso (Fe2+) para o férrico (Fe3+), o que
leva à coordenação de um ião de hidróxido e de uma molécula de água com um ligando
Rubina Cassaca Relatório de Estágio
Mestrado em Análises Clínicas
52
axial e a subsequente formação de monoaquomonohidroxiferri-porfirina, cuja
transmitância é lida na câmara de reação a 546 nm. O cálculo da hemoglobina resulta da
comparação entre as leituras de referência e a amostra, onde a luz transmitida de cada
amostra é convertida em concentração (Manual ADVIA® 2120/2120i Hematology
Systems, 2010).
Canal de Basófilos:
A reação ocorre em duas etapas. Na primeira ocorre a lise dos eritrócitos e das
plaquetas. Na segunda, todos os leucócitos (exceto os basófilos) são separados do seu
citoplasma pela a ação do reagente e do aumento da temperatura na câmara. Depois da
reação, a suspensão celular passa por uma célula de fluxo, a um volume constante, onde
as sequências características da luz dispersa (ângulo baixo e alto), de cada célula, são
medidas, segundo o tamanho da célula ou do núcleo e a configuração do núcleo
(combinação da forma do núcleo com a densidade celular). Desta forma, os leucócitos
são separados e classificados em células mononucleares ou polimorfonucleares (Manual
ADVIA® 2120/2120i Hematology Systems, 2010).
O citograma BASO (figura 1) os clusters (populações) resultam da combinação
da configuração do núcleo (ângulo alto), no eixo x, e do tamanho das células (ângulo
baixo), no eixo y. Através da análise dos clusters é possível identificar cada população
(segundo a sua posição, área e densidade) e contar o número de células/núcleos presentes
em cada população (Manual ADVIA® 2120/2120i Hematology Systems, 2010).
Figura 1: Citograma BASO obtido a partir de uma amostra de um doente (adaptado do Manual ADVIA®
GFR Glomerular filtration rate - Taxa de filtração glomerular
GGT γ- glutamil transferase
GnRH Gonadotropin-releasing hormone - Hormona libertadora de
gonadotrofina
HbA1c Hemoglobina glicada
hCG Human chorionic gonadotropin - Gonadotrofina coriónica humana
HGM Hemoglobina Globular Média
IGF Insulin-like Growth Factor
LDL Low Density Lipoprotein
LH Luteinizing hormone - Hormona luteinizante
LMP Last Menstrual Period
hPL Human placental lactogen - Lactogénio placentário humano
PAM Pressão arterial média
PAPP-A Pregnancy-associated plasma protein A - Proteína plasmática A
associada à gravidez
PTH Parathormone - Paratormona
PTOG Prova de Tolerância Oral à Glicose
SHBG Sex hormone-binding globulin - Globulina transportadora de
hormonas sexuais
TBG Thyroxine-binding globulin - Globulina transportadora de tiroxina
TG Thyroglobulin - Tiroglobulina
TSH Thyroid-stimulating hormone - Hormona estimuladora da tiroide
T3 Triiodotironina
T4 Tiroxina
uE3 Unconjugated estriol - Estriol não conjugado
VGM Volume Globular Médio
1,25(OH)2D 1,25-dihidroxivitamina D
1ºT Primeiro trimestre
2ºT Segundo trimestre
3ºT Terceiro trimestre
Rubina Cassaca Bioquímica Clínica na Gravidez Mestrado em Análises Clínicas
1
Introdução
O período de gestação, ou seja, o tempo compreendido entre a conceção e o
nascimento, normalmente, é de 280 dias (40 semanas), cuja contagem se inicia a partir do
primeiro dia do último período menstrual normal (LMP - Last Menstrual Period). Na
prática clínica, a gravidez é dividida em 3 trimestres, cada um com uma duração de,
aproximadamente, 13 semanas. Durante o período de gestação, a mulher é submetida a
uma série de alterações fisiológicas e hormonais e é fundamental, para uma avaliação
laboratorial correta, compreender essas alterações fisiológicas, uma vez que influenciam
significativamente os valores de referência de alguns parâmetros laboratoriais. Logo, é
necessário ter intervalos de referência adequados, de modo a interpretar corretamente uma
situação normal, assim como detetar ou excluir uma situação patológica na gravidez. Por
outro lado, os valores de referência, além de diferirem na grávida em relação a uma
mulher não grávida, também podem sofrer variações ao longo da gestação (Burtis C. et
al., 2015; Gronowski A., 2004; Lockitch G., 1997).
A Bioquímica Clínica é essencial, inicialmente, na deteção da gravidez, assim
como na determinação do perfil hormonal único da grávida e na monitorização da saúde
fetal e maternal ao longo da gestação (Burtis C. et al., 2015; Cunningham F. et al., 2010;
Gronowski A., 2004). Portando, para compreender a influência das alterações fisiológicas
associadas à gravidez, sobre os parâmetros laboratoriais é necessário perceber tópicos
fundamentais como a conceção, a função da placenta e do líquido amniótico e, também,
as suas principais adaptações fisiológicas, nomeadamente, hematológicas, hemostáticas,
cardiovasculares, gastrointestinais, renais, hepáticas, tiroideias e metabólicas.
Neste trabalho pretende-se referir as principais modificações fisiológicas, desde a
conceção até ao final da gestação, e como estas adaptações influenciam os valores dos
parâmetros analíticos. Pretende-se, também, focar a importância e a função da placenta,
do líquido amniótico, assim como referir os principais marcadores bioquímicos utilizados
no acompanhamento da mulher grávida.
Rubina Cassaca Bioquímica Clínica na Gravidez Mestrado em Análises Clínicas
2
1. Ciclo Menstrual e Gravidez
1.1. Ciclo Menstrual
O ciclo ovulatório, em média, ocorre em intervalos contínuos de 28 dias, podendo
variar entre 25 a 35 dias, durante cerca de 40 anos, entre a menarca e a menopausa. O
ciclo menstrual pode ser dividido em 3 fases, nomeadamente fase folicular, ovulação e
fase luteínica (figura 1). É regulado por uma série de interações entre o eixo hipotalâmico-
pituitária, os ovários e o trato genital (Cunningham F. et al., 2010).
Ao nascimento a mulher contém cerca de 4 milhões de óvulos, mas só cerca de
400 sofrem maturação; os restantes sofrem degeneração, restando poucos óvulos na altura
em que a mulher atinge a menopausa. Durante a idade fetal as oogónias dividem-se
produzindo oogónias filhas e oócitos de primeira ordem. Estes iniciam a divisão mitótica,
mas param em prófase I, permanecendo nesta fase até a puberdade. O desenvolvimento
folicular inicia-se com o folículo primordial, o qual é constituído por um ovócito primário
rodeado por uma única camada de células, denominadas células da granulosa. O folículo
primordial desenvolve-se primeiro em folículo primário e, posteriormente, em folículo
secundário, até atingir a fase de folículo secundário pré-antral e antral inicial. Durante o
desenvolvimento folicular ocorre o aumento do tamanho do ovócito e da proliferação das
células da granulosa e a formação da zona pelúcida (zona que separa a o oócito das células
da granulosa), das células da Teca (camada de células que rodeia as células da granulosa)
e do antro (espaço cheio de líquido no meio das células da granulosa). A progressão do
folículo até à fase pré-antral e antral inicial ocorre durante a infância, e, também, durante
o ciclo menstrual, coexistindo vários tipos de folículos no ovário (Widmaier E. et al.,
2016).
No início de cada ciclo menstrual (fase folicular) a FSH (hormona folículo-
estimulante), que aumentou na última fase do ciclo anterior, mantém-se elevada até ao
início do novo ciclo, estimulando o desenvolvimento de um grupo de folículos pré-antral
e antral inicial que evoluem em folículos antrais maiores e que são os únicos com
capacidade de produzir estrogénio. O início do aumento dos níveis sanguíneos de
estrógeno (fase folicular intermédia) provoca a diminuição da secreção de GnRH
(hormona libertadora de gonadotrofina) pelo hipotálamo e, por conseguinte, a diminuição
da secreção das hormonas hipofisárias (FSH e LH (hormona luteinizante)), através do
mecanismo de feedback negativo (a produção de inibina B, pelas células da granulosa,
também contribui para a diminuição das hormonas hipofisárias). Os estrogénios
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3
aumentam o número de recetores dos folículos para a FSH e, desta forma, o folículo que
possuir mais recetores vai conseguir responder aos baixos níveis de FSH e tornar-se
dominante ou, também, denominado folículo de Graaf. Simultaneamente ao aumento dos
estrogénios, ocorre o desenvolvimento de um folículo dominante, que é o primeiro com
a capacidade de produzir estradiol e de desenvolver recetores para a LH nas células da
granulosa (no início da fase folicular as células da granulosa só possuem recetores para a
FSH, enquanto as células da Teca têm recetores para a LH). Após a expressão dos
recetores para a LH, as células da granulosa começam a secretar progesterona, processo
que leva ao início da luteinização do folículo. À medida que o folículo dominante cresce,
aumenta a produção de estradiol e de inibinas pelo mesmo, contribuindo para a
diminuição da FSH na fase folicular (Cunningham F. et al., 2010; Widmaier E. et al.,
2016).
O aumento acentuado de estrogénios, devido à maturação folicular (fase folicular
tardia), conduz à estimulação da secreção hipotalâmica de GnRH e ao aumento da LH e
FSH (feedback positivo) e, consequentemente, à diminuição do efeito de feedback
negativo sobre a produção dos mesmos. É de salientar que o efeito dos estrogénios sobre
a síntese hormonal depende da sua concentração, ou seja, em pequenas concentrações
(fase folicular inicial e intermédia) possui o efeito de feedback negativo, enquanto que
em elevadas concentrações detém um efeito de feedback positivo. O aumento da LH
estimula o oócito a terminar a primeira meiose, originando um oócito secundário, o qual
não completa a segunda divisão meiótica. Durante a fase folicular tardia, devido ao
estrogénio, o endométrio prolifera e o muco cervical é abundante, translúcido e aquoso
(estas características são mais evidentes durante a ovulação) (Cunningham F. et al., 2010;
Widmaier E. et al., 2016).
O estradiol atinge o seu pico máximo entre as 34 e 36 horas antes da ovulação
(fase folicular periovulatória), seguindo-se os teores máximos de LH e FSH. O pico de
LH (entre as 10 e 12 horas antes da ovulação) é o responsável pela libertação do oócito
secundário. Durante a fase folicular periovulatória o endométrio atinge a proliferação
máxima. Para que a fertilização ocorra, o esperma deve ser introduzido até 5 dias antes
da ovulação (viável entre 4 a 6 dias) ou no dia a seguir a esta, pois o óvulo só é viável
durante 24-48 horas. Nesta fase, a consistência do muco é importante para que os
espermatozoides cheguem às trompas (Widmaier E. et al., 2016).
Caso não haja fecundação, ocorre a fase luteínica com a formação do corpo lúteo
(luteinização), a partir do excedente do folículo de Graaf. Assim, numa mulher não
Rubina Cassaca Bioquímica Clínica na Gravidez Mestrado em Análises Clínicas
4
grávida, o corpo lúteo produz estrogénios, progesterona e inibina. Na fase luteínica média
a progesterona atinge o pico máximo, acompanhado do segundo pico de estradiol, e a LH
e FSH atingem o valor mais baixo de todo o ciclo. O muco cervical diminui e torna-se
espesso, dificultando a penetração dos espermatozoides, sendo o ideal para a implantação
do blastocisto. O corpo lúteo mantém-se, devido aos níveis adequados e constantes de
LH; a sua degradação, após 2 semanas, leva à diminuição dos níveis de estradiol a
progesterona, iniciando-se o fluxo menstrual (fase luteínica tardia). A secreção de LH e
FSH aumenta nos últimos dias do ciclo, devido à diminuição dos efeitos inibidores das
altas concentrações de hormonas, seguindo-se o início de um novo ciclo (Widmaier E. et
al., 2016).
Figura 1: Controlo endócrino durante o ciclo menstrual e no início da gravidez (adaptado de Cunningham F. et al., 2010). O ciclo menstrual tem uma duração média de 28 dias. Durante a fase folicular (dias 1 a 14)
ocorre o aumento progressivo dos níveis de estrogénio (estradiol), o espessamento do endométrio e a
seleção de o folículo Graaf. A fase luteínica (dias 14 a 21) corresponde à produção de estrogénio e
progesterona pelo corpo lúteo (CL) que preparam o endométrio para a implantação. Caso esta ocorra, o
blastocisto em desenvolvimento começa a produzir a hCG (gonadotrofina coriónica humana), a qual
mantém o corpo lúteo e impede um novo pico de LH e FSH.
1.2. Conceção, Implantação e Placentação
Caso ocorra a conceção (na trompa de Falópio), o óvulo fecundado termina a
segunda meiose. Os 46 cromossomas (23 do óvulo e 23 do espermatozoide) migram para
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5
o centro da célula, o ADN (ácido desoxirribonucleico) é replicado e, depois, dividido por
mitose, concluindo-se a fertilização. Após a fertilização o óvulo transforma-se em zigoto,
o qual permanece na trompa durante 3-4 dias (sobretudo devido aos níveis de estrogénios
que mantêm o músculo liso, que une a trompa ao útero, contraído). O aumento dos níveis
de progesterona provoca o relaxamento do músculo liso, permitido o zigoto passar para
o útero (Widmaier E. et al., 2016). Durante este período o zigoto sofre várias divisões,
transformando-se em mórula e, posteriormente, em blastocisto (cerca de 100 células). Ao
7º dia, após a ovulação, o blastocisto incorpora-se no endométrio (implantação), devido
à manutenção dos níveis de estrogénio e progesterona pelo corpo lúteo, importantes na
preparação do endométrio (Cunningham F. et al., 2010).
Após a implantação, as células trofoblásticas do blastocisto invadem o endométrio
e diferenciam-se em um sincício multinucleado externo (sinciciotrofoblasto primitivo) e
numa camada interna de células mononucleares primitivas (citotrofoblasto). As células
trofoblásticas, após completa implantação, ainda se diferenciam em trofoblasto viloso e
extraviloso. Os trofoblastos vilosos originam as vilosidades coriónicas, ao 12º dia após a
fertilização, e, juntamente com a ancoragem dos citotrofoblastos originam, também, a
placenta, que ficará totalmente formada ao fim de 5 semanas após a implantação (Burtis
C. et al., 2015; Gardner D. et al., 2011; Widmaier E. et al., 2016). Entretanto, antes da
formação da placenta, entre o córion (membrana extraembrionária, responsável pela
formação da placenta) e a massa celular interna (massa celular do blastocisto que origina
o feto) cria-se a cavidade amniótica. Mais tarde, o córion funde-se com o saco amniótico
(camada epitelial que reveste a cavidade, derivada da massa celular interna), originado
uma única membrana à volta do feto. O líquido amniónico preenche a cavidade amniótica,
rodeando o feto, o qual se mantém ligado à placenta através do cordão umbilical
(Widmaier E. et al., 2016).
Na gravidez o corpo lúteo mantém-se, devido à produção de hCG (figura 1) pelas
células trofoblásticas (sinciciotrofoblasto), sendo muito importante, pois durante os
primeiros 2 meses a maior parte da produção de estrogénios e progesterona é garantida
pelo mesmo. A hCG não só é importante para a manutenção do corpo lúteo, como também
na estimulação da produção de esteroides. Ou seja, a hCG, libertada para a corrente
sanguínea, estimula a continuada secreção de estrogénios pelos ovários, o que provoca
um efeito de feedback negativo sobre a produção de gonadotrofina. Desta forma, há
prevenção de novos ciclos menstruais, o que provocaria a perda do embrião implantado
(Cunningham F. et al., 2010; Gardner D. et al., 2011; Widmaier E. et al., 2016).
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6
2. Placenta
A placenta é um órgão extracorporal, transitório, responsável pelo
estabelecimento de uma comunicação eficiente entre a mãe e o feto em desenvolvimento,
assegurando, desta forma, a gravidez. A placenta possui a mesma composição genética
que o feto (tal não desencadeia uma resposta imunitária materna significativa) e é
importante na integridade genética e imunitária de ambos. É um órgão discoide, em média
com 22 cm de diâmetro e 500 g de peso e composto por inúmeras vilosidades coriónicas,
que se estendem desde o córion até ao endométrio. Cada vilosidade está rodeada por uma
pool de sangue materno (espaço interviloso), que entra e sai do espaço interviloso, via
artéria e veia uterina e, simultaneamente, flui através dos capilares das vilosidades
coriónicas, via artéria e veia umbilical, contidos no cordão umbilical. Através do sangue
materno as substâncias são transportadas até à circulação fetal, onde têm de passar a
matriz do núcleo da vilosidade, o endotélio do capilar fetal e o sinciciotrofoblasto
(camada de células que cobre as vilosidades placentárias). Este último é uma espécie de
“interface” entre o sangue materno e o fetal, que participa na produção e secreção de
grande parte das hormonas (esteroides e polipeptídicas), na proteção contra a
xenobióticos e no transporte ativo de sustâncias (Burton G. et al., 2015; Cunningham F.
et al., 2010; Gardner D. et al., 2011; Widmaier E. et al., 2016).
O fluxo sanguíneo no espaço interviloso dá-se por volta da 10ª semana de
gravidez, iniciando-se, assim, a troca de substâncias entre a circulação fetal e a materna.
A transferência de substâncias depende do gradiente de concentração entre os dois
sistemas circulatórios, da existência de proteínas de ligação circulantes, da presença de
transporte facilitado (exemplo: bombas iónicas) e da solubilidade lipídica da substância.
Por conseguinte, o órgão é uma barreira eficiente à passagem de moléculas de grande
massa molecular, como a maioria das proteínas plasmáticas, hormonas tiróideas,
imunoglobulinas maternas e eritrócitos maternos e fetais. Entretanto, moléculas pequenas
(até 5000 Da) como o oxigénio, o dióxido de carbono, a ureia, o etanol, o sódio e o cloreto,
difundem-se rapidamente por transporte passivo. Já os esteroides não conjugados,
sulfatos de esteroides e ácidos gordos livres passam de forma limitada, por transporte
passivo. A glucose, o cálcio e a maioria dos aminoácidos também atravessam a barreira,
através das células membranares, mas por transporte ativo. Igualmente, transpõe a
placenta via endocitose (mediado por recetores) as lipoproteínas de baixa densidade, a
Rubina Cassaca Bioquímica Clínica na Gravidez Mestrado em Análises Clínicas
7
insulina e a IgG materna, que confere proteção imunológica ao recém-nascido (Burtis C.
et al., 2015; Burton G. et al., 2015; Gabbe S. et al., 2007).
Resumindo, a placenta é um órgão endócrino, onde a maioria das hormonas
produzidas, sobretudo pelo sinciciotrofoblasto, vai para a circulação materna e somente
uma quantidade limitada atinge a circulação fetal. As suas principais funções incluem a
separação do sistema circulatório fetal do materno, nutrição do feto, eliminação dos
resíduos fetais, proteção imunológica e produção e secreção de hormonas proteicas e
esteroides (Burtis C. et al., 2015). A taxa de síntese de grande parte dessas hormonas
placentárias (exceto a hCG) é proporcional ao aumento da massa placentária. E, embora,
as via de formação das referidas hormonas estejam esclarecidas, os mecanismos de
regulação das mesmas não são totalmente compreendidos (Gabbe S. et al., 2007).
2.1. Hormonas Polipeptídicas Placentárias
2.1.1. Gonadotrofina Coriónica Humana
A hCG é uma glicoproteína, com uma semivida plasmática de 36 horas e composta
por duas subunidades diferentes, α e β. Existem múltiplas isoformas de hCG semelhantes
entre si na circulação materna, sendo as principais a hCG, hCG sulfatada, hCG
hiperglicosilada, subunidade β livre de hCG e subunidade β livre de hCG hiperglicosilada
(Cole L., 2012). A sua principal função é manter o corpo lúteo e a, subsequente, produção
de progesterona e estrogénios. Surge na circulação materna 8-10 dias após a fertilização,
sendo, por isso, possível detetar uma gravidez uma semana depois (Gabbe S. et al., 2007).
A concentração de hCG sobe, exponencialmente, no início da gravidez, duplicando a cada
24-48 horas, durante as primeiras 6 semanas e atingido o pico máximo entre os 60 e 80
dias após o LMP. Entre a 10ª e a 12ª semana, ou seja, logo após o pico, a concentração
plasmática de hCG começa a diminuir, atingindo uma concentração mínima por volta do
3º mês de gestação, a qual se mantém constante até ao final da gravidez. A diminuição de
hCG encontra-se associada à produção placentária de estrogénios e de progesterona
(Gardner D. et al., 2011; Widmaier E. et al., 2016).
A determinação da hCG é útil no diagnóstico (a gravidez, bem como a idade
gestacional, é confirmada por ecografia) e na monitorização da gravidez. Pode, também,
ser utilizada, conjuntamente com outros marcadores bioquímicos, na avaliação do risco
fetal para a síndrome de Down e trissomia 18 (rastreio pré-natal no primeiro (1ºT) e no
segundo trimestre (2ºT)), na identificação de gravidez ectópica e outros distúrbios na
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8
gravidez, como a pré-eclâmpsia. A hCG, também, é útil como teste auxiliar de diagnóstico
e monitorização de tumores malignos, particularmente, de neoplasias trofoblásticas
(Burtis C. et al., 2015; Cunningham F. et al., 2010; Stenman U. et al., 2013).
Atualmente, a hCG é determinada qualitativamente e quantitativamente por
imunoensaio, o qual mede as concentrações de epítopos reconhecidos pelos anticorpos,
em vez da bioatividade. Os testes qualitativos são testes rápidos, utilizam amostras de
urina ou soro e são do tipo point-of-care ou fornecidos como kit. Os testes point-of-care
baseiam-se na imunocromatografia e destinam-se a deteção qualitativa de hCG na urina
(detetam concentrações a partir dos 10-25 IU/L); na sua maioria, utilizam anticorpos anti-
hCGα e anti-hCGβ, que detetam a hCG intacta. A maior parte dos testes quantitativos
baseiam-se no imunoensaio em “sanduíche” e permitem detetar a concentração da hCG
desde 1-2 IU/L, até 400-15.000 IU/L. Este tipo de ensaio utiliza diferentes tipos de
anticorpos específicos de diferentes epítopos que estão presentes na subunidade ß livre,
como também na subunidade ß da hCG intacta (Burtis C. et al., 2015; Stenman U. et al.,
2013).
O teste de gravidez é considerado positivo, quando a determinação quantitativa da
hCG total é superior a 25 IU/L (valor de referência), numa amostra de soro. Valores
inferiores a 5 IU/L é interpretado como sendo negativo e entre 5 e 25 IU/L é considerado
indeterminado (é aconselhável a repetição do teste após 72 horas) (Mayo Clinic, 2017).
É de salientar que na mulher a concentração de hCG aumenta com a idade, onde é normal
mulheres não grávidas, com idade superior a 55 anos, apresentarem concentrações séricas
de hCG desde < 2,0 IU/L até 13,1 IU/L, e, em mulheres entre 41 a 55 anos, existirem
concentrações desde < 2,0 IU/L até 7,7 IU/L. Note-se que em idades compreendidas entre
os 18 e os 40 anos os valores normais de hCG encontram-se inferiores a 5 IU/L (Snyder
J. et al., 2005).
2.1.2. Lactogénio Placentário Humano (hPL)
A hormona é secretada, pelo tecido sinciciotrofoblasto, diretamente para a
circulação materna, a partir dos 5-10 dias após a conceção, logo é possível detetar a hPL
na 3ª semana de gestação. Uma vez que a produção da respetiva hormona é proporcional
à massa da placenta, a concentração só estabiliza por volta das 36 semanas, atingindo
concentrações plasmáticas entre 5 e 15 µg/mL (Cunningham F. et al., 2010).
Esta possui inúmeras funções biológicas, nomeadamente ação lactogénica,
luteotrópica, metabólica, eritropoiética, somatotrópica e detém, ainda, um efeito
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estimulante sobre a aldosterona (Burtis C. et al., 2015). Quanto às suas funções no
metabolismo materno, incluem atividade lipolítica e atuação como antagonista da insulina
(Gabbe S. et al., 2007).
No passado era utilizada na avaliação da saúde fetal, mas atualmente é incomum
a sua determinação durante uma gravidez não complicada (Burtis C. et al., 2015). Noutras
situações, como no diagnóstico de tumores relacionados com a placenta, a determinação
da hPL é útil (Campo E. et al., 1989).
2.2. Hormonas Esteroides Placentárias
2.2.1. Progesterona
A sua produção, pelo sinciciotrofoblasto, utiliza colesterol materno como
precursor hormonal, sendo este convertido em pregnenolona e, posteriormente, em
progesterona, pela 3β-hidroxiesteroide desidrogenase no retículo endoplasmático
mitocondrial (Gardner D. et al., 2011).
A produção de progesterona e de estrogénios (nos ovários) nas primeiras 2-4
semanas deve-se à manutenção do corpo lúteo. Por volta das 7-8 semanas, a placenta
assume a maior parte da produção hormonal. A progesterona também é produzida pelo
córtex adrenal, mas em quantidades inferiores (Cunningham F. et al., 2010). A sua
secreção aumenta gradualmente ao longo da gestação, atingindo no terceiro trimestre
(3ºT) uma taxa de produção diária de 250-350 mg. Na grávida a concentração sérica de
progesterona atinge valores, entre 10 a 5000 vezes superiores dos que são encontrados
numa mulher não grávida, dependendo da fase do ciclo menstrual, como é possível
observar na tabela 1 (Cunningham F. et al., 2010; Gardner D. et al., 2011).
Tabela 1: Valores de referência para a progesterona, em mulheres grávidas e não grávidas (Mayo Clinic,
2017).
Mulher não grávida (> 18
anos)
Fase folicular: ≤0,89 ng/mL
Ovulação: ≤12 ng/mL
Fase Luteínica: 1,8-24 ng/mL
Pós-menopausa: ≤0,20 ng/mL
Mulher grávida
1º trimestre: 11-44 ng/mL
2º trimestre: 25-83 ng/mL
3º trimestre: 58-214 ng/mL
A sua determinação na mulher não grávida é útil na avaliação da fertilidade
(verificar se há uma ovulação normal) e na avaliação de sangramento uterino anormal.
Na mulher grávida a progesterona é utilizada como teste auxiliar na identificação de
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gravidez ectópica e de aborto espontâneo (juntamente com a hCG), na monitorização da
terapêutica de reposição da progesterona (usada para manter a gravidez) e na
monitorização periódica da saúde fetal e placentária na gravidez de alto risco (Gardner
D. et al., 2011; Mayo Clinic, 2017).
2.2.2. Estrogénios
Os estrogénios biologicamente mais ativos são a estrona (E1), o estradiol (E2) e o
estriol (E3), respetivamente ordenados por ordem crescente de atividade. Estes,
juntamente com a progesterona, participam na regulação do ciclo menstrual, no
crescimento uterino e mamário, assim como na manutenção da gravidez (Burtis C. et al.,
2015).
Durante a gravidez a placenta produz elevadas quantidades de estrogénios, a partir
de precursores sanguíneos provenientes das glândulas supra-renais maternas e fetais.
Cerca 90% dos estrogénios placentários advêm de andrógenos fetais (especialmente do
sulfato dehidroepiandrosterona (DHEA)), os quais são sintetizados a partir do acetato ou
do colesterol. No sinciciotrofoblasto, o sulfato de DHEA fetal é convertido, pela sulfatase
placentária, em DHEA livre, o qual é convertido, pela 3β-hidroxiesteróide desidrogenase
tipo 1 (3βHSD) em androstenediona. Posteriormente, a androstenediona, através da ação
do citocromo P450 aromatase (CYP19) é convertida em estrona, que é transformada em
estriol, pela 17β-hidroxiesteróide desidrogenase tipo 1 (17βHSD1). Cerca de 90% do
estriol produzido vai diretamente para a corrente sanguínea materna (Cunningham F. et
al., 2010; Gabbe S. et al., 2007; Gardner D. et al., 2011).
O estriol é o estrogénio em maior concentração na grávida, aparecendo aumentado
cerca de 1000 vezes (figura 2). Por outro lado, as concentrações séricas de estrona e
estradiol, também, aumentam durante a gravidez, mas, apenas, cerca de 50 vezes. Os
estrogénios, de forma geral, elevam-se sobretudo no 2ºT e mantêm-se elevados até ao
final da gestação (figura 2). Devido a tal, a gravidez é considerada um estado
hiperestrogénico (Gardner D. et al., 2011).
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11
Figura 2: Evolução dos estrogénios feto-placentários
durante a gravidez (adaptado de Gardner D. et al.,
2011). O gráfico representa o aumento e os valores
médios dos estrogénios durante a gravidez,
nomeadamente do estriol, cerca de 15-17 ng/mL (55-
66 nmol/L por trimestre), do estradiol,
aproximadamente, 12-15 ng/mL (42-52 nmol/L por
trimestre) e da estrona, cerca de 5-7 ng/mL (18,5-26
nmol/L por trimestre).
Na prática clínica, normalmente, é determinado o estriol não conjugado (uE3), em
vez do estriol total (uE3 mais estriol conjugado). O uE3 possui uma semivida de 20 a 30
minutos, pois é rapidamente conjugado no fígado, tornando o uE3 mais solúvel, passível,
de ser excretado através da urina. A determinação de estriol na urina ou no soro, ao
contrário da progesterona e da hPL, é útil para monitorizar a saúde fetal e placentária,
sendo, especialmente, utilizada na supervisão da gravidez de risco. O uE3, conjuntamente
com a hCG, a alfafetoproteína (AFP) e a inibina A, é utilizado no rastreio pré-natal para
a síndrome de Down e trissomia 18, durante o 2ºT. Níveis séricos baixos de uE3 estão
associados a um risco fetal aumentado para síndrome de Down e trissomia 18, bem como
ao aumento do risco de aborto, à existência de síndrome de Smith-Lemli-Opitz (defeito
na síntese de colesterol) e à insuficiência adrenal fetal primária ou secundária. O uE3 é,
igualmente, útil na avaliação do risco de parto prematuro e para prever o início do parto,
onde, normalmente, ocorre uma elevação dos níveis séricos maternos de uE3, cerca de 4
semanas antes do início do trabalho de parto (Burtis C. et al., 2015; Mayo Clinic, 2017;
Morel Y. et al., 2016).
3. Marcadores Bioquímicos
3.1. Alfafetoproteína
A alfafetoproteína (AFP) é uma glicoproteína sintetizada a nível hepático, cuja
concentração sérica, na idade adulta, se encontra muito baixa (valores de referência 0,5-
15 μg/L). A elevação da AFP, não só nessa faixa etária, como também em crianças e
adolescentes, está associada a inúmeras doenças malignas e benignas, sendo útil como
marcador tumoral na monitorização terapêutica do carcinoma hepatocelular e de tumores
testiculares e ováricos (Heo S. et al., 2014; Schieving J. et al., 2014).
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12
Na gravidez, a concentração sérica de AFP aumenta devido à sua produção a nível
fetal. Na fase inicial da gestação, a AFP é sintetizada em pequenas quantidades, pelo saco
vitelino. Mais tarde, à medida que o saco vitelino se degenera, é produzida em grandes
proporções pelo fígado fetal e, em quantidades diminutas, pelos rins e intestino. A AFP
presente no plasma fetal é secretada, pelos rins, no líquido amniótico. A AFP fetal
atravessa a placenta e as membranas fetais, surgindo no plasma materno. No soro fetal
atinge valores muito superiores aos maternos, onde o pico ocorre no 1ºT (após o pico, os
valores decrescem até ao final da gestação). No líquido amniótico a AFP segue o mesmo
padrão, mas com uma magnitude inferior. No soro materno a AFP é detetável a partir das
10 semanas, possuindo uma concentração média de, aproximadamente, 5 μg/L. Continua
a elevar-se no soro materno e às 16 semanas a sua concentração sérica média é de 35
μg/L, atingindo o pico, de cerca 180 μg/L, às 25 semanas. Posteriormente, os níveis de
AFP maternos diminuem até ao final da gestação. Após o parto, os níveis de AFP
maternos diminuem rapidamente, atingindo concentrações inferiores a 2 μg/L. No recém-
nascido a AFP também se encontra elevada (200.000 μg/L), alcançado valores
semelhantes à idade adulta aos 10 meses de idade (Burtis C. et al., 2015; Schieving J. et
al., 2014).
A determinação da AFP no soro materno e no líquido amniótico é útil como
método de rastreio para a deteção de anomalias fetais congénitas. A AFP faz parte do
rastreio pré-natal (tabela 2), realizado no 2ºT, entre as 14 e as 22 semanas
(preferencialmente às 15 semanas), sendo a sua determinação realizada em conjunto com
a β-hCG livre, a uE3 e a inibina A (teste quádruplo) e, normalmente, combinada com a
medida da translucência da nuca (TN), durante o 1ºT. A AFP encontra-se elevada no soro
materno em 85-95% dos casos de existência de defeitos do tubo neural, apesar do seu
doseamento estar em desuso, para o rastreio deste tipo de anomalia fetal, devido à sua
substituição pela ecografia. Níveis maternos reduzidos de AFP estão associados a um
risco fetal aumentado para a trissomia 18 e síndrome de Down. As concentrações de AFP
na grávida, também, aumentam em outras anomalias fetais, como doença renal congénita
e na ameaça de aborto. Note-se que na gravidez múltipla os níveis séricos de AFP são
superiores aos de gravidez única (Burtis C. et al., 2015; Schieving J. et al., 2014).
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13
Tabela 2: Rastreio pré-natal para a Síndrome de Down, trissomia 18 e defeitos do tubo neural (adaptado de
LabMED, 2017).
Estudo Ecográfico Estudo
Bioquímico Taxa de Deteção
Rastreio do 1º
Trimestre (10-13
semanas*)
Confirmação do
tempo de gravidez;
Medição da TN (caso
seja disponível)
PAPP-A
β-hCG
Síndrome de Down: 83% (74% caso a
medida da TN não for incluída)
Trissomia 18: 72%
Defeitos do tubo neural: não aplicável
Rastreio do 2º
Trimestre (14-22
semanas)
Confirmação do
tempo de gravidez
AFP
β-hCG
uE3
inibina A
Síndrome de Down: 83%
Trissomia 18: 40%
Defeitos do tubo neural: 85% das espinhas
bífidas e quase 100% das anencefalias
Rastreio
Integrado
1ª Colheita (10-13 semanas*)
2ª Colheita (14-22
semanas)
1ª Colheita
PAPP-A
2ª Colheita AFP
β-hCG
uE3
inibina A
Síndrome de Down: 94% (90% se a
medida da TN não for incluída) Trissomia 18: 77%
Defeitos do tubo neural: 85% das espinhas
bífidas e quase 100% das anencefalias
* O rastreio de defeitos do tubo neural não é fidedigno antes da 15ª semana de gestação.
3.2. Inibina A
As inibinas são glicoproteínas diméricas, pertencentes à família dos fatores de
crescimento do TGF-β (Transforming Growth Factor β). Existem duas formas
moleculares de inibinas, a inibina A (α-βA dímero) e a inibina B (α-βB dímero). Embora
estejam amplamente distribuídas por outros tecidos, estas hormonas proteicas são,
sobretudo, produzidas nas gónadas, sendo a sua principal função a inibição da FSH
hipofisária (feedback negativo). Na mulher a inibina A é sintetizada pelo folículo
dominante (células da granulosa) e pelo corpo lúteo. Na grávida, a partir das 4 semanas,
é produzida pela unidade feto-placentária (Muttukrlshna S. et al., 1995; Muttukrlshna S.,
2004).
Tabela 3: Comparação da concentração sérica média de inibina A entre a mulher não grávida e a mulher
grávida (Muttukrlshna S. et al., 1995).
Mulher não grávida Grávida
Fase folicular
intermédia
Fase luteínica
média 1º Trimestre 2º Trimestre 3º Trimestre
Inibina A
(ng/L) 16,9 108,0 1370,0 920,0 3840,0
A concentração sérica de inibina A ao longo da gestação é sempre superior, em
comparação com qualquer fase do ciclo menstrual (tabela 3). Os níveis séricos (figura 3)
de inibina A começam a elevar-se a partir da 5ª semana de gravidez, atingindo o 1º pico
às 8 semanas; posteriormente, os níveis decrescem até às 11 semanas e permanecem
baixos até ao final do 2ºT. No 3ºT os níveis séricos aumentam novamente, atingindo o
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14
pico no final do trimestre e cujos valores alcançados, são, aproximadamente, 50 vezes
superiores em comparação com a concentração sérica durante a fase luteínica média
(Muttukrlshna S., 2004).
Figura 3: Concentração sérica média de inibina A durante uma gravidez normal (adaptado de Muttukrlshna
S., 2004).
Na mulher não grávida, a inibina A é útil, por exemplo, na monitorização de
tumores epiteliais ováricos e na deteção de distúrbios da ovulação (Burtis C. et al., 2015).
Na mulher grávida, os níveis alterados de inibina A estão associados às mesmas situações
que alteram os níveis de hCG (exemplo: a concentração sérica materna de inibina A e
hCG é elevada em gestantes de bebé com síndrome de Down). Desta forma, a
determinação da inibina A no soro materno, em associação com o teste triplo (AFP, β-
hCG livre e uE3), entre as 14 e as 22 semanas (2ºT), melhora a sensibilidade e
especificidade do rastreio pré-natal (tabela 2) (Muttukrlshna S., 2004).
3.3. Proteína plasmática A associada à gravidez
A Proteína plasmática A associada à gravidez (PAPP-A) é uma glicoproteína que
durante a gravidez é expressa sobretudo pelo sinciciotrofoblasto. É fundamental para o
normal crescimento fetal, pois possui a capacidade de degradar a proteína IGFBP-4
(insulin-like growth actor binding protein), a qual apresenta uma potente atividade
inibidora de IGF (insulin-like growth factor). Os IFGs exibem uma ação parácrina, no
controlo da absorção de glicose e aminoácidos nas células trofoblásticas, sendo
importante para o desenvolvimento e crescimento das mesmas. Portanto, a glicoproteína
ao clivar o IGFBP-4 regula a atividade do IGF. Desta forma, níveis elevados de PAPP-A
conduzem a níveis mais baixos de IGFBP-4 e, consequentemente, a níveis mais altos de
IGF livre (Burtis C. et al., 2015; Lawrence J. et al., 1999; Pummara P. et al., 2016; Shiefa
S. et al., 2013).
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15
Os níveis séricos de PAPP-A aumentam desde o início até ao final da gestação,
sendo possível detetar a glicoproteína logo após a implantação. Uma vez que a
concentração sérica de PAPP-A aumenta exponencialmente, duplicando a cada 3-4 dias
durante o 1ºT (figura 4), faz com que a interpretação dos seus valores seja bastante
dependente da idade gestacional (Shiefa S. et al., 2013).
Figura 4: Concentrações séricas médias de PAPP-A durante o 1º T (adaptado de Shiefa S. et al., 2015).
A PAPP-A, em conjunto com a β-hCG, é utilizada como marcador bioquímico no
rastreio pré-natal, que deverá ser realizado entre as 10 e as 13 semanas, preferencialmente
durante 11ª semana (tabela 2). A diminuição dos níveis de PAPP-A, no soro materno, está
associada ao aumento do risco fetal para a síndrome de Down e trissomia 18. É de
salientar que os níveis séricos de PAPP-A, são, normalmente, superiores numa gravidez
múltipla (Burtis C. et al., 2015; Pummara P. et al., 2016; Shiefa S. et al., 2013).
4. Líquido Amniótico
O líquido amniótico protege o feto dos distúrbios mecânicos e das variações de
temperatura, permitindo, ao mesmo tempo, a livre movimentação do feto (Widmaier E.
et al., 2016). O seu volume e composição química são controlados, provavelmente, pela
placenta, dentro de limites relativamente estreitos. O volume do líquido amniótico
aumenta até às 36 semanas, atingindo um volume médio de 1 L, e decresce até ao final
da gravidez, até um volume mínimo de 300 mL. Ao longo da gestação a sua composição
e volume variam devido à existência de interações dinâmicas entre a secreção fetal
urinária e hepática, e a ingestão/reabsorção pelas membranas fetais (Palmas F. et al.,
2016). Assim, a composição do líquido amniótico, no princípio da gestação, é semelhante
a um diálisado complexo do soro materno. Com o crescimento fetal a composição varia
ao longo dos trimestres, sendo as variações mais significativas a diminuição da
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16
osmolaridade e da concentração de sódio e o aumento das concentrações de glicose, ureia,
creatina e ácido úrico (Burtis C. et al., 2015).
O aumento ou diminuição acentuada do volume do líquido amniótico está
associado a patologias clínicas, como o oligohidrâmnio e o polihidrâmnio. O
oligohidrâmnio está associado à baixa produção de líquido amniótico, normalmente,
relacionada a alterações no desenvolvimento do sistema urinário fetal ou à existência de
anomalias no mesmo, como obstrução uretral e, também, a patologias que ocorrem
durante a gravidez, como hipertensão, diabetes e pré-eclampsia. O excessivo aumento de
líquido (polihidrâmnio) está, principalmente, relacionado com malformações fetais (do
sistema nervoso central e do trato gastrointestinal), diabetes Mellitus materna, gravidez
multifetal e a anomalias cromossómicas fetais (Burtis C. et al., 2015, Cunningham F. et
al., 2010).
O líquido amniótico é rico em substâncias advindas do feto, logo a sua análise é
utilizada na monitorização do crescimento fetal e na deteção de doenças fetais. A sua
amostragem pode ser realizada por amniocentese (método invasivo), a partir da 15ª
semana de gestação. Este procedimento é realizado a fim de diagnosticar infeções fetais,
testar a maturidade pulmonar fetal (realizado a partir das 32 semanas, em casos de parto
prematuro induzido ou por cesariana), como tratamento (drenagem do líquido amniótico
- polihidrâmnio), para determinar a existência de imunização Rhesus fetal (determinação
do risco para a doença hemolítica do recém-nascido) e a fim de diagnosticar
malformações congénitas (amniocentese genética entre a 15ª e a 20ª semana de gravidez)
(Lockitch G., 1997; Widmaier E. et al., 2016). A amniocentese genética só é realizada
caso a avaliação clínica dos testes de rastreio realizados no 1ª trimestre, os quais incluem
uma ecografia (translucência da nuca) e a determinação de marcadores bioquímicos
(PAPP-A e β-hCG), determinem a existência de um elevado risco fetal para anomalias
cromossómicas, como a síndrome de Down (Wilson RD. et al., 2014). A realização de
uma amniocentese genética também deve ser considerada nas seguintes situações:
mulheres com idade igual ou superior a 35 anos; história familiar de uma determinada
anomalia genética, como fibrose cística; se numa gravidez anterior o bebé foi afetado por
uma condição cromossómica ou por uma complicação associada à formação do tubo
neural (condição grave, pois afeta o cérebro ou a medula espinhal do feto); abortos de
repetição (APMGF, 2013; Mayo Clinic, 2017).
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5. Adaptações Fisiológicas na Gravidez
A gravidez induz notáveis alterações fisiológicas maternas, a fim de responder
eficientemente às necessidades da placenta e do feto em desenvolvimento. Tais alterações
surgem logo após a fertilização e continuam durante a gestação. Ocorrem em resposta a
estímulos advindos da unidade feto-placentária, em conjunto com as alterações
hormonais (Torgersen K. et al., 2006). Sucedem-se, resumidamente, as principais
alterações fisiológicas que ocorrem a nível materno.
5.1. Metabolismo dos Hidratos de Carbono
Na gravidez ocorre adaptações no metabolismo materno, como o aumento da
resistência à insulina, de modo a responder às necessidades energéticas durante o
crescimento e desenvolvimento da unidade feto-placentária (Soma-Pillay P. et al., 2016).
O aumento dos estrogénios e da progesterona, durante as primeiras semanas de gravidez,
provocam a hiperplasia das células β pancreáticas, originando o aumento da produção de
insulina (hiperinsulinémia) e da sensibilidade à mesma. Estas são alterações anabólicas e
estimulam o aumento do armazenamento tecidual de glicogénio e a diminuição da
produção hepática de glicose durante o 1ºT. Tais modificações, conjuntamente com a
hiperplasia das células β, o aumento da demanda periférica de glicogénio, a utilização de
glicose materna pelo feto e o aumento da produção de insulina, provocam uma redução
entre 10 a 20% da glicemia em jejum na grávida. Embora as concentrações médias de
glicose permaneçam constantes, o pico da glicose pós-prandial é mais prolongado, devido
à produção placentária de hormonas anti-insulina (Gronowski A., 2004; Soma-Pillay P.
et al., 2016).
Durante o 2ºT surge uma resistência natural à insulina que aumenta
progressivamente, atingindo o pico no 3ºT. Especula-se que esta resistência surge em
consequência da secreção crescente das hormonas diabetogénicas, como a variante GH
(hormona de crescimento) placentária produzida pelo sinciciotrofoblasto. A GH
placentária é regulada pelo tamanho da placenta e pela glicose materna, sendo estimulada
pelo jejum e pela hipoglicémia. A GH pituitária decresce no início da gravidez, atingindo
valores indetetáveis na circulação materna às 24 semanas. Em contraste, a GH placentária
aumenta, por volta do mesmo período e atinge o pico (20-40 ng/ml) às 34-37 semanas. A
GH placentária possui um efeito antagonista da insulina, dificultando a utilização materna
de glicose e, ao mesmo tempo, assegurando o fornecimento de nutrientes ao feto, durante
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18
a sua privação (Newbern D. et al., 2011). O desenvolvimento da unidade feto-placentária
também contribui para o aumento da resistência à insulina e dos níveis hormonais
maternos, nomeadamente da hPL (diminui a tolerância à glicose), da prolactina
(aumentam a resistência à insulina), da progesterona (estimula a ingestão alimentar
materna), do cortisol (excita o aumento da produção hepática de glicose e a diminuição
das reservas hepáticas de glicogénio) e da glucagina (aumenta os níveis séricos de
glicose). Todas estas hormonas interferem com o processo de sinalização do recetor da
insulina, provocando uma diminuição da sensibilidade à mesma nos tecidos periféricos,
como o músculo esquelético e o tecido adiposo. Consequentemente, no final da gravidez
existe uma diminuição de 50-70% da ação da insulina, em comparação com mulheres não
grávidas e, também, o aumento da sua concentração sérica em jejum e no pós-prandial, a
qual pode duplicar (Butte N., 2000; Gronowski A., 2004; Soma-Pillay P. et al., 2016).
No início da gravidez a elevação de 60% da secreção de insulina (a sensibilidade
à insulina é, ainda, considerada normal), conjuntamente com o aumento da ingestão
alimentar, promove o armazenamento materno de gordura, ao estimular a lipogénese e,
também, ao reduzir a oxidação de ácidos gordos. No final do 2ºT e durante o 3ºT, a
resistência à insulina aumenta, ainda mais, a hiperfagia materna e a acumulação de
gordura. Desta forma, após a ingestão de alimentos (que provoca o aumento da secreção
de insulina) os nutrientes são direcionados para o feto, devido à ação da resistência à
insulina, e, também, para a adipogénese e a glicogénese materna, enquanto em jejum
(diminuição dos níveis de glicose) há um aumento da mobilização das reservas maternas
de glicogénio, triglicéridos e ácidos gordos livres. Existe uma mudança no metabolismo
lipídico, do estado anabólico para catabólico, onde as reservas de gordura são
preferencialmente utilizadas, havendo a preservação materna de nutrientes, como a
glicose e aminoácidos (diminuição do catabolismo proteico) e corpos cetónicos,
importantes para o desenvolvimento fetal. A hPL possui um papel fundamental ao
promover a mobilização dos ácidos gordos livres e das reservas de gordura, reservando a
glicose para as necessidades do feto em desenvolvimento e, também, (em conjunto com
a prolactina) fomentar o aumento da ingestão de alimentos por indução da resistência
central à leptina (Newbern D. et al., 2011; Soma-Pillay P. et al., 2016).
No início da gravidez a expansão das células e o aumento da produção de insulina
são medidas defensivas contra o desenvolvimento de diabetes gestacional (DG)
(Gronowski A., 2004; Newbern D. et al., 2011) A DG é uma situação transitória, definida
como "qualquer grau de intolerância à glicose com início ou primeiro reconhecimento
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19
durante a gravidez" e é uma complicação médica frequente durante este período. Fatores
como a idade, a obesidade e a genética contribuem para esta patologia (Butte N., 2000;
Metzger B., 2010). Com o intuito de reduzir a morbilidade materna e a morbi-mortalidade
perinatal, a DGS (Direção-Geral da Saúde) recomenda a realização do rastreio da DG,
que deve ser efetuada através da determinação da glicemia em jejum, na primeira consulta
pré-natal e, também, pela realização da prova de tolerância oral à glicose (PTOG) às 24-
28 semanas, cujos valores de referência para o seu diagnóstico encontram-se descritos na
tabela 4 (DGS 002/2011; 037/2011). As mulheres diagnosticadas com DG devem realizar
uma PTOG após 6-8 semanas ao parto (valores de referência - tabela 4), o controlo anual
da glicemia em jejum e, numa gravidez subsequente, uma avaliação da glicémia pré-
concecional, pois a DG aumenta o risco de vir a desenvolver diabetes, principalmente do
tipo 2 (DGS 007/2011). Na DG, para além da resistência periférica pronunciada à
insulina, há um aumento dos triglicéridos em comparação com as gestantes normais, pois
o aumento da resistência à insulina conduz ao aumento adicional de triglicéridos (Butte
N., 2000; Koukkou E. et al., 1996).
Tabela 4: Valores de referência após PTOG para o diagnóstico de DG e diabetes (adaptado de DGS
002/2011, 007/2011).
PTOG pré-natal PTOG pós-parto
Classificação Glicémia plasmática
em jejum Classificação
Glicémia
plasmática em
jejum
Glicémia
plasmática após
2 horas
Normal <92 mg/dl Normal <110 mg/dl e <140mg/dl
DG* ≥92 mg/dl e <126
mg/dl
Anomalia da Glicemia
de Jejum (AGJ)
≥110 mg/dl e
<126 mg/dl e <140 mg/dl
Tratar como
provável
Diabetes prévia
≥126 mg/dl
>200 mg/dl ocasional
HbA1c ≥6,5%**
Tolerância Diminuída à
Glicose (TDG) <126 mg/dl
e ≥140 mg/dl e
<200 mg/dl
Diabetes Mellitus ≥126 mg/dl ou ≥200 mg/dl
* valores de referência para o diagnóstico de DG: ≥92 mg/dl às o horas; ≥180 mg/dl à 1 hora; ≥153 mg/dl
às 2 horas
** este exame não inclui nos que se realizam na vigilância da gravidez
5.2. Metabolismo dos Lípidos
Durante a gravidez, para além do aumento da massa do tecido adiposo, há um
aumento das concentrações séricas de triglicéridos, colesterol total, fosfolípidos e ácidos
gordos. Os triglicéridos aumentam, a partir das 8 semanas, atingindo, às 18 semanas,
valores 40% superiores e valores superiores médios próximos dos 250% (no 3ºT), em
comparação com a média não grávida. Este aumento deve-se à ampliação da síntese
hepática de triglicéridos e da diminuição da atividade da lipoproteína lipase (diminui a
Rubina Cassaca Bioquímica Clínica na Gravidez Mestrado em Análises Clínicas
20
hidrólise e absorção, no tecido adiposo, de triglicéridos e de lipoproteínas ricas em
triglicéridos), devido à diminuição do catabolismo do tecido adiposo. Supõem-se que a
hipertrigliceridemia normal da gravidez surge em consequência do aumento dos níveis de
estrogénios e da resistência à insulina (Butte N., 2000; Herrera E. et al., 2016; Lockitch
G., 1997; Soma-Pillay P. et al., 2016).
A alteração do nível de colesterol total, importante na síntese placentária de
esteroides, deve-se às alterações das frações das lipoproteínas. A partir das 12 semanas e
até ao final da gravidez, há um aumento do colesterol HDL (High Density Lipoprotein)
de, aproximadamente, 15% em relação a mulheres não grávidas. No início da gestação
ocorre a diminuição das LDL (Low Density Lipoprotein) e VLDL (Very Low Density
Lipoprotein), conjuntamente com o colesterol total, aumentando, posteriormente, no 2ºT
até ao final da gestação, sendo que as LDL podem aumentar até 50%, por trimestre. As
alterações do metabolismo dos lípidos promovem o aumento da lipogénese no início da
gestação e o aumento da lipólise no 3ºT (aumenta as concentrações plasmáticas de ácidos
gordos e de glicerol), devido à ação da hPL. Assim, este aumento abastece as necessidades
energéticas maternas, pelo que, durante o jejum, ocorre o aumento de LDL (aumento da
produção hepática), proporcionando o aumento da produção de ácidos gordos e corpos
cetónicos, os quais suprem as necessidades do feto em desenvolvimento (Butte N., 2000;
Lockitch G., 1997; Soma-Pillay P. et al., 2016).
5.3. Metabolismo do Cálcio
A concentração de cálcio sérico total sofre uma diminuição ao longo da gravidez,
principalmente devido à diminuição da concentração sérica de albumina, que é provocada
pela hemodiluição, o que causa a diminuição da fração de cálcio ligado à proteína.
Contudo, a fração de cálcio ionizado (fisiologicamente importante) mantém-se inalterada
e os níveis séricos de fosfato e magnésio, também, permanecem dentro dos valores de
referência (Kovacs C., 2015; Soma-Pillay P. et al., 2016).
Na gravidez, o feto em desenvolvimento necessita cerca de 30 g de cálcio para a
mineralização óssea e manutenção dos seus processos fisiológicos. Logo, para responder
as necessidades fetais e manter os níveis séricos maternos de cálcio ionizado, ocorre o
aumento da absorção intestinal do elemento, que duplica a partir das 12 semanas.
Todavia, o pico das necessidades de cálcio pelo feto acontece no 3ºT, onde cerca de 80%
do cálcio, presente no esqueleto do recém-nascido, é transferido da mãe para o feto
durante este período. Durante o 3ºT, o cálcio do esqueleto materno, previamente
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armazenado, é a principal fonte que abastece a unidade feto-placentária. Assim, o
aumento da absorção de cálcio no início da gravidez possibilitou, com antecedência, o
armazenamento de cálcio a esse nível. Portanto, as adaptações durante a gestação são
fundamentais para que não haja um comprometimento materno da homeostase do cálcio
e da mineralização óssea (Kovacs C., 2015; Soma-Pillay P. et al., 2016).
Na grávida, a concentração sérica de 1,25-dihidroxivitamina D (1,25(OH)2D),
durante o 1ºT, pode atingir valores 2 a 3 vezes superiores, em relação aos níveis de não
grávida, e permanecem elevados até ao final da gravidez. A elevação de 1,25(OH)2D
incita o aumento da absorção intestinal de cálcio, o qual está associado com o aumento
da excreção renal de cálcio (no início da gravidez). Portanto, a hipercalciúria surge como
uma consequência do aumento da absorção intestinal (Kovacs C., 2015). A hipercalciúria,
na grávida, contribui para o risco aumentado de litíase renal (Soma-Pillay P. et al., 2016).
Numa situação normal, níveis elevados de 1,25(OH)2D exigem teores elevados
de PTH - paratormona (promove a conversão da 25 hidroxivitamina D (25(OH)D) em
1,25(OH)2D, pela 1α-hidroxilase). Contrariamente a esta situação, durante a gravidez, os
níveis séricos da PTH diminuem no 1ºT, permanecendo baixos (até cerca de 30%
inferiores aos valores médios de mulher não grávida) até ao final da gestação. Uma
hipótese é a existência de produção autónoma de 1,25(OH)2D pela placenta, o que explica
a duplicação dos níveis maternos de 1,25(OH)2D. Adicionalmente, ocorre a estimulação
da atividade renal da 1α-hidroxilase pela PTHrP (PTH - related protein), que é produzida
pela placenta, cujos níveis séricos aumentam no 3ºT. A PTHrP suprime, indiretamente, a
PTH e, também, previne um excesso de reabsorção óssea de cálcio no organismo materno
(Kovacs C., 2015).
Os níveis séricos de calcitonina aumentam na gravidez, possivelmente advinda da
tiroide materna, da decídua, do tecido mamário e da placenta. Embora, o seu papel na
gravidez não esteja totalmente compreendido, pensa-se que possa estar envolvida na
proteção do tecido ósseo materno, em relação a uma excessiva reabsorção de cálcio,
sobretudo na fase inicial da gravidez, contribuindo, assim, para a manutenção dos níveis
séricos de cálcio (Kovacs C., 2015).
5.4. Alterações Hematológicas e Hemostáticas
Durante uma gravidez não complicada ocorrem alterações hematológicas,
nomeadamente o aumento, entre 25 a 30%, do volume plasmático (a partir das 16 semanas
até às 28-30 semanas) e o aumento de 18-30% do número de eritrócitos (a massa
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eritrocitária decresce durante o 1ºT e só depois começa a aumentar a partir do 2ºT) e
reticulócitos, devido ao aumento da eritropoietina (durante o 2º e 3ºT) e,
consequentemente, da eritropoiese (Gronowski A., 2004). O aumento da massa
eritrocitária permite a expansão da capacidade de transporte de oxigénio durante a
gravidez e assegura a tolerância materna à perda de sangue, com a separação da placenta
no parto (Lockitch G., 1997; Torgersen K. et al., 2006).
Durante a gravidez as necessidades de ferro aumentam, devido ao aumento da sua
utilização pela unidade feto-placentária em desenvolvimento e, também, pela eritropoiese
(a massa eritrocitária aumenta nos últimos dois trimestres, como já foi referido
anteriormente). A fim de corresponder ao aumento das necessidades de ferro ocorre o
aumento da sua absorção intestinal de 2 mg/dia no 1ºT para 5 mg/dia no 3ºT. Para que
haja uma absorção intestinal máxima é necessário a ingestão de 10 mg/dia de ferro e tal
pode ser um fator limitante em muitas grávidas, podendo conduzir ao esgotamento das
reservas de ferro (quando estas não são adequadas) (Gronowski A., 2004). Devido a tal,
a DGS recomenda a suplementação oral com 30-60 mg/dia de ferro elementar durante a
gestação (DGS, 2015).
Durante a gravidez, também existe um aumento acrescido das necessidades de
acido fólico e, do mesmo modo que o ferro, a mulher grávida possui um maior risco de
vir a desenvolver uma deficiência em ácido fólico, devido a uma reserva inadequada.
Uma deficiência em ácido fólico provoca, numa fase inicial, a hipersegmentação dos
neutrófilos, podendo progredir para uma anemia macrocítica. A deficiência em vitamina
B12 pode, também, originar anemia macrocítica sendo, no entanto, a carência em ácido
fólico o principal fator. O ácido fólico é fundamental para o metabolismo dos
aminoácidos e a síntese de ácidos nucleicos, pelo que as necessidades diárias de ácido
fólico aumentam de 100-150 µg para 100-300 µg durante a gravidez (Gronowski A.,
2004). Por essa razão, a DGS recomenda a suplementação oral de 400 μg/dia de ácido
fólico o mais precocemente possível (DGS, 2015).
No hemograma materno a contagem de eritrócitos (eritrograma), assim como a
hemoglobina, sofrem uma diminuição, sobretudo a partir do 2ºT (a concentração média
de hemoglobina na grávida é de 10,9-11,4 g/dL sem suplementação e de 11,5-12,0 g/dL
com suplementação), devido ao aumento do volume plasmático que é superior ao
aumento da massa eritrocitária (Gronowski A., 2004; Souza A. et al., 2002). O VGM
(Volume Globular Médio) aumenta ao longo da gestação, havendo uma ligeira
macrocitose fisiológica. Conjuntamente com aumento do VGM, ocorre um ligeiro
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aumento do HGM (Hemoglobina Globular Média). O CHGM (Concentração de
Hemoglobina Globular Média) mantém-se. No entanto, no final do 3ºT os valores de
HGM e CHGM são inferiores, 9,3 e 1,9% respetivamente, em relação a mulheres não
grávidas. Os valores de Ht (hematócrito) decrescem devido ao aumento desproporcional
do volume plasmático, em relação ao volume das células eritrocitárias. Quanto ao
leucograma, é observável um ligeiro aumento de leucócitos, sobretudo devido ao aumento
do número de neutrófilos maturos. A contagem de leucócitos pode atingir os 12,2x103/µL
(ou 12,2x109/L), regressando a valores anteriores à gravidez, aproximadamente, 6
semanas após o parto (Gronowski A., 2004).
A gravidez é caracterizada como um período onde a atividade coagulante se
encontra aumentada, enquanto a fibrinólise está diminuída. Tais alterações ocorrem como
medida de defesa a hemorragias severas durante o período antecedente ao parto (peri-
parto) (Lockitch G., 1997). Embora, o número de plaquetas não varie significativamente,
existe um aumento generalizado dos fatores de coagulação ao longo da gestação,
nomeadamente VII, VIII, IX, X e XII, assim como do fibrinogénio (aumenta 20-50% por
trimestre) e do Factor de von Willebrand (200-300%). Contrariamente, os fatores XI e
XIII sofrem uma diminuição. Como referido anteriormente, na gravidez ocorre uma
diminuição da atividade anticoagulante, acompanhada por uma diminuição dos níveis
séricos da proteína S e o aumento da resistência à proteína C ativada, sobretudo devido
ao aumento dos estrogénios (Gronowski A., 2004; Rosene-Montella K., 2015). Durante
este período o tempo de protrombina (TP), que avalia a via extrínseca e comum da
coagulação, e o tempo de tromboplastina parcial ativada (TPPa), que avalia a via
intrínseca da coagulação, tendem a diminuir, embora estas alterações não sejam
clinicamente significativas (Gronowski A., 2004; Lockitch G., 1997). Por outro lado, a
atividade fibrinolítica encontra-se diminuída, devido ao aumento do inibidor do ativador
dos plasminogénios tipo 1 e 2 (PAI-1 e PAI-2), produzidos pela placenta e que aumentam
a partir do 2ºT, os quais inibem os ativadores do plasminogénio t-PA (tissue plasminogen
activator) e u-PA (urokinase-type plasminogen activator), responsáveis pela conversão
do plasminogénio em plasmina e, assim, contribuindo para o aumento dos níveis de
plasminogénio. Após o parto, a fibrinólise volta ao normal com a separação placentária.
Devido a tais alterações, na gravidez existe um maior risco de ocorrer trombose materna
(Lockitch G., 1997; Rosene-Montella K., 2015).
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24
5.5. Sistema Cardiovascular
As alterações no sistema cardiovascular durante uma gravidez não complicada são
notórias. A partir das 6 semanas ocorre o aumento do débito cardíaco, que corresponde
ao produto do cálculo entre o volume sistólico (volume de sangue bombeado por um
ventrículo durante uma contração) e a frequência cardíaca. Tal resulta do aumento da
frequência cardíaca materna (aumenta 15-20 bpm (batimentos por minuto) em relação à
mulher não grávida, estabilizando no 3ºT), e, também, do aumento do volume sistólico,
o qual é dependente da pré-carga e pós-carga. Na grávida, o aumento do volume
sanguíneo leva ao aumento da pré-carga e a vasodilatação provoca a diminuição da pós-
carga. Assim, o débito cardíaco aumenta 20-50% ao longo da gestação devido ao aumento
do volume sistólico. O débito cardíaco atinge o pico às 20-28 semanas e depois estabiliza
até ao final da gravidez (Soma-Pillay P. et al., 2016; Tan EK et al., 2013). Este aumento
é importante pois permite à grávida acompanhar o aumento do consumo basal de
oxigénio. Grande parte do débito (25%) é dirigido para a unidade feto-placentária, mas
também há um aumento do fluxo sanguíneo para a pele, glândulas mamárias e rins
(Lockitch G., 1997; Tan EK et al., 2013). Ocorre alterações cardíacas que, também,
contribuem para o aumento do débito cardíaco, nomeadamente aumento da massa do
músculo da parede ventricular e do volume diastólico final (sem aumento da pressão
diastólica final), bem como o aumento da contratilidade miocárdica e a dilatação
fisiológica do coração materno (Soma-Pillay P. et al., 2016).
A pressão arterial média (PAM), que é diretamente proporcional ao débito
cardíaco e à resistência vascular sistémica, diminui no 1º e 2ºT, voltando a valores
normais (não grávida) no 3ºT. A resistência vascular sistémica (mediada pela
progesterona e o óxido nítrico), também, diminui até às 20 semanas (contribui para a
diminuição da PAM), aumentando até ao final da gravidez. Durante a gravidez, a
produção de óxido nítrico, pelo endotélio, é regulada pelo estradiol, que contribui para a
vasodilatação periférica (contribui 25-30% na resistência vascular sistémica). Como
medida compensatória à resistência vascular, o débito cardíaco aumenta (Lockitch G.,
1997; Soma-Pillay P. et al., 2016). Estas alterações fisiológicas revertem-se 6 semanas
após o parto, mas as mudanças adaptativas estruturais demoram alguns meses a
normalizar (Rosene-Montella K., 2015).
Simultaneamente às adaptações cardiovasculares, ocorre o aumento até 50% da
ventilação por minuto (volume de ar inspirado/expirado durante 1 minuto) e da frequência
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25
respiratória, (16 para 20 respirações por minuto). O aumento da ventilação
(hiperventilação) deve-se sobretudo à elevação dos níveis de progesterona que ocorre
durante a gravidez e, também, à diminuição da capacidade pulmonar total, causada pelo
aumento do diâmetro do tórax e da elevação do diafragma (Lockitch G., 1997; Torgersen
K. et al., 2006). Desta forma, a gravidez é um estado de alcalose respiratória (pH entre
7,40 e 7,45) que facilita a transferência de dióxido de carbono do feto para a circulação
materna. Para compensar a alcalose, os rins aumentam a excreção de bicarbonato,
conduzindo à diminuição da concentração sérica do mesmo (Chang J. et al., 1992).
Os níveis séricos de bicarbonato situam-se entre 18-21 mmol/L na grávida,
enquanto na mulher não grávida os valores se encontram entre 22-29 mmol/L (Mayo
Clinic, 2017; Tan EK et al., 2013). A diminuição do bicarbonato reduz a capacidade de
tamponamento (eleva o risco de cetoacidose diabética em mulheres grávidas
insulinodependentes) e da afinidade da hemoglobina materna para o oxigénio, o que
facilita a transferência de oxigénio da circulação materna para a fetal (Tan EK et al.,
2013).
5.6. Função Gastrointestinal
A náusea e o vómito são sintomas comuns durante a gravidez, afetando 50-90%
das grávidas. Uma das teorias é que tal pode atuar como um mecanismo, cujo objetivo é
prevenir o consumo de substâncias potencialmente teratogénicas, como frutas e vegetais
com um sabor forte. Estes sintomas, provavelmente, estão relacionados com o aumento
dos estrogénios, da progesterona e, sobretudo, da hCG, visto que estes sintomas são mais
acentuados em grávidas com os níveis séricos de hCG mais elevados. Por volta da 20ª
semana esta situação atenua-se, embora permaneça em 10-20% das grávidas até ao final
da gravidez. Por volta 0,5-3% das grávidas desenvolvem uma forma severa de náusea e
vómito excessivo, a hiperémese gravídica, levando à desidratação, cetonúria, perda de
peso, desequilíbrio eletrolítico e deficiência de vitaminas e minerais, onde uma das
soluções preconizadas é a substituição intravenosa de fluídos, vitaminas e minerais
(Soma-Pillay P. et al., 2016).
Os efeitos mecânicos, causados pelo crescimento do útero, sobre o trato
gastrointestinal, nomeadamente o aumento da pressão intra-gástrica (devido à deslocação
em direção ao estômago), combinado com a diminuição do tónus do esfíncter esofágico
(devido à elevação da progesterona) e o aumento da acidez gástrica (causado pela
produção placentária de gastrina), predispõem a sintomas de azia e de refluxo (afetam 50-
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26
80% das gestantes) e, também, a náuseas e vómitos. Conjuntamente com os efeitos
mecânicos, os níveis elevados de progesterona e estrogénio provocam alterações na
atividade neural gástrica e na função muscular lisa, conduzindo a gastroparesia
(esvaziamento gástrico retardado) e ao aumento do tempo do trânsito gastrointestinal,
causando a sensação de inchaço e obstipação (Cheung K. et al., 2013; Soma-Pillay P. et
al., 2016).
5.7. Função Renal
O trato urinário sofre enormes alterações anatómicas e fisiológicas durante a
gravidez. Os rins aumentam de massa e, consequentemente, de tamanho (1-1,5 cm)
devido ao aumento da vasculatura renal, do volume intersticial e do espaço morto urinário
(causado pela dilatação da pelve renal, cálices e ureteres) (Gabbe S. et al., 2007). O
aumento da progesterona e da compressão dos ureteres na borda pélvica provoca a
dilatação do sistema coletor renal (sobretudo no 3ºT), originando a hidronefrose. A
compressão ureteral conduz à estase urinária, o que predispõe à nefrolitíase e a infeções
urinárias, que variam desde a bacteriúria assintomática à pielonefrite. A frequência
urinária aumenta, assim como a incontinência, devido ao aumento da pressão de
contração sobre a bexiga (provocado pelo crescimento do útero), da redução do tónus
uretral (provocado pela progesterona) e da peristalse (Soma-Pillay P. et al., 2016; Tan EK
et al., 2013).
Na grávida verifica-se o aumento do fluxo plasmático renal (80%) e da taxa de
filtração glomerular (GFR), entre 40-60%, causado pelo aumento do débito cardíaco e da
vasodilatação renal, que por sua vez resulta da vasodilatação sistémica (Rosene-Montella
K., 2015). A clearance da creatinina (urina de 24 horas) sofre um aumento significativo,
podendo atingir 140-170 mL/min. Para além da creatinina, também, ocorre o aumento da
clearance da ureia e do ácido úrico. Devido ao aumento da clearance, sem o aumento
significativo na produção, ocorre a diminuição da concentração sérica da creatinina de
0,8 mg/dL para 0,5 mg/dL, da ureia de 13,0 mg/dL para 9,0 mg/dL e do ácido úrico de
2,0 mg/dL para 0,3 mg/dL (às 24 semanas). O ácido úrico aumenta após as 24 semanas,
atingindo valores semelhantes aos de antes da conceção, no final da gravidez. A excreção
urinária de glicose também aumenta (1-10 g/dia) devido ao aumento da GFR e da
diminuição da eficiência da reabsorção tubular. Logo, a glicosúria na grávida é um achado
comum. Também é observável o aumento da excreção de cálcio, aminoácidos, vitaminas
hidrossolúveis e fósforo. Por outro lado, em consequência do aumento da permeabilidade
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27
capilar glomerular à albumina e do aumento do GFR, ocorre uma elevação da excreção
proteica. A proteinúria na mulher não grávida, normalmente, é inferior a 150 mg/dia,
enquanto na grávida pode atingir os 300 mg/dia (Gabbe S. et al., 2007; Gronowski A.,
2004; Lockitch G., 1997; Soma-Pillay P. et al., 2016; Tan EK. et al., 2013).
Durante a gravidez há o aumento da ativação do sistema renina-angiotensina-
aldosterona, o que resulta no aumento da retenção renal de sódio e água no túbulo distal
e no ducto coletor, criando um estado hipervolémico e hipoosmolar característico na
grávida (Soma-Pillay P. et al., 2016). As concentrações séricas e a atividade da renina,
assim como o angiotensinogénio (substrato da renina), angiotensina e angiotensina II,
aumentam no 1ºT. O aumento da progesterona e estrogénios é, em parte, responsável por
estas alterações, pois os estrogénios estimulam o aumento da produção hepática de
angiotensinogénio, o que por sua vez estimula o aumento da síntese da aldosterona. Já a
progesterona provoca o aumento da atividade plasmática da renina e da síntese renal de
aldosterona, que é responsável pelo o aumento da retenção de sódio e, sobretudo, de água,
conduzindo ao aumento do volume plasmático observável na gravidez (Cheung K. et al.,
2013; Gronowski A., 2004). Quanto ao potássio, a progesterona possui um efeito
anticaliurético, o que permite preservar a excreção de potássio, sendo esta constante ao
longo da gestação devido às alterações na reabsorção tubular, ocorrendo, desta forma, o
aumento sérico de potássio na gravidez (Soma-Pillay P. et al., 2016).
Os níveis séricos de vasopressina ou ADH (hormona antidiurética) aumentam no
início da gravidez, sobretudo devido ao aumento da hCG. Uma outra hipótese é que a
diminuição da concentração sérica de sódio de, aproximadamente, 4 a 5 mEq/L (a
concentração sérica de sódio diminui no 1ºT, aumentado no 2ºT e volta a diminuir no
3ºT), no início da gravidez, se relacione com a vasodilatação e a síntese de ADH pela
pituitária posterior (Burtis C. et al., 2015; Cheung K. et al., 2013; Soma-Pillay P. et al.,
2016). A ADH estimula o aumento da reabsorção de água no ducto coletor renal, o que
contribui para a diminuição da osmolaridade plasmática (Cheung K. et al., 2013; Davison
J. et al., 1989). A meio e no final da gravidez ocorre um aumento da vasopressinase, que
é produzida pela placenta. Este aumento provoca a ampliação da depuração metabólica
da ADH e uma maior regulação da sua atividade, resultando na menor efetividade da sua
ação. A atividade enzimática da vasopressinase é elevada, principalmente, no 3ºT. Apesar
do aumento da depuração da ADH, a sua concentração mantém-se estável ao longo da
gravidez devido ao aumento da sua síntese (Davison J. et al., 1989; Cheung K. et al.,
2013; Soma-Pillay P. et al., 2016).
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Durante este processo fisiológico verifica-se o aumento dos níveis séricos de CBG
(globulina transportadora de corticosteroides), de ACTH (hormona adrenocorticotrófica),
de cortisol e de cortisol livre. Tais alterações originam um estado de hipercortisolismo,
característico na gravidez, que contribui, por exemplo, para o aparecimento de estrias, a
elevação da pressão sanguínea e a diminuição da tolerância à glicose. A maioria dos
sintomas característicos do hipercortisolismo não surgem na grávida, possivelmente
devido à elevação da progesterona, que produz um efeito antagonizante sobre os
glicocorticóides. Apesar do hipercortisolismo, as variações diurnas de cortisol na grávida
mantêm-se. No final do 1ºT, o nível total de cortisol aumenta devido ao aumento da
produção de cortisol livre pela zona fasciculada (zona central do córtex adrenal). No final
da gestação os níveis de cortisol total são 3 vezes superiores, em comparação com os
valores de não grávida. Este aumento, provavelmente, deve-se à ampliação da produção
da sua proteína transportadora, a CBG, estimulada pelos estrogénios. No final da
gestação, ocorre a síntese da CRH (hormona libertadora da corticotrofina) pela placenta,
o que origina o aumento dos níveis séricos de cortisol e, consequentemente, agrava o
estado de hipercortisolismo, sendo esta alteração um dos incitadores para o início do
trabalho de parto (Gardner D. et al., 2011; Soma-Pillay P. et al., 2016).
5.8. Função Tiroideia
Na gravidez ocorre um aumento da produção hepática de TBG (globulina
transportadora de tiroxina - principal proteína transportadora) devido à estimulação dos
estrogénios, sendo que a sua concentração sérica aumenta logo no início da gravidez,
atingindo o pico no 2ºT e estabilizando até ao final da gestação. A TBG atinge valores
até 2,5 vezes superiores, em comparação com mulheres não grávidas, cujos valores
médios antes da pré-conceção aumentam de 15-16 mg/L (intervalo de referência do TBG
sérico em mulheres não grávidas é de 10-21 mg/L) para valores médios de 30-40 mg/L
durante a gravidez (Glinoer D., 1997; Soma-Pillay P. et al., 2016).
O aumento da TBG ocorre, em simultâneo, a partir das 6-12 semanas, com o
aumento da concentração sérica dos níveis de triiodotironina (T3) e da tiroxina (T4)
(figuras 5 e 6), onde a elevação de T3, neste período, é mais acentuada do que a de T4. A
variação da T4 é mais próxima à variação da TBG, pois acompanha a elevação da proteína
transportadora. Ambas as hormonas tiroideias atingem o pico por volta da 20ª semana e
mantêm-se constantes até ao final da gravidez (Gardner D. et al., 2011; Glinoer D., 1997).
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29
Figura 5: Evolução de T3 total e livre, durante a gravidez (adaptado de Gardner D. et al., 2011). No gráfico
é observável o aumento de T3 total durante o 1ºT, que depois estabiliza (2 ng/mL - concentração média
sérica) até ao final da gestação e a manutenção da concentração média sérica nos 4 pg/mL de T3 livre.
Figura 6: Evolução de T4 total e livre durante a gestação (adaptado de Gardner D. et al., 2011). O gráfico
mostra a manutenção da média dos níveis séricos de T4 livre (30 pg/mL), e o aumento de T4 total no 1ºT
que, seguidamente, estabiliza até ao final da gestação, numa concentração sérica média de 150 ng/mL.
Apesar do aumento da TBG não há alterações significativas nas frações livres de
T4 (T4L) e T3 (T3L), as quais se mantêm constantes durante a gravidez (figuras 5 e 6). Tal
deve-se ao facto de haver um ajustamento na produção das hormonas tiroideias, pois o
aumento sérico de TBG, no início da gestação, induz uma diminuição transitória da
concentração hormonal livre, incitando a regulação hormonal primária através dos
mecanismos normais de feedback (estimulação da TSH - hormona estimuladora da
tiroide), entre a pituitária anterior e a tiroide (Gardner D. et al., 2011; Glinoer D., 1997;
Soma-Pillay P. et al., 2016).
A concentração sérica de TSH diminui ligeiramente no 1ºT, em resposta à ação
tirotrópica dos níveis elevados de hCG. Esta possui uma estrutura molecular semelhante
à TSH e, devido a tal, reage de forma cruzada com a TSH, estimulando a glândula. No
final do 1ºT os níveis de TSH aumentam, coincidindo com a diminuição dos níveis de
hCG, e mantêm-se relativamente estáveis até ao final da gestação (Gardner D. et al., 2011;
Soma-Pillay P. et al., 2016). Deste modo, os valores de referência para a TSH na grávida
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ficam alterados e são considerados os seguintes: 0,1-2,5 mU/L no 1ºT; 0,2-3,0 mU/L no
2ºT; 0,3-3,0 mU/L no 3ºT (DGS 039/2011). Note-se que o intervalo de referência para a
população adulta (> 20 anos) é de 0,4-4,0 mU/L (Laurberg P. et al., 2011).
A TG (tiroglobulina), também, aumenta durante a gravidez. Esse aumento
inicia-se no 1ºT, provavelmente, devido à ligeira elevação da TSH, sendo mais evidente
a meio e no final da gestação. A TG é a matriz proteica utilizada na síntese das hormonas
tiroideias e os seus níveis séricos revelam ser um indicador sensível, embora inespecífico,
da atividade ou do estado de estimulação da tiroide (Glinoer D., 1997).
Durante a gravidez o risco de ocorrer uma deficiência de iodo aumenta, devido ao
aumento da excreção urinária, causada pela alteração da filtração glomerular (a clearance
do iodo aumenta). Além disso, ocorre a transferência de iodo da circulação materna para
a unidade feto-placentária, de modo a permitir que as glândulas tiroideias fetais iniciem
a produção de hormonas, as quais são fundamentais para o desenvolvimento fetal. Estima-
se que as necessidades diárias de iodo durante a gravidez e o período de lactação sejam
de 200 µg/dia, enquanto na mulher não grávida são de 100-150 µg/dia (Glinoer D., 1997;
Soma-Pillay P. et al., 2016). Devido ao aumento das necessidades diárias em iodo, a DGS
recomenda, o mais precocemente possível, a suplementação oral de 150-200 µg/dia de
iodeto de potássio (DGS, 2015). Uma deficiência em iodo provoca o aumento da glândula
em 25%, mas se a ingestão do elemento for adequada durante a gravidez o tamanho da
glândula permanece inalterado (Soma-Pillay P. et al., 2016).
É de salientar que a DGS recomenda a avaliação laboratorial da função tiroideia
nas grávidas com elevado risco de vir a desenvolver doenças da tiroide (exemplo: bócio)
e, também, em grávidas com antecedentes de disfunção tiroideia, história familiar de
doença tiroideia, tiroidectomia prévia, diabetes tipo 1 ou outras doenças autoimunes,
anticorpos antitiroideus elevados, irradiação cervical, clínica sugestiva de disfunção
tiroideia e abortos de repetição (DGS 039/2011).
5.9. Função Hepática
A gravidez está, de certa forma, associada ao aumento do metabolismo hepático,
sendo esta a alteração mais evidente, pois o tamanho, anatomia e histologia do órgão são
minimamente afetados. O efeito estimulante dos estrogénios provoca um aumento
generalizado da síntese de proteínas a nível hepático, conduzindo a alterações
significativas nas concentrações séricas de fatores de coagulação, proteínas de fase aguda
(exemplo: ceruloplasmina e α-1-antitripsina), proteínas de ligação a hormonas e
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angiotensinogénio. Tais alterações enzimáticas e proteicas, podem induzir uma incorreta
interpretação da avaliação laboratorial da função hepática (tabela 5) na gravidez, podendo
ser falsamente associado a doença hepática (Gronowski A., 2004; Nelson-Piercy C.,
2010).
A fosfatase alcalina (FA) aumenta até 2 vezes mais, em comparação com os
valores de não grávida, atingindo o pico no 3ºT. A produção de uma isoenzima placentária
é a principal causa, a qual contribui com 40-60% para o aumento plasmático da FA total.
Na gravidez o aumento fisiológico de FA faz com que este não seja um marcador
confiável na avaliação da função hepática. Contrariamente à FA, a GGT (γ- glutamil
transferase) decresce 10-20% durante a gravidez, tornando-se, assim, num melhor
marcador hepático, sendo útil na distinção entre a elevação fisiológica e patológica da FA
na grávida. A 5’-nucleotidase permanece inalterada durante a gestação, razão pela qual é,
de igual modo, útil na identificação da causa da elevação da FA. A concentração sérica
de lactato desidrogenase, também, permanece inalterada durante a gravidez, apesar das
suas 5 isoformas serem expressas a nível placentário. Níveis diminuídos de FA na grávida
estão, normalmente, associados a pré-eclâmpsia, enquanto que a GGT, as
aminotrasferases e a lactato desidrogenase permanecem elevadas (Gronowski A., 2004).
Quanto às transaminases, a AST (aspartato aminotransferase), existindo em vários
tecidos e cuja distribuição celular é sobretudo mitocondrial, não sofre alterações
significativas. Contrariamente, a ALT (alanina aminotransferase), é sobretudo de origem
hepática, diminui 10-20%, sobretudo no período antecedente ao parto, embora a sua
concentração sérica permaneça dentro dos limites normais. A elevação das transaminases
na gravidez está associado ao fígado gordo agudo da gravidez e, também, à hiperémese
gravídica, as quais se encontram ligeiramente elevadas (até 200 IU/L), sendo esta a
alteração laboratorial mais comum (outras alterações incluem o ligeiro aumento da FA,
até 2 vezes o normal, e hiperbilirrubinemia leve (< 4mg/dl)) (Gronowski A., 2004;
Larsson A. et al., 2008; Outlaw W. et al., 2013)
Durante a gestação as concentrações séricas de bilirrubina total, não conjugada e
conjugada diminuem, provavelmente, devido à hemodiluição. Apesar disto, os seus
valores permanecem dentro dos limites normais. Na grávida, distúrbios como a pré-
eclâmpsia, fígado gordo agudo da gravidez, ou colestase intra-hepática, provocam o
aumento dos níveis de bilirrubina (Gronowski A., 2004).
Os ácidos biliares, os quais são derivados do metabolismo do colesterol a nível
hepático, permanecem dentro dos valores de referência (níveis séricos) ao longo da
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gestação. Uma vez que a maioria das doenças que afetam o sistema hepato-biliar,
provocam a elevação dos ácidos biliares, faz com que estes sejam um marcador sensível,
mas não específico, para a doença hepática e biliar. A sua determinação durante a
gravidez é útil na avaliação do prurido que, normalmente, acompanha a colestase, onde é
observável a elevação dos ácidos biliares, nomeadamente do ácido cólico (com uma
elevação até 70 vezes) (Gronowski A., 2004; Ozkan S. et al., 2015). Na colestase intra-
hepática, os ácidos biliares são os mais específicos (a sua concentração sérica aumenta
10-25 vezes), os quais podem ser a primeira ou a única alteração laboratorial encontrada;
outras alterações, para além do aumento da bilirrubina (até 6 mg/dl), incluem o aumento
da FA (até 4 vezes) e das transaminases (2 a 4 vezes) (Ozkan S. et al., 2015).
Tabela 5: Valores de referência dos parâmetros incluídos nas provas da função hepática (Nelson-Piercy C.)
Não grávida Grávida Trimestres
1º 2º 3º
Bilirrubina µmol/l 0-17 - 4-16 3-13 3-14
Proteínas Totais g/L 64-86 48-64 - - -
Albumina g/L 35-46 28-37 - - -
AST IU/L 7-40 - 10-28 11-29 11-30
ALT IU/L 0-40 6-32 - - -
GGT IU/L 11-50 - 5-37 5-43 3-41
FA IU/L 30-130 - 32-100 43-135 133-418
Ácidos Biliares
µmol/L 0-14 0-14 - - -
5.9.1. Proteínas Plasmáticas
Apesar do aumento da produção hepática de algumas proteínas, durante a gravidez
há uma diminuição da concentração das proteínas plasmáticas devido à hemodiluição. A
albumina é a proteína mais afetada (concentração diminui cerca de 20-40%), pois a
síntese e catabolismo permanecem inalterados ao longo da gestação (Lockitch G., 1997).
A concentração plasmática de SHBG (globulina transportadora de hormonas sexuais),
cuja a principal função é o transporte de hormonas lipofílicas, como a testosterona e o
estrogénio, aumenta no 1ºT de uma concentração sérica média de 70 nmol/L para 392
nmol/L no 2ºT (na mulher não grávida o intervalo de referência para a SHGG é de 30-90
nmol/L) e permanece elevada até ao final da gestação. O seu aumento resulta do aumento
dos estrogénios (Gronowski A., 2004).
A α-1-antitripsina, inibidora de proteases plasmáticas, aumenta no início da
gravidez e a sua concentração sérica permanece elevada, aproximadamente, 30-90%, até
ao final da mesma. Assim como a α-1-antitripsina, também a trasferrina aumenta ao longo
da gestação, a qual é útil na avaliação da capacidade total de ligação ao ferro. As
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concentrações séricas de ceruloplasmina também aumentam, até 150%, e tal como a α-1-
antitripsina, o seu aumento é devido à elevação dos estrógenos. A proteína C reativa
(PCR) tende a permanecer dentro dos limites normais de não grávida, mas pode aumentar
durante o parto. Durante a gravidez, a atividade do sistema do complemento está
ligeiramente aumentada, ocorrendo o aumento das concentrações séricas das frações C3
e C4, principalmente durante o 3ºT. Contrariamente, as concentrações séricas de
haptoglobina e de imunoglobulinas (principalmente a IgG) diminuem, mas, apesar disso,
as suas concentrações permanecem dentro dos limites de referência (Gronowski A., 2004;
Lockitch G., 1997).
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Conclusão
A gravidez é uma situação fisiológica associada a grandes modificações na
mulher, as quais são fundamentais para assegurar uma adequada nutrição e
desenvolvimento fetal, de modo a permitir a progressão da gravidez, e, também, para
preparar a grávida para o trabalho de parto e o nascimento.
Este trabalho pretendeu focar as principais adaptações, ocorridas no seu decurso,
nomeadamente a alteração do perfil hormonal materno, que se manifesta desde o seu
início, bem como as alterações metabólicas que incluem, por exemplo, o aumento da
resistência à insulina, sendo a principal razão para que os valores de referência para a
classificação da diabetes gestacional sejam diferentes daqueles relativos aos outros tipos
de diabetes, a elevação acentuada da concentração sérica de triglicéridos e o aumento das
necessidades nutricionais sobretudo em iodo, ácido fólico e ferro.
Durante a gestação ocorrem, também, adaptações a outros níveis: a nível
hematológico e hemostático, as quais alteram significativamente os valores médios do
hemograma, bem como os teores dos fatores de coagulação, cruciais no momento do parto
e pós-parto; em relação à função renal, sucede o aumento da GFR, o que permite
considerar fisiológico a presença de concentrações aumentadas de glicose e proteínas na
urina; no que concerne à função tiroideia, as variações mais relevantes incluem a elevação
sérica das frações totais de T3 e T4, de TBG e TG e a diminuição da TSH; outro exemplo
importante corresponde à função hepática, onde os valores médios séricos de
determinados parâmetros, incluídos nas provas da função hepática, sofrem alterações
significativas, nomeadamente a atividade da fosfatase alcalina, que pode estar aumentada
numa situação de colestase, mas a sua elevação isolada é considerada fisiológica devido
à isoenzima placentária.
Todas estas adaptações e alterações a nível materno, implicam que alguns dos
parâmetros se alterem de tal forma, que a sua interpretação, de acordo com os intervalos
de referência de não grávida, possam induzir, falsamente, a uma situação patológica ou,
por outro lado, impedir ou limitar a deteção de uma situação irregular na grávida. Logo,
é fundamental que os laboratórios de análises clínicas apliquem, quando justificável,
valores de referência adequados a esta situação fisiológica, para que haja uma correta
interpretação da mesma.
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