MANA 20(1): 95-124, 2014BEM VIVER E PROPRIEDADE: O PROBLEMA DA
DIFERENCIAO ENTREOS XIKRIN-MEBNGKRE (KAYAP) Cesar
GordonPrlogoNassociedadesocidentaiscontemporneas,arelaoentrebemvivere
propriedade muitas vezes tida como autoevidente. Parece no haver
gran-des discordncias nas concepes correntes sobre sociedade e
economia de que o bem viver depende fundamentalmente de certos
tipos de propriedade ou, em ltima instncia, de determinados padres
mnimos de renda que garantiriam a propriedade de bens tidos como
fundamentais (Knight 1971; Canto 1985; Norton 1998; Frey 2002). A
expanso quase ilimitada e global do consumo parece ser o resultado
lgico e a realizao prtica dessa premissa. No apenas o bem viver,
mas tambm a prpria felicidade e a dignidade humana so vistas como
dependentes da propriedade de um conjunto de bens que garantiriam a
autonomia econmica, ajudando a constituir as pes-soas e as
subjetividades em nossas sociedades de consumo (Miller 1987). Mas
quando voltamos os olhos para o mundo indgena, especificamente na
direo das sociedades indgenas das terras baixas sul-americanas, o
que ocorrecomessaequao?possveldetectaralinoesequivalentesou anlogas
s de propriedade e bem viver? E se a resposta for positiva, de que
maneira essas noes, ou suas equivalentes, poderiam estar
articuladas na imaginao conceitual, moral e nas prticas indgenas?
Estas so questes complexas e difceis, e no sero certamente
resol-vidasaqui.Opresenteartigoapenasumaprimeiratentativaderefletir
sobrepropriedadeebemviveremumcontextoetnogrficoespecfico,a saber,
aquele dos Xikrin do Catet, grupo Mebngkre (Kayap), da Ama-znia
brasileira. Na primeira parte do artigo, dedico-me a esclarecer o
uso que fao da noo um tanto vaga de bem viver desde o ponto de
vista da etnografia mebngkre. Sugiro que ela pode ser expressa por
um conceito que carrega, ao mesmo tempo, dimenses ticas e estticas:
o conceito de belo ou bom (mejx), termo que j foi descrito por
diferentes etngrafos (Turner *BEM VIVER E PROPRIEDADE 961984; Lea
1986, 2012), e do qual eu mesmo j tratei em outra ocasio (Gordon
2011),masquejulgooportunoretomaraqui,juntamentecomoutrasno-es,igualmentepresentesnasformulaesxikrinrelacionadasaobem
viver,como,porexemplo,vergonhaourespeito(piam)eentendimento (kuma).
Pretendo sustentar que noes de bem viver devem ser articuladas com
um problema indgena filosfico e existencial de magnitude, a saber,
a questo da diferenciao. Colocado de maneira brusca, e como
argumento polmico a defender no restante do artigo, eu diria que
uma das definies do viver bem no mundo social mebngkre manter, em
todos os nveis da vida social, um determinado quociente de
diferenciao, ou ainda, o que a mesma coisa, no cair em um estado
geral de indiferenciao.
Nasegundaparte,tentorelacionarestaformulaocomaideiade propriedade,
ou de algo que, no contexto social xikrin-mebngkre, guarde analogia
ou funcione como equivalente da noo de propriedade.1 Sugiro
que,nocasomebngkre,atarefadeencontrarconceitoequivalente
propriedade de algum modo facilitada. Isto porque sabemos da
existncia de um conjunto de prerrogativas rituais, expresso pelos
termos nekrjx ou kukrdj, que faz parte de acervos familiares e
pessoais, como muito bem descreveu Vanessa Lea (1986, 2012), autora
que considerou pela primeira vez tais bens como um tipo de riqueza
da sociedade kayap. A hiptese a ser avanada que bem viver est
associado com o problema da diferen-ciao, e que esta, por sua vez,
em um plano sociolgico geral, vincula-se questo da propriedade
(especificamente quando se trata da propriedade cerimonial), uma
vez que podemos entender o sistema ritual como o meca-nismo bsico,
em nvel coletivo, de diferenciao na sociedade mebngkre. Assim, o
estabelecimento de um sistema de repartio de propriedade, de tipo
totmico, seria um importante mecanismo para evitar crises de
indife-renciao e, portanto, garantir o bem viver. Por fim, na ltima
parte, guisa de concluso, sugiro que o sistema ritual mebngkre
passou por mudanas importantes que, de certa maneira,
deslocaramumtipodediferenciaototmicaequiestatutrianadireo de um
tipo de diferenciao mais marcadamente hierrquica, na qual h
margemparaodesenvolvimentoderelaesrivalitriasnointeriordas
comunidades e entre elas. Este ltimo tipo de diferenciao j foi
descrito eanalisadopelosantroplogosqueestudaramosgruposmebngkre,e
podeserexpressopelaoposionativaentrebelosoudonosdenomes e
prerrogativas rituais (me mejx) versus comuns ou desprovidos de
bens cerimoniais de valor (me kakrit) (cf Turner 1984; Lea 1986;
Verswijver 1992). Essa mudana parece resultar naquilo que estou
chamando de crise ritual, a saber, um processo cismogentico
(Bateson 1958) de acelerao das di-BEM VIVER E PROPRIEDADE 97nmicas
rivalitrias, e de incapacidade crescente de diferenciao, levando
todo o sistema a um vis cada vez mais centrfugo, nos termos de
Fausto (2001), e marcado por um carter agonstico, expresso pelo que
os etngrafos chamaram de faccionalismo mebngkre. Bem viver e o
problema da diferenciao entre os MebngkreAntes de passar analise do
material etnogrfico, e sem qualquer preten-so de traar uma
genealogia do conceito de bem viver (ou wellbeing) na antropologia
de maneira geral,2 cabe um breve comentrio que nos ajude a situar o
problema desde a perspectiva da etnologia indgena amaznica. Luisa
Elvira Belande (2001), por exemplo, explorou de forma interessante
a centralidade das noes de buena vida e vivir bien na constituio
comunitria dos ndios Airo Pai, falantes de lngua tukano ocidental,
habi-tantes do norte do Peru. Mais recentemente, Vanessa Grotti
(2007) abordou o conceito de wellbeing em trabalho sobre os Trio e
os Wayana da Guiana. A autora demonstra que o conceito se situa no
campo de um conjunto de
fenmenosediscursosindgenasjtematizadospordiversosetnlogos
americanistas, cujas anlises foram classificadas por Eduardo
Viveiros de Castro (1996) sob o rtulo de economia moral da
intimidade. De fato, a noo de bem viver tem forte ressonncia com a
ideia de convivialidade, tal como aparece mais claramente formulada
por Joanna Overing, em especial na coletnea organizada junto com
Alan Passes (Overing & Passes 2000).
Rejeitandoaschamadasgrandesnarrativasmodernistassobrea
sociedade(2000:1),OveringePassessugeremqueomundoindgena amaznico
deve ser compreendido a partir do idioma da convivialidade, o qual,
segundo eles, define um modo de socialidade amaznico (2000:xiii).
Aconvivialidadeamaznicaconsiste,paraosautores,emelementosque podem
ser encontrados na tradio ocidental crist tomista (amizade,
liber-dade nas relaes pessoais, ausncia de coero, igualitarismo),
somados a elementos mais propriamente nativos (mas que certamente
se encontram tambm em variantes do romantismo ocidental), como a
busca por tranquili-dade, moral alta, afetividade desenvolvida, uma
metafsica da conexo entre humanos e no humanos, nfase no
parentesco, na partilha e na ddiva [...] uma propenso para a
informalidade [...] e uma intensa valorizao tica e esttica da
sociabilidade
(2000:xiii-xiv).Assim,poderamosconcluirque,naAmazniaindgena,acondio
de viver bem estaria relacionada a uma esttica e a uma moralidade
que valorizamossentimentosdepertena,asrelaesdecuidadocotidiano BEM
VIVER E PROPRIEDADE 98entre parentes, os afetos familiares, a
comensalidade, a partilha, a ddiva, a afabilidade, o suporte
emocional, a compaixo e a liberdade pessoal. Uma esttica e uma tica
estreitamente associadas ao fluxo da vida cotidiana e
aouniversodoparentescoprximoedaconvivnciantimadogrupode cognatos.Um
dos argumentos centrais de Overing e Passes consiste em opor este
estado de convivialidade a uma viso jural ou estrutural do mundo
ama-znico. Segundo os autores, os povos indgenas estariam pouco
preocupados com o aspecto formal ou institucional da vida social,
tendo pouco a dizer sobre papis, status, grupos corporados ou
hierarquias (2000:2). Eles estariam mais propensos a buscar uma
vida feliz e psicologicamente confortvel a partir da convivncia
cotidiana do que em construir estruturas sociais (2000). Nesse
sentido, fica clara a crtica de Overing e Passes a uma antropologia
conven-cional, por assim dizer, seja em sua verso funcionalista ou
estruturalista. como se o pensamento sociolgico e o estruturalista
no estivessem aptos a compreender a sociabilidade amerndia, uma vez
que esta no se pauta pela formao de estruturas societrias, e sim
pela constituio de um universo social mais ou menos indiferenciado,
liso, igualitrio, uniforme, baseado na esttica e na tica da
convivialidade. Overing e Passes apontam, alm disso, para uma
suposta incompatibilidade entre o desejo de viver bem e os
mecanismos de estruturao e diferenciao social. Nos limites deste
artigo eu no pretendo discutir em todos os detalhes o mrito do
modelo de Overing e Passes, bem como sua dependncia a uma tradio de
pensamento ocidental to antiga quanto as grandes narrativas
modernas,aindaqueremodeladapelasinflunciasnewageeps-mo-dernas;nemtampoucosuainaplicabilidadeavastasreasetnogrficas
amaznicas, como o Alto Xingu (Franchetto & Heckeberger 2001), o
Brasil Central (Maybury-Lewis 1979), o Noroeste Amaznico
(Hugh-Jones 1993;
Lasmar2002),porexemplo.3Omodelonoparecegeneralizvelquando samos de
comunidades pequenas, atomizadas, territorialmente dispersas
paraumcenriodeunidadessociolgicasmaiores,territorialmentemais
estabilizadas, onde h, por exemplo, grandes aldeias com populao
maior que mil habitantes. De maneira mais particular, todavia,
quero sugerir que
setomamosaideiadevidaboaecorretanosentidoque,pensoeu,lhes
doosXikrin,asproposiesdeOveringePassesnosoplenamente
sustentveis.Muitopelocontrrio,umaanlisedomaterialetnogrfico
mebngkre permite inferir que, exatamente ao contrrio do que afirmam
aqueles autores, no h qualquer incompatibilidade entre o desejo de
viver bem e os mecanismos sociolgicos (estruturais) de diferenciao
social, pois estes ltimos so a condio de possibilidade do primeiro.
BEM VIVER E PROPRIEDADE 99Os Xikrin so cerca de 900 pessoas que
habitam a regio da bacia do rio Itacainas, no sudeste do Par,
Brasil. So um dos grupos falantes de lngua mebngkre (ou kayap
setentrional), pertencente famlia lingus-tica j. Eles compartilham
com os demais Mebngkre, alm da lngua, uma mesma origem histrica e
um conjunto de caractersticas socioculturais bem conhecidas na
literatura etnogrfica (cf., por exemplo, Turner 1966; Vidal 1977;
Lea 1986; Verswijver 1992). Tomados em conjunto, os Mebngkre somam
hoje aproximadamente 10 mil ndios vivendo em diversas aldeias,
emumamploterritrionosestadosdoPareMatoGrosso.Cadaaldeia constitui
um universo poltico e territorial relativamente autnomo, mas h
entreelasprofundasconexesdevriasordens(lingusticas,histricase
socioculturais) que indicam a necessidade de pens-las, no
isoladamente, porm compondo um nico regime relacional mebngkre.4O
que podemos dizer das ideias de bem viver entre os Xikrin e
Mebn-gkre afinal? A princpio, aparentemente contrariando o que
acabo de dizer, o discurso dos Xikrin sobre o que ou deveria ser
uma boa vida apresenta uma srie de elementos comuns aos de outros
povos indgenas (e no indgenas), evocando as figuras da socialidade
amaznica desenhadas por Overing e Passes. Aqui tambm, como em
qualquer lugar, enfatiza-se a importncia da harmonia e da paz no
interior das aldeias e entre as diferentes aldeias
mebngkrecomoumfatorparaobem-estar.OsXikrincostumamdizer
queviverbemviversembrigas,semviolncia,comfartura,semdoen-as,
fazendo muitas festas grandes, contando com a participao de todos,
enfim, em uma situao harmnica, equilibrada e estruturada que agrada
e deixa as pessoas felizes (me m kinh, kam me kuni kinh). Na situao
de insularidade dentro do Estado nacional brasileiro, viver bem
tambm est
relacionadoautonomiacomunitriaeaumacertaseguranajurdico--institucional,
que envolve a demarcao e a proteo do territrio indgena, mnimo
controle sobre os processos polticos decisrios que afetam a vida na
aldeia, entre outros. Porm, essas apreciaes iniciais, muito gerais,
apenas aparentemente ecoam a viso projetada por Overing e Passes.
Na realidade, elas no esgotam o problema e no delimitam
completamente o campo do bem viver entre os Xikrin. preciso,
portanto, analisar mais detidamente os dados etnogrficos, enfocando
a questo a partir de algumas categorias--chave pelas quais os
Xikrin a expressam. No existindo um termo especfico para
exprimi-las, as noes de bem viver para os Xikrin so normalmente
verbalizadas pelo uso da palavra me-bngkre mejx, como nas expresses
kam mejx, mejx o ari ba, mejx kumrenx, com o significado prximo de
ficar bem, estar bem, muito bom/bem, respectivamente. O campo
semntico desta palavra recobre uma srie de BEM VIVER E PROPRIEDADE
100atributos que poderamos traduzir por bom, bem, belo, bonito,
correto, per-feito, timo. A palavra tem largussimo uso no discurso
indgena cotidiano, qualificando desde coisas fsicas (objetos e
corpos) a coisas mais abstratas
(nomes,pessoas,situaes),eexprimindotantovaloresestticosquanto ticos
e morais. Em sntese, mejx designa valores essenciais para os
Xikrin.
Produzirouobtercoisas,pessoas,comunidadese,enfim,umavidamejx parece
ser a finalidade ltima da ao xikrin, manifestando-se nas esferas
individual e coletiva. Um ponto importante a observar, e eu
voltarei a isto adiante, que a obteno (individual ou coletiva)
desta qualidade ou deste estado mejx est, em certo plano,
intrinsecamente relacionada ao domnio
ritual,edependedemaneirafundamentaldapropriedadeedocontrole sobre
determinados objetos e direitos cerimoniais, dentre os quais nomes,
adornos, papis rituais e prerrogativas.Em outro trabalho, analisei
mais detidamente o conceito de mejx entre os Xikrin, procurando
discernir seus atributos, tanto no que diz respeito sua aplicao a
objetos e pessoas quanto a seu componente mais imaterial, por assim
dizer, em que ressalta sua vinculao aos domnios sociolgicos
ecosmolgicos(Gordon2011).Semretomarosdetalhesdoargumento,
gostariadedestacarumelementoformalfundamentalparaadefinio xikrin de
mejx. que, replicados em planos e nveis diferentes, notamos a
presena dos mesmos princpios ou critrios de reconhecimento da
beleza e da correo, assim como um belo objeto (um adorno, por
exemplo), um belo corpo e uma bela festa so, igualmente, o
resultado harmnico da produo de alinhamentos e separaes, aproximaes
e afastamentos diferenciais dos elementos que compem a unidade em
questo, uns em relao aos outros (Gordon 2011:221). O ordenamento e
a estruturao espao-temporal dos bens cerimoniais que compem uma
determinada ao ou fase ritual, por exemplo, so fatores
constitutivos da beleza da cerimnia, da mesma forma que a sequncia,
a ordemeoespaamentoentrediferentesconjuntosdeplumaspodemser
fatoresconstitutivosdabelezaedacorreodeumcocar.Oparalelismo formal
estende-se constituio das prprias pessoas, uma vez que sua be-leza
depende do agenciamento diferencial de relaes sociais distintas,
isto , da ao diferencial, em diferentes etapas do ciclo de vida da
pessoa, de determinados parentes, como os pais (genitores), os pais
classificatrios ou putativos, os parentes cruzados tios maternos ou
avs (nominadores) e os amigos formais (relao especial, que j foi
considerada nas etnografias como uma espcie de relao de
compadrio).Desta forma, implcita noo xikrin do belo e do bom parece
haver uma determinada ideia de diferenciao. O belo, em seus vrios
planos de BEM VIVER E PROPRIEDADE 101realizao, depende da diferena
ou, em outras palavras, de uma certa estru-turao posicional de
elementos diferenciais. E se minha anlise procede, notvel o
paralelismo destas concepes xikrin com os modelos da lingustica e
da antropologia estrutural de matriz saussuriana e lvi-straussiana.
Todavia, se isto nos esclarece acerca do sentido da categoria mejx,
nada nos diz diretamente sobre as concepes do bem viver, que so
geralmente expressas por aquele termo. Para tentar demonstrar mais
claramente a cone-xo, precisaremos nos acercar das concepes do bem
viver indiretamente, por meio do exame do seu contrrio. Podemos nos
perguntar, por exemplo, o que representaria uma vida ruim (punure)
em contraste com o bem viver. precisamente a, penso eu, que a
questo da diferenciao reaparece de forma muito significativa.
Vejamos como.DoquepossoextrairdosdiscursosdeumapartedosXikrincom
quem convivi mais proximamente, haveria, segundo eles, um conjunto
de elementos negativos, destrutivos e limitadores do bem viver. Em
primeiro
lugar,seguramente,aviolncia.Aviolnciapodeserumaforaexterior, que
aparece de maneira imprevisvel, como nos casos de ataques e
agres-ses cometidos contra eles por inimigos. Felizmente, dizem os
Xikrin, essa
umadimensoquepertencecadavezmaisaopassado,hajavistaque, desde os
contatos permanentes com a sociedade brasileira, as relaes com os
estrangeiros, indgenas ou no, vm se desenvolvendo quase sempre em
uma chave pacfica. Mas h tambm a possibilidade de um outro tipo de
violncia, que muito os preocupa: a violncia interna, surgida das
tenses no seio da comunidade. De fato, uma das caractersticas
reconhecidas nos grupos mebngkre aquilo que alguns antroplogos
apontaram como seu pronunciado
fac-cionalismo(Bamberger1979).Desdeosprimeirosrelatosacercadesses
ndios, ainda no sculo XIX, as dissenses internas, os conflitos e as
disputas faccionais, as divises violentas das comunidades, as
inimizades e os dios fratricidas foram uma constante. Os Mebngkre
viveram perodos de inten-sas rivalidades que, em geral, comearam no
interior das aldeias, causaram cises, e se perpetuaram em guerras
intercomunitrias (Turner 1966; Vidal 1977; Verswjiver 1992; Fisher
2000). Entre meados do sculo XIX e incio do XX, at o perodo
imediatamente anterior ao processo de pacificao por rgos do Estado
brasileiro, que ocorreu na dcada de 1950, diversos grupos mebngkre
experimentaram guerras do tipo blood feud.
Noinciodosculopassado,porexemplo,osKayapMekrnotire separaram-se dos
Kayap Gorotire e, a partir da, os dois grupos passaram por uma
sequncia de cismas internos (Verswjiver 1992). Por volta dos anos
1910, iniciaram-se tambm os conflitos entre os Xikrin e os Kayap
Gorotire, BEM VIVER E PROPRIEDADE
102conflitosqueseestenderampordcadas,causandoinmerasmortesde ambos
os lados. Em seguida, ocorreu um processo semelhante, porm no seio
da prpria comunidade Xikrin, resultando na separao do grupo do
Bacaj (que foi habitar as margens do rio Bacaj, prximo ao que hoje
o municpio de Altamira) do grupo do Catet (Vidal 1977; Fisher
2000). Neste
ltimogrupo,fortesrivalidadesentrepaiefilhopelocomandodaaldeia
resultaram em uma ciso em 1962. Mais recentemente, a rivalidade
entre dois irmos, filhos do velho chefe, e posteriormente entre os
filhos dos filhos (que tambm disputavam prestgio e a liderana da
comunidade) resultou em nova ciso da aldeia do Catet em 1993
(Gordon 2006:163).5No passado, os Mebngkre chegaram a elaborar um
mecanismo ri-tual para tentar resolver os conflitos internos, que
funcionava quase como instrumento proto-jurdico, como foi o caso do
duelo coletivo formalizado denominado aben tak (baterem-se uns
contra os outros), em que os derro-tados reconheciam a
superioridade dos vencedores, encerrando as queixas (Turner 1966).
No entanto, conforme registram as etnografias, esse instru-mento
nem sempre era eficaz, muitas vezes provocando o efeito contrrio
deacirramentodastenses,efuncionandocomocombustveldoconflito
(Turner1996;Verswjiver1992).Hoje,cisescontinuamaocorrer,como
testemunhaaproliferaosemprecrescentedenovasaldeias,aindaque
osconflitosviolentostenhamdiminudoconsideravelmente,substitudos por
solues que assumem um carter mais poltico do que belicoso. Mas o
espectro dessa violncia interna continua vivo. Ela no mais atinge
neces-sariamente a comunidade por inteiro, mas pode manifestar-se
em termos de relaes individualizadas e pessoais.Tradicionalmente,
as disputas internas giravam em torno de acusaes de feitiaria,
relaes extraconjugais, roubos, disputas por direitos e
prer-rogativas, ou ainda por quaisquer outros eventos de forte
carga emocional, uma vez que eles fomentavam ressentimentos e
desejos de vingana. Muito embora o ethos guerreiro e a belicosidade
expressos pelo termo kr seja um valor entre os Mebngkre (Verswjiver
1992), sua positividade situa--se primordialmente no plano das
relaes com o universo social externo ao domnio comunitrio aldeo,
posto que neste ltimo deve imperar a lgica
dadomesticidade,qualidadesimtricaecomplementarbelicosidade,e que
designada pelo termo uab (Gordon s/d).Em todo caso,
invariavelmente, os conflitos so entendidos pelos Xikrin como
efeito de fatores tais como a avareza ( dj), o cime e a inveja
(djpnhin) e as rivalidades (aben o kur, aben m kr, isto , odiar-se
mutuamente, ser tomado de ira mtua). Tanto a avareza quanto o cime
e a inveja podem ser pensados como fenmenos resultantes de
processos de indiferenciao, BEM VIVER E PROPRIEDADE 103no sentido
de instaurarem uma relao de tipo mimtico (Girard 1972) entre os
envolvidos, fazendo desaparecer a distncia que garantia a
complemen-taridade entre os termos. Sem a distncia, os termos
passam a se chocar uns com os outros na disputa pela mesma posio,
substituindo assim a
comple-mentaridadepelarivalidade,semelhanadasnarrativasdosgmeosSol
(myt) e Lua (myturwa). No mito, a separao de sol e lua garante o
equilbrio csmico, ao passo que seu encontro acarreta rivalidades
mimticas cujo re-sultado violncia, luta ou assassinato (Lukesch
1976:27-33). A reduo da distncia entre os astros simboliza o
processo de indiferenciao instaurado pelo mimetismo de apropriao:
passa-se a desejar as mesmas coisas que o outro; passa-se a desejar
ocupar o lugar do outro. E a perda da diferena leva a uma espcie de
relao especular, com emergncia de duplos idnticos. Talvez seja por
esta razo que a gemelaridade possui conotaes negativas entre os
Xikrin. Para eles, os gmeos idnticos so sinais de mau agouro,
associados a animais como cachorro, cobra e larvas de
inseto.6Diferena e distncia so, portanto, correlativas. Neste
ponto, devemos entrar em consideraes sobre o bem viver, que se
articulam com outro conjunto de categorias cruciais, notadamente as
noes que implicam distncia, como vergonha, respeito, juzo e
entendimento. De fato, consenso entre os Xikrin que no se pode
viver bem quando no h o devido respeito e no se cumprem as regras
mnimas de convivncia social, expressas pelo termo piam. A palavra,
normalmente glosada por vergonha ou respeito, tem uma impor-tncia
fundamental na socialidade mebngkre, definindo o que prprio das
relaes sociais entre humanos e sendo o operador por excelncia de
distncia social (veja-se a boa anlise comparativa de Coelho de
Souza 2002:497-513). A ausncia de piam a marca inconfundvel da
indiferenciao, ca-racterstica de um mundo social bestial, onde no
se distinguem as relaes
deparentesco,ondetudomisturadoeconfuso,comoemumbandode porcos do
mato ou em uma matilha de ces. No universo mebngkre, vale o que
Coelho de Souza descreveu tambm para os outros J setentrionais:
Todas as relaes caracterizadas por uma diferena, sexual, geracional
ou etria seriam assim, em alguma medida, marcadas por pim [...]
(Coelho deSouza2002:500,nfaseminha).Adistnciafundamental,tantono
plano das relaes de pessoa a pessoa, quanto nas relaes entre grupos
ou unidades coletivas, como associaes masculinas.7 Note-se en
passant que quando os Xikrin tecem avaliaes morais negativas a
respeito dos brancos, ou de estrangeiros em geral, costumam
destacar que seu carter monstruoso deriva, em boa parte, da falta
de vergonha.
Afaltadevergonhaederespeitotambmestassociadaaumadi-mensodramticadaindiferenciao:oproblemadoincesto.OsXikrin,
BEM VIVER E PROPRIEDADE 104at onde pude saber, no costumam falar
regularmente (ou abertamente) de incesto. Tambm no h no corpus
narrativo mebngkre uma profuso de mitos sobre este tema, ainda que
haja alguns significativos. No entanto, as referncias mticas
permitem sugerir que o incesto pensado como um retorno
indiferenciao no humana e bestial (Wilbert 1978). Os mitos que
falam de incesto contam como os incestuosos transformam-se em
animais inclusive animais considerados como a prpria peste ou
veculo de morte (caso das garas), e provocam cataclismos csmicos
(Lukesch 1976). Alguns informantes associaram o incesto ao
nascimento de gmeos, o que parece fazer muito sentido, se levarmos
em conta as observaes que tecemos acima.A vergonha e o respeito
associam-se complementarmente noo mais positiva de entendimento ou
de compreenso, expressa pelo verbo me-bngkre ma (ou mari). O verbo
ma denota qualidades fsicas e mentais ou morais, podendo ser
traduzido por ouvir, escutar, atender, entender, lembrar, pensar. A
palavra kuma, composta pelo verbo flexionado no acusativo (ku),
designa a faculdade de pensar racionalmente ou reflexivamente, de
modo a seguir os preceitos ditados pelo piam. A falta de conscincia
reflexiva, isto , a incapacidade de ouvir, entender e lembrar (kuma
kt, em que kt a partcula de negao), e a ausncia da vergonha (piam
kt) so fenmenos interligados, e ambos podem ser equacionados ao
problema da indiferen-ciao e, consequentemente, da violncia.Os
Xikrin dizem que uma pessoa excessivamente feroz ou tomada de fria
incontrolvel incapaz de ouvir os parentes (me inhbikwa mari kt).
Ela perde a capacidade de entendimento e raciocnio. Nesses casos,
tal pessoa dita sur-da (no escuta, surdo, traduo da expresso a ma
kre kt que significa literalmente sem ouvido). Nesse estado, como
se seu corpo fosse um corpo no humano, como se a pessoa atingisse
um estado de indiferenciao corporal absoluta: no sentindo dor,
fome, sede, medo, piedade, compaixo, no mais se desviando dos
obstculos na mata, andando sempre em frente, em linha reta,
atravessando cipoal, galhos, espinhos. Ela se torna ento um grande
perigo, um matador incapaz de discernir (o certo do errado, o
parente de um no parente, o amigo de um inimigo etc.). A violncia
mais perigosa o resultado de uma completa indiferenciao, ao mesmo
tempo interna e externa. Assim, no universo mebngkre no existe
incompatibilidade entre o viver bem e os mecanismos de estruturao e
diferenciao social. Muito pelo contrrio, a estruturao diferenciante
a garantia mesma da possibili-dade da boa vida. Por conseguinte, a
indiferenciao o problema de fundo. Esta vista pelos Xikrin como
inimiga do bem viver. Contra seus efeitos, os ndios empreendem
esforos simblicos e prticos e engendram uma srie de mecanismos de
ordem tica, psicolgica e sociolgica.BEM VIVER E PROPRIEDADE 105O
tema da indiferenciao, que aqui evoco por meio do material xikrin e
mebngkre, poderia, com toda certeza, ser analisado em termos
compa-rativos e tericos mais abrangentes. Evoquemos, por exemplo, a
discusso de Lvi-Strauss sobre o tema dos gmeos em Histoire de lynx
(1991). Ali, aps uma breve recenso das mitologias de gmeos em
diversas tradies culturais, Lvi-Strauss sugere que a simbologia
indgena dos gmeos jamais
vindicaumaidentidadequenosejainstveleprovisria(aidentidade no pode
durar, diz ele). Para Lvi-Strauss, isto sugere que o pensamento
amerndio atribui simetria um valor negativo, malfico mesmo
(1991:305). Daafamosanoododualismoemperptuodesequilbrio(1991:311)
que,segundooantroplogofrancs,marcariaafilosofiasocialindgena, com
reflexos na ideologia e na organizao social.Lvi-Strauss
restringiu-se dimenso filosfica e sociolgica do pro-blema, e no
abordou sua dimenso tica e existencial. O material xikrin, como
venho tentando argumentar, permite iluminar este ltimo aspecto.
Podemossuspeitarqueasimetrianadamaissejadoqueumsmbolo
daindiferenciao.SeadicionarmosaoargumentodeLvi-Straussas hipteses
de Girard (1972) acerca das crises mimticas ou crises de
indi-ferenciao, torna-se possvel passar do plano lgico-cognitivo ao
plano tico-existencial. Segundo Girard, o espelhamento dualista ou
simtrico, do tipo apontado por Lvi-Strauss na passagem mencionada
espelhamento que expresso pelas figuras de duplos e gmeos, por
exemplo uma representao transcultural contundente de crises de
indiferenciao, ou
seja,desituaesepidmicas,violentasefortementedestrutivas(hipo-tticas
ou mesmo histricas) de mimese rivalitria.8 A simetria manifesta
nasimbologiagemelar,nofimdascontas,aexpressodadissoluo
completadasdiferenas,nodeumpontodevistameramentelgico,
masconcreto,tendoadimensodeumproblemaexistencial.Trata-se de um
espelhamento infernal que s pode conduzir ao enfrentamento,
violncia, desordem, enfim, morte individual e coletiva. Assim, no
apenas por uma questo cognitiva, terica ou esttica que os ndios
rejei-tam a simetria gemelar, mas porque ela o smbolo de tudo
aquilo que os impede de viver bem.Assim, em todos os nveis de
anlise, por trs de distintos planos de discurso, aes e ideias
xikrin sobre o bem viver, um mesmo tema parece pulsar
insistentemente, e este tema diz respeito ao problema da
diferencia-o. Para dizer de um modo um tanto brusco, o bem viver,
no universo xikrin e mebngkre, est essencialmente vinculado ao
sucesso ou ao fracasso da coletividade em evitar processos de
indiferenciao, associados, no pensa-mento indgena, ao cime, s
rivalidades, violncia e morte.BEM VIVER E PROPRIEDADE 106Ritual e
totemismo como mecanismos de diferenciaoNo plano das relaes
interpessoais, a indiferenciao geradora de crises mimticas e
violncia, impeditivas do viver bem evitada por meio de instrumentos
ticos ou morais, como as noes de vergonha, respeito e
enten-dimento. Mas haveria tambm entre os Xikrin e Mebngkre
procedimentos que visam garantir uma determinada estrutura
relacional diferenciante em nvel coletivo ou sociolgico mais
abrangente? Quais so eles? E qual a re-lao entre tais processos e a
noo de propriedade entre os Mebngkre? Quero sugerir que esses
procedimentos compreendem fundamental-mente o domnio ritual. Por
domnio ritual entendo no apenas o conjunto de performances, festas
e ritos que compem a vida cerimonial, mas tambm o sistema de
repartio e transmisso de conjuntos de nomes, prerrogativas,
direitos, regalias e objetos de valor (nkrjx ou kukrdj), que foram
des-critos como preciosidades (valuables) por Turner (1991) e
riqueza por Lea (1986). De fato, todos os grupos mebngkre possuem
tradicionalmente
conjuntosdebenssimblicosecerimoniaisquefuncionamcomosignos
distintivosdeindivduosougruposfamiliares.Nomesenkrjxsopro-priedade
ou direitos de determinadas pessoas e famlias e so transmitidos
intergeracionalmente, na forma de herana, de indivduo a indivduo,
por meio de uma regra fixa de relao entre determinados parentes
cruzados. Esse mecanismo de transmisso muito bem documentado na
etnografia, bastando aqui rememor-lo rapidamente. Um menino recebe
nomes e nkrjx de um ou mais parentes masculinos da categoria ngt
que inclui as posi-es genealgicas MB, MF, FF etc. Uma menina recebe
nomes e nkrjx de uma ou mais parentes do sexo feminino, da
categoria kwatyj que inclui FZ, MM, FM etc. Em relao a esses
parentes, ego de ambos os sexos (isto , o indivduo que recebe a
herana) est na categoria tbdjw.
Oobjetivoimediatodasmaisimportantescerimniasmebngkre atribuir s
crianas, publica e coletivamente, os bens cerimoniais herdados
deseusparentes.Duranteasperformances,ascrianashomenageadas exibem
sua regalia na praa da aldeia e danam junto com os nominadores que
lhes transmitiram os bens. Com isso, torna-se pblico o fato de que,
do-ravante, essas crianas tambm so legtimas donas desses bens,
adquirindo, portanto, o direito de transmiti-los, elas mesmas,
quando forem adultas, aos seus prprios sobrinhos e netos. Os
rituais so, por conseguinte, o contexto propcio para que a
coletividade saiba quem quem em termos de bens e itens de alto
valor cultural. As festas so o momento em que as prerroga-tivas
cerimoniais das crianas devem aparecer diante de todos, devem ser
mostradas (o ami rint, em que ami partcula reflexiva, e rint um
verbo BEM VIVER E PROPRIEDADE 107com sentidodeaparecerou revelar).
Findo o ritual, ascrianas sotidas por pessoas sociais mais plenas,
ou belas, conforme a categorizao ind-gena expressa na palavra mejx.
Exatamente por isso, as crianas honradas
duranteosrituaisdenominam-semereremejx,expressoquedenotaum sentido
prximo de aqueles a quem se d/outorga a beleza, aqueles que se
tornam belos. Entre os Xikrin, as prprias performances rituais
podem ser denominadas mereremejx.
Emsntese,osrituaisfornecemoquadrosocialparaqueosobjetos cerimoniais
sejam visualizados e explicitados diante de toda a comunidade
enquanto emblemas de determinadas pessoas e famlias. As
performances rituais, elas mesmas, podem ser vistas como um
ordenamento temporal e
espacialdediferentesbenscerimoniais(Fisher2003).Defato,acorreta
distribuio de conjuntos de adornos, papis e cantos durante a festa
seu aparecimento no meio do ptio da aldeia em sequncia correta, e
na correta disposio ou posicionamento indica harmonia, simetria e
beleza. Num certo sentido, conforme mencionei anteriormente, isso
que faz a cerimnia ser bela e, em ltima instncia, faz a prpria
coletividade ser bela, correta e completa. No por outra razo que os
rituais mebngkre evocam sempre a imagem de uma totalidade
social.Foi a etnloga Vanessa Lea (1986) quem pela primeira vez deu
o devi-do destaque ao aspecto diferenciante dos bens cerimoniais
entre os grupos mebngkre. Lea fez uma pesquisa detalhada sobre os
conjuntos de nomes e prerrogativas e os descreveu como a riqueza ou
a propriedade de unidades matrilineares que ela designou pelo termo
Casa ou Matricasa (ver, p.ex.,
Lea2012).Elainspirava-senanoodesocitmaisonelaboradapor Lvi-Strauss,
embora tenha empregado o termo de forma diferente daquela do
antroplogo francs, para quem o termo aplicava-se antes a sociedades
cogn-ticas ou a sociedades sem um princpio exclusivo de descendncia
unilinear (ver Gordon 2006:369; Gordon 1996). Os meus prprios dados
entre os Xikrin contradizem a nfase de Lea na noo de Casa enquanto
unidade matrilinear, e parecem sugerir que deveramos nos manter
mais prximos da elaborao do conceito de maison por Lvi-Strauss, em
que a propriedade cerimonial est vinculada a famlias cognticas e
pode ser transmitida estrategicamente, seja pelo lado materno, seja
pelo lado paterno. Porm uma discusso pormenori-zada deste ponto no
necessria para os objetivos deste artigo. preciso insistir, por
outro lado, na importncia fundamental da dimen-so diferenciante do
sistema, destacada por Lea. Em suas palavras: Nomes e nekretx (sic)
constituem a essncia ancestral [...] que compe a identidade
distintiva de cada Casa (Lea 2012:98). Mais do que isso. De acordo
com as mulheres da aldeia Metyktire com quem Lea trabalhou:
Qualquer aldeia BEM VIVER E PROPRIEDADE
108mbngokreespecficaumaversoparcialdeumaaldeiaidealondea totalidade
das matricasas forma um nico crculo (:121). Isto significa que
oprottipoidealdeumaaldeiambngokrepensado,aomododeum sistema
estruturalista, como um conjunto finito de unidades diferenciadas
e, portanto, diferenciantes, que se definem pela propriedade de
determinados bens cerimoniais
distintivos.Essesistemaapresentafeiesclaramentetotmicas.Aquitiles-clarecer
de forma breve meu uso da noo de totemismo. Digo isso porque
oclssicotermoganhourecentementenovodestaqueantropolgicona formulao
de Philippe Descola (2005). Para este autor, o totemismo visto
primordialmentecomoummododeidentificaoentrehumanoseno humanos. Ele
uma das transformaes dos quatro esquemas relacionais possveis de
objetificao da natureza naturalismo, totemismo, animismo e
analogismo que, segundo Descola, se apoiam na percepo universal de
uma dupla dimenso ontolgica: intencionalidade (ou interioridade) e
fisicalidade (ou corporalidade). De maneira bastante simplificada
por mim aqui, o totemismo , na verso de Descola, o modo de
objetificao em que um mesmo tipo de fisicalidade e interioridade
considerado como particular a determinados conjuntos de seres
humanos e no humanos, que se consti-tuem, ento, em grupos totmicos
especficos. Em suma, os grupos totmicos so formados por seres
humanos e no humanos que compartilham, nesta concepo, uma mesma
fisicalidade e uma mesma interioridade.Conquanto engenhoso e
elegante, o modelo de Descola resulta na obli-terao de um aspecto a
meu ver fundamental de uma outra definio cle-bre do totemismo, dada
por Lvi-Strauss (1962) h cerca de cinquenta anos. Como se sabe,
Lvi-Strauss dissolveu o que qualificou de iluso totmica
nostermosformaisestruturalistas.Eleanalisouofenmenoenquantoum
mecanismo lgico de diferenciao e classificao, que se obtinha por
meio da projeo no eixo das relaes sociais humanas de diferenas
significativas percebidas no plano das espcies naturais. O
totemismo era basicamente uma
operaomental,ummododerelacionarsriesderelaesdediferenas. Embora
considerasse as implicaes sociolgicas dessa operao a saber,
garantir a existncia de unidades sociais bsicas que pudessem
engajar-se em trocas matrimoniais Lvi-Strauss no percebeu uma funo
sociopoltica importantssima do totemismo. Acredito que tal funo
permite situ-lo dento de um quadro mais vasto de interditos comuns
s sociedades no modernas, tal como sugeriu Girard (2007:20). Este
ltimo autor parece-me convincente ao demonstrar que a funo dos
interditos, tais como os interditos totmicos e outros interditos de
natureza sexual, seria a de repartir previamente todos os objetos
desejveis, de modo a prevenir as rivalidades mimticas. BEM VIVER E
PROPRIEDADE 109O argumento me parece importante. Ao estabelecer uma
diviso prvia dos recursos simblicos disponveis e desejveis, o
totemismo no se limita a uma operao mental, ou a um jogo lgico e
intelectual de diferenciao. Ao contrrio, ele tem uma finalidade
prtica crucial e intrinsecamente asso-ciada dimenso existencial e
ao bem viver. Se Girard est certo, uma insti-tuio tal como o
totemismo visa impedir as rivalidades internas, a cobia, as
disputas por recursos simblicos, ao efetivar sua repartio prvia, e
conferir aos grupos ou unidades sociais relevantes uma forma de
propriedade cujo carter distintivo relativamente estvel e mais ou
menos fixo. O totemismo forneceria, assim, um esquema global, cuja
finalidade anloga tica das relaes interpessoais, qual seja: evitar
o desencadeamento de processos de indiferenciao e rivalidades
mimticas no seio da comunidade. Eis a, nesse sistema de tipo
totmico, a possibilidade da existncia de propriedades diferenciais
capazes de se harmonizarem sistemicamente em um todo formado de
partes distintas e complementares. Ora, isso me pare-ce
perfeitamente coerente com o sistema de bens cerimoniais mbngokre
descrito por Vanessa Lea. Cada grupo (seja matricasa ou famlia
cogntica) dispe, idealmente, de seu prprio acervo de nomes, bens e
recursos, que podem ser, no mximo, trocados ou articulados uns aos
outros por meio de procedimentos rituais e formais, e
eventualmente, por aliana matrimonial, mas que devem, no fim das
contas, permanecer distintos, como forma de impedir as disputas e
os processos mimticos disruptivos.Como no poderia deixar de ser, a
fundamentao cosmolgica ou reli-giosa desse sistema estabelecida no
plano mtico. Alguns conhecidos mitos de origem mebngkre narram o
surgimento desse sistema de tipo totmico. Por exemplo, o mito da
Grande Ave Predadora (kti) explica o surgimento de toda a
diversidade de pssaros e de todos os tipos de adorno plumrio
(nkrjx) que caracterizam as diferenas atuais. Outro exemplo o mito
da aquisio dos grandes nomes cerimoniais provenientes do mundo
aqutico (Lukesch 1968; Wilbert 1978; Lea 1986). Todas essas
narrativas encaixam-se na famosa frmula lvi-straussiana da passagem
do contnuo ao discreto, do indiferenciado ao diferenciado. Mas elas
se encaixam tambm na frmula girardiana do sacrif-cio. Girard
pretendeu mostrar, precisamente, o modo como o sacrifcio capaz de
realizar a passagem do indiferenciado ao diferenciado por meio de
uma separao bsica e estruturante: a oposio entre vtima e coletivo
vitimrio. O sacrifcio instaura uma violncia reparadora e
estruturante (a violncia de todos contra um), quando antes havia
uma violncia indistinta e indiferenciada (a violncia de todos
contra todos, tpica das crises mimticas agudas). Conforme bem
observou Girard em dois artigos instigantes (1976, 1977), nos quais
reanalisou alguns mitos estudados por Lvi-Strauss em Le tote-BEM
VIVER E PROPRIEDADE 110misme aujourdhui (1962), a passagem do
contnuo ao discreto se faz, nessas narrativas, invariavelmente ao
modo de uma eliminao radical e violenta de um personagem por uma
coletividade, uma espcie de imolao ou preda-o fundadora. O fato de
que a passagem do indiferenciado ao diferenciado expressava-se
sempre na forma de uma imolao foi rejeitado pela anlise estrutural,
que recodificou esse elemento narrativo crucial em termos de uma
necessidade lgico-formal ou topolgica: reduzir o excesso de
significante, empobrecer o contnuo, criar espaos vazios para que o
pensamento possa
operarasignificao.Lvi-Strausstomouospersonagensmticosapenas em sua
dimenso geomtrica ou topolgica, como fragmentos annimos que ocupam
certa posio no espao (Girard 2002:17), desprezando todo o seu
contedo narrativo e dramtico.Mas no caso dos mitos mebngkre, por
exemplo, o drama vitimrio tambm est expresso claramente em vrios
mitos: ele ocorre pela destrui-o do grande Gavio Real e a criao dos
adornos plumrios; pelo ataque
sociedadedosPeixeseacapturadosgrandesnomescerimoniais;pelo
assassinato da Mulher Jaguar e o roubo do fogo marcando a transio
do cru ao cozido. A ordem cultural totmica diferenciada
instaura-se, portanto, na sequncia de um tipo de imolao original
que a tradio etnolgica tem glosado pelo termo predao (Viveiros de
Castro 1993) que j , ela mesma, a instaurao de uma primeira
diferena fundante entre uma coletividade e uma vtima.9Se os mitos
falam desta instaurao, os rituais fazem a mesma coisa no plano da
ao, e promovem a rememorao do drama mtico que criou a diferenciao.
Promovem-na por meio da reencenao dos eventos que teriam dado curso
passagem do indiferenciado ao diferenciado. Assim, o ritual, embora
reencene a indiferenciao e o estado transformacional ou
metamrfico,noofazpornostalgia(conformeimaginouLvi-Strauss), mas
porque precisa reencenar tambm todos os momentos do processo que
culminoucomofimdoindiferenciadoeainstauraodaordemcultural composta
por diferenas de tipo totmico.10 Por conseguinte, a metamorfose
ritual, que poderamos colocar no plano das indiferenciaes, ou da
represen-tao do indiferenciado (e por isso nele se nota a presena
de tantas figuras monstruosas, como mscaras, homens-pssaro,
homens-jaguar), serve, em ltima instncia, para reafirmar, no palco
do processo social, as diferenas. Se a metamorfose ritual evoca a
indiferenciao (entre homens e animais, entre mito e histria etc.),
esta s pode ser temporria e circunscrita a um contexto
espao-temporal controlado, cujo objetivo ltimo precisamente a
reafirmao de uma diferenciao global entre todos esses termos, e de
uma segmentao no seio da comunidade capaz de garantir que a vida no
BEM VIVER E PROPRIEDADE 111caia naquele estado limite da
indiferenciao, ou pelo menos no se apro-xime perigosamente dele,
estado este que ameaa o bem viver no plano de
coletividadeinteira,equeno significaoutra coisa,emltimainstncia, do
que a prpria morte. Histria e crise do sistema ritualAt aqui vim
descrevendo de que forma as noes de bem viver entre os
XikrinMebngkreestovinculadasaumadeterminadaticaindgena que parece
ver na indiferenciao um smbolo de perigo, ameaa e morte, e prope
como resoluo teraputica sua eliminao pelo estabelecimento da
diferenciao ao modo de um sistema estrutural. Tentei demonstrar
que, no plano sociolgico mais amplo, esta tica parece se realizar
idealmente no estabelecimento de um sistema de propriedade de tipo
totmico, delimitan-do o domnio ritual e projetando a ideia da
sociedade como uma totalidade
formadadeunidadesdistintasecomplementares,relativamenteestveis e
discretas, de maneira a impedir a ecloso das rivalidades e das
disputas mimticas de tipo aquisitivo. Porm, neste ponto as coisas
se complexificam, uma vez que toda uma dimenso importante dos
processos de diferenciao ritual, tratada por mim em outros
trabalhos (Gordon 2006, 2010a, 2010b), ainda no foi mencionada
nesteartigo.Refiro-meaumoutrotipodediferenciao,quechameide
hierrquica, igualmente presente no sistema ritual mebngokre, mas
que desenha uma paisagem muito mais dinmica, como si ser sempre que
os esforos humanos de constituir o bem viver se defrontam com a
histria. Este modo de diferenciao caracteriza-se precisamente por
seu carter aquisitivo e por seu aspecto mimtico, contrariando o
modelo de tipo totmico tal como descrito por Vanessa Lea. Com
efeito, as melhores etnografias dos grupos mebngkre sempre
registraram um tipo de diviso interna de prestgio e valor social,
expressa muitas vezes de modo explcito no discurso dos ndios, entre
pessoas ditas bonitas (me mejx) detentoras de bens cerimoniais e de
condies sociais
emateriaiscapazesdegarantirarealizaoderituaisepessoasditas comuns
(me kakrit), ou sem beleza, seja porque no possuam um conjunto
significativo de bens cerimoniais, seja porque no conseguiam arcar
com os custos materiais da produo dos rituais. A dimenso hierrquica
da socialidade mebngkre j havia sido
es-tudadaporTerenceTurner(1984),aindaquesuaabordagemnotivesse
focalizado uma economia poltica dos bens simblicos, e sim uma
economia BEM VIVER E PROPRIEDADE 112poltica de pessoas (Gordon
2006, cap. 2). Turner descreveu a sociedade mebngkre como uma ordem
poltica baseada em uma estrutura hierrquica de relaes de explorao
da produo social ele sugeria uma explorao dos mais jovens pelos
mais velhos e das mulheres pelos homens gerando uma distribuio
assimtrica de valor social (Turner 1991:2). Porm, a noo de uma
assimetria baseada em bens cerimoniais j estava de alguma forma
contida, em germe, na prpria etnografia de Vanessa Lea (1986). Eu
mesmo apontei a ambivalncia das concluses desta autora (Gordon
2006:93). Mesmo sem ter tirado as devidas implicaes dos dados por
ela apresentados, Lea percebeu en passant, j no final de sua
etnografia, que os bens cerimoniais no eram apenas emblemas das
Casas, mas haviam se tornado uma fonte de prestgio para seus
detentores (Lea 1986:341). Era exa-tamente por esta razo que sua
etnografia falava tanto de disputas, roubos, e conflitos em torno
dos nomes e nekrjx, bem como da grande preocupao de famlias e
indivduos de no perder alguns de seus bens. Curiosamente, Lea
falava tambm de bens cerimoniais que poderiam se desvalorizar em
virtude da sua excessiva circulao, sendo desprezados pelos donos
originais (porquealgumabandonariaumemblemadistintivodasuaCasa?);ou,
ao contrrio, valorizar-se em funo da sua raridade e exclusividade.
Todo esse cenrio de disputas, aquisies, muitas vezes agnicas e
quase obses-sivas, assim como um jogo complicado de valorizao e
desvalorizao, de
concentraoedisperso,jestavamuitodistantedomodelototmico de repartio
prvia e harmnica da propriedade cerimonial. J estvamos no reino
delicado do desejo mimtico (Girard 1961).Quando realizei minha
pesquisa de campo com os Xikrin, embora no dispusesse das
ferramentas conceituais proporcionadas pela teoria mimtica,
procurei extrair todas as consequncias analticas desse cenrio.
Parecia-me, claramente, que os aspectos totmicos do sistema ritual
descritos por Lea eram, quela altura, menos visveis ou menos
operativos entre os prprios Metyktire (comunidade mebngkre em que
Lea fez sua pesquisa) e em especial entre os Xikrin. Meu esforo
ento foi o de demonstrar a existncia do componente hierrquico e
fortemente rivalitrio na sociedade mebngkre, que se expres-sava por
meio do sistema cerimonial, mas tambm atravs de processos de
incorporao de bens e objetos oriundos de outras sociedades,
incluindo-se a sociedade no indgena, tais como as mercadorias e o
dinheiro. A tnica do argumento era a de que havia entre os Xikrin
uma busca por distintividade (Gordon 2006). Este modo de
diferenciao hierrquica resultava na tentativa de magnificao de
determinadas famlias e lderes polticos ou chefes, em termos de
maior beleza e maior capacidade de agenciar objetos de valor
provenientes do exterior, como mercadorias e dinheiro. A busca por
distinti-BEM VIVER E PROPRIEDADE 113vidade atrelava-se a um impulso
aquisitivo, ou seja, passava pela tentativa de adquirir e
concentrar recursos simblicos, rituais, monetrios etc. Ao invs de
repartir o campo da propriedade em elementos estveis e fixos de
maneira a evitar as rivalidades, o sistema que eu descrevi em
Economia sel-vagem (2006) permitia o acmulo, e gerava disputas
mimticas incessantes no apenas no interior de cada comunidade ou
aldeia, mas tambm entre elas, num jogo constante de indiferenciao e
novas tentativas de diferenciao. No caso dos bens industriais, o
consumo crescente que resultava desse jogo me levou a denominar a
relao dos Xikrin com eles em termos de uma espcie de inflao indgena
(Gordon 2010a). Creio ter sido capaz de explicar que tanto os bens
e os valores provenientes do mundo dos brancos quanto os bens
cerimoniais tradicionais funcionavam segundo uma mesma lgica: uma
complexa economia poltica, uma busca por distintividade, cujo
efeito no era mais o estabelecimento de diferenas esquistatutrias,
e sim diferenas hierrquicas, de valor social, prestgio e poder um
cenrio mais mimtico (no sentido girardiano) do que totmico. A
anlise histrica e comparativa entre as diversas aldeias mebngkre e
os Xikrin me permitiu mostrar que esse processo estava operando
provavel-mente desde antes do contato definitivo dos ndios com os
brancos, e acabou impelindo os primeiros a intensificar as relaes
com estes ltimos em busca de objetos capazes de funcionar como
propriedade diferenciante.Mas havia um aspecto paradoxal em todo
esse processo. Inicialmente incorporados pelos Xikrin dentro do
sistema de bens cerimoniais, os objetos
provenientesdomundodosbrancos,tantoporsuaqualidadequantopor sua
quantidade, acabaram transbordando esse sistema. E mais do que
isso, o incremento dos objetos industrializados na sociedade
Xikrin, de maneira geral, veio a facilitar ou a democratizar o
acesso s condies materiais de produo dos rituais. Em meio a um
contexto mimtico generalizado, isto teve o efeito de acelerar todo
o mecanismo ritual, posto que muito mais pes-soas puderam realizar
as cerimnias de confirmao ritual, o que resultou em uma espcie de
vulgarizao da beleza cerimonial, e concorreu para o progressivo
apagamento do rendimento sociolgico da prpria distino entre belos e
comuns. Com isso, surgiu uma espcie de consumo diferen-cial (ou
consumo de luxo) de bens industrializados, como um mecanismo
substitutivo de produzir a diferenciao hierrquica. A diferena entre
ricos e pobres tornara-se mais presente no discurso xikrin do que a
diferena entrebelosecomuns.Semdvida,aprimeiraeraumatransformao da
segunda. Mas a transformao tinha efeitos no sistema como um todo.O
que estava por trs do consumo inflacionrio era, no fim das contas,
um processo em que o ritual, apesar de cada vez mais acionado (e
por esta
mesmarazo),mostrava-secadavezmenosaptoadiferenciar.Eusugeri BEM
VIVER E PROPRIEDADE 114que, naquela altura, havia um esgotamento do
sistema ritual para produzir
asdiferenas,nosdetipototmico,mastambmdetipohierrquico. E que estas
ltimas haviam se deslocado para um campo extrarritual, ou que ns
chamaramos de econmico, ainda que suas razes fossem o domnio
ritual. Ocorre que, fora do sistema ritual, o consumo distintivo e
a riqueza estavam ainda mais facilmente sujeitos s presses
mimticas, adquirindo
assimumadimensoincremental,evocando,emtermoscaricatos,uma corrida
de gato e rato. Os chefes e as famlias importantes (gente
tradicio-nalmente bonita) procuravam apropriar-se de mais bens
industrializados e dinheiro, e os no chefes imitavam-nos,
pressionando pela comunizao, o que premia os chefes a procurar
novos nichos de consumo cada vez mais exclusivos e quantidades de
dinheiro, e assim sucessivamente.Havia ali, portanto, todos os
sintomas de uma crise de indiferenciao, uma crise do ritual, a qual
os Xikrin procuravam resolver pela absoro cada vez mais rpida, e em
quantidades cada vez maiores, de recursos provenien-tes do
exterior. A escalada mimtica e a busca agnica por distintividade
requeriamdosescadavezmaioresdeobjetosextrarrituais:mercadorias,
bens industrializados e dinheiro. Esta me parecia a razo da
natureza in-flacionria do consumo xikrin.
Naquelaocasio,diantedessecenrio,cabiaperguntar-lhesdireta-mente
sobre o bem viver. Teria ele se transformado, no fim das contas,
nessa corridaaceleradaaoconsumo,cujoefeitoeraumaexpansodoimpulso
mimtico de dentro para fora? Afinal, um modo radical de criar a
diferena interna assemelhar-se cada vez mais aos brancos (mas com
isso reduzindo a diferena externa). De qualquer modo, os Xikrin no
tinham ainda uma resposta inequvoca sobre o que estava a ocorrer.
Mas, certamente, ainda que alguns considerassem os benefcios de uma
vida mais parecida com a dos brancos, que muitas vezes parecem
fazer a figura do modelo a ser imitado, havia um indisfarvel
mal-estar que me foi dado a notar. Ele era expresso de maneira um
tanto oblqua pelo temor de virar branco. Era como se os Xikrin
tivessem intuitivamente percebido que custa de diferenciarem-se
umdosoutros,acabaram caindo,paradoxalmente,nolabirinto mimtico,
colocando em risco de fracasso seu modelo de bem viver.Caminhando
para a concluso, valeria a pena questionar mais a fundo este
gigantesco descompasso de um sistema voltado produo da diferenciao
tornar-se incapaz de faz-lo, resultando, contraditoriamente, em uma
situao decrescenteindiferenciao.Nohaviamaisummecanismodiferenciante
totmico-ritual plenamente operativo, de sorte que a dimenso
hierrquica e rivalitria do sistema, desdobrando-se na histria,
permitiu a irrupo de algo muito prximo de uma crise mimtica na
sociedade xikrin e mebngkre. BEM VIVER E PROPRIEDADE 115Mas qual
seria, afinal, a natureza do sistema totmico que lemos na
etnografia de Vanessa Lea e que parece to consistente com as noes
xikrin de bem viver que discuti nas primeiras partes deste texto?
Teria Lea descrito o sistema de Casas ou matricasas com base em uma
perspectiva puramente normativa? Teriam as mulheres metyktire
relatado a Lea um modelo ideal do que deveria ser, e no do que
efetivamente se passava na vida real? Estas so perguntas que no
tenho como responder decisivamente nesta altura. Porm, como
exerccio intelectual, creio ser cabvel aventar uma hiptese. Uma
hiptese de cunho histrico. Talvez a progressiva crise de
indiferenciao que acometeu os Mebn-gkre como um todo, e se mostrou
de forma aguda entre os Xikrin, possa
serexplicadasepostularmosaexistnciahistricadeumamplosistema
totmico, mas que teria entrado em colapso em algum momento da
histria mebngkre, resultando no aparecimento de um sistema ritual
imperfeito, por assim dizer, posto que permitia o acmulo de
propriedade e a consequen-te transformao dos emblemas totmicos em
fonte de prestgio e riqueza. possvel supor que no momento em que os
grupos mebngkre foram pela primeira vez contatados, na segunda
metade do sculo XIX, esse sistema j estivesse entrando em
decadncia, e que, na poca em que os antroplogos comearam a realizar
suas pesquisas com esses grupos, nos anos 1960, dele restassem
apenas fragmentos parciais na forma dos conjuntos de nomes e
prerrogativas, tais como registrados por Lea. possvel tambm supor
que esses conjuntos de bens cerimoniais te-nham constitudo no
passado um sistema totmico mais geral de repartio global de todos
os recursos materiais e simblicos, provavelmente associado a trocas
matrimoniais, capaz de sustentar a existncia de aldeias maiores e
mais densamente povoadas, s quais os Mebngkre muitas vezes fazem
meno de terem existido no passado. verdade que nenhum antroplogo o
descreveu, e quem chegou mais perto disso foi Vanessa Lea, como
vimos. Mas h alguns indcios de que, eventualmente, a retomada de
extensas pesquisas histricas e comparativas com os diversos grupos
da famlia lingustica J possa confirmar. No custa lembrar de forma
breve a hiptese de Nimuendaju (1946:90) sobre os grupos de praa
Timbira, que eram sociedades cerimo-niais do mesmo tipo que certas
sociedades cerimoniais existentes entre os Mebngkre. Para
Nimuendaju, esses grupos corresponderiam a uma antiga organizao
clnica que teria perdido a regularidade genealgica. Um outro
indcio, embora tnue, a existncia de certos nomes anti-gos mebngkre,
atualmente pouco usados, ou que aparecem apenas em
personagensmticos,masquecorrespondemexatamenteaosnomesdas
metadessazonaisTimbira. Porexemplo:osnomesmebngkreWakme BEM VIVER E
PROPRIEDADE 116(no mais em uso e s referido em narrativas mticas) e
Ktm (ainda em uso, mas muito raro) correspondem fielmente s metades
sazonais Timbira Wakmej e Katamj. As categorias de nomes Bep, Katm,
Wakme, Tkk poderiam, ento, ser nomes totmicos ao modo australiano,
uma vez que eles se subdividem de acordo com partes de animais
correspondentes (ver Lea 1986, para uma descrio detalhada dos nomes
mebngkre). Alguns xikrin diziam que a pessoa com o nome de uma
parte de animal ou planta possua, no passado, o direito de
propriedade e gozo relativo da parte do animal ou da planta
indicada em seu nome.No se pode desconsiderar tambm o impacto das
frentes de expanso colonial no territrio historicamente ocupado
pelos Mebngkre, processo que resultou em perdas demogrficas
considerveis, implicando, ademais, sucessivas mudanas territoriais,
decomposio e recomposio de aldeias, separaes, maior isolamento etc.
As retrospectivas histricas de Verswijver (1992) e de Fisher (2000)
so exemplares em mostrar a enorme mobilidade e a complexidade das
decomposies e recomposies das aldeias
mebn-gkredesdemeadosdosculoXIXatoperododapacificao.Enfim, toda uma
srie de descontinuidades importantes pode ter concorrido para o
colapso do sistema, na medida em que se alteraram consideravelmente
as condies de reproduo social. Desmoronando, o sistema totmico
teria fornecido a ocasio para que alguns indivduos se tornassem uma
espcie de repositrios de conhecimentos, acumulando bens cerimoniais
que de outra forma, na falta de condies ideais de transmisso,
teriam se perdido. Mas na tentativa de salv-los, podem ter
introduzido uma nova lgica apropriativa e cumulativa. As divises e
as disperses aldes teriam permitido tambm que os bens totmicos
pudessem transferir-se de uma famlia para outra por meio de
estratgias e negociaes ad hoc.
Anovasituaoteriaabertoapossibilidadedemagnificaopessoal, por meio
da propriedade ou do controle de recursos simblicos e materiais
cobiados, e da prpria necessidade de lideranas firmes e valentes em
tempos conturbados. Os bens cerimoniais, mesmo sendo transmitidos
segundo uma regra de parentesco fixa, passaram a ser acumulados e
disputados, visto que haviam perdido, em ltima instncia, suas
referncias totmicas inequvocas. Finalmente, as novas condies teriam
liberado os mecanismos mimticos e rivalitrios, cujo efeito foi
visto desde o final do sculo XIX, na progressiva segmentao da
sociedade, na proliferao de aldeias e no conhecido facciona-lismo
mebngkre. As constantes cises que se seguiram, sempre em virtude de
rivalidades internas, do aumento das acusaes de feitiaria, das
disputas por mulheres, e a busca de grandeza, prestgio ou beleza
geraram inimizades mtuas e guerras intestinas, to marcantes na
histria recente desses grupos.BEM VIVER E PROPRIEDADE
117Talhiptesetemobenefciodeexplicaroaspectocentrfugodadi-nmica
social mebngkre nos ltimos cem anos, ainda em outro sentido. Pois
diante da falncia de um sistema de repartio totmica cujo objetivo
fixar a propriedade dos recursos desejveis e impedir a ecloso da
mimese apropriativa, uma soluo possvel a de multiplicar a gama de
objetos de-sejveis, reduzindo, assim, os efeitos perniciosos da
inveja e das disputas. Talvez no tenha sido por outro motivo que,
desde meados do sculo XIX, os grupos mebngkre tenham se lanado ao
encalo de outros povos indgenas e dos brancos, na tentativa de
incrementar seu acervo de bens culturais. Em suma, o colapso do
sistema totmico de diferenciao explicaria de uma s vez as duas
grandes linhas de ao histrica dos Mebngkre at o perodo
imediatamente anterior pacificao: de um lado, o aumento das guerras
internas (isto , entre grupos mebngkre), por causa da ecloso das
riva-lidades mimticas e das crises de indiferenciao, que
resultavam, repito,
eminveja,cobia,conflitopormulheres,acusaesdefeitiariaetc.;de outro,
o aumento dos contatos externos, quase sempre blicos, com outros
grupos indgenas e com os brancos, na busca desesperada por
multiplicar os objetos desejveis, como forma de aliviar a dinmica
mimtica interna. O processo de pacificao parece ter atenuado os
conflitos, e no de es-tranhar que isto tenha se dado pela promessa
dos rgos indigenistas brasileiros de promover uma multiplicao quase
milagrosa de objetos. Se, por um lado, isto resolveu
temporariamente os conflitos externos, por outro, no foi suficiente
para aplacar totalmente as rivalidades internas, que persistiram,
embora em uma chave menos violenta. Os Mebngkre logo comeariam a
perceber que existiam outros meios mais eficazes de operar no mundo
dos brancos, como atravs da poltica e da economia. Mas isso j outra
parte da histria. De todo modo, devemos concluir, e no precisamos
levar muito adiante nossas conjecturas. Independentemente de ter
existido na histria ou apenas na imaginao moral dos Mebngkre, o
fato que a ausncia de um efetivo sistema de tipo totmico parece ter
tornado mais distante seu ideal de bem viver. Pelo menos por algum
tempo. Pois a histria est aberta ao futuro, e cabe aos Mebngkre
encontrar novos modos de vida boa e bela. Recebido em 17 de abril
de 2013Aprovado em 16 de setembro de
2013CesarGordonprofessordoProgramadePs-GraduaoemSociologiae
Antropologia, IFCS/UFRJ. E-mail: BEM VIVER E PROPRIEDADE 118Notas*
Uma primeira verso deste texto foi apresentada no Seminrio
(Im)proper re-lations: ownership and wellbeing in Amazonia,
ocorrido em abril de 2010, no Museu Nacional da UFRJ, Rio de
Janeiro, coordenado por Carlos Fausto, Marc Brightman e Vanessa
Grotti. Agradeo a eles pelo convite e pelos comentrios generosos
que muito ajudaram a aperfeioar o texto. Agradeo ainda pelos
comentrios de Aparecida Vilaa, Marcela Coelho de Souza, Oiara
Bonilla, Susana Viegas, Fernando Santos-Granero, e Pedro Niemeyer
Cesarino. Carlos Fausto e Luiz Costa fizeram uma leitura atenta e
generosa do texto original, contribuindo diretamente para sua forma
final. Quaisquer erros reparados no artigo permanecem sendo de
minha exclusiva responsabilidade.1 Neste artigo no se faz uma
discusso terica, desde a perspectiva da antropolo-gia, do conceito
de propriedade, bem como dos limites de sua aplicao transcultural.
Sobreoassunto,veja-se,porexemplo,Hann(1998,2007)evonBenda-Beckman
(2006). O uso que fao do termo neste artigo o uso lexicalizado
trivial: bens sobre os quais se exerce algum direito de posse,
usufruto ou transferncia. Veja-se, no entanto, Gordon (2006) para
uma anlise mais pormenorizada das equivalncias e diferenas entre as
categorias mebngkre nkrjx e kukrdj e a noo de propriedade. 2 Para
isso, veja-se Jimenez (2007); Matthews & Izquierdo (2009).3 A
suposta rejeio indgena sociologia (Overing & Passes 2000:1),
isto , a normas e a divises internas, enfim, a estruturas, no deixa
de evocar, por analogia, outra clebre viso romntica das sociedades
amerndias, a saber, a de Pierre Clas-tres (1974), para quem a
filosofia social indgena seria teleologicamente avessa ao Estado. A
diferena que se para Clastres, como bom herdeiro da tradio
francesa, a sociedade aparece como a instncia totalizante ( ela a
causa final, que se ope e barra a emergncia do Estado), para
Overing, nem isso mais existe: a sociedade no uma entidade
transcendente ou englobante, e a coletividade s emerge como produto
da interao intersubjetiva de sujeitos autnomos (autonomous selves).
Entendoqueseriainteressanteinvestigarmaisdetidamenteassemelhanaseas
diferenas entre estes dois modelos fortemente ideolgicos de descrio
das socie-dades indgenas Clastres e Overing bem como sua profunda
insero em duas modalidades nacionais a francesa e a britnica de
pensamento social (veja-se Himmelfarb 2005). Mas certamente isso
escapa aos limites deste artigo.4 Apesar de os termos Mebngkre e
Kayap serem tratados indiferenciadamen-te na literatura
antropolgica, eu os tenho utilizado da seguinte forma: o primeiro
termo indica genericamente os grupos falantes da mesma lngua e que
compem esse universo sociocultural mebengokre mais amplo,
incluindo-se os Xikrin e todos os demais subgrupos kayap; o segundo
denota qualquer grupo mebngkre que no seja identificado como
xikrin, por exemplo, os Kayap-Gorotire, Kubenkrkenh,
MekrnotiouMetyktire.Umaconvenoadicional:desdemeadosdadcadade 1920,
os Xikrin encontram-se divididos em dois blocos, denominados Xikrin
do Ca-BEM VIVER E PROPRIEDADE 119tet e Xikrin do Bacaj, em
referncia aos rios prximos do lugar onde construram suas aldeias.
Por simplificao, venho utilizando o termo Xikrin referindo-me, em
princpio,aosXikrindoCatet,ondeminhapesquisafoirealizada,salvoquando
anotado em contrrio.5 Os mebngkre tambm se envolveram em guerras
externas, isto , contra populaes distintas lingustica e
culturamente, fossem outros povos indgenas, fos-sem no indgenas.
Gustaaf Verswjiver mostra de maneira acurada como as guerras
internaseexternaspodemservistascomomodalidadesdiferentes,envolvendo
objetivos e mtodos distintos. Para uma viso mais completa do
belicismo mebn-gkre, veja-se Verswjiver (1992). Para um excelente
relato histrico sobre os Xikrin, especialmente sobre o grupo do
Bacaj, veja-se Fisher
(2000).6Afraseemlnguamebngkremefoiditacomokrabiponekammejxkt (onde
kabipo gmeo; ne partcula estativa; kam preposio; mejx bom; kt
negativa) ou krabipo kam punure (gmeos resulta em coisa ruim).
Sobre a associao com os animais, alguns xikrin afirmaram que uma
mulher grvida no deve assistir ao acasalamento de um casal de ces,
pois isso aumentaria as chances de que ela prpria gerasse gmeos em
uma gravidez futura. Alguns mitos de origem dos brancos e dos ndios
juruna (Yudja) os descrevem como filhos gmeos mltiplos de uma
mulher que copulou com uma cobra, com um lagarto, ou lagarta, a
depender das diferentes verses da narrativa (Wilbert 1978:152-154;
Turner 1988:205).7 Prossegue Coelho de Souza (2002:501-2): Os Kayap
se referem explicita-mente ao pim [sic] entre casas dos homens como
contribuindo para a paz da comu-nidade, uma vantagem das aldeias
com duas casas dos homens (Turner 1966:43-4). Por outro lado, uma
vez que esta paz seja rompida, e as disputas cheguem a ponto de
eclodir num enfrentamento fsico, sob a forma ritualizada dos duelos
formais que podem envolver toda a comunidade, o efeito do piaam
[sic] exigir uma separao ainda mais drstica das partes envolvidas:
Os Kayap dizem que os derrotados vo
emboraporquesentemmuitavergonha(piam)depermanecernamesmaaldeia
junto com as pessoas que os venceram na luta (Bamberger
1979:139).8Veja-seemespecialadiscussoqueesteautorfaz,noscaptulosIIeIII
(1972:349-403), acerca da simetria, da indiferenciao e do
espelhamento dos per-sonagens das tragdias gregas.9 Um conjunto de
questes que me pareceria interessante aproximar da presente
discusso foi explorado recentemente por Fausto (2008), em artigo em
que discute as noes de dono e maestria na Amaznia indgena. A ideia
de magnificao, por exemplo, sugere tambm, ainda que por outras
vias, uma tenso entre processos de diferenciao e indiferenciao.
Fausto argumenta de modo interessante (2008:334) que a pessoa
magnificada de um chefe ou de um mestre projeta simultaneamente
duas figuras sociais: de um lado, uma entidade de tipo mitolgico ou
monstruoso (um incorporador de diferenas, por assim dizer, e cuja
magnificao precisamente a expresso dessa condensao), e que se
apresenta como singularidade; e de ou-BEM VIVER E PROPRIEDADE
120tro, o bando, que se apresenta como coletivo indiferenciado que
a ele se contrape. curioso notar que estas duas figuras o coletivo
indiferenciado e (supostamente) passivo, e o dono enquanto
singularidade magnificada so anlogas s figuras do esquema
sacrificial tal como postulado por Girard (1972), ainda que em
sentido inverso: para este ltimo, a coletividade que toma a forma
ativa de agente sacrifi-cador, enquanto a figura singular aparecer
inicialmente em seu carter de monstro (indiferenciao interna a si
mesmo) e, finalmente, como vtima do ato sacrificial.10 No final das
Mitolgicas (Lhomme nu, 1971), Lvi-Strauss faz, de maneira sutil,
uma de suas raras crticas valorativas ao pensamento indgena;
crtica, qui, anloga que ele fazia prpria filosofia francesa, e em
especial metafsica de
HenriBergson.Acrticaapareceembutidanafamosadistinoentreritoemito.
Este ltimo, para Lvi-Strauss, encarnava um princpio de diferenciao,
idntico na linguagem e no pensamento, estando na base de toda
simbolizao. J o ritual, para o antroplogo francs, expressaria uma
tentativa de restabelecer uma imediao indiferenciada entre o homem
e o mundo, desfazendo assim a obra da linguagem. No af de afastar
todo o espectro religioso, mstico e metafsico da anlise
antropolgica estruturalista, e de exaltar a linguagem, Lvi-Strauss
acabou recaindo no dualismo bergsoniano, mas pela sua outra ponta
e, assim fazendo, no pde perceber nem todas as propriedades do
rito, nem todas as propriedades do mito. Lvi-Strauss assimilou tudo
o que no era linguagem ao cerne do comportamento ritual-religioso,
escante-ando o rito do mbito do interesse da anlise estruturalista.
Paralelamente, mesmo reconhecendo as representaes mticas do
indiferenciado que insistiam em pulsar, Lvi-Strauss se esforou por
purificar o mito, postulando-o como o prprio proces-so de
simbolizao tornado visvel. Fazendo uma pequena caricatura do
dualismo lvi-straussiano, como se o mito fosse o heri porque capaz
de desfazer a dose de indiferenciado inicialmente presente a ttulo
de representao do real (e assim o mito uma espcie de espelho do
pensamento humano em operao no seu af de criar o inteligvel); j o
rito, este o vilo, porque procederia de maneira inversa, juntando
as figuras previamente separadas pela linguagem para produzir
monstros indiferenciados, em sua nostalgia de reconexo, ou de
re-ligao, com a realidade. Creio que as observaes de Girard (1976,
1977), ao postular que tanto o rito quanto o mito fazem a mesma
coisa, expressando ambos, a eliminao do indiferenciado,
permitem-nos escapar do dualismo e do paradoxo lvi-straussiano.BEM
VIVER E PROPRIEDADE 121Referncias bibliogrcasBAMBERGER, Joan. 1979.
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Publications.BEM VIVER E PROPRIEDADE 124ResumoO presente artigo uma
tentativa de re-fletir sobre propriedade e bem viver entre os ndios
Xikrin Mebngkre (Kayap). Sustenta-sequetaisnoesdevemser articuladas
com um problema indgena filosfico e existencial de magnitude: a
diferenciao.Prope-sequeumadas definies do viver bem no mundo social
mebngkre manter, em todos os nveis davida,umdeterminadoquocientede
diferena. Esta, por sua vez, vincula-se
questodapropriedade(emespecial a propriedade cerimonial), uma vez
que osistemaritualdeveservistocomoo mecanismo bsico, em nvel
coletivo, de diferenciao. O estabelecimento de um sistema de
repartio de propriedade de tipototmicoserviriaparaevitarcrises de
indiferenciao e, portanto, garantir obemviver.Sugere-sequeosistema
ritual mebngkre passou por mudanas
histricasimportantesquedeslocaram umtipodediferenciaototmicana
direodeumtipodediferenciao hierrquica, na qual h margem para o
desenvolvimento de relaes rivalitrias no interior das comunidades e
entre elas.Palavras-chave Amaznia, Propriedade, Bem-viver,
Diferenciao, Ritual.AbstractThe article reflects on property and
well-beingamongtheXikrin-mebngkre (Kayap)Indians.Itarguesthatthese
notions must be articulated with a wider
probleminIndigenousphilosophyand
existence:differentiation.Itproposes that one of the definitions of
well-being intheMebngkresocialworldisthe
maintenance,inalllevels,ofacertain
coefficientofdifference.Difference,in turn, is linked to the notion
of property (particularly ceremonial property), since
theritualsystemisabasic,collective
mechanismofdifferentiation.Thees-tablishment of a totemic-type
system of dividing property served to avoid crises
ofindifferentiation,therebyensuring well-being. It is suggested
that the Me-bngkre ritual system underwent impor-tant historical
changes that have shifted a totemic-type differentiation towards a
hierarchical-type differentiation, within
whichrivalriescanemergebothinthe heart of communities and between
them.KeywordsAmazonia,Property,Well-being, Differentiation,
Ritual.