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5/20/2018 BertoldBrecht-Histo riasdeAlmanaque.pdf-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/bertold-brecht-historias-de-almanaquepdf 1/74 Histórias de Almanaque Bertold Brecht  _história da _literatura Bertold Brecht Histórias de Almanaque Tradução de Rafael Gomes Filipe  _r_b_a  _editores  _c original: Vega (1992)  _c da presente edição: Editores Reunidos, Lda., 1994 e _R_B_A Editores, S._A. Depósito legal: 80088/94 Depósito legal: M. 16.984-1995 Revisão gráfica: Luís Milheiro Fotocomposição: Espaço 2 Gráfico, Lisboa Impressão e encadernação: Mateu Cromo Artes Gráficas, S._A., (Pinto) Madrid Printed in Spain -- Impresso em Espanha O Círculo de Giz de Ausburgo  No tempo da Guerra dos Trinta Anos, um protestante suíço de nome Zuínglio tinh uma grande fábrica de curtumes e um negócio de cabedais na cidade franca d Ausburgo do Lech. Era casado com uma senhora de Ausburgo de quem tinha um filho. Quando os católicos marcharam sobre a cidade, os amigos aconselharam-n
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  • Histrias de Almanaque Bertold Brecht _histria da _literatura Bertold Brecht Histrias de Almanaque Traduo de Rafael Gomes Filipe _r_b_a _editores _c original: Vega (1992) _c da presente edio: Editores Reunidos, Lda., 1994 e _R_B_A Editores, S._A. Depsito legal: 80088/94 Depsito legal: M. 16.984-1995 Reviso grfica: Lus Milheiro Fotocomposio: Espao 2 Grfico, Lisboa Impresso e encadernao: Mateu Cromo Artes Grficas, S._A., (Pinto) Madrid Printed in Spain -- Impresso em Espanha O Crculo de Giz de Ausburgo No tempo da Guerra dos Trinta Anos, um protestante suo de nome Zunglio tinha uma grande fbrica de curtumes e um negcio de cabedais na cidade franca de Ausburgo do Lech. Era casado com uma senhora de Ausburgo de quem tinha um filho. Quando os catlicos marcharam sobre a cidade, os amigos aconselharam-no

  • vivamente a fugir, mas, ou porque a sua pequena famlia o prendesse, ou porque no queria abandonar a fbrica de curtumes, no houve maneira de se decidir a ausentar-se a tempo. Ele estava pois ainda na cidade quando as tropas imperiais a invadiram; e quando, noite, comearam os saques, escondeu-se numa cova, no ptio, onde se guardavam as tintas. A mulher devia ir com o filho para casa de uns parentes que viviam nos arredores da cidade, mas levou demasiado tempo a arranjar as coisas, os fatos, os adornos :, e as roupas de cama, e foi ento que viu de repente, de uma janela do primeiro andar, um peloto de soldados imperiais entrar no ptio. Apavorada, largou tudo o que estava a fazer e correu por uma porta das traseiras para fora da propriedade. A criana ficou, assim, sozinha em casa. Estava deitada no bero, no grande vestbulo, a brincar com uma bola de :madeira que pendia do tecto presa por um cordel. Em casa s tinha ficado uma criadinha. Estava esta ocupada na cozinha a limpar os tachos de cobre, quando ouviu barulho que vinha da rua. Debruando-se janela, viu que soldados atiravam do primeiro andar do prdio em frente para a rua toda a espcie de despojos. Correu para o vestbulo e estava precisamente a tentar tirar a criana do bero, quando ouviu o barulho de violentos golpes na porta de castanho da casa. Ficou em pnico e correu escadas acima. O vestbulo encheu-se de soldados embriagados que espatifaram tudo. Sabiam que se encontravam na casa de um protestante. Como que por milagre, Ana, a criada, no foi descoberta durante o saque. O peloto retirou-se, e Ana, ao sair do armrio onde se tinha escondido, deparou com a criana inclume no vestbulo. Apressou-se a pegar no beb e correu com ele para o :, ptio. Entretanto, a noite tinha cado, mas o claro vermelho de uma casa em chamas nas imediaes iluminava o ptio, e ela viu horrorizada o cadver mutilado do patro. Os soldados haviam-no tirado da cova e tinham-no assassinado. A criada s ento se apercebeu do perigo que corria se fosse apanhada na rua com o filho do protestante; pesarosa, voltou a coloc-lo no bero, deu-lhe leite a beber, embalou-o at ele adormecer, e ps-se a caminho do bairro onde vivia a sua irm casada. Pelas dez horas da noite, acompanhada pelo marido da irm, atravessou a multido de soldados que festejavam ruidosamente a vitria para ir procura, nos arredores da

  • cidade, da Sra. Zunglio, me da criana. Bateram porta de uma casa rica, e esperaram bastante at que a porta se entreabriu. Um velho pequenino, tio da Sra. Zunglio, ps a cabea de fora. Ana relatou ofegante os factos, disse que o Sr. Zunglio tinha morrido, mas que a criana estava em casa inclume. O velho olhou-a friamente com uns olhos de peixe e disse-lhe que a sobrinha j l no estava e que ele prprio no tinha nada ver com os protestantes. E tornou a fechar a porta. Quando se iam embora, o cunhado de Ana viu uma cortina mexer-se numa das janelas e ficou convencido :, de que era a Sra. Zunglio que estava por trs dela. Pelos vistos, no tinha vergonha de renegar o filho. Durante algum tempo, Ana e o cunhado caminharam silenciosos, lado a lado. Em seguida, ela revelou-lhe que queria voltar fbrica de curtumes para ir buscar a criana. O cunhado, um homem calmo e ordeiro, ouviu-a cheio de aflio e tentou tirar-lhe essa ideia perigosa da cabea. O que que ela tinha a ver com essa gente? Nem sequer tinha sido bem tratada. Ana ouviu-o em silncio e prometeu-lhe no cometer nenhuma loucura, mas tinha impreterivelmente de ir fbrica para ver se no faltava nada criana. E queria ir sozinha. Levou a sua avante. A criana estava calmamente deitada no seu bero no meio do vestbulo destrudo, e dormia. Ana sentou-se, cansada, junto do beb, a observ-lo. No tinha ousado acender uma luz, mas a casa ao lado ainda estava a arder, e conseguia ver bem a criana a essa claridade. Tinha no pescoo um sinal minsculo. Passado algum tempo, talvez uma hora, em que a criada observou a criana, vendo como ela respirava e chuchava no pequenino punho, deu-se conta de que tinha ficado ali sentada tempo de mais e tinha observado o beb to demoradamente que no :, podia ir-se embora sem o levar consigo. Levantou-se a custo, e, com movimentos lentos, embrulhou-o na coberta de linho, p-lo ao colo e saiu com ele do ptio, olhando medrosamente em volta, como algum com a conscincia pesada, como uma ladra. Da a duas semanas, levou a criana, aps longas conversas com a irm e o cunhado, para o campo, para a aldeia de Grossaitingen, onde vivia o irmo mais velho, que era campons. As terras pertenciam mulher -- ele entrara na sua posse apenas pelo casamento. Ficou assente que ela talvez devesse revelar apenas ao irmo quem era a criana, pois ainda no conheciam a jovem camponesa pessoalmente e no sabiam como ela iria acolher aquele pequenino hspede to perigoso.

  • Ana chegou aldeia pelo meio-dia. O irmo, a mulher e a criadagem estavam a almoar. No foi mal recebida, mas ao olhar para a cunhada, sentiu-se na obrigao de apresentar imediatamente a criana como sua. S depois de ter contado que o marido estava a trabalhar num moinho numa aldeia distante e que a esperava l com a criana dentro de algumas semanas que a cunhada se comeou a sentir mais vontade e a criana foi ento devidamente admirada. :, tarde, o irmo acompanhou-a ao bosque para ir buscar lenha. Sentaram-se em troncos de rvores, e Ana ofereceu-lhe vinho puro. Percebeu que ele no se sentia bem na sua pele. A sua posio na quinta ainda no estava firme e ele louvou Ana por no ter dito nada na frente da mulher. Era evidente que ele no achava que a mulher fosse capaz de ter uma atitude generosa em relao criana protestante. Ele queria que o engano se mantivesse. Ora isto no se mostrou fcil com o correr do tempo. Ana ajudou nas colheitas e entretanto cuidava do *seu* beb, correndo constantemente das terras para casa, enquanto os outros descansavam. O pequeno medrou e at engordou; ria logo que via Ana e, cheio de fora, tentava levantar a cabea. Mas chegou o Inverno e a cunhada comeou a perguntar com insistncia pelo marido de Ana. Nada havia a dizer contra a permanncia de Ana na quinta -- ela podia ser sempre til. O pior foi que os vizinhos comeavam a interrogar-se sobre o pai do filho de Ana, porque ele nunca mais o vinha ver. Se ela no conseguisse mostrar o pai da criana, a quinta passaria a andar nas bocas do mundo. Numa manh de domingo, o campons :, atrelou o cavalo e chamou Ana em voz alta para ir com ele buscar uma vitela a uma quinta vizinha. No desconjuntado veculo, participou-lhe que tinha procurado e encontrado um homem para ela. Era este um caseiro moribundo, que mal conseguiu levantar a escalavrada cabea do lenol ensebado quando ambos entraram na sua cabana de tectos baixos. Ele estava de acordo em casar com Ana. cabeceira da cama estava uma velha de pele amarela -- a me dele. Receberia uma remunerao pelo servio prestado a Ana. O negcio foi concludo em dez minutos, e Ana e o irmo puderam seguir caminho para irem comprar a vitela. O casamento teve lugar no fim dessa mesma semana. Enquanto o padre murmurava as frmulas sacramentais, o doente nunca virou para Ana os olhos vtreos. O irmo no duvidava de que dentro de alguns dias iriam

  • receber a notcia da sua morte. O marido de Ana e pai da criana teria ento morrido quando vinha a caminho para os visitar, numa aldeia qualquer perto de Ausburgo, e ningum se admiraria que a viva e o filho ficassem a viver na casa do irmo. Ana regressou alegre do seu estranho casamento, em que no houve nem sinos :, nem msica, nem damas de honor nem convidados. O seu copo de agua foi comer um naco de po com uma fatia de presunto na casa de jantar, e dirigiu-se depois com o irmo para junto do caixote onde a criana, que agora j tinha nome, dormia. Ajeitou-lhe melhor os lenis e: riu para o irmo. Mas a certido de bito tardava em chegar. Nem na semana seguinte nem na outra receberam notcias da velha. Ana tinha contado na quinta que o marido j vinha a caminho. Dizia at, quando lhe perguntavam pelo paradeiro dele, que a muita neve dificultava a viagem. Mas quando passaram mais trs semanas, o irmo dirigiu-se, extremamente preocupado, aldeia perto de Ausburgo. Regressou de noite, muito tarde. Ana ainda estava levantada e correu para a porta quando ouviu a carroa entrar, chiando, no ptio. Viu-o desatrelar vagarosamente os cavalos, e o corao comprimiu-se-lhe. Trazia ms notcias. Ao entrar na cabana, viu o moribundo sentado mesa a jantar, em mangas de camisa, mastigando com a boca cheia. Estava completamente restabelecido. O irmo desviou os olhos de Ana, enquanto falava. O caseiro, que se chamava :, Otterer, e a me, estavam igualmente surpreendidos com o curso dos acontecimentos e ainda no tinham chegado a uma concluso sobre o que se passara. Otterer no lhe deixara uma impresso desagradvel. Tinha falado pouco, mas mandara calar a me, quando esta se quis lamentar pelo facto de ele ter agora ao pescoo uma mulher indesejada e um filho estranho. Comia, pensativo, o seu queijo enquanto conversavam, e ficara ainda a comer quando o campons se foi embora. Nos dias seguintes, Ana sentiu-se naturalmente muito preocupada. No intervalo das lides caseiras, ensinava a criana a andar. Quando ele largava a roca e com os bracinhos estendidos e passo incerto caminhava para a me, esta reprimia um soluo seco e apertava-o com fora quando o agarrava.

  • Perguntou uma vez ao irmo: Como que ele ? S o tinha visto no leito de morte e noitinha, luz fraca de uma vela. Ficou ento a saber que o marido era um cinquento gasto pelo trabalho -- "imagina como so os caseiros". Pouco depois, viu-o. Um vendedor ambulante informou-a, com grandes pedidos de segredo, que um certo "conhecido seu" queria encontrar-se com ela no dia tantos de tal, s tantas horas, na aldeia de tal, no stio donde :, parte o atalho para Landsberg. E assim se encontraram os esposos entre s suas duas aldeias, tal como os antigos generais entre as linhas de batalha, num descampado coberto de neve. Ana no gostou do homem. Ele tinha dentes pequeninos e cinzentos, olhou-a dos ps cabea, embora ela estivesse embrulhada numa espessa manta de peles e pouco dela se visse, e empregou as palavras "sacramento do matrimnio". Ela disse-lhe secamente que tinha ainda de pensar em tudo aquilo, mas pediu-lhe que lhe fizesse o favor de mandar dizer cunhada, atravs de um vendedor qualquer ou de um carniceiro, que passassem por Grossaitingen, que chegaria em breve e que tinha adoecido pelo caminho. Otterer fez que sim com a cabea, no seu jeito pensativo. Era mais alto do que ela uns bons vinte centmetros e, enquanto falava, olhava sempre para o lado esquerdo do pescoo dela, o que a irritava. Mas a mensagem nunca chegou destinatria, e Ana comeou a pensar em sair simplesmente com a criana da quinta e ir mais para 0 Sul, procura de um emprego, talvez em Kempten ou em Sonthofen. S a insegurana das estradas, de que muito se falava, e o facto de se estar em pleno Inverno, a impediram de o fazer. :, A estada na quinta foi-se tornando muito difcil. A cunhada fazia-lhe perguntas desconfiadas mesa do almoo na presena dos criados acerca do marido. Quando uma vez disse, em voz alta, olhando para a criana com falsa compaixo, "pobre verme", Ana resolveu ir-se embora, mas nessa altura a criana adoeceu. Jazia no seu caixote, inquieto, com a cara vermelha a escaldar e os olhos turvos, e Ana passou noites inteiras junto dele, cheia de angstia e de esperana. Quando ele j convalescia e tinha recuperado o sorriso, bateram uma manh porta, e Otterer entrou. No estava mais ningum no quarto alm de Ana e da criana, pelo que ela no teve que dissimular, o que alis lhe teria sido impossvel com o susto que apanhou. Ficaram de p durante um bom bocado sem dizer palavra, e ento Otterer disse que

  • tinha reflectido no caso e que a vinha buscar. Voltou a falar no sacramento do matrimnio. Ana exasperou-se. Com voz firme, se bem que reprimida, disse ao homem que no pensava viver com ele, que tinha contrado matrimnio s por causa da criana e que no queria mais nada dele a no ser o nome, para si e para a criana. Quando ela se referiu criana, Otterer :, olhou de relance na direco do caixote onde esta jazia palrando, mas no se aproximou. O que fez com que Ana ainda antipatizasse mais com ele. Ele disse ainda que ela devia reflectir novamente em tudo, que em casa dele se vivia com grande aperto, mas que a me podia ir dormir para a cozinha. Entrou ento a camponesa, cumprimentou-o cheia de curiosidade e convidou-o para almoar. Ele cumprimentou o campons, j quando se sentava mesa, com um negligente aceno de cabea, nem fingindo que o no conhecia nem dando a entender que o conhecia. Respondia com monosslabos e sem erguer os olhos do prato s perguntas da camponesa, dizendo que tinha encontrado trabalho em Mering e que Ana se podia mudar para l. No entanto, no disse que isso tinha de acontecer imediatamente. Durante a tarde ele evitou a companhia do campons e foi rachar lenha para trs da casa, se bem que ningum lho tivesse pedido. Depois do jantar, em que ele participou em silncio, a camponesa foi ela prpria levar roupa de cama ao quarto de Ana, para ele l poder dormir, mas ele ficou estranhamente pensativo e levantou-se murmurando que tinha de regressar nessa mesma noite. Antes de partir fitou com um olhar :, ausente o caixote onde estava a criana, mas no disse nada e tambm no lhe tocou. De noite, Ana adoeceu com febres que se prolongaram durante semanas. A maior parte do tempo jazia aptica; s algumas vezes pela manh, quando a febre abrandava, se arrastava at ao caixote da criana e compunha a roupinha da cama. Na quarta semana da doena, Otterer apareceu na quinta com um carro com xalmas para a ir buscar a ela e criana. Ela deixou que isso acontecesse sem dizer palavra. S muito lentamente que recobrou as foras, o que no era para admirar com as sopas ralas que lhe serviam na cabana do caseiro. Mas uma manh viu que a criana estava suja, e levantou-se decidida.

  • O pequeno recebeu-a com um sorriso cordial, que o irmo afirmava ter ele herdado dela. Tinha crescido e gatinhava com incrvel velocidade pelo quarto, avanando as mozinhas e dando gritinhos quando caa de borco. Ela lavou-o numa selha e voltou a sentir-se confiante. Passados que foram poucos dias, j ela no conseguia aguentar a vida com Otterer. Embrulhou o pequeno numas mantas, pegou num po e num bocado de queijo e fugiu. :, Pretendia chegar a Sonthofen, mas no foi longe. Estava ainda muito fraca das pernas, a estrada estava coberta de neve j a derreter e as pessoas nas aldeias tinham-se tornado muito desconfiadas e avarentas devido guerra. No terceiro dia da caminhada, torceu um p num buraco da estrada e foi levada, muitas horas depois, durante as quais se afligiu muito por causa da criana, para uma quinta, onde teve de ficar deitada no estbulo. O pequeno gatinhava por entre as patas das vacas e s se ria quando ela gritava angustiada. Por fim teve de dizer aos donos da quinta o nome do marido, e este levou-a de volta para Mering. A partir de ento no mais voltou a tentar a fuga e aceitou a sua sorte. Trabalhava muito. Era difcil tirar qualquer coisa daquelas terras exguas para assegurar o insignificante governo da casa. Mas o homem no era grosseiro para com ela, e o pequeno andava bem alimentado. O irmo tambm aparecia de vez em quando e trazia-lhe presentes, e uma vez ela at conseguiu mandar tingir de vermelho um casaquinho do pequeno. Pensou que ele havia de ficar bem ao filho de um tintureiro. Com o tempo, acabou por ficar contente e conheceu muitos momentos de alegria :, com a educao da criana. E assim se passou aquele ano. Um dia, porm, foi aldeia buscar melao e quando voltou a criana j no estava na cabana, e o marido contou-lhe que uma senhora muito bem vestida tinha vindo num coche buscar o menino. Cambaleou e apoiou-se na parede horrorizada, mas ainda nessa mesma noite se ps a caminho de Ausburgo, levando apenas uma trouxa com comida. Mal chegou cidade, dirigiu-se logo fbrica de curtumes. No a deixaram entrar e no conseguiu ver a criana. A irm e o cunhado tentaram em vo consol-la. Ela correu s autoridades e, fora de si, gritou que lhe tinham roubado o filho. Foi ao ponto de sugerir que a criana tinha

  • sido roubada por protestantes. Soube ento que se viviam outros tempos e que reinava a paz entre catlicos e protestantes. No teria conseguido coisa alguma, se um feliz acaso no tivesse vindo em seu auxlio. A sua queixa foi evada a um juiz que era um homem muito especial. Era ele o juiz Ignaz Dollinger, conhecido em toda a Subia pela sua rudeza e pela sua sabedoria, alcunhado de "esse campons de merda latino" pelo prncipe eleitor da Baviera, contra quem ele tinha instaurado um processo em favor da cidade franca, mas a :, quem a arraia-midi1 no se, cansava de tecer louvores numa longa cantilena. Acompanhada pela irm e pelo cunhado, Ana compareceu perante ele. O velho, baixo mais invulgarmente gordo, estava sentado num quarto minsculo e nu entre pilhas de pergaminhos, e ouviu-a brevemente. Em seguida, escreveu qualquer coisa numa folha de papel e resmungou: "Vai para ali, mas rpido!", e indicou-lhe com uma mozinha gorda um local do quarto iluminado pela luz da estreita janela. Durante alguns minutos, observou-lhe o rosto; em seguida fez-lhe sinal para se ir embora, ao mesmo tempo que soltava um suspiro de aflio. No dia seguinte mandou-a buscar por um oficial de diligncias e gritou-lhe, mal ela apareceu na ombreira da porta: "Porque que no disseste que se tratava de uma fbrica de curtumes situada numa bela propriedade?" Ana respondeu obstinada que o que lhe interessava era a criana. -- No penses que podes apanhar a fbrica gritou o juiz. -- Se o mido mesmo teu, as propriedades pertencem aos parentes do Zunglio. Ana fez que sim com a cabea, sem olhar para o juiz. Em seguida, disse: -- Ele no precisa da fbrica de curtumes. :, -- Ele teu? -- berrou o juiz. -- -- disse ela baixinho. -- Se eu ao menos pudesse ficar com ele at ele saber falar bem. Ele s conhece sete palavras. O juiz tossiu e ps em ordem os pergaminhos em cima da secretria. Depois disse, mais calmo, mas ainda em tom zangado:

  • -- Tu queres o mido, e o estafermo das cinco saias de seda tambm o quer. Mas de quem ele precisa da verdadeira me. -- Sim -- disse Ana, e olhou para o juiz. -- Desaparece -- berrou ele. -- O julgamento no sbado. Naquele sbado, a cidade e a praa em frente da cmara municipal estavam pejadas de gente que queria assistir ao processo da "criana protestante". O estranho caso tinha desde logo causado muita sensao e nas casas e nas hospedarias discutia-se sobre quem seria a verdadeira ou a falsa me. Tambm o velho Dollinger era de todos conhecido pelos seus processos populares recheados de expresses sarcsticas e de ditos sbios. As suas audincias eram mais apreciadas que a coscuvilhice e as romarias. Assim, aglomeravam-se em frente da cmara no s pessoas de Ausburgo; no eram poucos os camponeses das redondezas que ali se encontravam. Sexta-feira era :, dia de mercado, pelo que eles tinham pernoitado na cidade na expectativa do julgamento. A sala onde o juiz Dollinger dava audincia era a chamada Sala Dourada. Era clebre por ser a nica sala daquelas propores em toda a Alemanha que no tinha colunas; o tecto estava preso cumeeira do telhado por correntes. O juiz Dollinger estava sentado, uma pequena e rotunda montanha de carne, em frente do porto de bronze fechado de uma das paredes longitudinais. Uma simples corda separava os assistentes. Mas o juiz estava sentado no cho e no tinha sua frente nenhuma mesa. Ele prprio concebera h anos esta disposio. Dava muita importncia s aparncias. Presentes dentro do espao delimitado pela corda estavam a Sra. Zunglio com o tio, os parentes suos do falecido Sr. Zunglio que tinham vindo cidade para o julgamento, dois senhores muito bem vestidos com o aspecto de ricos comerciantes, e Ana Otterer com a irm. Junto da Sra. Zunglio via-se uma ama com a criana. Todos, litigantes e testemunhas, estavam de p. O juiz Dollinger costumava dizer que as audincias eram mais rpidas se os interessados estivessem de p. Mas ele talvez os mandasse ficar de p para o esconderem do :, pblico, de tal modo que s se conseguia ver o juiz quando a pessoa se punha em bicos de ps com o pescoo esticado.

  • No incio do julgamento houve um incidente. Quando Ana viu a criana soltou um grito e deu um passo em frente, e a criana quis ir ao seu encontro, debateu-se violentamente nos braos da ama e comeou a berrar. O juiz ordenou que o fizessem sair da sala. Em seguida, chamou a Sra. Zunglio. Ela avanou, por entre um rumorejar de sedas, e contou, levando de vez em quando um lencinho aos olhos, que durante o saque os soldados imperiais lhe tinham tirado a criana. Nessa mesma noite a criada tinha ido casa do tio e dissera que a criana ainda estava em casa, aparentemente espera de uma gorjeta. Mas uma cozinheira do tio, que fora ento enviada fbrica de curtumes, no tinha encontrado a criana, o que a levava a admitir que a criatura (referia-se a Ana) se tinha apoderado daquela para de alguma maneira poder extorquir algum dinheiro. Ela apresentaria de qualquer modo, mais tarde ou mais cedo, essas exigncias, se n lhe tivessem j tirado a criana. O juiz Dollinger chamou os dois familiares do Sr. Zunglio e perguntou-lhes se se tinham nessa altura informado sobre o que acontecera ao Sr. Zunglio e sobre o que a Sra. Zunglio lhes tinha contado. :, Eles declararam que a Sra. Zuinglio lhes mandara dizer que o marido fora assassinado, e que ela tinha confiado a criana a uma criada, sob cuja guarda s encontrava bem. Disseram coisas muito desagradveis dela, o que de resto no era para admirar, j que os bens lhes tocariam em sorte se a Sra. Zunglio perdesse a aco. Depois do seu depoimento, o juiz voltou-se de novo para a Sra. Zunglio e quis que ela lhe dissesse se, aquando do assalto, no tinha simplesmente perdido a cabea e abandonado a criana. A Sra. Zunglio olhou para ele com os seus plidos olhos azuis como que surpreendida e disse magoada que no tinha abandonado o filho. O juiz Dollinger pigarreou e perguntou-lhe com empenho se ela achava que no havia me nenhuma que pudesse abandonar um filho. -- H, sim -- disse ela com firmeza.

  • Se ela tambm no achava, continuou o juiz a perguntar, que se deviam dar uns bons aoites no traseiro a uma me que fizesse uma coisa dessas, independentemente do nmero de saias que usasse? A Sra. Zunglio no respondeu, e o juiz chamou a antiga criada Ana. Ela compareceu logo e repetiu em voz baixa o que j tinha dito durante os inquritos preliminares. :, Mas falava como se estivesse ao mesmo tempo escuta, e de vez em quando olhava para a grande porta para alm da qual tinham levado a criana, como se temesse que ela continuasse a chorar. Declarou que de facto tinha ido naquela noite casa do tio da Sra. Zunglio mas que no tinha voltado fbrica de curtumes com medo dos soldados imperiais e porque estava preocupada com o seu prprio filho, que fora levado para casa de pessoas amigas na localidade vizinha de Lechhausen. O velho Dollinger interrompeu-a desabridamente e disse com voz cortante que havia pelo menos uma pessoa na cidade que sentira algo que se parecia com medo. Alegrava-se de o poder confirmar, pois isso provava que naquela altura tinha havido pelo menos uma pessoa com algum bom senso. J no era bonito que a testemunha s se tivesse preocupado com o seu prprio filho, mas por outro lado l dizia o provrbio que o sangue era mais forte que a gua, e qual era a me verdadeira que no era capaz de roubar para o filho, o que era proibido por lei, porque a propriedade privada : a propriedade privada, e quem rouba tambm mente, e a mentira tambm proibida por lei. Proferiu ento uma das suas sbias e vigorosas lies sobre a patifaria :, dos homens, que mentiam nos tribunais com quantos dentes tinham na boca, e aps uma breve digresso sobre os camponeses que misturavam gua no leite de vacas inocentes e sobre o magistrado da cidade que cobrava altos impostos em dinheiro aos camponeses, digresso essa que nada tinha a ver com o litgio, anunciou que tinha terminado o depoimento das testemunhas sem que se tivesse chegado a qualquer concluso. Fez em seguida uma longa pausa e deu mostras da maior perplexidade, olhando em volta como se esperasse de qualquer lado uma sugesto que lhe permitisse solucionar o caso. As pessoas olhavam-se estupefactas e algumas esticavam o pescoo para poderem ver o desamparado juiz. Reinava, porm, um grande silncio na sala -- s se ouvia a multido l fora na rua. O juiz retomou ento, suspirando, a palavra.

  • -- No se provou quem a me verdadeira -- disse ele. -- de lamentar a criana. l se sabe que os pais muitas vezes se despedem francesa e no querem ser pais, os patifes; neste caso, porm, apresentam-se duas mes ao mesmo tempo. O tribunal ouviu-as o tempo que foi necessrio, ou seja, cinco minutos para cada uma, e o tribunal ficou com a impresso de que ambas :, mentiam como um saco roto. Mas h que pensar na criana, que tem de ter uma me. Portanto, sem se entrar em conversas suprfluas, temos de provar qual das duas a verdadeira me. E com voz irada chamou o oficial de diligncias e ordenou-lhe que fosse buscar um giz. O oficial de diligncias trouxe-lhe o que ele pedira. -- Desenha com o giz um crculo no cho, no qual possam caber trs pessoas de p -- ordenou-lhe o juiz. O oficial de diligncias ajoelhou-se e desenhou com o giz o crculo pretendido. -- Agora, traz a criana -- ordenou o juiz. Trouxeram a criana. Esta desatou novamente numa gritaria e queria ir para junto de Ana. O velho Dollinger no se importou com a choradeira, e limitou-se a fazer o seu discurso num tom mais alto. -- Esta prova, a que se vai proceder -- anunciou ele --, descobri-a eu num velho livro, e continua a ser vlida. A ideia fundamental da prova com o crculo de giz a de que se reconhece a verdadeira me pelo amor que tem ao filho. Da que a fora desse amor tenha de ser posta prova. Oficial de diligncias, pe a criana no meio deste crculo! :, O oficial de diligncias tirou a criana que berrava da mo da ama e colocou-a dentro do crculo. O juiz prosseguiu, voltando-se para a Sra. Zunglio e para Ana: -- Ponham-se vocs tambm dentro do crculo, agarrem cada uma uma, mo da criana e quando eu disser "Agora!", esforcem-se por tirar a criana do crculo. A que tiver um amor mais forte, puxar com mais fora e arrastar a criana para o seu lado. Reinava uma certa agitao na sala. Os espectadores punham-se em bicos de ps e discutiam com os que estavam sua frente.

  • Fez-se de novo um silncio total quando as duas mulheres entraram no crculo e cada uma pegou numa das mos da criana. Tambm a criana se calou, como se pressentisse do que se tratava. Mantinha a carita lavada em lgrimas erguida para Ana. Ento o juiz ordenou: "Agora!" E com um nico e violento puxo a Sra. Zunglio arrastou a criana para fora do crculo de giz. Ana seguiu-a com os olhos, perturbada e incrdula. Com receio de que o menino sofresse qualquer leso ao ser puxado por ambos os bracinhos em direces opostas, tinha-o logo largado. O velho Dollinger levantou-se. -- E assim ficamos a saber -- disse ele em voz alta -- quem a verdadeira me. Tirem a criana a essa porcalhona, que com :, frieza de animo a faria em postas. -- Acenou com a cabea na direco de Ana, e saiu rapidamente da sala para ir almoar. E nas semanas seguintes os camponeses da regio, que no eram tolos, contavam uns aos outros que o juiz, ao fazer entrega da criana mulher de Mering, lhe piscara o olho. Os Dois Filhos Uma camponesa da Turngia sonhou em Janeiro de 1945, quando se aproximava o fim da guerra de Hitler, que o filho chamava por ela no campo e, tendo sado de casa bbeda de sono, julgou ver o filho a beber na nora. Quando lhe dirigiu a palavra, reparou que se tratava de um dos jovens prisioneiros de guerra russos que executavam trabalhos forados na quinta. Uns dias mais tarde, teve uma experincia estranha. Ela levava comida aos prisioneiros a um bosque das proximidades, onde tinham arrancado troncos de rvores. Ao regressar, olhou por cima do ombro e viu o mesmo jovem prisioneiro de guerra, de resto um homem adoentado, inclinar o rosto, com ar desconsolado, para a tigela de lata que algum lhe estendia com a sopa, e de repente este rosto transformou-se no do filho. Nos dias seguintes ela registou com frequncia rpidas transformaes, que :, rapidamente se confundiam, do rosto desse jovem no do seu filho. Depois, o prisioneiro de guerra adoeceu; jazia sem cuidados no celeiro. A camponesa sentiu um impulso crescente para lhe levar qualquer coisa de tonificante, mas o irmo, um invlido de guerra que cuidava da quinta e que tratava mal os prisioneiros, impediu-a, particularmente naquela altura em que tudo comeava a desmoronar-se e a aldeia comeava a temer os prisioneiros. A camponesa no podia ficar insensvel aos argumentos dele; no achava correcto ajudar esses sub-

  • homens, sobre os quais tinha ouvido coisas horrveis. Vivia no temor do que os inimigos poderiam fazer ao filho, que estava no Leste. No se concretizara ainda o seu meio propsito de auxiliar *aquele* prisioneiro no seu abandono, quando uma noite, no pomar coberto de neve, surpreendeu um grupo de prisioneiros em animada conversa que, para se manter secreta, decorria no meio do frio. O jovem tambm ali estava, a tiritar de febre, e aparentemente devido ao seu estado de fraqueza assustou-se mais do que os outros. No meio do susto, ocorreu de novo a estranha transformao do seu rosto, de tal maneira que o que ela via era o rosto do filho, muito assustado. Isso deixou-a profundamente preocupada e, se bem tivesse devidamente contado ao irmo a :, conversa no pomar, resolveu dar ao rapaz o toucinho fumado que j tinha preparado. Como muitas outras boas aces no Terceiro Reich, tal viria a revelar-se extremamente difcil e perigoso. Nessa empresa, tinha o prprio irmo por inimigo, e tambm no podia confiar nos prisioneiros de guerra. No entanto, foi bem sucedida. Descobriu, porm, ao mesmo tempo, que os prisioneiros planeavam efectivamente fugir, pois aumentava de dia para dia o perigo de serem arrastados para ocidente com o avano do Exrcito Vermelho, ou de serem pura e simplesmente exterminados. A camponesa no resistiu a satisfazer alguns desejos do jovem prisioneiro, que este lhe comunicava por gestos ou num pssimo alemo, uma vez que a ligava a ele uma estranha experincia, e deixou-se assim envolver nos planos de fuga dos prisioneiros. Arranjou um casaco e uma grande tesoura de metal. Singularmente, a partir dessa altura nunca mais se deu a transformao; a camponesa ajudava agora to-s o jovem estrangeiro. Foi assim um choque para ela quando uma manh, em finais de Fevereiro, algum bateu janela e ela viu atravs do vidro na penumbra o rosto do filho. Desta vez era mesmo o seu filho. Envergava o uniforme esfarrapado dos *_S_S*; a sua unidade tinha sido destroada e ele informou excitado :, que os Russos estavam apenas a uns escassos quilmetros da aldeia. A sua chegada devia ser mantida em absoluto segredo. Numa espcie de conselho de guerra que a camponesa, o irmo e o filho realizaram num recanto do sto, foi decidido, antes de mais, livrarem-se dos prisioneiros, j que eles teriam possivelmente visto o *_S_S*, e era de prever que se queixassem do tratamento que lhes fora reservado. Nas proximidades ficava uma pedreira. O *_S_S* insistia em que era capaz de, sozinho, os levar a sair na noite seguinte do celeiro para os abater. Podia-se levar depois os cadveres para a pedreira. noite deviam dar-lhes ainda umas doses de aguardente; o que no deveria levantar suspeitas, pensava o irmo, pois este, juntamente com a criadagem, j nos ltimos tempos vinha sendo muito amvel com os russos para no ltimo momento lhes ganhar as simpatias. Quando o jovem *_S_S* exps o seu plano, viu a me comear de repente a tremer. Os homens decidiram que ela em caso algum poderia ficar nas proximidades do celeiro. Assim, ela aguardou horrorizada o cair da noite. Os russos aceitaram a aguardente aparentemente agradecidos e a camponesa ouviu-os cantar, embriagados,

  • as suas canes melanclicas. Mas quando o filho pelas onze da noite se dirigiu ao celeiro, os prisioneiros :, tinham fugido. Tinham fingido estar bbedos. Fora precisamente a nova e pouco natural amabilidade das gentes da quinta que os convencera de que o Exrcito Vermelho devia estar perto. Os Russos chegaram efectivamente na segunda metade da noite. O filho deitara-se, bbedo, no sto, enquanto a camponesa, em pnico, tentava queimar-lhe o uniforme *_S_S*. Tambm o irmo se tinha embriagado; ela prpria teve de receber os soldados russos e de os alimentar. F-lo com uma cara de pau. Os Russos partiram pela manh -- o Exrcito Vermelho prosseguia a sua ofensiva. O filho, exausto pela noite em claro, pediu mais aguardente e comunicou o seu firme propsito de abrir caminho at s unidades alems em retirada para continuar a combater. A camponesa no procurou fazer-lhe ver que a continuao da luta significaria agora uma morte certa. Desesperada, atravessou-se-lhe no caminho e tentou barrar-lhe a sada com o corpo. Ele empurrou-a para cima da palha. Erguendo-se de novo, sentiu na mo o varal de um carro e, levantando o brao ao alto, abateu o tresloucado. Nessa mesma manh, uma camponesa guiando um carro com xalmas apresentou-se na vila mais prxima perante o governo militar russo e fez entrega, atado com cordas :, dos bois, do prprio filho, como prisioneiro de guerra, para que este, como ela tentava explicar a um intrprete, pudesse salvar a sua vida. A Experincia A carreira pblica do grande Francis Bacon terminou como uma justa parbola do falso provrbio "O crime no compensa". Sendo ele lorde-chanceler do Reino, deixou-se tentar pela corrupo e foi parar cadeia. Os anos do seu magistrio contam-se, com todas as execues, concesses de monoplios ilcitos, detenes ilegais e casos de sentenas viciadas, entre os mais sombrios e infames da Histria de Inglaterra. Depois de ter sido desmascarado e de ter confessado, a sua fama de humanista e de filsofo fez com que os seus crimes se tornassem conhecidos muito para alm. Das fronteiras do Reino. Era um velho quando lhe permitiram sair da priso e voltar para a sua quinta. Tinha o corpo debilitado pelos esforos que lhe tinha custado levar vrias pessoas queda e pelos sofrimentos que os outros por sua vez lhe infligiram quando o levaram sua :, prpria queda. Mas, mal chegou a casa, lanou-se no mais intensivo estudo das cincias da natureza. Fora mal sucedido ao querer dominar os homens. Por isso consagrava agora as foras que lhe restavam investigao sobre a melhor maneira de a humanidade dominar as foras da natureza.

  • As suas investigaes, voltadas para coisas teis, faziam-no constantemente sair do gabinete de estudo para ir para os campos, para os jardins e para as estrebarias da propriedade. Conversava horas a fio com os jardineiros sobre as possibilidades de enxertar as rvores de fruto, ou dava indicaes s criadas sobre a maneira de medirem a quantidade de leite de cada vaca. Chamou-lhe ento a ateno um moo de estrebaria. Um cavalo de raa tinha adoecido e o rapaz dava informaes ao filsofo duas vezes por dia. O seu zelo e os seus dons de observao encantaram o velho. Mas, quando ele uma tarde entrou no estbulo, viu uma velha de p junto do rapaz que lhe dizia: "Ele um homem mau, toma cuidado com ele. E se bem que ainda seja um grande senhor e tenha dinheiro como milho, nem por isso deixa de ser mau. ele quem te d o po, por isso trata de fazeres bem o teu trabalho, mas nunca te esqueas de que ele mau." O filsofo j no ouviu a resposta do :, rapaz, porque deu rapidamente meia volta e regressou a casa; na manh seguinte, porm, viu que o rapaz em nada alterara o seu comportamento para com ele. Quando o cavalo melhorou, ele fez-se acompanhar do rapaz em muitas das suas sadas e confiou-lhe pequenas tarefas. A pouco e pouco habituou-se a falar com ele sobre algumas das suas experincias. Mas no escolhia as palavras que os adultos geralmente acham que se coadunam com o entendimento das crianas, antes falava com ele como se ele fosse uma pessoa instruda. Convivera durante a sua vida com as grandes sumidades, que poucas vezes o tinham compreendido, no por ele ser confuso, mas, pelo contrrio, por ser claro de mais. No se preocupava, portanto, com as dificuldades do rapaz; no entanto, emendava-o pacientemente, quando ele, por sua vez, tentava usar palavras estranhas. A tarefa principal do rapaz consistia em ter de descrever as coisas que via e os processos que presenciava. O filsofo mostrava-lhe a grande quantidade de palavras que existia e quantas eram de facto necessrias para se poder descrever a reaco de uma coisa por forma a que ela pudesse ser identificada a meio da descrio, e, sobretudo, para que, depois da descrio, pudesse ser manipulada. Tambm havia algumas palavras :, que era prefervel no usar, pois no fundo nada diziam, palavras como "bom", "mau", "bonito", etc. O rapaz no tardou a perceber que no fazia sentido chamar "feio" a um escaravelho. At "rpido" no bastava; tinha de se ver a que velocidade que ele se deslocava, em

  • comparao com outras criaturas do seu tamanho, e ver o que que isso lhe possibilitava. Tinha de se pr o animal numa superfcie inclinada e lisa e provocar rudos para ele fugir, ou ento arranjar-lhe pequenas presas sobre as quais ele se precipitasse. Quando nos ocupvamos com ele o tempo suficiente, ele perdia "rapidamente" a sua fealdade. Uma vez, o rapaz tinha de descrever um pedao de po, que segurava na mo, quando o filsofo veio ao seu encontro. -- Neste caso podes empregar vontade a palavra "bom" -- disse o velho --, porque o po foi feito para a alimentao dos homens e pode ser bom ou mau para eles. S em relao a objectos maiores, que a natureza criou e que no podem sem mais nada ser usados para determinados fins, e, que sobretudo se no destinam ao uso exclusivo dos homens, que disparate contentarmo-nos com semelhantes palavras. O jovem pensava nas frases da av sobre o milorde. :, Fez rpidos progressos na compreenso, j que tudo o que havia a compreender se prendia sempre com o concreto: o cavalo curara-se graas aos meios que tinham sido usados, ou determinada rvore morrera devido ao remdio utilizado. Compreendeu tambm que devia ficar-se sempre com uma dvida prudente sobre se as modificaes que se observaram se ficavam efectivamente a dever aos mtodos usados. O rapaz mal compreendia o significado cientfico do modo de pensar de Bacon, mas a manifesta utilidade de todas estas empresas entusiasmava-o. Entendia assim o filsofo: Tinha chegado uma nova era para o mundo. A humanidade multiplicava o seu saber diariamente. E todo o saber significava melhoria do bem-estar e da felicidade terrena. A direco cabia cincia. A cincia investigava o universo, tudo o que existia sobre a terra: plantas, animais, solo, gua, ar, para que de tudo se pudesse extrair um maior proveito. No era aquilo em que se acreditava que era importante, mas o que se sabia. Acreditava-se em demasiadas coisas e sabia-se de menos. Eis porque se tinha de experimentar tudo, com as prprias mos, e s se devia falar do que se via com os prprios olhos e podia ter uma utilidade qualquer. Era essa a nova doutrina, que tinha cada :, vez mais seguidores entusiasmados e prontos a lanarem-se nos novos trabalhos. Os livros tinham nisso um papel importante, embora muitos tambm fossem maus. O rapaz no duvidava de que tinha de se agarrar aos livros se queria pertencer ao nmero daqueles que se ocupavam das novas tarefas.

  • claro que ele nunca entrou na biblioteca da casa. Tinha de esperar o milorde em frente dos estbulos. O mais que pde fazer foi encontrar-se uma vez com ele no parque, quando o velho no aparecera durante uns dias. No entanto, a curiosidade que sentia pelo gabinete de estudo, no qual durante toda a noite ficava acesa uma lmpada, era cada vez maior. De uma sebe que ficava em frente do quarto, podia lanar um olhar s estantes com livros. Resolveu aprender a ler. O que no foi fcil. O vigrio, a quem ele foi comunicar esse seu desejo, olhou-o como quem avista uma aranha em cima da mesa do pequeno-almoo. -- Queres pregar s vacas o Evangelho do Senhor? -- perguntou de mau humor. E 0 rapaz bem pde dar-se por feliz por ter sido despedido sem levar uma bofetada. Teve assim de escolher outro caminho. Havia na sacristia da igreja da aldeia um missal. Podia-se l chegar, se a pessoa se oferecesse :, para tocar o sino. Se se pudesse saber qual era a passagem que o cura ia cantar na missa, devia ser possvel descobrir uma relao entre as palavras e os caracteres. De qualquer modo, o rapaz comeou a aprender de cor as palavras latinas que o cura cantava na missa, pelo menos algumas delas. O cura, no entanto, pronunciava as palavras de uma maneira invulgarmente ininteligvel, e muitas vezes nem lia a missa. Fosse como fosse, o rapaz j conseguia, ao fim de algum tempo, acompanhar algumas entradas do cura. O estribeiro surpreendeu-o uma vez a fazer esses exerccios atrs do celeiro e bateu-lhe, pois pensou que o rapaz estava a fazer troa do cura. E foi assim que ele acabou por apanhar um par de bofetadas. O rapaz ainda no conseguira localizar no missal os stios em que apareciam as palavras que o cura cantava, quando aconteceu uma grande desgraa que quase ps termo aos seus esforos para aprender a ler. O milorde caiu de cama para no mais se levantar. Durante todo o Outono tinha andado adoentado e no estava ainda completamente restabelecido quando, no Inverno seguinte, num carro aberto, fez uma viagem de algumas milhas at uma propriedade :, distante. O rapaz acompanhava-o. Seguia atrs nos varais, ao lado do cocheiro.

  • Terminada a visita, quando o velho se encaminhava com dificuldade, acompanhado pelo dono da casa, para o carro, eis que viu um pardal enregelado no caminho. Parou e, com a bengala, revirou-o. -- H quanto tempo que acha que ele est aqui? -- ouviu-o o rapaz, que vinha com uma botija de gua quente atrs deles, perguntar ao dono da casa. A resposta foi: -- H uma hora ou uma semana, ou mais. O velhinho seguiu caminho pensativo e despediu-se do dono da casa com um aceno distrado. -- A carne ainda est muito fresca, Dick -- disse ele, virando-se para o rapaz, quando o carro se ps em marcha. Andaram um bocado a grande velocidade, pois a noite caa j sobre os campos cobertos de neve e o frio aumentava a olhos vistos. Aconteceu ento que, ao fazerem a curva para entrar no porto da quinta, atropelaram uma galinha que pelos vistos tinha fugido da capoeira. O velho seguiu os esforos do cocheiro para se desviar da galinha que esvoaava espavorida e fez sinal para parar, depois da manobra ter falhado. Libertando-se das mantas e das peles, :, desceu do carro e, apoiado ao brao do rapaz, foi, apesar dos avisos do cocheiro contra o frio, at ao stio onde jazia a galinha. Estava morta. O velho mandou o rapaz pegar nela. -- Tira-lhe as entranhas -- ordenou. -- No se pode fazer isso na cozinha? -- perguntou o cocheiro ao amo, ao v-lo to frgil naquele vento gelado. -- No, melhor aqui -- disse este. -- Dick tem com certeza uma faca, e precisamos da neve.

  • O rapaz fez o que lhe mandavam, e o velho, que aparentemente tinha esquecido a doena e o frio, curvou-se e pegou a custo num punhado de neve que meteu cuidadosamente no interior da galinha. O rapaz percebeu. Tambm ele apanhou neve e entregou-a ao professor, para que a galinha ficasse inteiramente recheada. -- Ela deve conservar-se fresca durante semanas -- disse o velho com vivacidade. -- Ponham-na na cave, em cima de uma laje fria! Percorreu a p a curta distancia que o separava da porta, um tanto extenuado e apoiando-se em peso contra o rapaz, que levava a galinha recheada de neve debaixo do brao. Quando entrou no vestbulo teve um arrepio de frio. :, Na manha seguinte tinha febre muito alta. O rapaz andava em cuidados de um lado para o outro procurando por toda a parte saber notcias do seu professor. Pouco conseguiu apurar -- a vida na grande propriedade prosseguia imperturbvel. S no terceiro dia que houve uma mudana. Foi chamado ao gabinete de trabalho. O velho jazia num estreito catre de madeira por baixo de muitas mantas, mas as janelas estavam abertas, pelo que fazia frio. O doente parecia, porm, arder em febre. Com voz trmula, indagou do estado da galinha cheia de neve. O rapaz disse que parecia estar na mesma fresca. -- Isso bom -- disse o velho, satisfeito. -- Dentro de dois dias volta a dar-me notcias! O rapaz lamentou, ao sair, no ter levado a galinha. O velho parecia menos doente do que se dizia no refeitrio dos criados. Mudava-lhe a neve duas vezes por dia, e a galinha continuava inclume quando ele de novo se encaminhou para o quarto do doente.

  • Encontrou obstculos inusitados. Tinham vindo mdicos da cidade. O corredor fervilhava de vozes sussurrantes, que :, davam ordens, que obedeciam, e viam-se por todo o lado caras estranhas. Um criado, que levava para o quarto do doente uma bacia tapada com uma grande toalha, mandou-o embora com maus modos. Em vo tentou vrias vezes durante a manh e a tarde entrar no quarto do doente. Os mdicos desconhecidos pareciam querer instalar-se no palcio. Surgiam-lhe como gigantescos pssaros negros, que se abatiam sobre um pobre doente indefeso. Ao fim da tarde, ele escondeu-se num gabinete no corredor, onde fazia muito frio. Tremia constantemente de frio, mas achou que isso era favorvel, j que, para bem da experincia, a galinha tinha de se conservar absolutamente gelada. Durante o jantar a mar negra diminuiu um pouco e o rapaz conseguiu introduzir-se no quarto do doente. O doente estava sozinho -- toda a gente tinha ido jantar. Junto da exgua cama havia um candeeiro de leitura com uma pantalha verde. O velho tinha um rosto estranhamente chupado que uma palidez de cera realava. Tinha os olhos fechados, mas as mos agitavam-se inquietas sobre a colcha rgida. O quarto estava muito quente -- tinham fechado as janelas. O rapaz deu alguns passos na direco da cama, com a galinha bem agarrada, e :, chamou vrias vezes em voz baixa: "Milorde." No obteve resposta. Mas o doente no parecia estar a dormir, pois mexia de vez em quando os lbios, como se falasse. O moo resolveu chamar-lhe a ateno, convencido da importncia de novas instrues para o prosseguimento da experincia. Sentiu, no entanto, antes de poder puxar pela colcha -- pusera a galinha com a caixa onde a transportava em cima duma cadeira de braos --, que algum o agarrava por trs e o puxava. Um homem gordo de rosto cinzento olhava-o como se ele fosse um assassino. Conseguiu libertar-se com presena de esprito e, agarrando na caixa de um pulo, saiu com ela porta fora. No corredor, pareceu-lhe que o vice-mordomo, que vinha a subir as escadas, o tinha visto. Isso era mau. Como que iria provar que viera cumprindo ordens do milorde com vista realizao de uma experincia importante? O velho estava inteiramente

  • nas mos dos mdicos -- assim o mostravam as janelas fechadas do seu quarto de cama. Viu efectivamente um criado atravessar o ptio na direco dos estbulos. Resolveu privar-se da ceia e escondeu-se, depois de ter levado a galinha para a cave, no celeiro para forragem. :, O inqurito que pendia sobre ele provocou-lhe um sono inquieto. Foi a medo que, na manh seguinte, saiu do esconderijo. Ningum se preocupava com ele. Reinava no ptio uma terrvel azfama. Milorde tinha morrido de madrugada. O rapaz andou todo o dia como se tivesse recebido uma pancada na cabea. Tinha a sensao de no se poder consolar da perda do seu professor. Quando, ao fim da tarde, desceu cave com uma terrina cheia de neve, a sua preocupao transferiu-se para a experincia que no tinha sido concluda, e derramou lgrimas sobre a caixa. Que seria da grande descoberta? Ao regressar ao ptio -- sentia os ps to pesados que olhou para as pegadas na neve para ver se no eram mais fundas do que habitualmente --, certificou-se de que os mdicos londrinos ainda no tinham partido. Os coches ainda ali estavam. Vencendo a sua averso, resolveu confiar-lhes a descoberta. Eram homens instrudos e deviam reconhecer o alcance da experincia. Foi buscar o pequeno caixote com a galinha e ps-se atrs do poo, bem escondido, at que por ali passou um dos senhores, baixote, que no infundia um medo excessivo. Adiantando-se, mostrou-lhe a caixa. A princpio, a voz ficou-lhe embargada na garganta, mas depois l conseguiu :, exprimir o que pretendia em frases descosidas. -- Milorde encontrou-a morta h seis dias, Excelncia. Enchemo-la de neve. Milorde achava que ela podia conservar-se fresca. Veja s! Est perfeitamente fresca. O baixote olhou admirado para a caixa. -- E que mais? -- perguntou. -- No est estragada -- disse o rapaz. -- Ah, sim -- disse o homem.

  • -- Veja -- insistiu o rapaz. -- Estou a ver -- disse o mdico, e abanou a cabea. Afastou-se, meneando a cabea. O rapaz ficou a olhar para ele pasmado. No era capaz de entender o homem baixo. Acaso o velho no pagara com a vida o facto de ter descido do carro com aquele frio todo para fazer a experincia? Recolhera a neve do cho com as prprias mos. Isso era um facto irrecusvel. Voltou com passos lentos para a porta da cave, mas parou pouco antes de a alcanar, deu rapidamente meia volta e correu para a cozinha. Foi encontrar o cozinheiro muito atarefado, porque se esperavam convidados das redondezas para o jantar do velrio. -- O que queres tu com essa ave? -- resmungou zangado o cozinheiro. -- Est completamente gelada! -- No tem importncia -- disse o rapaz. -- Milorde disse que no tinha importncia. :, O cozinheiro fitou-o por momentos com ar ausente, dirigiu-se depois com andar pesado para a porta com uma grande frigideira na mo, porventura para deitar fora alguma coisa. O rapaz seguiu-o, solcito, com a caixa. -- No se pode tentar? -- perguntou ele com insistncia. O cozinheiro perdeu a pacincia. Agarrou na galinha com as mos grossas e arremessou-a com mpeto para o ptio. -- No tens mais nada em que pensar? -- berrou, fora de si. -- E com a morte de Sua Senhoria! Furioso, o rapaz pegou na galinha e afastou-se com ela. Os dois dias seguintes foram ocupados com as cerimnias fnebres. Teve de atrelar e desatrelar muitos cavalos e quase dormia de olhos abertos quando, de noite, ainda ia substituir a neve dentro da caixa. Parecia-lhe que no havia qualquer esperana -- a nova era chegara ao fim.

  • Mas ao terceiro dia, no dia do funeral, lavado de fresco e com o seu melhor fato, sentiu que seu estado de esprito tinha mudado. Estava um belo e ameno tempo de Inverno, e ouviam-se os sinos da aldeia. Animado por uma nova esperana, foi cave inspeccionou demorada e cuidadosamente :, a galinha morta. No conseguia descobrir um nico sinal de putrefaco. Com todo o cuidado, acondicionou o animal morto dentro da caixa, encheu-a de neve imaculada, p-la debaixo do brao e ps-se a caminho da aldeia. Assobiava contente quando entrou na cozinha baixa da av. Ela tinha-o criado, pois os pais tinham-lhe morrido muito cedo, e merecia a sua confiana. Sem mostrar logo o contedo da caixa, contou velha, que se estava a aprontar para o funeral, a experincia de milorde. Ela ouviu-o com pacincia. -- Mas isso toda a gente sabe -- disse ela ento. -- As coisas ficam duras com o frio e conservam-se durante algum tempo. O que que isso tem de especial? -- Eu acho que ainda se pode comer -- respondeu o rapaz, esforando-se por aparentar a maior indiferena. -- Comer uma galinha morta h uma semana? Mas isso um veneno! -- Porqu? Se no se alterou desde que morreu? E morreu atropelada pelo carro do milorde, por isso estava boa. -- Mas por dentro, por dentro est estragada! -- disse a velha, perdendo um pouco a pacincia. -- No acredito -- disse o rapaz com firmeza, com os olhos claros fitos na galinha. :, -- Por dentro teve sempre neve. Acho que vou coz-la. A velha zangou-se. -- Tu vais comigo ao funeral -- disse ela terminantemente. -- Sua Senhoria fez por ti o suficiente, penso eu, para que te sintas na obrigao de acompanhar bem comportado o seu caixo.

  • O rapaz no respondeu. Enquanto ela punha na cabea o leno preto de l, tirou a galinha da neve, soprou os ltimos vestgios de neve que ainda a salpicavam e colocou-a sobre duas achas de lenha diante do fogo para que descongelasse. A velha no voltou a dar-lhe ateno. Quando ficou pronta, pegou-lhe na mo e saiu com ele resolutamente porta fora. Ele acompanhou-a obedientemente um bom bocado. Havia mais gente a caminho do enterro, homens e mulheres. De repente, o rapaz soltou um grito de dor. Tinha enfiado o p num buraco da neve. Tirou-o com uma careta de dor, dirigiu-se a p-coxinho para um marco e sentou-se a esfregar o p. -- Torci o p -- disse ele. A velha olhou-o desconfiada. -- Podes bem andar -- disse ela. -- No posso -- respondeu ele, mal-humorado. -- Mas se no acreditas, senta-te ao p de mim at que eu fique melhor. :, A velha sentou-se, sem dizer palavra, junto dele. Passou-se um quarto de hora. Continuavam a passar habitantes da aldeia, embora em nmero cada vez menor. E eles de ccoras, obstinadamente, na berma do caminho. A velha disse ento com ar srio: -- Ele no te ensinou que po se deve mentir? O rapaz no respondeu. A velha levantou-se com um suspiro. O frio era demasiado para ela. -- Se no apareceres dentro de dez minutos -- disse ela --, vou dizer ao teu irmo, que te h-de dar um bom par de aoites. E fez-se de novo ao caminho, estugando o passo para no perder a orao fnebre. O rapaz esperou que ela estivesse a uma certa distancia, e levantou-se ento lentamente. Voltou para trs, mas olhava muitas vezes por cima do ombro e ainda coxeava um pouco.

  • S quando uma sebe o ocultou da velha, que recomeou a andar normalmente. Na cabana, sentou-se junto da galinha, que observou com ansiedade. Ia coz-la numa panela com gua e comer uma asa. Veria ento se estava ou no envenenada. Estava ainda sentado quando ecoaram ao longe trs tiros de canho. Foram disparados em honra de Francis Bacon, baro de :, Verulam, visconde de Santo Albano, antigo lorde-chanceler de Inglaterra, objecto de escndalo para no poucos dos seus contemporneos, mas que tambm soube despertar em muitos o entusiasmo pelas cincias teis e proveitosas. O Capote do Herege Giordano Bruno, o homem de Nola, que a Inquisio romana mandou queimar na fogueira no ano de 1600 por heresia, geralmente considerado um grande homem, no s devido s suas hipteses ousadas, que depois se provou serem verdadeiras sobre os movimentos dos astros, como tambm devido sua atitude corajosa perante a Inquisio, qual ter dito: "Vs pronunciais a sentena contra mim talvez com mais receio do que eu a escuto." Quem ler as suas obras e se debruar tambm sobre o seu comportamento em sociedade, no poder deixar de consider-lo um grande homem. H, porm, uma histria capaz de aumentar ainda mais a nossa admirao por ele. _ a histria do seu capote. Para tanto importa saber como que ele caiu nas garras da Inquisio. Um seu patrcio veneziano, um tal Mocenigo, :, convidou o sbio para sua casa, para que ele lhe ensinasse fsica e mnemotecnia. Hospedou-o durante alguns meses e, como contrapartida, recebeu os ensinamentos pretendidos. Mas, em vez de uma iniciao na magia negra, como esperava, apenas recebeu lies de fsica. Ficou por conseguinte muito desapontado, pois esses conhecimentos para nada lhe serviam. Lamentou os gastos que fizera com o hspede. Exortou-o vrias vezes em tom srio para que finalmente lhe transmitisse os conhecimentos secretos e rendosos que um homem to famoso tinha por fora de possuir, e como isso de nada lhe valesse, denunciou-o por carta Inquisio. Disse na carta que aquele homem mau e ingrato falara mal de Cristo na sua presena, dissera que os frades eram uns asnos e que estupidificavam o povo, e, alm disso, afirmava que existia, contrariamente ao que

  • vem na Bblia, no apenas um Sol, mas um nmero incontvel deles, etc., etc. Ele, Mocenigo, tinha-o fechado no sto e solicitava que o viessem prender o mais depressa possvel. Os funcionrios chegaram a meio da noite de domingo para segunda-feira e levaram o sbio para as masmorras da Inquisio. Isto passou-se numa segunda-feira, 25 de Maio de 1592, pelas 3 horas da madrugada, :, e desde essa data at ao dia em que o ataram sobre a fogueira, a 17 de Fevereiro de 1600, nunca mais o homem de Nola saiu dos calabouos da Inquisio. Durante os oito anos que durou o terrvel processo, lutou pela vida sem desfalecimento, mas o combate que travou no primeiro ano em Veneza contra a sua extradio para Roma foi, talvez, o mais desesperado de todos. Foi nessa altura que ocorreu a histria com o capote. No Inverno de 1592, ele tinha mandado fazer, quando ainda vivia num hotel, um espesso capote a um alfaiate chamado Gabriele Zunto. Quanto foi preso, ainda a pea de roupa no fora paga. Ao saber da notcia da priso, o alfaiate correu a casa do senhor Mocenigo perto de S. Samuel a apresentar a conta. Tarde de mais. Um criado do Sr. Mocenigo apontou-lhe a porta. "_j pagamos o suficiente a esse aldrabo!", gritou ele da soleira da porta com voz to exaltada que alguns transeuntes se viraram para trs. "O melhor talvez dirigir-se ao Tribunal do Santo Ofcio e dizer o que se passa entre si e esse herege." O alfaiate ficou especado no meio da rua, assustado. Um bando de garotos da rua ouvira toda a conversa, e um deles, um petiz andrajoso e cheio de pstulas, atirou-lhe :, uma pedra. Uma mulher pobremente vestida saiu at de uma porta e deu-lhe uma bofetada, mas Zunto, que era velho, apercebeu-se claramente de que era perigoso "ter alguma coisa a ver com esse herege". Apressou-se a dobrar a esquina olhando timidamente em volta e, fazendo um grande desvio, seguiu para casa. No contou nada do sucedido mulher, que andou uma semana intrigada com o estado de abatimento do marido. Mas a 1 de Junho ela descobriu, ao transcrever as contas, que havia um capote que no fora pago por um homem cujo nome andava na boca de toda a gente, pois o homem de Nola era o assunto de todas as conversas na cidade. Corriam os mais terrveis boatos sobre a sua maldade. Ele no s arrastara o casamento pela lama,

  • tanto em livros como em conversas, como tambm tinha chamado charlato ao prprio Cristo e dissera as coisas mais disparatadas sobre o Sol. O que batia certo com o facto de ele no ter pago o capote. A boa mulher no tinha a mnima vontade de arcar com este prejuzo. Depois de uma violenta discusso com o marido, a septuagenria dirigiu-se com as suas melhores roupas ao edifcio do Tribunal do Santo Ofcio e, de cenho carregado, exigiu os trinta e dois escudos que lhe devia o herege preso. :, O funcionrio com quem ela falou tomou nota da queixa e prometeu tratar do assunto. Zunto no tardou a receber uma contraf e, trmulo e cambaleante, apresentou-se no temvel edifcio. Com grande espanto seu, no foi interrogado, mas apenas informado de que o seu crdito seria tomado em considerao quando da regularizao dos assuntos financeiros do preso. O funcionrio disse-lhe, no entanto, que no acalentasse muitas esperanas. O velho ficou to contente por se ver livre de apuros com tamanha facilidade que agradeceu cheio de humildade. Mas a mulher no ficou satisfeita. Para compensar o prejuzo no bastava que o marido renunciasse ao seu quartilho da noite e que ficasse a coser at altas horas. Havia dvidas que tinham de ser pagas ao vendedor de fazendas. Ela vociferou na cozinha e pelo ptio que era uma vergonha prender um criminoso antes dele ter pago o que devia. Estava disposta a ir at ao Santo Padre, em Roma, se fosse necessrio, para receber os seus trinta e dois escudos. "Ele no precisa de capote na fogueira", bramava ela. Contou ao confessor o que lhe tinha acontecido. Este aconselhou-a a exigir que pelo menos lhe devolvessem o capote. Ela considerou isso como o reconhecimento por parte de uma autoridade eclesistica da existncia de um direito e declarou que no se satisfazia com o capote, que por certo j fora usado e que alm disso tinha sido feito por medida. Tinha de receber o dinheiro. Como o zelo a levasse a elevar um pouco a voz, o padre p-la na rua. Isto trouxe-a um pouco razo e passou algumas semanas mais serena. No transpirou mais nada do edifcio da Inquisio sobre o caso do herege preso. Dizia-se no entanto em voz baixa que os interrogatrios traziam luz crimes monstruosos. A velha dava ouvidos vidos a todo esse palavrrio. Era para ela uma tortura ouvir dizer que o caso do herege ia mal. Nunca mais ele seria libertado para poder pagar as suas dvidas. l no conseguia dormir e, em Agosto, quando o calor acabou por lhe dar cabo dos nervos, comeou a apresentar as suas queixas com grande soltura de lngua

  • nas lojas onde ia comprar coisas e diante dos clientes que vinham provar. Insinuava que os padres cometiam um pecado ao no ligarem importncia s justas exigncias de um pequeno arteso. Os impostos eram pesados e o preo do po tinha h pouco aumentado outra vez. Uma manh, um funcionrio conduziu-a ao edifcio do Tribunal do Santo Ofcio onde a admoestaram insistentemente para que acabasse com o palavrrio. Perguntaram-lhe :, se ela no tinha vergonha de, s por causa de uns escudos, andar a apregoar aos quatro ventos um processo do foro eclesistico da maior gravidade. Deram-lhe a entender que dispunham de toda a espcie de meios para lidar com gente como ela. Isso resultou durante uns tempos, se bem que ficasse vermelha de clera sempre que se lembrava da expresso "s por causa de uns escudos" que um frade gluto proferira. Mas constou em Setembro que o Grande Inquisidor em Roma tinha exigido a extradio do homem de Nola. Tratava-se disso na Signoria. O municpio discutiu animadamente este pedido de extradio, e a opinio foi em geral contrria. As corporaes no queriam que tribunais romanos se sobrepusessem a elas. A velha estava fora de si. Queriam agora mandar o herege para Roma, sem ele ter pago-as suas dvidas? Era o cmulo. Mal tinha ouvido a inacreditvel notcia, e j ela corria, sem perder tempo a vestir uma saia melhor, para o edifcio do Tribunal do Santo Ofcio. Foi desta vez recebida por um funcionrio superior que, curiosamente, mostrou muito maior boa vontade em relao a ela do que os funcionrios anteriores. Era quase da idade dela e ouviu as suas queixas :, com deferente pacincia. Quando ela terminou, perguntou-lhe, depois de uma pequena pausa, se queria falar com Bruno. A velha disse logo que sim. Marcaram-lhe um encontro para o dia seguinte. Nessa manh, veio ao seu encontro, num quarto minsculo com janelas gradeadas, um homem pequeno, magro, com uma barba rala e escura, que lhe perguntou cortesmente o que que ela pretendia. Ela tinha-o visto em tempos, quando ele fora provar o capote, e conservara uma boa recordao do seu rosto, mas agora no o reconheceu imediatamente. As aflies dos interrogatrios deviam t-lo alterado. Ela apressou-se a dizer:

  • -- O capote. O senhor no pagou o capote. Ele fixou-a, surpreendido, durante alguns segundos. Recordou-se depois, e perguntou em voz baixa: -- Quanto lhe devo? -- Trinta e dois escudos -- disse ela. -- Mas o senhor recebeu a conta. Ele voltou-se para o funcionrio grande e gordo que assistia entrevista e perguntou-lhe se ele sabia quanto dinheiro fora entregue no Tribunal do Santo Ofcio juntamente com os seus haveres. O homem no sabia, mas prometeu informar-se. -- Como est o seu marido? -- perguntou o prisioneiro, voltando-se de novo para :, a velha, como se o assunto ficasse assim em andamento, e se pudessem estabelecer relaes normais e estivessem criadas as condies para uma visita banal. E a velha, perturbada com a amabilidade do homenzinho, murmurou que ele estava bem e at acrescentou mais qualquer coisa sobre o seu reumatismo. Ela voltou passados dois dias ao edifcio do Santo Ofcio, pois parecera-lhe conveniente dar tempo ao homem para se informar. Foi efectivamente autorizada a falar uma vez mais com ele. Teve, no entanto, de esperar no minsculo quarto com janela gradeada mais de uma hora, pois ele estava a ser interrogado. Ele entrou com um ar extremamente fatigado. Como no havia ali nenhuma cadeira, encostou-se um pouco parede. Mas foi logo direito ao assunto. Disse-lhe com voz muito sumida que infelizmente no estava em condies de lhe pagar o capote. No tinham encontrado dinheiro entre as suas coisas. Ela no devia, no entanto, perder toda a esperana. Ele tinha reflectido e ocorrera-lhe que devia haver dinheiro que lhe pertencia em casa de um homem que lhe imprimia os livros na cidade de Francoforte. Ia escrever-lhe, se lho permitissem. Pediria essa licena logo no dia seguinte. Hoje, tinha-lhe parecido :, durante o interrogatrio que o ambiente no era propcio. Por essa razo no tinha querido perguntar e, porventura, deitar tudo a perder.

  • A velha fitava-o com olhos penetrantes enquanto ele falou. Ela conhecia os subterfgios e as promessas dos devedores desleixados. Estavam-se nas tintas para as suas obrigaes, e quando se lhes deva um aperto reagiam como se remexessem cus e terra. -- Para que que precisava de um capote, se no tinha dinheiro para o pagar? -- perguntou ela com dureza. O prisioneiro acenou com a cabea, como que a dizer-lhe que lhe seguia o fio do pensamento. Respondeu: -- Ganhei sempre dinheiro com livros e com o ensino. Pensei, assim, que tambm agora ganharia. E pensei que precisava do capote, pois achava que continuaria em liberdade. Disse isto sem qualquer azedume, manifestamente apenas para que ela no ficasse sem resposta. A velha voltou a examin-lo dos ps cabea, furiosa, mas com a sensao de que no se devia aproximar dele. Sem dizer palavra, deu meia volta e saiu do quarto. -- Quem que vai mandar dinheiro a um homem a quem a Inquisio ps um processo? -- disse ela zangada para o marido, :, quando os dois j estavam deitados. Ele estava agora tranquilo quanto posio das autoridades eclesisticas a seu respeito, mas desaprovava as incansveis tentativas da mulher para reaver o dinheiro. -- Ele tem agora outras coisas em que pensar -- murmurou ele. Ela no disse mais nada. Passaram-se meses sem que o triste caso conhecesse qualquer evoluo. No princpio de _janeiro, soube-se que a Signoria estava a pensar em aceder ao desejo do papa e em extraditar o herege. E veio ento uma nova contraf para que os Zunto comparecessem no edifcio do Tribunal do Santo Ofcio. No se indicava a hora, pelo que a Sra. Zunto para l se dirigiu numa tarde. A sua ida foi inoportuna. O prisioneiro aguardava a visita do procurador da Repblica, a quem a Signoria solicitara um parecer sobre a extradio. Foi recebida pelo alto funcionrio que lhe tinha arranjado o primeiro encontro com o homem de Nola, e o ancio disse-lhe que o prisioneiro desejava falar-lhe, mas que ela devia ponderar se seria boa

  • altura, uma vez que o prisioneiro ia ter imediatamente uma entrevista da maior importncia. Ela limitou-se a dizer que lhe fizessem a ele a pergunta. :, Um funcionrio saiu e voltou com o prisioneiro. A conversa teve lugar na presena do alto funcionrio. Antes que o homem de Nola, que j da porta lhe sorria, pudesse dizer qualquer palavra, a velha exclamou: -- Porque se comporta desta maneira, se quer ser posto em liberdade? O homem ficou por instantes como que aparvalhado. Tinha, durante os ltimos trs meses, respondido a muitas perguntas e quase lhe passara da memria o final da conversa que tivera com a mulher do alfaiate. -- No me chegou dinheiro nenhum -- acabou ele por dizer. -- Escrevi duas vezes a pedir, mas no chegou nada. Pensei que a senhora talvez quisesse ficar com o capote. -- Eu j sabia que isto ia acontecer -- disse ela com desdm. -- E foi feito por medida e demasiado pequeno para a maioria das pessoas. O homem de Nola olhou contristado para a velha. -- Nisso que eu no pensei -- disse ele, e voltou-se para os padres: -- No seria possvel vender tudo o que tenho e dar o dinheiro a esta gente? -- Isso no ser possvel -- intrometeu-se o funcionrio grande e gordo que o fora buscar. -- O senhor Mocenigo reivindica direitos nessa matria. O senhor viveu muito tempo custa dele. :, -- Ele convidou-me -- respondeu, cansado, o homem de Nola. O ancio ergueu a mo. -- Isso no vem efectivamente a propsito. Penso que o capote deve ser devolvido. -- Mas o que que faremos com ele? -- perguntou, teimosa, a velha. O ancio corou um pouco. Disse devagar: -- Boa mulher, no lhe ficaria mal um pouco de indulgncia crist. O ru vai comparecer numa entrevista que poder significar para ele a vida ou a morte. A senhora dificilmente poder exigir que ele se interesse pelo seu capote.

  • A velha olhou para ele, insegura. Lembrou-se de repente do stio onde estava. Ponderou se no devia ir-se embora, quando ouviu atrs de si o prisioneiro dizer em voz baixa: -- Acho que ela o pode exigir. -- E quando ela se virou para ele, ele acrescentou: -- Tem de desculpar tudo isto. De maneira alguma pense que me indiferente o seu prejuzo. Vou apresentar um requerimento sobre o assunto. A um sinal do ancio, o funcionrio grande e gordo tinha sado da sala. Voltou ento, abriu os braos e disse: -- O capote no deu c entrada. O Mocenigo deve ter ficado com ele. O homem de Nola ficou visivelmente perturbado. Disse ento com firmeza: :, -- Isso no est certo. Vou apresentar queixa contra ele. O ancio abanou a cabea. -- Preocupe-se mas com a conversa que vai ter dentro de minutos. No posso tolerar que se fique aqui a discutir mais tempo por causa de uns mseros escudos. O sangue subiu cabea da velha. Permanecera silenciosa e amuada com os olhos fixos num canto do quarto, enquanto o homem de Nola falou. Mas perdeu de novo a pacincia. -- Uns mseros escudos! -- gritou. -- o ganho de um ms! Bem pode mostrar-se indulgente, j que o prejuzo no seu! Nesse momento um frade alto assomou porta. -- Chegou o procurador -- disse ele a meia voz, olhando com surpresa para a velha que gritava. O funcionrio grande e gordo pegou no homem de Nola pela manga e conduziu-o para fora. O prisioneiro olhou por cima do ombro magro para a mulher, at que transps a soleira da porta. Tinha o rosto magro muito plido.

  • A velha desceu transtornada as escadas de pedra do edifcio. No sabia o que havia de pensar. O homem acabou por fazer o que estava ao seu alcance. Ela no estava na oficina quando, uma :, semana mais tarde, o funcionrio grande e gordo veio trazer o capote. Mas escutou porta, e ouviu o funcionrio dizer: -- Ele preocupou-se efectivamente nos ltimos dias com o capote. Apresentou dois requerimentos, entre os interrogatrios e as entrevistas com as autoridades municipais, e por diversas vezes solicitou uma audincia com o nncio sobre este assunto. Conseguiu, finalmente. Mocenigo teve de devolver o capote. Ele, alis, bem o podia usar agora, pois vai ser extraditado e deve seguir ainda esta semana para Roma. Era verdade. Estava-se no fim de _janeiro. Histrias de Almanaque por Bertold Brecht _publicao em 3 volumes _s. _c. da _misericrdia do _porto _c_p_a_c -- _edies _braille _r. do _instituto de _s. _manuel 4050-308 __porto 1999 _segundo _volume _histria da _literatura Bertold Brecht

  • Histrias de Almanaque Traduo de Rafael Gomes Filipe _r_b_a _editores _c original: Vega (1992) _c da presente edio: Editores Reuni- dos, Lda., 1994 e _R_B_A Edito- res, S._A. __isbn: 972-747-132-3 Depsito legal: 80088/94 Depsito legal: M. 16.984- -1995 Reviso grfica: Lus Mi- lheiro Fotocomposio: Espao 2 Grfico, Lisboa Impresso e encadernao: Mateu Cromo Artes Gr- ficas, S._A., (Pinto) Madrid Printed in Spain - Im- presso em Espanha

  • _csar e o _seu _legionrio Desde o princpio de Maro que o ditador sabia que a ditadura tinha os dias contados. Um forasteiro que chegasse de uma das provncias acharia talvez a capital mais imponente do que nunca. A cidade crescera extraordinariamente; uma variegada mistura de gentes enchia os alojamentos superlotados; a City fervilhava de projectos; os negcios decorriam normalmente; os escravos eram baratos. O regime parecia ter-se consolidado. O ditador acabava de ser nomeado ditador vitalcio e preparava agora *o mais ambicioso dos seus empreendimentos*, a conquista do Oriente, a campanha h tanto tempo esperada contra os Persas, uma verdadeira segunda campanha de Alexandre. Csar sabia que no sobreviveria quele ms. O seu poder atingira o auge, pelo que a seus ps se escancarava o abismo. :, A grande sesso do Senado em 13 de Maro, em que o ditador tomara posio num discurso contra a "atitude ameaadora do governo persa" e informara ter reunido em Alexandria, capital do Egipto, um exrcito, deparara com uma atitude do Senado estranhamente indiferente, fria at. Durante o discurso circulou entre os senadores uma ominosa lista das somas que o ditador depositara em bancos hispnicos sob um nome falso: *_O ditador transfere os seus bens particulares (110 milhes) para o estrangeiro!* Acaso no acreditava na sua guerra? Ou a sua inteno seria, no uma guerra contra a Prsia, mas uma guerra contra Roma? O Senado autorizou os crditos de guerra, por unanimidade, como habitualmente. No palcio de Clepatra, que o centro de todas as intrigas relacionadas com o Oriente, esto reunidos alguns lderes militares. A rainha egpcia a verdadeira inspiradora da guerra prsica. Bruto e Cssio, bem como outros jovens oficiais felicitam-na pelo triunfo da poltica de guerra no Senado. A ideia dela, de fazer circular a ominosa lista, devidamente apreciada e objecto de risos. O ditador ir ter uma surpresa quando quiser levantar na City os crditos concedidos... Csar, a quem no escapara a frieza do Senado apesar de toda a sua docilidade, :, tem efectivamente de constatar tambm na City uma atitude altamente irritante. Na cmara de comrcio, ele conduziu os financeiros at um mapa gigantesco pendurado na parede e explicou-lhes os seus planos de campanha para a Prsia e a ndia. Os

  • cavalheiros dizem que sim com a cabea, mas comeam depois a falar da Glia, que j fora conquistada h anos, mas onde estalaram de novo revoltas sangrentas. A "Ordem Nova" no funciona. E surge a proposta: no seria prefervel comear a nova guerra no Outono? Csar no responde, e abandona bruscamente a sala. Os cavalheiros erguem os braos fazendo a saudao romana. Algum murmura: "O homem tem os nervos abalados." Ser que eles de repente j no querem mais guerras? As interrogaes no podem fazer esquecer um facto desconcertante: as indstrias de armamento preparam febrilmente a guerra; as suas aces sobem na vertical; o preo dos escravos tambm sobe... O que que isso significa? Eles querem a guerra do ditador, mas recusam-lhe o dinheiro para tanto? Ao fim da tarde, j Csar sabe o que isso significa: *_Eles querem a guerra, mas no a querem com ele*. Ordena a priso de cinco banqueiros; :, est porm muito abalado, beira de uma crise nervosa, com grande espanto do seu ajudante, que o pudera ver perfeitamente calmo no meio de batalhas sangrentas. Fica um pouco mais tranquilo com a chegada de Bruto, de quem ele gosta muito. Todavia, no se sente com foras suficientes para consultar um *dossier* que o seu homem de confiana na City lhe enviou. Contm *nomes* de conjurados, entre eles o de Bruto. Preparam um atentado contra a sua vida. O receio de encontrar tambm no volumoso *dossier* ("Ele to espesso, to horrivelmente espesso") nomes familiares leva o ditador a no o abrir. Bruto tem necessidade de um copo de gua, quando Csar finalmente o entrega por abrir ao seu secretrio -- para uma leitura posterior. Reina a maior agitao no palcio de Clepatra, quando Bruto, plido e perturbado, informa da existncia de um *dossier* sobre a conspirao. Csar pode l-lo a todo o momento. Clepatra tranquiliza a custo os presentes, apelando para a sua honra de soldados, e ela prpria d a ordem para fazer as malas. Entretanto, o comissrio de polcia compareceu junto de Csar para informar. o terceiro neste ano, que vai apenas em dois meses, tendo os seus predecessores sido demitidos por envolvimento em conspiraes. :, O comissrio garante a segurana pessoal do ditador -- apesar da agitao provocada na City pela priso dos banqueiros, a favor de quem, alis, se movem crculos influentes. A guerra prsica,

  • de cujo prximo incio o comissrio parece estar convencido, provocar em sua opinio o emudecimento da oposio. Enquanto ele expe as extensas medidas de proteco que considera necessrias, Csar, trespassando-o com o olhar, tem como que a viso da sua morte, pois sabe que morrer. Far-se- conduzir at ao Prtico de Pompeu, descer do carro, atender peticionrios, dirigir-se- para o Templo, procurar com os olhos e cumprimentar este ou aquele senador e sentar-se- numa cadeira. Desenrolar-se-o algumas cerimnias, que ele contempla antecipadamente. Depois, os conjurados -- que na viso de Csar no tm rostos, apenas manchas brancas no lugar dos rostos -- avanaro para ele sob um pretexto qualquer. Algum lhe dar a ler qualquer coisa, ele estender a mo para o documento, eles cairo sobre ele, *ele morrer*. No, j no haver para ele qualquer guerra no Oriente. A maior das suas empresas j no ter lugar: *bastaria para tanto que ele tivesse embarcado vivo num navio* que o conduzisse para junto das suas tropas em :, Alexandria, o nico stio onde talvez estivesse em segurana. Quando, alta noite, as sentinelas vem entrar alguns senhores nos aposentos do ditador, continuam a pensar que se trata de generais e de inspectores militares que vm discutir a guerra prsica. Mas trata-se apenas de mdicos -- o ditador precisa de um somnfero. O dia seguinte, 14 de Maro, decorre agitado e penoso. Quando dava o seu passeio matinal a cavalo no picadeiro, Csar teve uma grande ideia. O Senado e a City esto contra ele, e depois? *_Ele voltar-se- para o povo!* No foi ele outrora o grande tribuno da plebe, a esclarecida esperana da Democracia? Chegou at a haver um programa gigantesco com que ele pregou um susto de morte ao Senado -- parcelamento das herdades, bairros econmicos para os pobres. A ditadura? Ponto final na ditadura! O grande Csar abdicar, retirar-se- para a vida privada, por exemplo em Espanha... Foi um homem cansado o que montou a cavalo e se deixou arrastar, ablico, volta do picadeiro; mas depois aprumou-se (ao ocorrerem-lhe determinados pensamentos relacionados com o Povo) cheio de energia, puxou as rdeas, chamou a si o cavalo e deixou-o banhado em suor; foi um homem novo e recomposto que saiu do picadeiro. :,

  • Bem poucos dos que participam no grande jogo se sentem hoje de manh to confiantes como Csar... Os conspiradores aguardam a priso. Bruto dispe sentinelas nos seus jardins; em diversos pontos foram aparelhados cavalos. Em muitas casas so queimados papiros. No seu palcio junto do Tibre, Clepatra prepara-se para o dia da sua morte. Neste momento, j h muito que Csar ter lido o *dossier*. Ela arranja-se com esmero, liberta os escravos, distribui presentes. Os esbirros no tardaro a chegar. A oposio atacou ontem. Hoje, deve seguir-se o contra-ataque do regime. O despertar do ditador fornece uma indicao sobre a natureza da resposta. Na presena de vrios senadores, Csar fala do seu novo plano. Ir anunciar eleies e abdicar. O seu santo-e-senha: *_Contra a guerra!* O cidado romano ir conquistar solo itlico, no persa. Pois como vive o cidado romano, o senhor do Mundo? Csar descreve-o. So rostos petrificados os que assistem assustadora descrio da misria em que vive o comum cidado romano. O ditador deixou cair a mscara; quer sublevar a populaa. Meia hora depois, j toda a City o saber. As inimizades entre a City e o Senado, entre os banqueiros e os oficiais :, dissipar-se-o, e todos estaro de acordo num ponto: fora com Csar! Csar sabe, mesmo antes de acabar de falar, que cometeu um erro no seu discurso. E evidente que no deveria ter sido to sincero. Muda subitamente de tema e f-lo com o seu comprovado encanto. Os seus amigos nada tero a recear. Os seus bens esto seguros. Ir providenciar para que os caseiros recebam terras, mas isso ser da competncia do Estado e far-se- com meios estatais. O prximo Vero ser magnfico -- eles sero seus hspedes em Baja. Depois de eles terem agradecido o convite e de se terem retirado, Csar ordena a demisso e a deteno do comissrio de polcia que logo na noite anterior soltara novamente o banqueiro que fora preso. A seguir, envia o seu secretrio a sondar o ambiente que reina nos crculos democrticos. Tudo depende agora da atitude do povo. Os crculos democrticos so propriamente os polticos das h muito dissolvidas associaes de artfices, que nos bons tempos da Repblica decidiam as eleies. A ditadura de Csar destruiu este aparelho, outrora poderoso, e de uma parte dos seus

  • membros constituiu uma guarda civil, as chamadas associaes de rua. Tambm estas foram dissolvidas. Agora, porm, o :, secretrio Titus Rarus procura os polticos plebeus para sondar a sua disposio. Fala com um antigo chefe da corporao dos caiadores, depois com um antigo escrutinador que agora taberneiro. Os dois homens mostram-se extremamente cautelosos, avessos a falarem de poltica. Remetem-no para o velho Carpo, do antigo clube dos operrios da construo, um homem que poder exercer a maior influncia, *j que est na cadeia*. Entretanto, Csar recebeu uma visita de vulto: Clepatra. A rainha no conseguiu suportar a tenso. Precisa de saber qual a sorte que lhe est reservada. Est preparada para a morte, todas as artes que do Egipto foram mobilizadas para realar a sua beleza em trs continentes. O ditador parece no ter pressa. Ele mostra-se para com ela, como sempre nos ltimos anos, de uma cortesia requintada, sempre disposto a dar um conselho, insinuando de quando em vez que poderia voltar imediatamente a ser seu amante caso ela o desejasse, incomparvel apreciador que ele da beleza feminina. Mas, nem uma palavra sobre poltica. Sentam-se no *atrium* e do de comer aos peixes dourados, enquanto falam do tempo. Ele convida-a a passar o Vero em Baja... Ela no fica tranquila. Provavelmente o que se passa que ele no ter concludo :, ainda os preparativos para a resposta. Ela retira-se afivelando uma mscara rgida. Csar acompanha-a at liteira, depois do que se dirige para os escritrios onde os juristas e os secretrios trabalham febrilmente no projecto da nova lei eleitoral. O projecto deve ser mantido secreto: ningum foi autorizado a deixar o palcio. *_Esta Constituio ser a mais livre que Roma alguma vez conheceu.* Tudo depende agora efectivamente do povo... Uma vez que Rarus tarda estranhamente em regressar -- o que poder haver a discutir, se os plebeus devem agarrar com ambas as mos a oportunidade nica que o ditador agora lhes oferece? --, Csar decide ir assistir s corridas de ces. Sente a necessidade de contactar ele prprio com o povo, e onde se encontra o povo nas corridas de ces. A arena ainda no est completamente cheia. Csar no se dirige para o grande camarote, prefere tomar lugar mais acima, no meio da multido. No tem de recear que o reconheam, pois as pessoas sempre o avistaram apenas de longe. Csar observa durante algum tempo, e aposta depois num determinado co. Veio sentar-se um homem junto dele a quem ele explica as razes que o levaram a apostar

  • precisamente naquele co. O homem faz :, que sim com a cabea. Numa fila mais frente gera-se uma pequena discusso. Parece que alguns espectadores se sentaram nos lugares errados, donde recm-chegados os querem expulsar. Csar procura meter conversa com os vizinhos, mesmo sobre poltica. Estes respondem-lhe com monosslabos, mas ele no tarda a dar-se conta de que eles sabem quem ele : pois fora sentar-se no meio dos agentes da sua polcia secreta. Irritado, levantou-se e saiu. De resto, o co em quem ele apostou acaba de ganhar... Em frente da arena encontra o secretrio, que vinha sua procura. No traz boas notcias. Ningum quer negociar. O medo e o dio imperam por toda a parte. Em especial este ltimo. O homem em quem depositam confiana Carpo, o operrio da construo. Csar ouve com ar sombrio. Sobe para a liteira e ordena que o conduzam Priso dos Mamertinos. Quer falar com Carpo. Tm de ir primeiro procura de Carpo, de tal modo so numerosos os antigos presos plebeus que apodrecem s dzias naquelas casamatas. Ao cabo de algumas idas e vindas l conseguem iar com cordas de um buraco o operrio da construo Carpo, e o ditador pode ento falar com o homem em quem o povo de Roma confia. Sentam-se um ao lado do outro e observam-se. :, Carpo um homem velho, talvez no tenha mais idade do que Csar, em todo o caso parece ter oitenta anos. Muito velho, muito caduco, mas no vencido. Csar expe-lhe sem rodeios o seu plano inaudito de restabelecer a Democracia, de anunciar eleies, de se retirar para a vida privada, etc., etc. O velho no abre a boca. No diz que sim nem diz que no, guarda silncio. Olha fixamente Csar sem produzir qualquer som. Quando Csar se retira, baixam-no de novo com cordas at ao seu buraco. O sonho da Democracia desvaneceu-se. muito claro: a haver uma revoluo, no querem faz-la com ele. Conhecem-no demasiado bem. Quando o ditador regressa a casa, o secretrio tem dificuldade em fazer compreender s sentinelas quem ele . So guardas novos. O novo comissrio afastou os guardas romanos e destacou para o palcio um contingente negro. Os negros so mais seguros, no compreendem o latim, pelo que ser mais difcil sublev-los, e tambm ser mais improvvel que se deixem contagiar pelo ambiente da cidade. Csar j sabe ento qual o ambiente que reina na cidade...

  • A noite decorre inquieta no palcio. Csar levanta-se vrias vezes da cama e :, vagueia pelo imenso palcio. Os negros bebem e cantam. Ningum se preocupa com ele, ningum o reconhece. Ele escuta por momentos as suas canes tristes e dirige-se depois para a cavalaria a visitar o seu cavalo preferido. Ao menos o cavalo reconhece-o... A Roma eterna dorme um sono inquieto. Diante dos portes dos albergues de noite esto ainda de p artfices arruinados procura de trs horas de sono e lem grandes cartazes meio arrancados que angariavam soldados para uma guerra no Oriente que j no ir ter lugar. Dos jardins da *jeunesse dore* desapareceram as sentinelas da noite anterior. Dos palcios saem vozes embriagadas. Por um porto situado a sul da cidade sai uma pequena cavalgada: a rainha do Egipto abandona embuada a capital... As duas da manh Csar lembra-se de qualquer coisa, levanta-se e dirige-se em traje de dormir para a ala do palcio onde os juristas continuam a trabalhar na nova Constituio. Ordena-lhes que vo dormir. Pela manh, Csar informado de que o seu secretrio Rarus foi assassinado durante a noite. As suas conversas com os polticos plebeus foram pelos vistos escutadas por agentes da polcia, e a coberto da escurido mos poderosas aproveitaram a oportunidade. As mos de quem? As listas com :, os nomes dos conspiradores, que estavam em seu poder, desapareceram. Ele foi assassinado no palcio, que assim deixou de ser um lugar seguro para os partidrios do ditador. O prprio ditador estar ali em segurana? Csar permanece de p muito tempo junto do catre, onde jaz o secretrio morto, o seu ltimo confidente, a quem precisamente essa confiana custou a vida. Ao sair do aposento chocou com ele um soldado da guarda embriagado, que no pediu desculpa. Csar olhou vrias vezes em volta com nervosismo, antes de descer as escadas. No trio, singularmente vazio -- ningum compareceu ao toque de alvorada --, deparou com um emissrio de Antnio; o cnsul e o seu sequaz mandam dizer-lhe que ele de modo algum deveria ir hoje ao Senado. A sua segurana pessoal estaria ali ameaada. Csar manda dizer a Antnio que no ir ao Senado. Ordena em vez disso que o conduzam a casa de Clepatra, passando por diante da longa fila de peticionrios madrugadores em frente do seu palcio. Talvez Clepatra financiasse a sua campanha. Nesse caso no precisaria nem da City nem do povo. Clepatra no se encontra em casa. A casa est fechada. Parece que ela se foi embora :, h muito tempo. Regressa ao palcio. O porto est estranhamente aberto. E

  • evidente que a guarda foi retirada. O senhor do Mundo inclina-se para fora da liteira e observa a sua casa, onde j no se atreve a entrar. Ele poderia reclamar de Antnio uma escolta. Mas desconfia de todas as escoltas. Melhor ser seguir caminho sem escolta; j no ter assim que a recear. E para onde se dirige ele? D uma ordem. Encaminha-se para o Senado. Segue recostado na liteira, sem olhar nem para a esquerda nem para a direita. Manda que o conduzam ao Prtico de Pompeu. Desce. Atende peticionrios. Entra no Templo. Procura com os olhos este ou aquele senador e cumprimenta-o. Senta-se na sua cadeira. Seguem-se algumas cerimnias. Depois, os conjurados, sob um pretexto qualquer, dirigem-se para ele. Deixaram de ter sobre os pescoos manchas b