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5 A renovao
da civilizao pelos Carolngios
A existencia de um grande espao poltico com cerca de um milho e
duzentos mil quilmetro qua-drados povoados talvez por quinze milhes
de habitantes sob a autoridade de Carlos Magno e de Lus o Piedoso s
podia favorecer o estabelecimento de uma civilizao comum. A sua
quase total coin-cidncia com o mundo cristo romano incitou a Igreja
a propor um programa de Renovatio regni Francorum. Trata-se de
criar uma nova entidade poltica por meio do baptismo dos pagos.
Este baptismo ou esta cristianizao faz com que possa falar-se de um
segundo nascimento do mundo br-baro, ou, mais precisamente, de um
re-nascimento tanto a nvel poltico atravs das inovaes de Carlos
Magno, como a nvel religioso pelas reformas de Lus o Piedoso, e
ainda a nvel social e eco-nmico atravs da introduo da vassalidade
nas estruturas do Estado e da criao de uma moeda nica. Assim se
explica a importncia da Renovao ou do Renascimento carolngio.
1. A noo de Estado
O Estado e o direito
Mal se aborda o problema da un idade poltica e da organizao
comum que administra os indivduos, isto , o Estado, deparam-se-nos
desde logo duas concepes. Relativamente aos Francos que dirigem o
reino, o poder exercido em conjunto pela nobreza dos homens livres
e pelo rei. Estes dois elementos fo rmam o Estado, esp-cie de
comunidade de pessoas sem domiclio fixo, que se autopromove
submetendo a si outros povos. Este Estado reforado pela prestao do
j u r amen to de fidelidade e pela guerra de conquista. Por vrias
vezes, Carlos Magno submete a tal j u r amen to todos os homens com
a idade de doze anos; embora a sua significao se viesse precisando
melhor com o tempo, estes j u ramen tos so em geral mal
compreendidos pelos sbditos, aos olhos dos quais o sobe-rano os
exigia porque tinha necessidade de ser apoiado, e isso in te rpre
tado como u m a confisso de fraqueza. Em contrapartida, a guerra
era necessria pois impedia que a nobreza, ocupada em bater-se, se
arrogasse local-mente demasiados poderes. Era, por tanto, uma
concep-o concreta, a deste Estado que apenas resiste pela vitria.
Os clrigos tentam ento fazer reaparecer a noo romana de Estado com
a expresso, desta vez abstracta, de respublica, a coisa pblica, o
bem comum. Renovam
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
esta expresso juntando-lhe a palavra Christiana. A Respublica
Christiana, sob Lus o Piedoso, constantemente afirmada. O imperador
, como o diz uma capitular de 823-825, zela pela Igreja, man tm a
paz e a justia, mas o seu cargo est, na verdade, de tal fo rma
dividido que saiba cada um de vs onde quer que habite e seja qual
for a cate-goria social em que se insere, que tem uma parte do
nosso fardo; por isso devo ser o vosso admonitor , de todos vs, e
vs deveis ser os meus auxiliares. Esta concepo era ainda demasiado
elevada para ser compreendida por todos, mas jamais iria
desaparecer.
A unidade do Estado devia ser completada pela uni-dade da
legislao. Carlos Magno, antes da par t ida de cada expedio militar,
utiliza a assembleia de todos os homens livres reunidos no Campo de
Maio - o chamado plaid geral - , para obter o acordo dos Grandes,
leigos e eclesiscos, para as suas decises. Estas eram ento
procla-madas e postas por escrito, captulo por captulo (capitula),
o que vale o n o m e de capitulares a estes documentos ou ordenanas
oficiais. Automaticamente, elas passam a ser exequveis, em
consequncia da proclamao verbal do soberano e do seu direito de
banum, o direito de coac-o e de punio. Carlos Magno inova q u a n d
o manda redigi-las, para reforar ou mesmo suprimir a o rdem oral.
As capitulares resolveram um nmero muitssimo maior de questes de o
rdem regulamentar do que legislativa. Com efeito, no interior do
Imprio cada povo conservara a sua lei; os Romanos mant inham a sua,
o mesmo suce-dendo com os Lombardos, os Hispano-Visigodos da
Septi-mnia, os Bvaros, os Burgndios, os Francos, etc. Carlos Magno
manda redigir a lei dos Frsios e a lei dos Saxes. A personalidade
das leis persistia, por conseguinte, impe-dindo a unidade do
Imprio. Out ro entrave a essa mesma un idade gerou-o a criao dos
sub-reinos - Aquitnia, Itlia, Baviera - , mas vimos j quais os
motivos que leva-ram os imperadores carolngios a proceder desta
forma. A diversidade tnica e regional do Imprio foi a causa
principal do colapso da unidade.
Plaid: reunio bi-anual dos ho-mens livres por ordem do rei
germnico, a fim de serem a tomadas decises ou preparar-l e a
partida de expedies mi-litares.
O governo central e os seus agentes
Os governos de Carlos Magno e de Lus o Piedoso so portanto uma
tentativa pe rmanen te de se desenvencilha-rem da herana primitiva
e faz-la evoluir para uma con-cepo mais romana de esprito, e tambm
mais eficaz. O palcio comea a fixar-se no domnio de Aix-la-Chapelle
em 794, onde Carlos Magno passa a residir regularmente a partir de
807. A sua volta, os oficiais-mores ajudam-no no seu cargo com a
confuso caracterstica da poca entre
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Senescal: de siniskalk. o mais velho dos criados. Oficial da
corte encar regado de apre-sentar os pratos.
Capela: esta designao de-corre do facto de ali estar con-tida a
relquia mais insigne do reino dos Francos, a capa ou chape (da,
chapella) de So Martinho.
Pagus: este coincide com o condado na poca merovngia e torna-se,
muitas vezes, uma subdiviso do condado na po-ca carolngia.
Honra: ver p. 105.
Hoste: exrcito. A palavra de-riva do latim hostis, o inimigo.
Mali: tribunal rgio, presidi-do pelo conde.
tarefas pblicas e tarefas privadas. O senescal e o escano
ocupam-se dos criados (valets) e da proviso da mesa em alimentos e
vinhos. Tm como principal funo a gesto dos domnios imperiais ou
fisci, cujos intendentes ou domes-tici supervisionam. O
camareiro-mor, alm dos aposentos do rei, zela pela boa ordem do
tesouro e administra-o por intermdio de exactores. O condestvel,
com os seus dois ferradores, assegura a remonta dos cavalos, os
transpor-tes de reabastecimento do exrcito, etc. O conde do pal-cio
substitui o soberano nos processos em recurso que este no pode
decidir durante as suas ausncias da corte. O organismo que mais se
assemelharia a um incio de administrao central a Capela (Chapelle),
que no se limita a assegurar o servio religioso da corte, porquanto
, dirigida por u m capelo-mor de dignidade episcopal, inte-gra todo
um pessoal de clrigos, ento os nicos letra-dos, que devem assegurar
a legislao eclesistica, o des-pacho da correspondncia oficial e a
promulgao dos diplomas rgios. Entre todos estes escrives e notrios,
aparece, no final do re inado de Carlos Magno, u m pro-tonotrio que
recebe tambm o n o m e de chanceler, po rque normalmente pe rmanece
de p na Capela j u n t o do chancel (cancelo, a vedao em pedra
insculpida que separa o santurio do resto da baslica). Ocupa-se dos
arquivos do palcio, r ecen temente criados, onde se con-servam
todos os documentos enviados ao rei e as cpias dos que este
expediu.
A ordem intimada do palcio era executada a nvel do condado. H
cerca de trezentos condados n o Imprio, divididos em pagi ou em
gau. O condado dirigido por um conde, o pagus por u m vigrio e o
gau por u m cente-nier (administrador da centaine, diviso
territorial f ranca) . Escolhido pelo rei, o conde pode ser por
este transferido ou exonerado; r emunerado com o usufruto de
rendi-mentos de bens fundirios imperiais ao qual se d o nome de
honor ou comitatus. Responsvel por numerosas fun-es, este executa
as ordens reais e convoca os homens livres para a expedio anual (a
hoste); assegura a presi-dncia do tribunal rgio, o mall pblico,
razo de trs sesses por ano no mnimo, em cada subdiviso do con-dado
para as causas maiores. Com ele deviam trabalhar entre dez a doze
pessoas, o que perfaz um total de trs mil servidores encar regados
de adminis t rar o Impr io carolngio, um pessoal tanto mais
reduzido quanto se sabe que o Imprio Romano, s na cidade de Trves,
manti-nha dois mil funcionrios! Por aqui se compreende como seria
difcil para Carlos Magno controlar todos os seus ter-ritrios com to
escasso enquadramento . O Imprio est, de facto, subadministrado. Em
alguns casos, Carlos Magno recorre ao margraviado, agrupando
condados que confia
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
a um duque ou a u m markgraf. Situados nas fronteiras, estes
territorios vivem n u m estado de guerra permanente , tornando-se
indispensvel a presena de um chefe dotado de todos os poderes. As
marcas mais importantes eram as de Espanha, da Bretanha e as que
estavam estabelecidas face aos Dinamarqueses, aos Vendes e aos
Avaros.
Para impedir que tais agentes, em nmero to redu-zido, viessem a
converter-se em dspotas locais, Carlos Magno refora a instituio dos
missi dominici. Estes envia-dos rgios, circulando em nmero de dois
ou de trs, na maior parte dos casos u m conde e u m bispo, aparecem
por volta de 779, tendo como tarefa investigar sobre even-tuais
abusos, propor sanes, presidir ao tribunal, etc. So eles que
asseguram u m mnimo de coeso ao Imprio, e quando no conseguem pr
cobro aos excessos de poder dos condes, Carlos Magno pode ento
utilizar um outro meio, a imunidade, que o imperador en tende
reforar com a criao dos avous leigos; a estes cabe assegurar a
defesa dos bens do imunizado, bem como adminis-trar o seu pessoal.
Desta forma, o conde j no pode exer-cer a sua arbitrariedade. Por
ltimo, e ainda animado pelo mesmo desejo de reforar a solidez do
seu imprio, Carlos Magno introduz a vassalidade no Estado, ao
sistematizar a unio do benefcio com o vnculo pessoal. O monarca
exorta todos os homens livres a ent rarem na obedincia de um senhor
atravs da cerimnia da recomendao. Em troca do servio militar desse
homem recomendado, o senhor obrigado a oferecer-lhe o usufruir
vitalcio de um dos seus prprios bens fundirios. O servio do
vas-salo o mbil do benefcio. Criava-se, deste modo, toda uma
hierarquia de subordinaes, que atingia o prprio Carlos Magno, o
qual tem ligados a si os vassi dominici, a quem concede chasement
nas suas terras. Por outro lado, obriga bispos e abades a entrarem,
tambm eles, no sistema da recomendao. Com esta rede de fidelidades
entre-cruzando-se e culminando na sua pessoa, contava o impe-rador
levar o edifcio poltico a assentar no respeito da palavra dada, na
f j u rada sobre os Evangelhos ou sobre relquias, e, sobretudo, nas
obrigaes mtuas entre senhor e vassalo.
Markgraf (margrave, mar-qus): isto , o conde de uma marca.
Marca: zona fronteiria inde-cisa, estabelecida contra os pa-gos ou
os Sarracenos com ex-cepo da da Bretanha.
Imunidade: ver p. 59. Avou: ver p. 106.
Recomendao: ver pp. 59 e 91.
Vassi dominici: vassalos parti-culares do rei. Chasement:
chaser: instalar al-gum, em regime de domic-lio, nas suas terras
(casatos).
Os meios de governao
Concepo e organizao polticas eram sustentadas por poderosos
meios de aco. O exrcito era entre estes o principal, na medida em
que a guerra u m a institui-o pblica, a mais importante de todas.
Teoricamente, todos os homens livres esto obrigados ao servio
militar, a expensas suas, e so convocados no Campo de Maio para
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Broigne: tnica de couro co-berta de placas de ferro
cosi-das.
Villa: verp. 49.
Freda: a tera parte das coi-mas judiciais que vai para o
rei.
chevinage, chevin: (almo-taaria, almotac) do scabinat carolngio.
Corpo de magis-trados municipais que julgam em nome do senhor, e em
se-guida dirigem a administrao das comunas.
Ordlio: ver p. 59.
Faida: vingana obrigatria do parente de uma vtima sobre a famlia
do assassino.
expedies que duram, no raro, trs meses ou mais. Na prtica, porm,
acabam por ser convocados s os vassalos e os homens livres que
habitam perto da regio onde vai ter lugar a refrega; os casos de
desero so punidos com a morte. Em geral, a infantaria desempenhava
u m fraco papel; f r equen temente , a cavalaria pesada que dita a
deciso, graas ao seu equipamento. Com efeito, o cava-leiro usava em
combate uma broigne, u m a espada com-prida e uma lana. Mas como
todo este a rmamento ficava aproximadamente pelo preo (elevadssimo)
de duas deze-nas de vacas, o nmero destes cavaleiros era escasso.
Em 811, quatro exrcitos operavam n o Elba, n o Danbio, no Ebro e na
Bretanha. Cada exrcito integrava de seis a dez mil pees e entre
2500 e 3000 cavaleiros, 800 dos quais couraados. O facto de contar,
na maior parte das vezes, com tropas to fracas numer icamente
explica que Carlos Magno tenha recorrido ao massacre e ao terror
para garan-tir a vitria.
Outro meio de aco de Carlos Magno era a sua riqueza, e muito par
t icularmente a sua riqueza fundir ia . E com um zelo cioso que ele
gere os seus domnios (fiscos), como o demonst ra a sua capitular De
villis. Se esbanjava este capital a conceder terras aos seus
vassalos, recupe-rava-as con tudo em seguida, pela mor te destes
ltimos. Mas sob Lus, o Piedoso, o engrandec imento desse capi-tal
viria a parar com o fim das guerras e, demais, o impe-rador faz
concesses de terras em regime de p lena pro-priedade e no a ttulo
de usufruto vitalcio, o que precipita o seu decrsc imo. Os ou t ros
r e n d i m e n t o s consis t iam sobretudo em coimas judiciais
(freda), coimas por recusa de ingresso n o exrcito (heriban),
impostos indirectos, nomeadamen te portagens, o imposto do
terrdigo, etc. O imposto directo romano , to rnado consuetudinrio,
mantido sob formas e vocbulos mas elucidados. Recursos, em suma,
mais ligados com a guerra exterior do que com a paz interna.
Para alcanar essa paz, era necessria uma justia eficaz. E neste
domnio que se revela mais forte a influncia de Carlos Magno. As
suas capitulares comportam prescries numerosas dest inadas a
melhorar a justia do t r ibunal condal. Cria, em particular, juzes
profissionais, os che-vins - almotacs - , sete por cada tribunal
condal. Esfora--se por desenvolver a prova por tes temunho ou por
ave-riguao a fim de pr cobro a u m processo oral cujos principais
meios de aco continuavam a ser os co-jurado-res ou o ordlio.
Organiza o recurso ao tribunal do pal-cio no caso de falsos
julgamentos. Todavia, apesar de todos estes esforos e a despeito da
inf luncia da Igreja que intervinha com frequncia para humanizar as
sentenas, a crueza das penas, a perpetuao da faida, a corrupo
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
dos juzes persistiram. Nada mais" dramtico nem to revelador como
este m u n d o de violncia em constante choque com os esforos cont
nuos de paz e de ordem dos imperadores carolngios.
2. A Igreja
Face ao Estado
A fraqueza desta governao que no consegue domi-nar este
aglomerado de reinos e de povos to diversos na sua totalidade
explica o recurso cont nuo Igreja, a nica fora moral e material
expandida por todo o Imprio a ponto de confundir-se com este ltimo.
Ela o cimento de uma unidade constantemente pretendida, mas jamais
alcanada. Melhor do que o servio militar ou o juramento exigido a
cada h o m e m livre, melhor do que os condes, os missi ou os
vassalos, o sermo do padre da parquia pode transmitir a vontade
rgia e robustec-la pela obe-dincia que todo o cristo deve ao rei,
at aos pontos mais recuados do Imprio. Ela , por tanto, o principal
auxiliar do Estado, que se esfora por renovar do mesmo modo que
renovou a ideia real ou a ideia imperial. Vimos a que ponto Carlos
Magno, ao contrrio de Lus o Piedoso, sem-pre quis t-la totalmente
na mo. A deciso do impera-dor indispensvel para a ent rada no
clericato; o impe-rador nomeia todos os bispos e por vezes at os
abades, ou ento nomeia, a par dos abades regulares, abades lei-gos;
incita o clero a entrar na vassalidade, obriga os grandes
dignitrios a participar nos plaids gerais, a dirigir o seu
contingente de homens livres na guerra, a vigiar os condes,
nomeando-os missi dominici, etc. As suas capitulares legis-lam
sobre a Igreja e esto pejadas de consideraes de moral crist.
Preside, em suma, aos conclios.
Esta confuso do espiritual com o temporal teve como principal
resultado ajudar a Igreja a acelerar a sua reforma, empreendida no
sculo Viu. Duas geraes de grandes bis-pos representam este duplo
renascimento da Igreja, o pri-meiro sob Carlos Magno com
Angilramno, bispo de Metz, Teodulfo, bispo de Orlees, o segundo sob
Lus, o Piedoso, com Jonas, bispo de Orlees e Agobardo, bispo de
Lyon, etc. A primeira gerao reorganiza, ao passo que a segunda se
esfora para aplicar um programa. De igual modo, no plano
intelectual, a primeira situa-se ao nvel da apren-dizagem das
letras, enquan to a segunda vai elaborar um pensamento que conduz
ao renascimento da Filosofia.
Abade leigo: espcie de vassalo do prncipe que presta o ser-vio
militar em troca da frui-o de uma parte das terras monsticas.
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esta, em particular, qu pensa a estrutura social divi-dindo-a em
trs ordens: a o rdem dos clrigos, a ordem dos monges e a ordem dos
leigos.
Corepscoco: bispo itinerante nomeado por um bispo titu-lar na
sua prpria diocese pa-ra o a judar a administrar o campo. Prebenda:
parte da renda da mensa reservada a um cnego para cobrir a sua
alimentao e manuteno. Dzimo: dcima parte da co-lheita que verte
para o clero no quadro da parquia.
Os clrigos
A primeira ordem compreende os bispos, os procos e os cnegos. A
re forma episcopal fica mais ou menos concluda por volta de 814 com
o estabelecimento dos arcebispados em substituio das metrpoles
extintas. Ao bispo .cabem ento mltiplas tarefas, nomeadamen te
visi-tar todos os anos as parquias rurais e as igrejas privadas per
tencentes aos grandes proprietrios que as constru-ram nos seus
domnios, criar escolas de chantres e de lei-tores, zelar pelos
mosteiros, nomear os corepscocos no caso do seu bispado ser
demasiado grande, pregar e defen-der a f, ocupar-se, em suma, do
servio da catedral com os cnegos. Estes ltimos, desde a poca de
Crodegango, bispo de Metz em meados do sculo viu, esto sujeitos a u
m a regra comum (generalizada no Conclio de Aix de 816). Os cnegos
p o d e m possuir alguns bens prprios, mas esto adstritos ao
refeitrio e dormitrio comuns. As rendas dos bispos so divididas em
duas partes: a mensa (ou mesa) episcopal, e a mensa capitular (ou
mesa dos cnegos). Esta segunda mensa dividida em tantas pre-bendas
quanto o n m e r o de cnegos; a p rebenda cobre as necessidades do
cnego. Finalmente, surgiria uma legis-lao episcopal, os estatutos
sinodais, que vem regula-mentar a situao dos diconos e sacerdotes.
Esta ocupa--se em particular da sua instruo, ao mesmo tempo que
refora a prtica do celibato. Ao nvel dos meios materiais do clero
paroquial, o problema da confiscao das terras da Igreja pelo
soberano solucionado por meio de uma compensao imposta em 779 no
mbito de uma capitular: doravante, toda a terra, as terras reais
includas, era deve-dora do dzimo s igrejas rurais. Um quarto do
dzimo deveria ir para o bispado.
Os monges
Se o bispo carolngio teve u m papel bri lhante e figu-rou em
muitos casos nas primeiras filas da aco poltica, j o abade tem um
perfil mais modesto. Parece, primeira vista, que Carlos Magno
alimentava uma certa desconfi-ana em relao aos mosteiros onde se
abrigavam homens livres, o que contribua, inevitavelmente, para
diminuir o seu potencial militar. A eleio livre do abade pelos seus
monges no agradava ao monarca , de f o r m a que este nomeia , em
muitos casos, alm do abade regular , u m
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
abade leigo, o qual, em troca da fruio das terras abadais, lhe
prestava o servio militar. Carlos Magno utilizou os monges como
missionrios, essencialmente na Saxnia e na Carntia, mis turando
pregao e terror, instalao da hierarquia , criao de mosteiros e bapt
ismos forados. Nunca encorajou, no entanto , misses para o exterior
do Imprio, como o faria mais tarde seu filho. Lus, o Piedoso, teve,
com efeito, u m a ati tude comple tamente d i ferente para corii os
monges , por quem nutr ia particular venera-o. So Bento de Aniana
impeliu-o a pr em prtica u m a re fo rma geral do m u n d o
monstico. A capitular de 10 de J u l h o de 817 reaf i rmava a obr
igao da Regra de So Bento de Nrs ia e m todos os conventos, mascul
inos e femininos, n u m desgnio de conferir ao culto e orao u m pr
imado absoluto em det r imento das funes de evan-gelizao e cultura.
O trabalho manual torna-se de novo obrigatrio, a escola monst ica
fica reservada aos oblatos, a clausura das religiosas severamente
observada. Pouco a pouco, esta r e fo rma acabou por se consolidar,
no total-mente isenta de alguma resistncia, j que os leigos t inham
u m a certa repugnnc ia em aceitar a l iberdade de eleio do abade.
Em todo o caso, os mosteiros tornaram-se centros de mlt iplas funes
: agrcola, espiri tual e intelectual .
Oblatos: jovens oferecidos (oblati) pelos seus pais ao cui-dado
dos monges para que es-tes se encarregassem da sua educao.
A cultura
Se os mosteiros, atravs das suas duas escolas, in terna e
externa, a sua biblioteca e o seu scriptorium estiveram na base do
Renascimento carolngio, no foram, contudo, os seus iniciadores. A
obra de Carlos Magno foi, neste aspecto, capital. E ele quem ordena
, na clebre capitular Admonitio Generalis de 789, que, em cada
bispado, em cada mos-teiro, se administre o ensino dos salmos, das
notas, do canto, do cmputo , da gramtica, e que se t enham livros
cuidadosamente corrigidos. Nos ltimos vinte anos do sculo viu, u m
imenso esforo levado a cabo. Era neces-srio, em pr imeiro lugar e u
m a vez feita a r e fo rma ecle-sial, passar re fo rma da liturgia.
Carlos Magno pede ao papa, em 774, u m a coleco inteira dos textos
conciliares e decretos pontificais a fim de unificar a legislao
ecle-sistica n u m texto de base. Em 786, ob tm Paulo I u m
sacramentr io g regor i ano que lhe pe rmi te e l iminar as
liturgias locais, galicana, visigtica ou irlandesa. Da par-tiria
toda u m a revoluo musical com a inveno da poli-fonia, por meio do
neuma , sinal que permite marcar a altura de u m som n u m a part i
tura, e do t ropo, slaba de um texto colocada sob u m neuma, bem
como conservar uma composio musical. Assim se lanavam as bases do
cont raponto meldico que du rou at ao Traite d'harmonie de Rameau
em 1750.
Scriptorium: ver p. 53.
Cmputo: clculo dos dias e dos meses para as festas m-veis de
natureza religiosa.
Sacramentrio: livro litrgico contendo as frmulas para a
administrao dos sacramen-tos.
Tropo: justaposio de uma slaba de um texto com uma nota da
melodia. Contraponto: tcnica musical em que se justapem neumas e
tropos em duas ou trs melo-dias, ou ento sobre dois ritmos
diferentes, sem possibilidade de suprimir as dissonncias.
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Epopeia: poema composto em torno de um acontecimento militar, ap
rend ido de cor, transmitido por via oral, am-plificado pela
imaginao cria-dora dos contadores ao longo dessa mesma
transmisso.
Artes liberais: ver p. 52.
O aperfeioamento dbs manuscritos traduziu-se nou-tros tantos
progressos. Alguns escribas da abadia de Crbia introduziram em 770,
a partir de uma minscula anglo--saxnica, u m a letra minscula
redonda que hoje designa-mos por minscula carolina, e que ainda
actualmente, sob o n o m e de romano, o carcter de base de todos os
tipgrafos. Graas a esta caligrafia mais clara e mais ntida, possvel
recopiar-se inmeros manuscritos. Com o incre-mento do nmero de
escolas, sobretudo depois do Conclio de Mogncia de 813 que o rdenou
a criao de escolas rurais para a formao de jovens prelados, cresceu
a neces-sidade de bblias em abundncia. Alcuno, por exemplo, m a n d
a introduzir u m a delas, e Teodulfo publica igual-mente uma Bblia
crtica com as diferentes variantes dos manuscritos. Os autores
pagos no so deixados de lado. As bibliotecas mansticas do Ociden te
recheiam-se na poca de textos latinos clssicos e de autores da
Patrstica, mas pouco eu em menor nmero dos gregos. Muitas das edies
actuais de obras antigas apoiam-se em manuscri-tos carolngios do
sculo ix.
Nascimento das lnguas europeias. O mais espantoso que esta
redescoberta do latim clssico se opera justa-mente quando as
pessoas cessavam de falar essa lngua. O Conclio de Tours em 813
ordenou que todos os padres passassem de fu turo a pregar em lngua
romana rstica ou germnica. O antigo francs ou o alto-alemo esto,
por conseguinte, largamente difundidos nesta poca. Na mesma ocasio
em que aparecem os primeiros textos em lngua germnica, o catalo
comea a diferenciar-se do fu tu ro castelhano. Na prpr ia Glia, um
fraccionamento lingustico tem lugar entre a lngua ao Norte do
Loire, a que se chamaria mais tarde l ngua de oil (langue d'oil) e
outra, mais prxima do latim, que vai chamar-se occitano ou lngua de
oc (langue d'oc). Assim, as lnguas europeias aparecem ni t idamente
constitudas no momen to em que o latim ganha o seu impulso como
lngua mor ta univer-sal. Nestas diferentes lnguas nasceria uma
outra cultura. Carlos Magno manda, nomeadamente , pr por escrito os
poemas picos germnicos, dos quais, infelizmente, nada substitui.
Epopeias em lngua romnica eram transmiti-das ora lmente de gerao em
gerao, como a clebre Chanson de Roland. Provavelmente, teria
existido toda uma cultura popular de iletrados, se bem que quase
nada tenha restado.
A primeira gerao de letrados. Em concluso, os cl-rigos tm prat
icamente o monopl io da cultura letrada e erudita. Os grandes
escritores carolngios que, finalizada a aprendizagem do saltrio e
dos dois ciclos das artes libe-rais, fo rmam a melhor pena da poca,
per tencem quase todos Igreja. As obras pedaggicas de Alcuno, a
Histria
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
dos Lombardos de Paulo Dicono, os poemas de Teodulfo, os Anuales
escritos nos mosteiros so obras de clrigos. O nico leigo da sua
gerao a escrever, e mesmo assim tardiamente, Eginardo, deixou uma
biografia clssica de Carlos Magno a tu lhada de expresses inspi
radas em Suetnio, mas de enorme valor histrico. Na segunda gera-o,
os f ru tos deste renasc imento intelectual so mais importantes. As
obras de reflexo poltica de Jonas, de Agobardo, o de Adalhardo, a
poesia religiosa de Walafrid Strabon ou de Sedulius Scott, as
cartas de Lupo, abade de Ferrires, revelam uma maior matur idade e
uma mais manifesta originalidade. A Histria dos filhos de Lus o
Piedoso, da autoria de Nitardo, uma obra histrica de um leigo
preocupado com a autenticidade e a exactido: a ele se deve a
conservao do texto dos juramentos de Estras-burgo de 842, os mais
antigos tes temunhos das lnguas francesa e germnica. Os progressos
foram tais que a des-truio das bibliotecas pelos Escandinavos no
compro-meteram em nada semelhante renascimento.
Juramentos de Estrasburgo: ver p. 98.
I A arte carolngia
Este renasc imento viria a traduzir-se igualmente no plano
arquitectnico e pictrico. O culto das relquias, a adopo de uma nova
liturgia exigiam novos tipos de igre-jas ou de mosteiros. As
criptas, espcie de construes abobadadas semi-enterradas nas
extremidades ocidental e oriental das naves, desenvolveram-se
bastante. Acrescen-tam-se mausolus cabeceira, santurios-tribunas no
pri-meiro piso das torres de fachada. O mais belo edifcio, e de
longe o mais completo , evidentemente, a Capela de Aix, lembrando,
pela sua planta e o seu simbolismo, os palcios bizantinos, o Santo
Sepulcro de Jerusalm e o baptistrio de So Joo de Latro em Roma.
Esta arte caro-lngia que se p re tende antiga faz alternar os
mrmores matizados, a pedra talhada em cubo com o tijolo alon-gado,
como se v na por ta triunfal de Lorsch. O interior das igrejas era
sumptuosamente ornamentado com mosai-cos de fundo dourado como a
que subsistiu em Germigny--des-Prs, ou com frescos cobrindo as
paredes de alto a baixo como em Saint-Germain-d'Auxerre ou em
Saint--Jean-de-Mustar. A escultura reaparece , em relevo ate-nuado,
nos cancelos. O trabalho do marfim e dos metais preciosos permite a
criao de clices, relicrios e mol-duras dotadas de uma sumptuosidade
destinada a criar uma impresso de pujana fora do comum. As
miniatu-ras dos manuscritos, onde convergem influncias bizan-tinas,
irlandesas ou antigas, revelam temperamentos arts-ticos novos,
penadas de uma delizadeza extraordinria de sugesto, como no caso do
autor do Saltrio de Utreque,
A abadia carolngia de Saint-Riquier
Reconstituio segundo Effmann.
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ou atmosferas atormentadas de uma imensa intensidade como no
iluminista do Evangelirio de Ebbon. Todas as bases da arte
ocidental esto aqui lanadas: sentido da l inha e do volume, jogo
das cores, recusa da arte pela arte, afirmao de uma grandeza h u m
a n a e divina.
3. Os leigos
A aristocracia
Face ao poder io da Igreja, a terceira ordem, a dos lei-gos, est
em ntida posio de inferioridade. E a partir da poca carolngia que a
identificao entre leigo e iletrado se instala. No seio dos Grandes,
os homens cultivados so rarssimos, o que no obsta a que as famlias
nobres domi-n e m o m u n d o laico e evoluam graas ex tenso do
Imprio e aos favores imperiais no sentido de u m verda-deiro
cosmopolit ismo. Atravs das suas alianas com a famlia real ou com
as nobrezas locais, por meio das nomea-es dos condados, elas
implantam-se rap idamente um pouco por todo o lado, absorvendo
antigas famlias sena-toriais ou antigos chefes de tribos germnicas.
Para con-des, Carlos Magno escolhia quase exclusivamente Francos da
Austrsia, Hispano-Visigodos, Lombardos ou Bvaros, a fim de moderar
a tendncia desta aristocracia a implan-tar-se nas regies
administradas. neste contexto que o Austrasiano Gui lherme n o m e
a d o conde de Toulouse em 790. Este heri de cano de gesta,
vitorioso contra os Sarracenos, retira-se para u m convento que
funda ra em 804. Um pouco mais tarde, porm, vamos encontrar seu
filho Bernardo, marqus da Septimnia e em seguida camareiro de Lus,
o Piedoso. Conspirador arrojado e sem escrpulos, acabaria por ser
acusado de lesa-majestade por Carlos, o Calvo, e executado em 844.
O seu filho mais velho, Gui lhe rme , comete traio e execu tado em
Barcelona em 850. O fi lho mais novo, Bernardo, faz o mesmo mas
consegue a indulgncia do soberano e torna--se marqus da Septimnia e
conde de Auvergne. Final-mente , o seu neto Guilherme consolida em
definitivo a independncia do ducado da Aquitnia e f u n d a o
mos-teiro de Cluny em 909. Os bens desta famlia germnica importada
para o Midi francs estendiam-se na altura da Austrsia regio de
Toulouse, passando por Autun, Mcon e Auvergne. Bastaram duas geraes
para deitar a pe rder toda a poltica de Carlos Magno. No obstante,
pode dizer-se que at sensivelmente 840 esta aristocracia se manteve
fiel aos imperadores e aos reis.
Cano de gesta: epopeia ver p. 88.
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
Unio da vassalidade' e do beneficio
Como foi possvel que Carlos Magno tivesse visto o perigo do
crescimento do poder dos nobres e nada fizesse para o travar? E, na
realidade, o seu filho quem vai rom-per o equilbrio ent re os bens
fundir ios do fisco e os bens fundirios concedidos nobreza em
regime de usu-fruto. A partir do seu reinado, os primeiros d
iminuem regularmente m proveito dos segundos. Alm disso, um simples
conde pode ter sob a sua direco trs espcies de bens: as suas
propriedades pessoais ou familiares, adqui-ridas por compra ou
recebidas em dote ou testamento, depois de seus honores, bens
recebidos a ttulo tempor-rio pelo seu servio de conde, e por ltimo
os seus bene-fcios recebidos a ttulo vitalcio aps o j u r amen to
de recomendao. Ultima fonte de poderio deste nobre: os vassalos que
eventualmente reuniu sua volta. Alis, o prprio Carlos Magno
encorajou esta evoluo para u m a sociedade vasslica englobando
todos os homens livres, atravs da cerimnia da recomendao, a qual
era igual-mente praticada ao nvel dos simples vassalos. Aps o
ritual da postura das mos nas do senhor e prestado o juramento de
recomendao, seguia-se a investidura do benefcio, com a ajuda de um
smbolo - u m torro de terra ou u m ramo guarnecido de folhas - que
era suposto representar a fruio da terra concedida (e no a sua
propr iedade) . Assim, por meio de uma cadeia de juramentos ,
formava--se como que uma pirmide desde o rei aos vassalos
ordi-nrios, passando pelos vassalos rgios. Carlos Magno pre-cisou
bem que os contratos concludos nestes termos eram indissolveis,
salvo em caso de crime ou de injustia do senhor para com o vassalo.
Isto era igualmente vlido para os vassalos eclesisticos. O
imperador esperava por este meio reforar o Estado, mas o certo que
seu filho Lus, : Piedoso, deixou desenvolver-se o poder io da
aristocracia. As partilhas do seu reinado obrigaram os nobres que
muda-vam de rei a novas prestaes de juramentos , enfraque-:endo com
isso a fora do vnculo pessoal em proveito do vnculo material.
Precisemos contudo que estas instituies vasslicas se aropagam
sobretudo em pas germnico, e muito parti-cularmente entre o Reno e
o Loire. Nas regies meridio-nais da Frana e na Lombardia, apesar do
encora jamento que merecem da parte dos reis carolngios, elas
perma-necem embrionrias. Existe to-somente o j u r amen to de
delidade, mas sem nunca se lhe ligar o benefcio, ressal-vado o
caso, evidentemente, dos agentes rgios francos. O mesmo se aplica s
outras categorias sociais laicas, as 3o m u n d o rural onde
escravos, colonos e homens livres tn t ram, pouco a pouco, no
quadro do senhor io rural .
Honores: ver pp. 82 e 105.
Recomendao: como a de Tassilon em 757 que se recomenda em
vassalagem pelas mos. Este prestou mltiplos e inmeros juramentos,
colocando as mos sobre as relquias dos Santos. E prometeu
fidelidade ao rei Pepino e a seus filhos sobreditos, os senhores
Carlos e Carlomano, do mesmo modo que por direito um vassalo deue
faz-lo com um esprito Uai e uma firme devoo, que assim manda que o
seja um vassalo com o seu senhor.
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B Escravo e servo
Villas: ver pp. 84 e 49.
Mali: ver p. 82.
A maior par te da populao est ligada, nesta poca, ao trabalho
nos campos, nas grandes propr iedades fun-dirias aristocrticas que
eram as villae. O escravo do tipo ant igo s subsiste ve rdade i
ramen te no Midi, ou en to passa a p e r t e n c e r ao pessoal da
casa pa ra os servios domsticos. Alojado (casatos) algumas vezes n
u m mansus qu"e ele prpr io cultiva, imperceptivelmente a sua
con-dio econmica difere cada vez mais da sua condio jurdica. O
trfico de escravos, depois de ter conhecido u m a recrudescncia
impor tante sob o re inado de Carlos Magno, diminui com a cessao
das guerras. Como dora-vante proibido reduzir u m cristo
escravatura, a nica alternativa uma verdadeira caa ao homem ent re
os Eslavos pagos. Uma vez que a Igreja reconhece a vali-dade do
casamento dos escravos, o rdena padres os escra-vos libertos e
encoraja a l iberdade em geral, a persona-lidade jur d ica do
escravo emerge . Como, em suma, mais fcil exigir do escravo ou do
colono a prestao de corveias uns quantos dias por ano nas terras do
d o n o do que vigiar d iar iamente ao pon to de se fund i r com o
regime do colonato. Os colonos, com efeito, incapazes de responder
s convocaes no mal condal ou impedi-dos pelo seu patro, caem n a
sujeio do seu pode r de coaco. A sua condio ju r d ica deteriora-se
at u m a semi-liberdade anloga dos escravos. Demais as terras que
ocupam so designadas da mesma fo rma que os seus usufrutur ios:
manses livres, ao passo que s terras dos escravos se chamava
servis. Desde o re inado de Carlos Magno, vo-se encon t ra r
escravos n u m mansus livre, e vice-versa. Nesta confuso de
estatutos, a passagem da escravatura e do colonato a u m novo
estado chamado servido faz-se de um modo imperceptvel, sem grande
abalo social. O servo que se esboa n o sculo ix, um dependente
total do senhor, um no-livre. Daqui para diante, para distinguir o
campons livre do servo, apenas existe, dada a ident idade de condio
econmica e a mis-tura dos estatutos jurdicos, u m nico critrio: o
nasci-mento . E-se livre ou no-livre por nascimento. Quan to aos
pequenos proprietrios livres cujas terras comeam a designar-se pelo
te rmo de aldios, a nossa documen-tao rarssima no deve no entanto
levar-nos a concluir que fossem em p e q u e n o nmero . Eles
existem, mas no os conhecemos.
O grande domnio
O sistema agrrio assenta no grande domnio que parece ter sido
criado em toda a sua exemplaridade entre
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
o Sena e o Reno, como o comprovam os polpticos, em particular o
de Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prs, no incio do sculo ix.
No centro, encontra-se doravante a reserva (terra indominicata),
conjunto de terras arveis, vinhas e pastos, com um centro de
explorao chamado curtis ou pao dominial - casas de habitao do
proprie-trio, anexos de explorao, o moinho, a prensa, as
des-tilarias, etc. Toda esta rea estava sob explorao directa. Mas
por quem, se o nmero de escravos vinha diminuindo? Pelos rendeiros
(tenanciers) das terras situadas na segunda parte do domnio: os
manses. Alm do t rabalho que fazem nas suas tenures (concesses) os
rendeiros devem por tanto a judar na cultura da reserva. E uma
maneira de pagarem a renda do seu mansus ao proprietrio. Alguns,
quando tenham recebido um lote-corveia includo na reserva, devem
cultiv-lo por inteiro durante todo o ciclo anual. Outros, so
obrigados a de terminado n m e r o de dias de trabalho na reserva,
por exemplo, trs dias por semana entre os Bvaros, de fo rma a efec
tuarem ali as grandes operaes agrcolas: arar, semear, ceifar,
vindimar, malhar o centeio ou a cevada, e assim por diante. Devem,
alm disso, efectuar trabalhos de valagens ou fazer car-raas com os
seus prprios animais para transportes ou excedentes da reserva,
tambm chamada domnio, a u m ou outro local de venda. Acrescentemos
por ltimo, como outras modalidades de prestaes, as rendas em gneros
ou, mais raramente, em dinheiro. De qualquer maneira, semelhana da
poca merovngia, a floresta natural e os espaos incultos eram comuns
s varas de porcos do pro-prietrio e do rendeiro. A madeira, o mel,
a carne do javali, os frutos e as bagas silvestres constituem
sempre um com-plemento indispensvel para os legumes da horta e para
o po. A economia recolectora no perde os seus direitos.
Este modo de produo agrria, a que tambm se cha-mou nos Pases
Baixos e na Inglaterra o sistema do manoir ou vianor (domnio
feudal) , foi rentvel. Os rendimentos foram certamente superiores a
trs para um, sempre que possvel obt-los. As alfaias so
insuficientes, o fe r ro escasseia, a ausncia do es t rume ou do
adubo total, excepto para as hortas, a rotao trienal das culturas
est pouco difundida. Assim se explica, apesar de u m certo
incremento populacional no tempo de Carlos Magno, a ameaa constante
da subalimentao. Os grandes dom-nios no so mais, por ora, do que
ilhotas de cultura, superpovoados po r vezes, n o me io de espaos
vazios. Estendem-se at ao Loire. Os desbravamentos so rarssi-mos,
excepto nas extremidades do Imprio, na Baviera ou na Septimnia.
Quanto aos outros tipos de explora-o, a sua caracterstica principal
a separao entre a reserva e as tenures. Na Lombardia ,
verificava-se a exis-
Polptico: registo de direitos e de rendas escrito primeira-mente
sobre tabuinhas ligadas umas s outras, e depois so-bre um conjunto
de folhas de papiro. Manse (mansus): teoricamen-te, o manse suposto
alimen-tar uma famlia de campone-ses. A sua rea calculada em funo
disso; pode ser lavra-do com um arado e uma jun-ta de dois ou quat
ro bois. Aquela superfcie varia gran- ' demente consoante as regies
e segundo o estatuto, servil ou livre. De qualquer modo, to-das
estas unidades de cultivo pertencem ao proprietrio e constituem uma
unidade fis-cal. Ver tambm p. 50.
Rotao trienal: ver p. 136.
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tncia de a r rendamentos temporrios entre proprietrios e
camponeses. O grande domnio produzia excedentes que era possvel
escoar e comercializar.
1 libra = 20 soldos = 240 den-rios. 1 soldo = 12 denrios. A nica
moeda que circula o chamado denrio. Para per-fazer uma libra so
necess-rios 240 denrios. Este sistema da libra, do soldo e do
denrio estendeu-se a toda a Europa ocidental. Em Frana, durou at
Revoluo, e na Ingla-terra at Fevereiro de 1971. Moeda de conta un
idade monetria fictcia que no cor-responde a uma moeda real-mente
cunhada, mas que per-mite adicionar e multiplicar a moeda em geral,
cunhada ou no.
Vid: ver p. 50.
BBWIWWBIW
Doge: o mais alto magistrado veneziano desde os finais do sculo
viu. Eleito a ttulo vi-talcio, primeiro pelo povo in-teiro depois
por um colgio restrito de patrcios, ele en-carna a majestade da
Rep-blica.
As trocas
Com efeito, nem mesmo o grande domnio clssico t inha capacidade
para se bastar a si prprio; havia sem-pre necessidade de comprar,
ou fosse o ferro para os diver-sos utenslios, ou o sal para a
conservao da carne, ou o vinho nas regies no vincolas. Mas, para
tanto, era neces-sria uma moeda de fraco poder de compra e acessvel
a todos. Foi esta a razo que levou Carlos Magno a adoptar
definitivamente a prata como estalo monetrio. Atravs da sua reforma
do Inverno de 794, revaloriza o denrio de prata em 25 por cento; da
em diante, este passa a pesar 1,70 g, a partir de uma libra de 409
g. O sistema comporta duas moedas de conta, a libra e o soldo,
utili-zados nas transaces. O imperador soube, simultanea-mente,
suprimir as cunhagens privadas, manter em oficinas existentes em
nmero fixo o monopl io rgio. Tratava-se afinal de orientar a
economia para o espao nrdico e estimular as trocas locais. Uma
capitular de Carlos Martel datada de 744 autorizou a criao de
mercados rurais nos vid. Estes multiplicaram-se: aqui se trocavam
os produtos de primeira necessidade com u m nico denrio (por
dena-rata), expresso que est na origem da palavra francesa denre
(gneros, vveres): aquilo que se compra com um denrio.
A estas modestas trocas regionais, justapunham-se as trocas
internacionais. Os grandes mercadores judeus con-tinuavam a
importar os artigos orientais, estofos de seda, especiarias, e a
vender, no exterior do Imprio, escravos e madeiras utilizando como
locais de trnsito de merca-dorias Verdun e Troyes. Os mercadores de
abadias impor-tam o sal das salinas ou os vinhos dos vinhedos mais
pr-ximos. Os Francos vendem aos Eslavos e aos Normandos armas,
couraas e o gado em troca de peles e de escra-vos, a tal ponto que
Carlos Magno, em 805, forado, por razes de segurana, a embargar a
exportao das espa-das e das broignes. As novas correntes econmicas
mani-festam-se pelo aparecimento de novos portos. Na desem-bocadura
do Reno, do Mosa e do Escalda, que se convertem em grandes vias
comerciais e canalizam trigos germni-cos pa ra os pases do Nor te ,
desenvolve-se sob re tudo Duurstede. Na embocadura do Canche,
Quentovic ganha um impulso notvel graas s suas relaes com a
Inglaterra. A grande novidade, porm, o aparecimento de Veneza.
Depois do pr imeiro doge eleito, Maurcio (764-787), as
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A renovao da civilizao pelos Carolngios
ilhotas de laguna agrupadas em r'edor do Rialto transfor-mam-se
n u m centro importante de comrcio local e inter-nacional no qual
se inserem a madeira, os escravos, as especiaras de Alexandria, as
sedas de Constantinopla, o peixe e o sal do Adritico. Em 828, dois
mercadores vene-zianos conseguem roubar de Alexandria as relquias
de S. Marcos, santo que passa a ser o pa t rono da nova potn-cia.
Todo este surto de desenvolvimento era p rometedor mas frgil:,
pois, de momento , ainda s envolve uns quan-tos privilegiados.
A nvel regional, as trocas tm, portanto, uma influn-cia mnima
sobre a evoluo urbana, a no ser nas regies nrdicas onde o comrcio
fluvial est na origem do apa-recimento do portus, as mais das vezes
uma praia ou u m a margem arenosa na qual os mercadores desembarcam
os seus fardos, per to da cerca de uma abadia ou nos limites de um
domnio. E o caso de Gand, que se desenvolve em redor das abadias de
Saint-Pierre no Mont-Blandin e Saint--Bavon, ou, no esturio do Aa,
de Saint-Bertin e Saint-Omer, que se tornam o centro de um
aglomerado urbano. Noutros locais, o carcter religioso da cidade pe
rmanece domi-nante . Os arrabaldes vo-se desenvolvendo volta das
velhas fortificaes, no interior das quais, alis, a intro-duo dos
cabidos de cnegos obriga a novas construes e a expulsar para fora
dos muros os antigos habitantes. Houve mesmo casos em que as
antigas muralhas foram derrubadas. Sob Carlos Magno, so construdos
232 mos-teiros, sete catedrais e 65 palcios. No obstante, esta
reno-vao duraria pouco, prevalecendo, no fim de contas, a impresso
de uma certa fragilidade. As bases da Idade Mdia so,
indubitavelmente, lanadas pelos carolngios a nvel da realeza, da
vassalidade, da Igreja, da cultura intelectual e artstica, da
servido, da moeda; mas, no con-jun to , isto no mais do que um
esboo da Europa. Este projec to viria a ser abalado pelos herde i
ros de Carlos Magno.
Para aprofundar este captulo
de referir, em primeiro lugar, a bibliografia do cap-tulo II
para as questes institucionais, sociais, econmi-cas e intelectuais
(em geral, essas obras cobrem toda a Idade Mdia).
E imprescindvel conhecer-se a obra monumental colec-tiva em
quatro volumes, Karl der Grosse, Lebenswerke und Nachleben,
Dusseldorf, 1965-1966.
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-
Para as instituies, F. -L. GANSHOF, The Frankish Insti-tutions
under Charlemagne, Providence, 1968. Do mesmo autor, Recherches
serles Capitulaties, Paris, 1958; J. -M. WALLACE HADRILL, English
Kingehip and the Continent, Oxford, 1971.
Sobre a Igreja, E. Amann, L'poque carolingienne, 1941, t. 7 da
col. Fliche et Martin; C . BIHLMAYER e H . TUCHLE, Histoire de
l'glise, Mulhouse, t. 2 , 1 9 6 3 ; G . SCHNURER, L'glise et Iq,
Civilisation au Moyen Age, Paris, 1 9 3 3 - 1 9 3 8 ; M. AUBRUN, La
Paroisse en France des origines au XV sicle, Paris, 1986.
Para a cultura, J . de GHELLINCK, Littrature latine au Moyen
Age, Paris, 1939; M. LAISTNER, Tliought and Letters in Western
Europe, A. D. 500-900, 2 . a ed., Londres , 1957. A melhor sntese
P. RICH, Ecoles et enseignement dans le haut Moyen Age, Paris,
1989.
Para as lnguas, Ph. WOLFF, Les Origines linguistiques de VEurope
occidentale, 2.~ ed., Toulose, 1983; do mesmo autor, L'Eveil
intellectuel de VEurope, Paris, 1971.
Para as questes artsticas, quatro livros importantes, C . HEITZ,
Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie l'poque
carolingienne, Paris, 1 9 6 3 , e J . HUBERT, J. PORCHER, W . -F.
VOLBACH, L'Empire carolingien, Paris, 1 9 6 8 ; C . Heitz,
LArchitecture religieuse carolingienne, Paris, 1980 e idem, La
France prromane, Paris, 1987.
Para a sociedade, as instituies vasslicas e o senho-rio rural,
ver os livros citados n o captulo II. Acrescentar M. BLOCH, La
Socit fodale, Paris, reed. 1968. Do mesmo autor, Les Caracteres
originaux de 1'histoire rurale franaise, Paris, 2 vols., 1961-1964
e, sobretudo, G . DUBY, L'Economie rurale et la vie des campagnes
dans l'Occident mdival (France--Anglaterre-Empire) TV'-XV sicles, 2
vols., Paris, 1962; Guerriers et paysans, Paris, 1973.
Para as cidades, F. VERCAUTEREN, Les Civitates de la Belgique
seconde, Bruxelas, 1 9 3 4 ; E . ENNEN, Frhgeschichte der
euro-pischen Stadt, Bona, 1 9 5 3 ; F. -L . GANSHOP, Etude sur le
due-loppement des villes entre Loire et Rhin, Paris, 1 9 4 3 ; A.
VERHULST, Um aspecto de continuidade entre Antiguidade e Idade
Mdia: a origem das cidades flamengas, Journal of Medieval History,
pp. 1 7 5 - 2 0 5 , 1 9 7 7 ; M. ROUCHE (dir.), Histoire de Douai,
Lille, 1985.
Importante vista de conjunto sobre as mentalidades: P. Rich, La
Vie quotidienne l'poque carolingienne, Paris, 1 9 7 3 .
A evoluo da investigao no domnio econmico a propsito das duas
grandes teses de H. PIRENNE e de M . LOMBARD pode ser entendida
atravs dos seguintes artigos:
- para o primeiro, o imprio de Carlos Magno um mundo agrrio
fechado sobre si mesmo sem qualquer liga-
-
A renovao da civilizao pelos Carolngios
o com a economia martima. Esta tese da ruptura devida ao Islo
foi em grande par te contrar iada por E. SABBE: A importao dos
tecidos orientais na Europa ocidental durante a Alta Idade Mdia,
sculos ix e x, Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 14,
1935;
- pa ra o segundo, as necessidades muu lmanas em ferro, madei ra
e escravos criaram u m comrcio com o imprio carolngio, pagando o
islo em ouro. Esta tese da injeco "de ouro muulmano na Europa foi
contestada por Ph. GRIERSON, Carolingian Europe and the Arabs: the
myth of the mancus, Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 23,
1954.
Uma sntese das posies com a respectiva crtica foi feita por E.
PERROY, Encore Mahomet et Charlemagne, Revue historique, t. 21,
1954.
Impor ta te rminar com a sntese de J . DHONDT apre-sentada por
M. ROUCHE, Le Haut Moyen Age, VTIP-XP sicle, Paris, 1976 e a
consulta das Actes das Semanas de Espo-leto, principalmente o t. 6,
La Citt nell'alto Medioevo, 1959; t. 8, Moneta e scambi nell'alto
Medioevo, 1961; t. 7, L'Occidente e l'Islam, 1965; t. 13,
Agricultura e mondo rurale in Occidente nell'alto Medioevo, 1966; e
sobretodo o t. 1, Problemi della civilt carolingia, 1954 e o t. 27,
Nascit dell'Europa ed Europa carolingia: un equazione da
verificare, 1981.
97