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DA CINCIA A LITERATURA
"0 homem no pode filar seu pensamento sem pensar sua palavra.''
(Bonald)
As faculdades francesas possuem uma lista oficial das cincias
sociais e humanas, que constituem o objeto de um ensino reconhe-
cido, obrigando assim a limitar a especialidade dos diplomas que
conferem: voc pode ser doutor em esttica, em psicologia, em so-
ciologia; mas no pode ser em herldica, em semntica ou em viti-
mologia. Assim, a instituio determina diretamente a natureza do
saber humano, impondo seus modos de diviso e de classificao,
exatamente como uma lngua, por suas "rubricas obrigatrias" (e no
apenas por suas excluses), obriga a pensar de determinada ma-
neira. O u por outra, o que define a cincia (por esta palavra en-
tender-se- doravante, aqui, o conjunto das cincias sociais e hu-
manas) no nem seu contedo (este muitas vezes mal limitado e Ibil),
nem seu mtodo (varia de uma cincia para outra: o que h de comum
entre a cincia histrica e a psicologia experimental?), nem sua
moral (seriedade e rigor no so propriedades exclusivas da cincia),
nem seu modo de comunicao (a cincia se imprime
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I O rumor da lngua I
em livros, como tudo o mais), mas somente o seu estatato, isto ,
a sua determinao social: objeto de cincia toda matria que a
sociedade julga digna de ser transmitida. Numa palavra, a cincia o
que se ensina.
A literatura tem todos os caracteres secundrios da cincia, quer
dizer, todos os atributos que no a definem. Seus contedos so
aqueles mesmos da cincia: no h, por certo, uma nica ma- tria
cientfica que no tenha sido, em algum momento, tratada pela
literatura universal: o mundo da obra um mundo total onde todo o
saber (social, psicolgico, histrico) tem cabimento, de modo que a
literatura tem para ns essa grande unidade cosmognica de que fruam
os antigos gregos, mas que nos hoje recusada pelo es- tado parcelar
da nossa cincia. Alm disso, como a cincia, a litera- tura metdica:
tem os seus programas de pesquisa, que variam conforme as escolas e
conforme as pocas (como alis os da cin- cia), as suas regras de
investigao, por vezes mesmo as suas preten- ses experimentais. Como
a cincia, a literatura tem a sua moral, certa maneira de extrair,
da imagem que ela se prope do seu pr6- prio ser, as regras do seu
fazer e de submeter, conseqentemente, os seus empreendimentos a
certo esprito de absoluto. Um lti- mo trao une a cincia e a
literatura, mas esse trao tambm aquele que as separa mais
certamente do que qualquer outra di- ferena: as duas so discursos
(o que bem exprimia a idia do h- gos antigo), mas a linguagem que a
ambas constitui, a cincia e a literatura no a assumem, ou, se
preferirem, no a professam da mesma maneira.
Para a cincia, a linguagem no passa de um instrumento, que se
quer tornar to transparente, to neutro quanto possvel, sub- metido
matria cientfica (operaes, hipteses, resultados) que, ao que se
diz, existe fora dela e a precede: h por um lado epri-
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I Da cincia literatura I
meiro os contedos da mensagem cientfica, que so tudo; por outro
lado e depois, a forma verbal encarregada de exprimir esses
contedos, que no nada. No uma coincidncia se, a partir do sculo
XVI, o progresso conjugado do empirismo, do racio- nalismo e da
evidncia religiosa (com a Reforma), isto , do es- prito cientfico
(no sentido bem amplo do termo), foi acompa- nhado por um
retrocesso da autonomia da linguagem, doravante relegada h posio de
instrumento ou de "belo estilo", quando na Idade Mdia a cultura
humana, sob as espcies do Septenitlm, atribua-se em repartio quase
igualitria os segredos da palavra e os da natureza.
Para a literatura, ao contrrio, pelo menos aquela que adveio do
classicismo e do humanismo, a linguagem j no pode ser o instrumento
cmodo ou o cenrio luxuoso de uma "realidade" social, passional ou
potica que preexistiria a ela e que, subsidia- riamente, teria a
incumbncia de exprimir, mediante a sua pr- pria submisso a algumas
regras de estilo; a linguagem o ser da literatura, seu prprio
mundo: toda a literatura est contida no ato de escrever, e no mais
no de "pensar", de "pintar", de "contar", de "sentir".
Tecnicamente, pela definio de Roman Jakobson, o-"po- tico" (quer
dizer, o literrio) designa esse tipo de mensagem que toma a sua
prpria forma por objeto, e no os seus contedos. Eticamente,
to-somente pela travessia da linguagem que a lite- ratura persegue
o abalamento dos conceitos essenciais da nossa cultura, em cuja
primeira linha, o de real. Politicamente, ao pro- fessar e ao
ilustrar que nenhuma linguagem inocente, ao pra- ticar o que se
poderia chamar de "linguagem integral" que a lite- ratura
revolucionria. Assim, a literatura se v hoje sozinha a car- regar a
responsabilidade inteira da linguagem; pois, se a cincia,
indubitavelmente, precisa da linguagem, ela no est, como a li-
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I O rumor da Zinguu I
teratura, na linguagem; uma se ensina, quer dizer que se enuncia
e se expe; a outra se realiza mais do que se transmite ( apenas a
sua histria que se ensina). A cincia se fala, a literatura se
escre- ve; uma conduzida pela voz, a outra acompanha a mo; no o
mesmo corpo, e portanto o mesmo desejo, que est por trs de uma e de
outra.
A oposio entre a cincia e a literatura, como diz respeito
essencialmente a certa maneira de considerar a linguagem, escamo-
teada aqui, assumida l, importa muito particularmente ao estrutu-
ralismo. No h dvida de que esta palavra, o mais das vezes im- posta
do exterior, cobre hoje os empreendimentos mais diversos, por vezes
divergentes, por vezes at inimigos, e ningum pode se arvorar o
direito de falar em seu nome; o autor destas linhas no tem tal
pretenso; s toma do "estruturalismo" atual a sua verso mais
especial e, por conseqncia, a mais pertinente, entendendo sob essa
denominao certo modo de anlise das obras culturais, na medida em
que esse modo se inspira nos mtodos da lingus- tica atual. Vale
dizer que o estruturalismo, ele prprio nascido de um modelo
lingustico, encontra na literatura, obra da linguagem, um objeto
mais que afim: homogneo. Essa coincidncia no ex- clui certo
embarao, at mesmo certo dilaceramento, conforme o estruturalismo
entenda manter, com relao ao seu objeto, a dis- tncia de uma
cincia, ou aceite, pelo contrrio, comprometer e perder a anlise de
que portador nessa infinitude da linguagem de que a literatura hoje
a passagem, numa palavra, segundo se pretenda cincia ou
escritura.
Como cincia, o estruturalismo "encontra-se" ele mesmo, pode-se
afirmar, em todos os nveis da obra literria. No nvel dos contedos
em primeiro lugar, ou mais exatamente da forma dos contedos, j que
procura estabelecer a "lngua" das histrias
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1 Da cincia literutaru I
contadas, suas articulaes, suas unidades, a lgica que encadeia
umas s outras, numa palavra, a mitologia geral de que participa
cada obra literria. No nvel das formas do discurso em seguida: o
estruturalismo, em virtude de seu mtodo, d especial ateno s
classificaes, s ordens, aos arranjos; seu objeto essencial a ta-
xinomia, ou modelo distributivo estabelecido, fatalmente, por toda
obra humana, instituio ou livro, pois no h cultura sem clas-
sificao; ora, o discurso, ou conjunto de palavras superior frase,
tem as suas formas de organizao: tambm ele classificao, e
classificao significante; sobre esse ponto, o estruturalismo liter-
rio tem um ancestral prestigioso, cujo papel histrico geralmen- te
subestimado ou desacreditado por razes ideolgicas: a Retrica,
esforo de monta de toda uma cultura para analisar e classificar as
formas da palavra, tornar inteligvel o mundo da linguagem. No nvel
das palavras, enfim: a frase no tem apenas um sentido lite- ral ou
denotado; repleta de significaes suplementares: por ser de uma s
vez referncia cultural, modelo retrico, ambigidade voluntria de
enunciao e simples unidade de denotao, a pa- lavra "literria"
profunda como um espao, e esse espao o pr- prio campo da anlise
estrutural, cujo projeto bem mais vasto do que o da antiga
estilstica, totalmente fundada na idia errnea da "expressividade".
Em todos esses nveis, o do argumento, o do dis- curso, o das
palavras, a obra literria oferece assim ao estruturalismo a imagem
de uma estrutura perfeitamente homolgica (as pesquisas atuais
tendem a prov-lo) prpria estrutura da linguagem; nas- cido da
lingustica, o estruturalismo descobre na literatura um ob- jeto
tambm nascido da linguagem. Compreende-se, ento, que o
estruturalismo possa querer fundar uma cincia da literatura, ou,
mais exatamente, uma lingustica do discurso, cujo objeto a "ln-
gua' das formas literrias, tomadas em nveis mltiplos: projeto
bas-
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I O rumor dz Ingua I
tante novo, j que a literatura s foi, at aqui, abordada
"cientifi- camente" de maneira muito marginal, pela histria das
obras, ou dos autores, ou das escolas, ou pela dos textos
(filologia).
Por mais novo que seja, esse projeto no , entretanto, satis-
fatrio - ou pelo menos no suficiente. Deixa inteiro o dilema de que
se falou no incio, alegoricamente sugerido pela oposio entre cincia
e literatura, na medida em que esta assuma a sua pr- pria linguagem
- sob o nome de escritura - e que aquela a eluda - fingindo
acreditar que puramente instrumental. Em suma, o estruturalismo
nunca passar de uma "cincia" a mais (nascem v- rias em cada sculo,
algumas passageiras) se no conseguir colo- car no centro de seu
empreendimento a prpria subverso da lin-
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1 Da ciencia d literatura 1
trabalho - como nos belos tempos da ciencia positivista. A obje-
tividade e o rigor, atributos do cientista, com que esto ainda a
nos azucrinar, so qualidades essencialmente preparatrias, neces-
srias no momento do trabalho e, em funco disso, no h razo alguma
para suspeit-las ou abandon-las; mas essas qualidades no podem ser
transferidas para o discurso, seno por uma esp- cie de passe de
mgica, um procedimento puramente metonmico, que confunde aprecau@o
e o seu efeito discursivo. Soda enuncia- $50 supe o seu prprio
sujeito, quer esse sujeito se exprima de maneira aparentemente
direta, dizendo eu, quer indireta, designan- do-se como ele, quer
nula, recorrendo a formulaces impessoais; tra- ta-se de engodos
puramente gramaticais, variando apenas o modo como o sujeito se
constitui no discurso, ou seja, d-se, teatral ou fan-
tasisticamente, aos outros; todas designarn formas do imaginrio.
Dessas formas, a mais capciosa a privativa, aquela precisamente que
ordinariamente praticada no discurso cientfico, do qual o cientista
se exclui por preocupaco de objetividade; o que fica excludo sempre
apenas a "pessoa" (psicolgica, passional, bio- grfica), de modo
algum o sujeito; ainda mais, esse sujeito se compe- netra, por
assim dizer, de toda a excluso que impe espetacular- mente sua
pessoa, de modo que a objetividade, no nvel do dis- curso - nvel
fatal, no h que esquecer -, um imaginrio como qualquer outro. A bem
dizer, s a formaliza~o integral do discur- so cientfico (o das
ciencias humanas, entenda-se, pois para as de- mais ciencias isso j
largamente admitido) poderia evitar para a ciencia os riscos do
imaginrio - a menos, bem entendido, que ela aceite praticar esse
imaginrio com pkno conhecimento de causa, conhecimento que no se
pode atingir seno na escritura: s a es- critura tem o condo de
abolir a m-f que se liga a toda lingua- gem que se ignora.
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I O rumor dd lngua I
S a escritura ainda - e a est uma primeira abordagem de sua
definio - efetua a linguagem na sua totalidade. Recorrer ao
discurso cientfico como a um instrumento do pensamento pos- tular
que existe um estado neutro da linguagem, de que deriva- riam, como
outros tantos desvios e ornamentos, certo nmero de lnguas
especiais, tais como a lngua literria ou a lngua potica; esse
estado neutro seria, assim se pensa, o cdigo de referncia de todas
as linguagens "excntricas", que dele no seriam mais que subcdigos;
ao identificar-se com esse cdigo referencial, funda- mento de toda
normalidade, o discurso cientfico arroga-se uma autoridade que a
escritura deve precisamente contestar; a noo de escritura implica a
idia de que a linguagem um vasto sistema em que no se privilegia
nenhum cdigo ou, se preferir, nenhum considerado central e seus
departamentos mantm uma relao de "hierarquia flutuante". O discurso
cientfico acredita ser um c- digo superior; a escritura quer ser um
cdigo total que comporte suas prprias foras de destruio.
Conseqentemente, s a escritu- ra pode quebrar a imagem teolgica
imposta pela cincia, recusar o terror paterno espalhado pela
"verdade" abusiva dos contedos e dos raciocnios, abrir para a
pesquisa o espao completo da lingua- gem, com as suas subverses
lgicas, o amalgamar-se de seus c- digos, com os seus deslizamentos,
os seus dilogos, as suas pardias; s a escritura pode opor segurana
do cientista - na medida em que ele "exprime" a sua cincia - aquilo
que Lautramont chama- va de "modstia" do escritor.
Finalmente, da cincia i escritura, h uma terceira margem que a
cincia tem de reconquistar: a do prazer. Numa civilizao
inteiramente orientada pelo monotesmo para a idia de Pecado, em que
todo valor produto de um penar, essa palavra soa mal: h algo de
leviano, de trivial, de parcial. Coleridge dizia: "Apoem
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I Da cincia d literatura I
is tbat species o f composition wbirh is oposed to works o f
science, by purposing, for its immediate object, ppleure, not tmtb"
- declarao ambgua, pois se assume a natureza de algum modo ertica
do poema (da literatura), continua a lhe destinar um canto reserva-
do e como que vigiado, distinto do territrio maior da verdade. O
"prazer", entretanto - admitimo-lo melhor hoje -, implica uma
experincia bem mais vasta, bem mais significante do que a sim- ples
satisfao do "gosto". Ora, o prazer da linguagem jamais foi se-
riamente estimado; a Retrica antiga teve dele, sua maneira, al-
guma idia, fundando um gnero especial de discurso, votado ao
espetculo e admirao, o gnero epidctico; mas a arte clssica envolveu
o "agradar" de que declaradamente fez a sua lei (Racine: ' 6 A
primeira regra agradar...") com todas as restries do "natu- ral"; s
o barroco, experincia literria que nunca foi mais do que tolerada
em nossas sociedades, pelo menos na francesa, ousou fa- zer alguma
explorao do que se poderia chamar o Eros da lingua- gem. O discurso
cientfico est longe disso: se ele aceitasse a idia, teria de
renunciar a todos os privilgios com que a instituio social o cerca
e aceitar entrar naquela "vida literria" que Baudelaire nos dizia,
falando de Edgar Poe, ser "o nico elemento onde possam respirar
certos seres desclassificados".
Mutao da conscincia, da estrutura e dos fins do discurso
cientfico, eis o que talvez seja preciso pedir hoje, quando entre-
tanto as cincias humanas, constitudas, florescentes, parecem dei-
xar um espao cada vez mais exguo para uma literatura comu- mente
acusada de irrealismo e de desumanidade. Mais precisamen- te: o
papel da literatura representar ativamente instituio cien- tfica
aquilo que ela recusa, a saber, a soberania da linguagem. E o
estruturalismo deveria estar bem colocado para suscitar tal es-
cndalo: consciente, em alto grau, da natureza lingstica das
obras
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I O rumor da lngua I
humanas, s ele pode hoje relanar o problema do estatuto lingus-
tico da cincia; por ter como objeto a linguagem - todas as lin-
guagens -, ele veio rapidamente a definir-se como a metalingua- gem
da nossa cultura. Essa etapa deve, no entanto, ser ultrapassada,
pois a oposio entre as linguagens-objetos e suas metalinguagens
fica finalmente submetida ao modelo paterno de uma cincia sem
linguagem. A tarefa que se oferece ao discurso estrutural consiste
em tornar-se inteiramente homogneo a seu objeto; essa tarefa s pode
ser efetivada por duas vias, to radical uma quanto a outra: ou por
uma formalizao exaustiva, ou por uma escritura inte- gral. Nessa
segunda hiptese (que aqui se defende), a cincia se tornar a
literatura, na medida em que a literatura - submetida, alis, a um
constante revolucionamento dos gneros tradicionais (poema,
narrativa, crtica, ensaio) - j , sempre foi a cincia; pois o que
hoje descobrem as cincias humanas, seja qual for a ordem,
sociolgica, psicolgica, psiquitrica, etc., a literatura sempre sou-
be; a nica diferena que ela no o dhe, escreveu. Em face dessa
verdade inteira da escritura, as "cincias humanas", constitudas
tardiamente na esteira do positivismo burgus, aparecem como os
libis tcnicos que a nossa sociedade oferece a si mesma para manter
a fico de uma verdade teolgica soberbamente - abusi- vamente -
desvencilhada da linguagem.