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AVISO AO USUÁRIO A digitalização e submissão deste trabalho monográfico ao DUCERE: Repositório Institucional da Universidade Federal de Uberlândia foi realizada no âmbito do Projeto Historiografia e pesquisa discente: as monografias dos graduandos em História da UFU, referente ao EDITAL 001/2016 PROGRAD/DIREN/UFU (https://monografiashistoriaufu.wordpress.com). O projeto visa à digitalização, catalogação e disponibilização online das monografias dos discentes do Curso de História da UFU que fazem parte do acervo do Centro de Documentação e Pesquisa em História do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia (CDHIS/INHIS/UFU). O conteúdo das obras é de responsabilidade exclusiva dos seus autores, a quem pertencem os direitos autorais. Reserva-se ao autor (ou detentor dos direitos), a prerrogativa de solicitar, a qualquer tempo, a retirada de seu trabalho monográfico do DUCERE: Repositório Institucional da Universidade Federal de Uberlândia. Para tanto, o autor deverá entrar em contato com o responsável pelo repositório através do e- mail [email protected].
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AVISO AO USUÁRIO - COnnecting REpositories · 2019. 4. 29. · Militância Estudantil, PCB, TPE: o processo de criação de “Eles Não Usam Black-Tie”---- 48 ... O primeiro refere-se

Nov 01, 2020

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AVISO AO USUÁRIO

A digitalização e submissão deste trabalho monográfico ao DUCERE: Repositório Institucional da Universidade Federal de Uberlândia foi realizada no âmbito do

Projeto Historiografia e pesquisa discente: as monografias dos graduandos em História da UFU, referente ao EDITAL Nº 001/2016 PROGRAD/DIREN/UFU

(https://monografiashistoriaufu.wordpress.com).

O projeto visa à digitalização, catalogação e disponibilização online das monografias dos

discentes do Curso de História da UFU que fazem parte do acervo do Centro de

Documentação e Pesquisa em História do Instituto de História da Universidade Federal

de Uberlândia (CDHIS/INHIS/UFU).

O conteúdo das obras é de responsabilidade exclusiva dos seus autores, a quem

pertencem os direitos autorais. Reserva-se ao autor (ou detentor dos direitos), a

prerrogativa de solicitar, a qualquer tempo, a retirada de seu trabalho monográfico

do DUCERE: Repositório Institucional da Universidade Federal de Uberlândia. Para

tanto, o autor deverá entrar em contato com o responsável pelo repositório através do e-

mail [email protected].

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Universidade Federal de Uberlândia Instituto de História

História e Dramaturgia: o caso Vladimir Herzog (re)significado por Gianfrancesco

Guarnieri em “Ponto de Partida” (1976)

Ludmila Sá de Freitas

2005

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LUDMILA SÁ DE FREITAS

História e Dramaturgia: o caso Vladimir Herzog (re)significado por Gianfrancesco Guarnieri em

“Ponto de Partida” (1976)

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em História, do Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, como exigência parcial à obtenção do título de Bacharel em História, sob a orientação da Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos.

Uberlândia/MG

2005

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LUDMILA SÁ DE FREITAS

HISTÓRIA E DRAMATURGIA: O CASO VLADIMIR HERZOG (RE)SIGNIFICADO POR GIANFRANCESCO GUARNIERI EM “PONTO DE PARTIDA” (1976)

BANCA EXAMINADORA

Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos – Orientadora

Prof. Dr. Alcides Freire Ramos

Prof. Rodrigo de Freitas Costa

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FREITAS, Ludmila Sá de. (1976) História e Dramaturgia: o caso Vladimir Herzog (re)significado por Gianfrancesco Guarnieri em “Ponto de Partida” (1976). Ludmila Sá de Freitas – Uberlândia, 2005. 68 fls. Orientador(a): Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos Monografia (Bacharelado) – Universidade Federal de Uberlândia, Curso de Graduação em História. Inclui Bibliografia Dramaturgia; Arbitrariedade; Distensão Política.

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Agradecimentos

Chegou o momento! E nesta hora quero agradecer àqueles que de uma forma

ou de outra contribuíram para que eu concluísse não apenas este trabalho, mas o curso

de Graduação em História.

Inicialmente agradeço a Profª. Drª. Rosangela Patriota Ramos por ter orientado

esta pesquisa ao longo destes anos e, nos últimos dias, seu empenho e dedicação, sem os

quais não me permitiriam concluir esta monografia. Obrigada!

Ao Prof. Dr. Alcides Freire Ramos e Rodrigo de Freitas Costa por terem aceito

compor a banca examinadora e pela compreensão em ler este exemplar num espaço tão

curto de tempo.

Aos meus pais, Luiz Augusto de Freitas e Rose Mary Sá de Freitas agradeço

primeiramente a vida – vocês são o meu ponto de partida. Espero, um dia, retribuir a

renúncia que ambos praticam, cotidianamente, em suas vidas, à favor de nossa família.

Seus ensinamentos, suas vivências e amor me possibilitaram concluir esta etapa em

minha vida. Eu os admiro, respeito e, sobretudo, os amo!

À minha irmã Weruska pelo exemplo de dignidade e força que representa. Sua

generosidade para com nossa família e, em especial, para comigo, eu nunca saberei

recompensar. Eu te amo!

Ao meu irmão Helio Marcos pelo desprendimento demonstrado durante todos

estes anos de graduação. Sinto sua falta em nosso cotidiano familiar, mas isto é

recompensado pela presença da Soraia em nossas vidas.

À minha irmã Waleska e ao meu cunhado Eduardo, mesmo tendo tantos outros

motivos para agradecê-los, os faço por meio de nosso mais valioso tesouro: Gabriela e

Isabela. Momentos de ternura e felicidade em nossas vidas!

Às amizades construídas no convívio do NEHAC: Eliane Alves Leal, Eneilton

Faria da Silva, Débora Sousa Saraiva, Victor Miranda Macedo Rodrigues, Alexandre

Francisco Solano, Edmilson Souza Anastácio, Christian Alves Martins, Dolores Puga

Alves de Sousa, Talita T. Martins Freitas, Mauro [perdoe-me à ausência de seu

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sobrenome], Kátia Eliane Barbosa, Nádia Cristina Ribeiro e Cláudia Helena da Cruz. É

um privilégio conviver [ou ter convivido] com estas pessoas. Assim como me sinto

honrada em ser monitora, há dois anos, em um núcleo que tem por princípio a

honestidade, a responsabilidade e o compromisso para com a pesquisa, com a arte e a

cultura, expressos nas pessoas que o coordenam: Rosangela Patriota e Alcides Freire

Ramos.

À grande amiga Maria Abadia Cardoso. É difícil exprimir em poucas palavras o

valor de nossa amizade. Obrigada por tudo! E você sabe o quanto te devo este

agradecimento. À Sandra Rodart por me mostrar que sou capaz em situações onde, nem

mesmo eu, acredito ser. A certeza de que você é uma vencedora me compele a seguir

seus passos. Obrigada por fazer parte do meu cotidiano.

À Manoela por dividir comigo o “Gianfrancesco Guarnieri” e por se revelar uma

amiga sempre disposta a me ouvir. Espero que sempre possamos trilhar os mesmos

caminhos. À Daniela Reis agradeço a companhia e a ajuda nos momentos finais deste

trabalho. Sua presença é sempre bem-vinda, principalmente em nossas viagens.

Agradeço, também por ter me apresentado ao mundo da dança, especialmente ao Gripo

Corpo – seu tema de pesquisa que em mim provoca tanto encanto.

Ao Jacques Elias de Carvalho, por se mostrar uma pessoa tão amiga. Juntos

construímos uma relação de amizade que acredito se solidificar a cada dia. Obrigada

pela convivência nestes anos!

Ao amigo Rodrigo de Freitas Costa declaro todo o meu amor. Este é fruto de

toda a admiração que sinto por você. Sua inteligência, capacidade, seus gestos de

solidariedade para com seus amigos o tornam uma pessoa única.

Por fim, retomo os meus agradecimentos à Rosangela e Alcides. E o faço na

certeza de que minhas palavras não serão suficientes o bastante para expressar toda a

gratidão, respeito e afeição que tenho por vocês. Nestes últimos anos não apenas me

permitiram entrar em suas vidas como compartilharam comigo as vicissitudes da minha

vida. Obrigada pela confiança depositada em mim! Espero ser sempre digna desta

confiança e espero, também, podermos multiplicar os momentos de felicidade que

juntos compartilhamos.

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Ponto de Partida

ão tenho para a cabeça Somente o verso brejeiro Rimo no chão da senzala

Quilombo com cativeiro Não tenho para o coração Somente ao ar da montanha Tenho a planície espinheira Com mãos de sangue e façanha

Não tenho para o ouvido Somente o rumor do vento Tenho gemidos e preces Rompantes e contratempos Tenho para minha vida A busca como medida O encontro como chegada E como ponto de partida Não tenho para meu olho

Apenas o sol nascente Tenho a mim mesmo no espelho Dos olhos de toda a gente Não tenho para o meu nariz Somente incenso ou aroma Tenho este mundo matadouro De peixe, boi, ave e homem

Não tenho para minha boca Sagrados pães tão-somente Tenho vogal, consoante Uma palavra entredentes Tenho para minha vida A busca como medida O encontro como chegada

E como ponto de partida Não tenho para o meu braço Apenas o corpo amado E assim sendo o descruzo Na rédea, no remo e no fardo Não tenho para minha mão Somente acenos e palavras Tenho gatilhos e tambores Teclados, cordas e calos

Não tenho para o meu pé Somente o rumo traçado Tenho o improviso no passo E caminho pra todo lado

Tenho para minha vida A busca como medida O encontro como chegada E como ponto de partida

Música de Sérgio Ricardo

N

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Sumário

Resumo---------------------------------------------------------------------------------------------------------- VII

Introdução------------------------------------------------------------------------------------------------------ 08

Capítulo 1

O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar-- 14

Dominação e resistência no âmbito da censura política à imprensa no Brasil------------------ 16

Governo Geisel x Vladimir Herzog: “abertura lenta, gradual e segura”------------------------- 19

Capítulo 2

“Ponto de Partida” de Gianfrancesco Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira------------------------------------------------------------------------------------------

31

Comportamentos e contradições nos personagens-símbolos de Gianfrancesco Guarnieri---- 34

Capítulo 3

Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”----------------------------------------------------------------------------------------------------

48

Militância Estudantil, PCB, TPE: o processo de criação de “Eles Não Usam Black-Tie”---- 48

A década de 1970 e o surgimento de uma “cultura de resistência”------------------------------ 57

Conclusão------------------------------------------------------------------------------------------------------- 63

Bibliografia----------------------------------------------------------------------------------------------------- 66

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Resumo

VII

Resumo

Esta monografia objetiva analisar o texto teatral Ponto de Partida de

Gianfrancesco Guarnieri, escrito em 1976 como resposta ao assassinato do jornalista

Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI (órgão de repressão do II Exército).

Pretende-se, também, avaliar as práticas culturais da década de 1970, alvo de censura e

das arbitrariedades da Ditadura Militar, tendo como referência o trabalho do referido

dramaturgo.

Neste sentido, tem-se o objetivo de recuperar a historicidade inerente a este texto

dramático, buscando construir validades sobre seu momento histórico, por meio dos

questionamentos suscitados a partir da análise de Ponto de Partida e do contexto

histórico no qual esta se insere.

Por fim, cabe ressaltar que estas reflexões se estabelecem à luz das discussões

advindas da História Cultural, e no debate teórico-metodológico travado em torno das

conexões Arte/Sociedade e História/Linguagens Artísticas.

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Introdução

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Introdução

[...] Mais importante do que essa inclusão de novos assuntos na crítica de cultura [...] é a maneira de ver a cultura como a formalização de um complexo de relações sociais. Trata-se de um lócus onde é possível apreender características da sociedade contemporânea e mapear meios de ir além de seus limites.

Maria Elisa Cevasco

Por ter como objeto de pesquisa um texto teatral, Ponto de Partida (1976) de

Gianfrancesco Guarnieri, esta monografia vincula-se ao campo das Linguagens e da

História Cultural. Neste sentido, torna-se importante atermo-nos ao binômio Arte e

Sociedade, onde a cultura é vista e compreendida como parte integrante do social. Isso

significa afirmar a existência de uma inter-relação entre fenômenos culturais e

socioeconômicos, onde, por meio das práticas culturais da década de 1970, constroem-

se interpretações sobre a sociedade daquele período, marcado pela arbitrariedade da

ditadura militar e que tinha, em suas manifestações artísticas, um campo de luta e de

resistência democrática contra a opressão.

Ao abordarmos o contexto histórico de 1970 e o debate teórico-metodológico

travado em torno das conexões Arte/Sociedade e História/Linguagens Artísticas

podemos nos remeter a dois trabalhos que comportam, em suas reflexões, as questões

acima apontadas. O primeiro refere-se ao livro da Profª. Rosangela Patriota, Vianinha –

um dramaturgo no coração de seu tempo1, no qual, ao utilizar como objeto de pesquisa

o texto teatral Rasga Coração (1972-1974), de Oduvaldo Vianna Filho, a autora

recuperou a historicidade deste, “desconstruindo” os marcos evolutivos atribuídos pela

crítica à dramaturgia do autor. Desta forma, Patriota, além de avaliar o papel da crítica e

dos críticos teatrais, analisou o momento em que o autor escreveu suas peças e o diálogo

que estas estabeleceram com seu tempo. A temática de Rasga Coração e o seu papel na

construção da resistência democrática foram amplamente discutidos pela autora, que

1 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha – um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999.

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Introdução

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produziu um texto capaz de suscitar instigantes questões teórico-metodológicas. Nas

palavras da historiadora:

[...] deve-se registrar que este livro tem como objetivo contribuir para elucidar as possíveis conexões entre História e Teatro. Propõe discutir momentos de nossa história contemporânea à luz da dramaturgia de Oduvaldo Vianna Filho, partindo do pressuposto de que a produção estética e, neste caso particular, a dramaturgia são momentos constituintes do processo histórico. Partindo dessa premissa, Vianinha e seus textos teatrais, primeiramente, serão analisados por meio das interpretações sobre eles elaboradas, e posteriormente discutidos no interior do processo vivenciado, com o intuito de resgatar a contemporaneidade existente nas reflexões do dramaturgo. Neste sentido, pode-se dizer que representações específicas, leituras particulares, tentativas de reinterpretações são procedimentos inerentes ao trabalho do historiador. E estes procedimentos, sem sombra de dúvida, colaboraram para que se resgatasse a atualidade existente em Oduvaldo Vianna Filho, e a possibilidade de vê-lo encenado e/ou discutido não como a resposta aos impasses do momento, mas como contribuição ao debate. [...]2.

O segundo trabalho trata-se do livro do Prof. Alcides Freire Ramos, Canibalismo

dos Fracos: Cinema e História do Brasil3. Neste, contudo, o enfoque foi para o filme de

Joaquim Pedro de Andrade, Os Inconfidentes, (1972), onde o cineasta valeu-se de um

acontecimento histórico do passado – a Inconfidência Mineira – para discutir a realidade

presente – a ditadura militar. Assim, Ramos analisou o recurso da alegoria, valorizando

o momento histórico no qual a obra se encontra inserida e sua recepção, detendo suas

análises para também avaliar o papel do intelectual neste contexto. Para além da relação

História e Linguagens Artísticas, que pontuam ambos os trabalhos, destaca-se o caráter

teórico-metodológico de suas pesquisas, contribuindo para a reflexão de que uma obra

de arte possa ser vista como expressão de um determinado momento e, portanto,

relacionada com o seu tempo. Isto nos remete às palavras de Marc Bloch, quando afirma

que,

Em suma, nunca se explica plenamente um fenômeno histórico fora do estudo de seu momento. Isso é verdade para todas as etapas da evolução. Tanto daquela em que vivemos como das outras. O provérbio árabe disse antes de nós: “Os homens se parecem mais com sua época do que com seus pais”. Por não ter meditado essa sabedoria oriental, o estudo do passado às vezes caiu em descrédito4. (grifo nosso).

2 Ibid., p. 18-19. 3 RAMOS, Alcides Freire. Canibalismo dos Fracos: Cinema e História do Brasil. São Paulo: EDUSC, 2002. 4 BLOCH. Marc. Apologia da História, ou, O ofício do historiador. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2001, p. 60.

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Introdução

10

Nesse sentido, concomitantemente às reflexões que se apresentam a partir do

texto teatral, torna-se indispensável avaliar a conjuntura que se delineava neste

momento específico: o da morte do jornalista Vladimir Herzog em 1975 e o início de

uma “lenta distensão” política no país. Isto foi considerado no 1º capítulo desta

monografia, onde trabalhamos com aspectos fundamentais que antecederam à morte do

jornalista, cuja repercussão de sua morte pôde ser posteriormente analisada por meio de

três obras: em Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil (1984), Fernando Jordão

reuniu uma extensa documentação, composta por depoimentos e matérias jornalísticas,

além de avaliar o papel da tortura no cotidiano daquele período. Em seu livro, Jordão

procurou descrever a resistência e a luta de familiares, jornalistas, intelectuais e

religiosos frente a este episódio que representou o limite da submissão a um regime

militar marcado pela brutalidade e opressão. Em A Sangue Quente: a morte do jornalista

Vladimir Herzog (1978), Hamilton Almeida Filho relatou os acontecimentos anteriores

e posteriores à morte do jornalista. Este livro, originalmente uma edição de EX

(imprensa alternativa), corresponde a um brilhante trabalho jornalístico do ano de 1975,

elaborado por três editores (Hamilton Almeida Filho, Narciso Kalilli e Mylton

Severiano da Silva), com base em depoimentos, notas oficiais, editoriais, laudos,

notícias de jornais e revistas, e que, no seu conjunto, resultou em um importante

documento sobre aqueles dias de outubro. Por fim, a obra Vlado: Retrato da morte de

um homem e de uma época (1985), organizada pelo jornalista Paulo Markun, onde, por

meio de temáticas – o homem, a prisão, a morte, o enterro, os jornalistas, a reação, o

IPM (Inquérito Policial Militar), o processo –, recuperou-se fragmentos do homem

Vladimir Herzog e a repercussão de sua morte, a reação de jornalistas e sociedade, e a

batalha judicial movida por Clarice Herzog contra a União, responsabilizando-a pela

prisão, tortura e morte de seu marido.

Considerando, portanto, que todo documento resulta de uma determinada época

e que este corresponde à representação do real pela ótica daquele que o produziu, ao

analisá-lo não devemos atribuir-lhe uma autonomia explicativa, como se, por si só,

fosse capaz de responder a todos os questionamentos referentes ao seu tempo. O

documento “não é espelho da realidade, mas essencialmente representação do real, de

momentos particulares da realidade; sua existência é dada no âmbito de uma prática

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Introdução

11

determinada”5. Daí tornar-se profícuo o exame deste corpus documental sobre o

jornalista Vladimir Herzog.

As discussões propostas no 2º capítulo fundamentam-se em parte nas

proposições de Roger Chartier em Formas e Sentido – Cultura Escrita: entre distinção e

apropriação em que o autor analisa as encenações de Molière e, em particular, George

Dandin, avaliando os significados que esta adquiriu, em momentos distintos de

apresentação e para um público também distinto. As reflexões apresentadas por

Chartier, lançam luz ao debate que tem por objetivo compreender a apropriação que

Gianfrancesco Guarnieri promove em Ponto de Partida, ao fazer o uso da fábula e

como esta foi adquirindo resignificações ao ser encenada. Deste modo, embora não seja

objetivo desta monografia trabalhar com a encenação do espetáculo, e sim com o texto

teatral, torna-se fundamental avaliar o recurso utilizado por Guarnieri de se apropriar de

uma lenda medieval, buscando construir novos significados, (re)apropriando, assim, o

“caso Vladimir Herzog”. Neste capítulo, tem-se, ainda, a intenção de se analisar os

comportamentos e contradições dos personagens-símbolos de Ponto de Partida e como

estes se posicionaram frente à morte de homem. Ao se refletir sobre suas ações e

omissões diante deste acontecimento, torna-se possível recuperar fragmentos da década

de 1970.

Cabe ressaltar que esta peça pertence a um momento específico da dramaturgia

de Gianfrancesco Guarnieri, o período em que o autor dedicou-se a um teatro de

resistência democrática. Portanto, o 3º capítulo intitulado – Gianfrancesco Guarnieri: de

uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática” busca retomar o

processo de criação do dramaturgo nestes momentos específicos, utilizando para isto as

peças Eles Não Usam Black-Tie considerada pelos críticos e pela historiografia o marco

de uma dramaturgia nacional e Um Grito Parado no Ar representante deste “teatro de

resistência”. Estas reflexões permitem verificar o engajamento político de Guarnieri e

seu potencial artístico.

Por fim, cabe salientar a importância de se recuperar este contexto histórico em

que o historiador, em seu ofício, deve estar atento para a relação passado/presente, não

destinando ao passado uma imagem estática, como se não fosse possível um diálogo

5 MARSON, Adalberto. Reflexões sobre o procedimento histórico. SILVA, Marcos A. da. (org.). Repensando a História. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1984, p. 53.

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Introdução

12

com o presente, pois são justamente as inquietações atuais que nos remetem a este

passado, fazendo dele uma experiência única. De acordo com Bloch “o passado é, por

definição, um dado que nada mais modificará. Mas o conhecimento do passado é uma

coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”6.

6 BLOCH. Marc. Op. cit., p. 75.

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Capítulo 1

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O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de

Ditadura Militar

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

14

O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

O menos que se almeja, se pode e se deve esperar em uma nação civilizada é que a repressão se faça dentro daqueles princípios de legalidade e segurança dos cidadãos, respeitados os direitos humanos que se tornaram universais e distinguem, por isso mesmo, os povos cultos e os que ainda vivem em plena barbárie. (...) Os exemplos constantes mostram-nos que, a partir de certo nível, os mecanismos repressivos, desencadeados sem os necessários freios, tornam-se verdadeiramente incontroláveis.

Folha de S. Paulo, Editorial de 1.11.75.

Com a instituição do AI-5, em 1968, muitos opositores à ditadura militar,

sobretudo jovens estudantes passaram a atuar na clandestinidade e na luta armada.

Contudo, a sucessão de diversas medidas de endurecimento do regime, principalmente

nos primeiros anos de 1970, com a criação de uma poderosa rede de DOI-CODIs1,

provocaram a derrota de organizações de esquerda que viram na guerrilha e nas ações

revolucionárias a possibilidade real de combate à ditadura, sendo a única exceção a

Guerrilha do Araguaia, ativa até princípios de 1975, quando também foi dizimada pelas

Forças Armadas.

A década de 1970 representou também a falência de um modelo econômico

responsável pelo intenso crescimento do país, entre os anos de 1968 a 1973. Diante de

uma crise mundial do petróleo, os rumos da economia brasileira se alteraram, levando a

nação a enfrentar um longo período de ajustamento, endividamento externo e,

posteriormente, a recessão.

1 O Exército assumiu, em 1970, por meio de um documento intitulado Diretriz de Segurança Interna, o comando das atividades de segurança, adquirindo supremacia sobre a administração civil e sobre a Marinha e a Aeronáutica. Com isso, foram criados, nas principais capitais, os DOIs-CODIs (Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações de Defesa Interna), sendo os de São Paulo e Rio de Janeiro os mais ativos. Em São Paulo, o DOI herdou a estrutura da OBAN (Operação Bandeirantes), criada em 1969, por meio de uma Diretriz para a Política de Segurança Interna, que era a responsável pelas normas que centralizavam o sistema de segurança repressivo no país. Ver: GASPARI, Elio. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 59-68 / 175-190.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

15

Contrários a esta radicalização de uma luta armada, militantes do Partido

Comunista Brasileiro e membros da “classe média intelectualizada” – profissionais

liberais, estudantes politicamente ativos, artistas, professores universitários e jornalistas

– partidários ou não do PCB optaram pela construção de uma resistência democrática

como forma de oposição ao governo militar. Sob a égide autoritária do governo Médici

(1969-1974) e de um aparelho repressivo, especialmente do DOI-CODI paulista, estes

intelectuais foram considerados inimigos do regime e, portanto, alvos de perseguição e

de atos de arbítrio que já os atingiam desde a instauração a 1º de abril de 1964 do

regime militar, intensificando-se a partir de 1968 e, mantendo-se presente, entre avanços

e recuos, no governo do general Ernesto Geisel (1974-1978), o qual se propunha a

promover a “distenção” política no país.

No meio teatral,

[...] não se pode esquecer que a dramaturgia da década de 70 foi profundamente marcada por temas e autores que, direta ou indiretamente, dialogaram com as discussões ocorridas no âmbito artístico, a partir de meados dos anos 50 e durante toda a década de 60. Não se deve ignorar que nesse universo estético e teórico surgiram dramaturgos, diretores, atores, atrizes e críticos afinados com os diversos trabalhos desenvolvidos no período. Eles foram considerados, no interior da história do teatro brasileiro, como responsáveis por uma nova maneira de interpretar a realidade, bem como faziam parte de um dos momentos de tentativa de “conscientização da sociedade”. Este projeto, no entanto, foi derrotado no âmbito da luta política, e a partir daí surgiram experiências qualificadas como “arte de resistência”. Assim, em razão de questões conjunturais, foram produzidas peças teatrais que exaltavam bandeiras como: “liberdade”, “participação”, “denúncia” e “alternativas de combate à repressão”2.

Neste contexto – derrota da luta armada, crise do chamado “milagre

econômico”, atos de resistência que se efetivaram por meio de denúncias dos jornalistas

em defesa das liberdades democráticas, da rearticulação do movimento estudantil, da

luta pelos Direitos Humanos, travada por setores sociais e também pela Ordem dos

Advogados do Brasil (OAB) – a morte do jornalista Vladimir Herzog, no ano de 1975,

nas dependências do DOI-CODI, em São Paulo, representou um recuo e desencadeou

uma série de crises internas no governo Geisel e manifestações sociais por parte de

diversos segmentos da sociedade que culminaram com a distensão política no país, no

período subseqüente. Foi um marco decisivo de transição onde a ação da imprensa,

2 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha – um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 49.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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embora, muitas vezes, silenciada pela censura, se fez presente. Não era possível se calar

naquele momento. Era necessário denunciar a perversidade da tortura no Brasil.

[...] ser jornalista de oposição significava, na prática, cultivar duas regras essenciais à profissão: informar e fazer pensar. Elas foram se tornando cada vez mais valiosas para a resistência democrática à medida que a censura oficial, somada à censura interna, estreitava o rol de assuntos publicáveis e a maneira de abordá-los, e à medida que a ressaca de 1968, combinada com o chumbo do AI-5 e a crença no milagre econômico, alienava, como era de rigor dizer, ponderáveis parcelas da população letrada da dimensão política das questões que lhes deveriam dizer respeito. Desse modo, a oposição jornalística não consistia em outra coisa senão em querer transmitir ao público os fatos que contavam, com precisão e objetividade, e as diversas idéias que pudessem iluminá-los. Ao trazer dentro de si a denúncia do autoritarismo, as idéias e fatos divulgados conteriam também a semente da restauração democrática3.

Neste sentido, torna-se relevante recuperar a trajetória de atuação de jornalistas e

censores, a partir do Golpe Militar de 1964. Isso porque verifica-se que, desde o início,

a imprensa sofreu forte interferência em seu trabalho. Como afirmou a historiadora

Maria Aparecida de Aquino em pesquisa referente a esse tema, “no período de 1964 a

1985, os militares tiveram ampla preocupação com o chamado setor de informações”4.

A criação de diversos órgãos de aparato repressivo – que tinham por objetivo manter a

ordem e punir aqueles setores da sociedade que se manifestavam contra o regime –

corrobora a afirmativa da autora.

Dominação e resistência no âmbito da censura política à imprensa no Brasil

A veiculação de informações ao leitor tornou-se uma preocupação para os

governos militares. Isso porque era necessário preservar a imagem do regime e manter a

sociedade alheia às suas ações arbitrárias. Caso contrário, a imprensa tornar-se-ia um

poderoso instrumento de “subversão” por manter esta mesma sociedade informada e

3 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-Zero e Pau-de-Arara: o cotidiano da oposição de classe média ao regime militar. In: NOVAIS, Fernando A. (Coord.); SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.). História da Vida Privada no Brasil (4): Contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 358. 4 AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999, p. 15.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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ciente dos acontecimentos (torturas, guerrilhas, repressões, bem como os temas que

abordavam a política econômica e as condições sociais do país).

A censura podia ser praticada sob duas formas: a censura prévia (política) e a

autocensura. Esta última foi a opção adotada pela maioria dos grandes jornais do eixo

Rio-São Paulo, “acatando as determinações oriundas da Polícia Federal, seja na forma

de bilhetinhos, geralmente apócrifos, seja por meio de ordens telefônicas às redações, e

censurando internamente determinados assuntos considerados proibidos por essas

ordens”5. Segundo Aquino (1999), somente os jornais O Estado de S. Paulo e o Jornal

da Tarde estiveram sob a mira direta dos censores. Detendo suas análises no periódico

O Estado de S. Paulo, a pesquisadora conseguiu justificar – embasada no modelo liberal

de John Locke6 – a “contraditória” posição do jornal ao apoiar o golpe que, em 1964,

derrubou o presidente João Goulart, assim como sua oposição, a partir de 1968, com o

recrudescimento do regime, levando-o, no ano de 1972, à censura prévia. Dando

seqüência à pesquisa, Aquino analisou detalhadamente o material censurado (as

matérias censuradas iam desde referências a maus tratos, torturas, passando pelas

críticas oposicionistas, chegando às reivindicações sociais e críticas à política de saúde

pública; destaque também para o veto a qualquer referência à censura, ou seja, eram

proibidas as matérias que mencionavam a sua existência) e, por fim, apresentou as

estratégias e formas de resistência do jornal diante da censura, como, por exemplo, a

publicação de Os Lusíadas, de Camões, nos espaços vetados pelos censores. Estes

poemas tinham o objetivo de evidenciar ao leitor que algo estava se passando, uma vez

que era presença insólita e em lugar impróprio na estrutura do jornal.

A oposição ao regime militar, porém, não foi tarefa apenas da grande imprensa

brasileira, havendo, inclusive, os que afirmem que ela sempre esteve complacente com a

ditadura militar e que foi a imprensa alternativa, que conheceu o seu apogeu, durante a 5 Ibid., p. 38. 6 Aquino fez uma longa explanação sobre esta questão, que resumidamente pode ser assim explicitada: “[...] A postura favorável a uma intervenção em governo constitucionalmente eleito, sem que isso, na opinião dos responsáveis pelo jornal, representasse uma quebra nos preceitos da professada e defendida democracia liberal [...]. No mais puro liberalismo lockeano, entendem como justa a ‘revolução’, por parte dos que fazem uso da racionalidade em suas ações [...] para impedir os excessos cometidos pelos que ocupam a chefia política do país. [...] A defesa da sublevação e de seus atos de exceção, como a escolha interina de um novo chefe de Estado e as medidas de fortalecimento do Poder Executivo. Entretanto, a legalidade não deve ser ultrapassada além do necessário, de modo que as regras constitucionais sejam plenamente restabelecidas. [...] Daí tornar-se possível entender sem hiatos a sua passagem de defensor para crítico do regime que ajudara a criar, circunstância assumida coerentemente com seus princípios”. Ibid., p. 48-49. (grifo nosso).

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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década de 1970, a responsável pela veemente cobrança de uma restauração democrática,

dos direitos humanos e pelas críticas ao modelo econômico. Estes periódicos tinham por

objetivo, não só se opor ao governo, mas participar ativamente das transformações pelas

quais lutavam.

Havia, basicamente, duas grandes classes de jornais alternativos. Alguns, predominantemente políticos, tinham raízes nos ideais de valorização do nacional e do popular dos anos de 1950 e no marxismo vulgarizado dos meios estudantis nos anos de 1960. Em geral pedagógicos e dogmáticos [...]. Tanto a linguagem dogmática da maioria dos jornais políticos, formulada de modo canônico, como sua postura pudica, refletiam o marxismo de cunho religioso e os preceitos morais do Partido Comunista Brasileiro (PC do B), predominantemente durante a maior parte do ciclo alternativo. [...] A outra classe de jornais tinha suas raízes justamente nos movimentos de contracultura norte-americanos e, através deles, no orientalismo, no anarquismo e no existencialismo de Jean Paul Sartre. Rejeitavam a primazia do discurso ideológico. Mais voltados à crítica dos costumes e à ruptura cultural, investiam principalmente contra o autoritarismo na esfera dos costumes e o moralismo hipócrita da classe média. [...] Mas, mesmo esses jornais [...] atuavam no plano da contingência política opondo-se ao regime até mais visceralmente do que os marxistas [...]7.

Diante do exposto, percebe-se que mesmo com linhas editoriais distintas, a

imprensa alternativa se identificava em torno de um projeto comum, o combate à

ditadura, a um capitalismo periférico e ao imperialismo, os quais se encontravam, por

sua vez, personificados no Governo Militar. O boom da imprensa alternativa no Brasil

possibilitou o surgimento de importantes periódicos que tinham por fundamento

contribuir para a formação de uma consciência crítica nacional. Dentre os mais

representativos estavam O Pasquim, Bondinho, Versus, Coojornal, Repórter,

denominados por Kucinski (2003), como jornais essencialmente jornalísticos e,

também, aqueles que foram por ele definidos como “revolucionários”, ligados aos

partidos políticos, Opinião, Em Tempo e o Movimento. Em um instigante livro –

resultado de sua tese de doutorado – Kucinski, que já foi um dos editores do semanário

Movimento, se debruçou sobre a trajetória destes e de tantos outros jornais alternativos,

recuperando o surgimento, os ideais, as crises e, também, a censura prévia que muitos

deles sofreram neste período. O objetivo, ao trazer à tona este trabalho – mesmo que, de

maneira superficial – é salientar o papel desempenhado por jornalistas e editores à

época da ditadura militar, e ainda ressaltar que, apesar da existência de uma censura

7 KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e Revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 14-15.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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prévia, houve todo um movimento de resistência, o qual permitiu a estes profissionais

uma rearticulação e reestruturação política e ideológica, para assim encontrarem

alternativas de combate à repressão.

É preciso observar, no entanto, que se existiram jornalistas empenhados em

relatar a verdade, também houve aqueles que se comprometeram com o regime,

Esquecendo-se dos três pressupostos básicos do jornalismo – fiscalizar o poder, buscar a verdade dos fatos e fomentar o espírito crítico –, a Folha da Tarde tornou-se um exemplo claro do colaboracionismo de parte da imprensa com o poder autoritário no pós-AI-5. Colaboraram tanto jornalistas como donos de jornal. E foi dentro de uma redação de jornalistas/censores, jornalistas/policias, que tudo aconteceu8. (grifo nosso).

Esta passagem retirada do livro de Beatriz Kushnir reflete minimamente a tese

que a autora defendeu em seu trabalho: a colaboração de jornalistas com os governos

ditatoriais e a atuação da censura no Brasil pós-1964. A leitura desta obra assim como

as de Maria Aparecida de Aquino e Bernardo Kucinski possibilitam um profícuo debate

sobre o papel da imprensa, dos censores e de jornalistas entre as décadas de 1964 e 1985

e que, certamente, não conseguiram abarcar este tópico. A proposta foi apenas a de se

construir um panorama deste processo, evidenciando o clima em que estava inserido o

jornalista Vladimir Herzog e, assim, compreender a ação da imprensa perante a sua

morte.

Governo Geisel x Vladimir Herzog: “abertura lenta, gradual e segura”

O governo do general Ernesto Geisel (1974-1978) prometia ser diferente de seus

antecessores. Já no discurso de posse, prometia uma distensão “lenta, gradual e segura”

para o país. Um exame cuidadoso da época do governo Geisel comprova uma certa

distensão, mas repleta de ambigüidades e retrocessos.

É com Geisel que a ditadura começa a ser progressivamente desmontada. Apesar da densa concentração de poder nas mãos do presidente, a oposição cresce. A sociedade civil renasce politicamente, inclusive como força fundamental do processo de abertura. A censura à imprensa diminui e depois acaba. A linha dura é contida, o aparelho de repressão política controlado. Não

8 KUSHNIR, Beatriz. Cães de Guarda: Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 232.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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obstante recuos, desvios e casuísmos, a liberalização política se impõe e avança significativamente. [...] Abrir, mas sem a imediata entrega de todo o poder aos civis. Sem extirpar os principais instrumentos de exceção e sem eleições diretas para presidente e governadores, por exemplo. Mas há avanços extraordinários, como a queda do AI-5, decidida no final de 1978. E também alguns retrocessos, principalmente relacionados com casuísmos políticos, como o Pacote de Abril (1977). [...] A sociedade civil se mobiliza. Reivindica e pressiona crescentemente, resgatando e alargando paulatinamente alguns direitos de cidadania. [...] Mas os militares não abrem mão do controle do processo político, de dirigir a liberalização. Nem da permanência do regime. Pelo menos a curto e médio prazos9.

Esta era, portanto, a situação política em que se encontrava o país. Se houve

passos importantes rumo a abertura política, pode-se afirmar também que, em outros

momentos, existiu um recrudescimento do regime em dissonância com uma idéia de

democratização. Se a “linha dura” foi contida e o aparelho de repressão político

controlado, isso ocorreu após os episódios que levaram a morte de Vladimir Herzog

(1975) e a do operário Manoel Fiel Filho (1976), pois, anteriormente a estes, o que se

podia comprovar era um rígido controle político, a repressão à esquerda e àqueles que

se opunham ao governo e a censura à imprensa, embora em alguns jornais, como O

Pasquim e O Estado de S. Paulo, os censores tenham deixado as redações no ano de

1975. A censura prévia à imprensa alternativa durou mais três anos, até 1978, quando os

censores deixaram a redação do semanário Movimento. Mas essa censura realmente se

modificou. O que se percebia era um interesse por parte do governo em manter uma

relação pacífica com a imprensa, principalmente com os periódicos que se direcionavam

à classe média. A liberalização da imprensa se tornou ponto fundamental na estratégia

de abertura. Os constantes vetos praticados e que, de alguma forma, eram informados

aos leitores, como formas de resistência dos jornais, também começaram a incomodar.

A paz com o Estadão significava um desejo de restabelecimento da ordem nas relações entre o regime e uma parte do conservadorismo liberal, alijado do poder desde 1968. Supô-lo tranqüila seria romantismo. Eram muitas as divergências do jornal com o governo. Iam da sobrevivência do AI-5 à política econômica, julgada excessivamente centralizadora, estatizante e perdulária. Tudo isso cabia no livre debate, mas havia uma questão diante da qual talvez surgissem até espaços de tolerância, nunca um acordo: o porão. (Enquanto os censores estiveram na redação, suprimiram 223 notícias relacionadas a prisões, torturas, mortes e desaparecimentos.)10.

9 COUTO, Ronaldo Costa. História indiscreta da ditadura e da abertura: Brasil: 1964-1985. 4. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 134. 10 GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 24.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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Outro setor que mereceu atenção do governo Geisel foi o das telecomunicações.

Ampliado e modernizado, uma das pautas recorrente nas reuniões ministeriais referia-se

às concessões de rádio e TV. Em tempos de retirada da censura dos meios de

comunicação, era preciso analisar com cautela para quais grupos – a disputa era acirrada

entre políticos do Arena (Aliança Renovadora Nacional) e do MDB (Movimento

Democrático Brasileiro), uma vez que a mídia já se tornava elemento fundamental na

divulgação de programas de governo – seriam distribuídas e renovadas tais concessões.

Às vezes tudo se realizava com fortes pressões políticas e sob a vigilância do Serviço

Nacional de Informações (SNT) e do próprio Ministério da Justiça11.

A conjuntura que se formou era composta por diferentes posições políticas que

tinham interesses tanto nas mudanças quanto na manutenção do status quo. Uma

avaliação do Ministério do governo Geisel, em que se destacavam nomes como os de

Armando Ribeiro Falcão, responsável pelo Ministério de Justiça e, Golbery de Couto e

Silva, da Casa Civil, revela as ambigüidades da distensão e a responsabilidade de cada

indivíduo neste processo. Falcão era um homem autoritário e que desenvolveu laços de

lealdade ao regime militar, imprimindo em seu ministério um perfil condizente com a

“linha dura” da ditadura. Já Golbery parece ter assumido uma atitude oposta, atuando

como interlocutor nas negociações e concessões referentes à abertura.

Em meio a esta contradição, o ano de 1975 se definiu como de “caça” aos

comunistas. Se já não havia o perigo da luta armada, a atenção se voltou para aqueles

intelectuais que se propunham a uma resistência democrática. Assim profissionais

liberais, estudantes, artistas e jornalistas, identificados como militantes do PCB,

tornaram-se o alvo preferencial dos agentes do DOI-CODI. Para eles era preciso

desmantelar o Partido Comunista Brasileiro, o qual representava uma ameaça à ordem

estabelecida e prender seus principais dirigentes. Para isso, o Centro de Informação do

Exército (CIE) em conjunto com o Serviço Nacional de Informações (SNI) promoveu

um levantamento detalhado sobre o PCB, chegando a encontrar uma base do partido

11 Para maiores informações, consultar: ABREU, Alzira Alves de. As telecomunicações no Brasil sob a ótica do governo Geisel. In: CASTRO, Celso; D’ARAÚJO, Maria Celina. (Org.). Dossiê Geisel. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002. p. 149-158. O livro organizado por Celso Castro e Maria Celina D’ Araújo traz ainda avaliações de distintos autores sobre os dossiês de outros ministérios (Justiça, Fazenda, Educação, Relações Exteriores, Trabalho), que encontram-se entre os documentos do arquivo pessoal de Ernesto Geisel, doado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esta valiosa documentação permite-nos entrever parte do processo do que foi o governo Geisel, bem como as decisões políticas realizadas em diferentes setores.

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dentro da Polícia Militar paulista. A caçada iniciada em janeiro levou aos cárceres

dezenas de pessoas. Em junho foram contabilizados 38 presos e, em setembro, mês

anterior ao assassinato de Vladimir Herzog, a documentação oficial do II Exército,

informava a existência de 12 presos na carceragem do Destacamento de Operações de

Informações (DOI) de São Paulo.

Todos os presos tinham um ponto em comum: eram acusados de pertencer ao Partido Comunista Brasileiro, ilegal naquela época. O comitê estadual do PCB – homens e mulheres que viviam na clandestinidade, sob nomes falsos – tinham sido quase todo capturado, entre fins de setembro e começo de outubro. Essas prisões desencadearam uma verdadeira operação de guerra em que foram seqüestradas, presas e torturadas quase cem pessoas: profissionais liberais, estudantes, trabalhadores, membros do MDB – o único partido de oposição legal –, dirigentes sindicais e gente sem nenhum tipo de militância política. Nome da operação nos bastidores da repressão: Operação Jacarta, uma referência expressa ao golpe dado pelo general Suharto, em setembro de 1965, na Indonésia. Em apenas uma noite, foram executadas em Jacarta, a capital, 700 mil indonésios acusados de pertencer ao Partido Comunista12.

Em outubro, a ação se direcionou primeiramente para as bases universitárias do

PCB e depois foi a vez dos jornalistas. Um trecho do jornal Unidade (Órgão oficial do

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado de São Paulo – Diretor Responsável:

Audálio Dantas), de novembro de 1975, revelou o sentimento que pairava nas redações:

Aos poucos, foi-se tornando uma rotina. A partir da prisão de Sérgio Gomes da Silva, era raro o fim de semana em que um jornalista não desaparecia misteriosamente no prosaico trajeto entre a casa e o trabalho. Pequenas notas de pé de página escondidas nos jornais diários registravam o nome dos colegas presos nas dependências do Departamento de Operações Internas do II Exército. A sigla DOI, associada à série de prisões, passou a fazer parte do nosso dia-a-dia – como essas pequenas tragédias, que pela sua monótona repetição acabam se incorporando, sem maiores traumas, ao cotidiano do jornalista. Desde o início de outubro, o medo pairava nas redações. Um estranho medo coletivo, em que ninguém se sentia individualmente ameaçado, mas que crescia à medida em que se sucediam as prisões. A desinformação era completa e ninguém podia prever o que aconteceria no dia seguinte. Os dias de outubro avançavam e os presos continuavam incomunicáveis13. (grifo nosso).

Após prenderem mais de uma dezena de jornalistas, dentre eles Paulo Sérgio

Markun (chefe de reportagem da TV Cultura) e Rodolfo Konder (jornalista da revista

12 MARKUN, Paulo. (Org.). Vlado: Retrato da morte de um homem e de uma época. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 09-10. 13 OS DIAS DE OUTUBRO. Unidade, São Paulo, nov. 1975. Especial. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/especiais/vlado/apresentacao.htm>. Acesso em: 15 set. 2003.

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Visão), os agentes do DOI avançaram para a TV Cultura. Desta vez, no entanto, o

motivo que os levou à emissora não foi somente a “caça” aos comunistas. Havia

estímulos externos. Foram atrás de Vladimir Herzog. Vlado havia assumido – com o

apoio da agência paulista do Serviço e do governador Paulo Egydio Martins – a direção

de jornalismo da emissora no início de setembro, em substituição a João Walter

Sampaio Smolka, um homem que, segundo o SNI, sempre procurou cooperar com os

Órgãos de Segurança.

Um incidente marcou o início da gestão de Vlado: o noticiário do dia 03 de nov.

1975, apresentado ao meio-dia, trouxe um documentário inglês de 7 minutos sobre Ho

Chi Minh, líder comunista do Vietnã do Norte. Vlado vetou o documentário do

telejornal noturno, mas a reportagem repercutiu negativamente no dia seguinte. A TV

Cultura foi acusada de manter “infiltrada” em seu quadro de funcionários elementos de

esquerda, chegando mesmo a se cogitar que isso ocorria com a complacência do

governador do Estado. O jornalista Cláudio Marques – ligado a “linha dura” do governo

militar – alardeou em sua coluna e programa de TV, a “infiltração” comunista na TV

Cultura. O acontecimento só se encerrou com um esclarecimento do secretário da

Cultura, José Mindlin, que saiu em defesa dos jornalistas e prometeu que investigaria os

fatos quando estes fossem concretos. Quanto a Vladimir Herzog, limitou-se a dizer que

este era um homem sério e que merecia a confiança da Fundação Padre Anchieta.

O caso, no entanto, abriu caminho para que os agentes viessem atrás de Vlado:

Para esse homem tímido e miúdo confluíam três crises, todas carregadas de ódio. Uma era o choque da Comunidade com Geisel. Outra, a caçada do CIE ao Partidão. A terceira, mais virulenta, era o conflito do general Ednardo com o governador Paulo Egydio Martins. A prisão de Vlado Herzog servia a todas14.

Mesmo informado de que seria preso – seu nome havia sido citado em

interrogatórios –, Vlado não quis fugir. Assim, no dia 24 de outubro, noite de sexta-

feira, os agentes do DOI foram prendê-lo, na redação da Cultura. Vlado, alegando que

estava terminando a edição de um telejornal, se prontificou a prestar esclarecimentos na

sede do DOI-CODI, na manhã seguinte. A interferência de diretores da empresa e de

colegas de trabalho contribuiu para que Vlado passasse aquela noite em casa. Assim, no

14 GASPARI, Elio. A Ditadura Encurralada... Op. cit., p. 174.

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dia 25 de outubro, sábado, o diretor de jornalismo da TV Cultura se apresentou e, horas

mais tarde, foi covardemente assassinado.

Em nota oficial15, o comando do II Exército, noticiou, na mesma noite, que

Vladimir Herzog havia cometido suicídio na sala onde confessara ser membro do

Partido Comunista. A justificativa da sua morte veio na versão de que Vlado, para não

admitir ser um agente da KGB e braço direito do governador Paulo Egydio, como ficara

comprovado, cometera o suicídio. A incredulidade e indignação de todos começaram a

romper as barreiras do medo. Contrariando as normas de que os mortos no DOI eram

enterrados poucas horas após a morte e, com discrição, Clarice Herzog exigiu um

velório que ocorreu no Hospital Albert Einstein – em um caixão fechado –, no domingo.

Antes, porém, o corpo do jornalista passou pelo Instituto Médico Legal (IML) para a

realização da autópsia. Jornalistas se revezaram em uma vigília permanente, a fim de

impedir que os órgãos de segurança fizessem pressão para que o enterro se realizasse

logo ao amanhecer. A cada instante, centenas de pessoas chegavam ao velório, dentre

elas o cardeal D. Paulo Evaristo Arns e o senador Franco Montoro (MDB-SP). O

enterro acompanhado por umas 600 pessoas, aproximadamente, aconteceu num clima

tenso. Vlado não foi enterrado nas quadras destinadas aos suicidas no cemitério judeu,

mas a cerimônia, que normalmente costumava durar duas horas, aconteceu em quinze

minutos para indignação dos familiares. Segundo relato de Hamilton Almeida Filho16, a

chegada de quatro jornalistas – Paulo Sérgio Markun, George Duque Estrada, Anthony

de Christo e Rodolfo Konder – que estavam presos antes de Vlado, foi o clímax de

nervosismo que atingiu as pessoas presentes. Todos tinham interesse em saber sobre as

últimas horas de Vlado, nas dependências do DOI-CODI. Os jornalistas, no entanto, só

informaram que teriam que se apresentar novamente no DOI na manhã seguinte. A

liberação tinha sido excepcional, apenas para o enterro de Herzog.

Com a notícia da morte do jornalista Vladimir Herzog, começaram a chegar à

sede do Sindicato dos Jornalistas as primeiras manifestações de solidariedade. E quando

o fato se tornou público, telegramas e cartas de apoio à classe vieram de toda parte do

Brasil e mesmo do exterior. Durante todo o período, o sindicato recebeu a adesão de

associações de classes, de sindicatos de outras categorias – como o Sindicato dos 15 Ver: MARKUN, Paulo. (Org.). Op. cit., p. 140-141. 16 ALMEIDA FILHO, Hamilton. A Sangue Quente: a morte do jornalista Vladimir Herzog. São Paulo: Alfa-Omega, 1978, p. 28-30.

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Artistas e a Associação dos Produtores de Espetáculos Teatrais, de jornalistas,

deputados, pessoas do povo e estudantes, transformando-se em um dos setores mais

combativos de oposição ao regime. Diante disto, a diretoria optou por uma série de

diretrizes, que embora tenha desagradado a muitos, tornou-se necessária, em razão de o

sindicato ser um órgão dependente e subordinado ao Ministério do Trabalho17.

Na Universidade de São Paulo, os estudantes entraram em greve com o apoio

dos professores. Movimentos semelhantes – de boicote às aulas – aconteceram também

em outras Universidades, especialmente na área de Comunicações, atingindo inclusive

outros Estados18. A imprensa noticiava o acontecido e lançava dúvidas sobre o suposto

suicídio de Vlado:

Um documento, analisando alguns dados estranhos na morte do jornalista Vladimir Herzog, com base na nota distribuída pelo II Exército, foi uma das propostas aprovadas ontem na reunião do Conselho de Administração da ABI – Associação Brasileira de Imprensa. O documento realça a contradição entre o comportamento conhecido do jornalista (que se apresentou voluntariamente ao quartel do II Exército) e sua morte, horas depois, “sem que no papel deixado à sua disposição, segundo a nota do Exército, fosse explicada a razão do gesto”. A negativa de uma segunda autópsia à família foi outro fato “que faz supor que a morte de Vladimir Herzog não tenha se dado em condições tão claras como faz supor a nota do II Exército”. Também a participação do médico legista Harry Shibata foi tida como suspeita, “visto suas participações anteriores na emissão de laudos médicos em desacordo com os fatos”. [...]19.

Jornais como O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo, Gazeta

Mercantil, Jornal do Brasil, deram destaque ao “caso Vlado”. Escreveram notas,

colunas e editoriais refletindo e denunciando o clima de terrorismo instaurado no país.

Teciam críticas aos órgãos de segurança que, ao invés de levar paz e tranqüilidade à

sociedade, produziam um efeito exatamente ao contrário. Audálio Dantas – presidente

17 JORDÃO, Fernando. Dossiê Herzog: prisão, tortura e morte no Brasil. 5. ed. São Paulo: Global, 1984, p. 55-66. 18 “Os alunos da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e os de quase todos os cursos da Pontifícia Universidade Católica decidiram ontem paralisar as aulas, em protesto contra as prisões de jornalistas, estudantes e professores universitários e pela morte do jornalista Vladimir Herzog. Na Faculdade de Medicina da Santa Casa e nas Faculdades Objetivo os estudantes também se manifestaram contra os últimos acontecimentos. Na Universidade de São Paulo, quase todas as faculdades continuam com as aulas paralisadas. [...] Um abaixo-assinado contendo a adesão de mais de 500 professores da USP será entregue hoje ao reitor, que deverá remetê-lo depois ao governador Paulo Egídio”. ESTUDANTES param. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 out. 1975. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/especiais/vlado/apresentacao.htm>. Acesso em: 15 set. 2003. 19 ABI: Dúvidas. Jornal da Tarde, São Paulo, 29 out. 1975. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/especiais/vlado/apresentacao.htm>. Acesso em: 15 set. 2003.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, no dia 2 de nov. 1975, em nota à Folha de S.

Paulo, afirmou ser a morte de Herzog a “sacudidela” de que necessitavam para sair da

acomodação e letargia. Vozes em todo o país, e até mesmo vindas do exterior, se

manifestaram sobre o assassinato transformado em suicídio. A necessidade de resistir à

opressão fez como que o medo cedesse lugar à indignação e os impelisse a denunciar as

arbitrariedades da ditadura militar. Alguns jornais tiveram seus artigos censurados,

como o semanário Movimento, que, em 1975, contava, ainda, com a presença de

censores em sua redação.

Três artigos deveriam ter sido publicados, respectivamente nos números 18, 116 e 151 de M [Movimento], tratando do caso Herzog. A primeira reportagem, realizada logo após a morte do jornalista, representa uma solicitação de investigações para apuração do caso. A segunda relata o envolvimento do legista Harry Shibata, processado por ter assinado o laudo de morte de Herzog sem ver o corpo. A terceira apresenta depoimentos de testemunhas confirmando a existência de torturas no jornalista20.

Por parte do governo, as opiniões foram contraditórias. O Ministro da Justiça,

Armando Falcão, um dos representantes da “linha dura”, manteve-se firme quanto às

acusações, chegando mesmo a ignorar os protestos contra a ditadura, ao afirmar que o

país se encontrava sob ordem e tranqüilidade:

O país está em ordem e tranqüilidade. O clima de paz reinante precisa ser mantido, acima de qualquer contingência. As leis em vigor aparelham o governo, devidamente, para cumprir à risca o seu dever. Quem atua nos necessários limites da norma legal não precisa ter preocupações. Mas quem viola as disposições em vigor, responde pelos abusos que comete. Eis tudo21.

O presidente Geisel, por sua vez, conservou um discurso mais conciliatório,

embora deixasse claro que não aceitaria que contestações abalassem a “tranqüilidade”

do país, como se comprovou nesta nota divulgada pelo Estado de S. Paulo. Esta é

também uma evidencia de que, nos mesmos jornais em que se relatavam as oposições

ao regime, se viam advertências e ameaças aos supostos “subversivos”.

O presidente Geisel encara a morte do jornalista Vladimir Herzog como um “episódio lamentável” mas não vai permitir que as repercussões do ato sejam utilizadas para conturbar a ordem e gerar um clima de inquietação em todo o País (...). Trata-se de um fato consumado e o que o governo vai fazer é impedir

20 AQUINO, Maria Aparecida de. Op. cit., p. 139. 21 EIS TUDO. Ministro da Justiça, Armando Falcão, em Brasília, 30 out. 1975. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/especiais/vlado/apresentacao.htm>. Acesso em: 15 set. 2003.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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que ocorram novos incidentes dessa natureza. (...) Temos que evitar que uma manifestação de solidariedade sirva de instrumento de intranqüilidade ou de contestação. Aqui cabe lembrar uma frase do general Golbery: segurem os seus radicais que nós seguramos os nossos22.

A manifestação de solidariedade, a qual Geisel se referiu, foi a realização de um

Culto Ecumênico na Catedral da Sé em homenagem a Vladimir Herzog. A decisão de se

realizar o Culto foi tomada em assembléia no Sindicato dos Jornalistas. Para celebrá-lo

se fizeram presentes o Cardeal D. Paulo Evaristo Arns, pelos católicos, o reverendo

Jaime Wright, em nome das Igrejas Evangélicas e, como representante judeu, o rabino

Henry Sobel.

A semana em que ocorreu o Culto Ecumênico e que se iniciou com a morte do

jornalista Vladimir Herzog foi marcada não só por protestos em defesa dos direitos

humanos, mas por ameaças de líderes governamentais dirigidas, principalmente, ao

Sindicato dos Jornalistas. Na contra-ofensiva, o governo se preparou para a cerimônia

na Catedral da Sé. Além de manter a presença maciça e ostensiva de policiais nos

limites próximos à Catedral, organizou uma ação denominada “Operação Gutemberg”,

onde a polícia montou barreiras em vários bairros da cidade, dificultando o acesso ao

centro para, com isso, impedir o comparecimento maciço da população. “A censura

policial impediu que a notícia fosse divulgada pelo rádio e pela televisão, proibidos

também de darem qualquer cobertura ao Culto”23.

Mesmo com todo este aparato repressivo, oito mil pessoas conseguiram se

deslocar até a praça da Sé. A Catedral ficou lotada, muitos acompanharam a cerimônia

pelo lado de fora. O clima, inicialmente tenso, foi tomado pela emoção ante as palavras

do Cardeal Arns. “A chave do culto ecumênico foi D. Paulo Evaristo Arns, um homem

de extrema coragem e serenidade que, desde os tempos mais duros da repressão,

defendeu com intransigência os direitos humanos, e denunciou todo abuso de

autoridade”24. Em suas orações, o Cardeal não poupou acusações diretas de que Vlado

havia sido assassinado. Ao final, pediu justiça e conclamou a sociedade para uma luta

22 GEISEL lamenta. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 31 out. 1975. Disponível em: <http://www.fpabramo.org.br/especiais/vlado/apresentacao.htm>. Acesso em: 15 set. 2003. 23 JORDÃO, Fernando. Op. cit., p. 70. 24 MARKUN, Paulo. (Org.). Op. cit., p. 207.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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pacífica em favor das gerações futuras. Numa atitude oposta à esperada pelos policiais a

multidão se dispersou em um clima de paz e tranqüilidade.

A realização deste Culto comprovou que a sociedade civil estava insatisfeita

com os rumos seguidos pelo país onde a morte do jornalista Vladimir Herzog

representou a possibilidade de mudança. Não se pode afirmar que, isoladamente, foi a

responsável pelas transformações que se processaram no Brasil, a partir de 1975, mas a

confluência de diversos fatores como a falência do chamado “milagre econômico”, a

tentativa da ultradireita em impedir a controlada abertura, usando para isso a força de

um aparelho repressor, que culminou com a morte do jornalista, possibilitou que setores

da sociedade se articulassem, a caminho da distensão a tanto alardeada.

Associada a isto, tem-se a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas

dependências do DOI-CODI, também ele acusado de cometer suicídio. Este episódio

ocorrido três meses depois da morte de Vladimir Herzog e, em circunstâncias tão

parecidas, embora não tenha causado a comoção pública, ocasionou uma crise no

governo com a substituição do general Ednardo D’Ávilla Mello pelo general

Dilermando Monteiro, no comando do II Exército. Esta atitude de Geisel não deixou

dúvidas de que o afastamento do comandante estava relacionado com as mortes

ocorridas no Destacamento de Operações Internas (DOI) do Exército. Porém, não pode

ser interpretada como uma confissão de que o Exército era o responsável pelas mortes.

O Inquérito Policial Militar (IPM) instaurado sob determinação do presidente

Geisel para se averiguar as circunstâncias da morte de Vlado, eximiram de qualquer

culpa o II Exército, pelo menos em sua versão oficial.

O general de brigada Fernando Guimarães Cerqueira Lima foi encarregado do IPM. Era homem de confiança do presidente Geisel, o que faz supor que o IPM teve duas versões: uma destinada ao “público interno”, e que deve ter incluído as denúncias de tortura e as contradições entre as declarações dos jornalistas presos e a versão oficial sobre a morte de Herzog. Só se conhece, no entanto, o documento oficial, assinado pelo mesmo general Cerqueira Lima e completamente depurada de tudo que pudesse incriminar o II Exército pela morte de Vladimir Herzog25.

No caso do operário Fiel Filho, o IPM instaurado também chegou às mesmas

conclusões, mantendo a versão de suicídio, mesmo que isto tenha sido tão improvável,

uma vez que Manoel teria se enforcado com um par de meias. Assim mesmo, o

25 Ibid., p. 219-220.

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Capítulo 1 O Caso Vladimir Herzog (1975): arbitrariedade, tortura e morte em tempos de Ditadura Militar

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inquérito foi arquivado. A versão oficial de que as mortes no DOI-CODI foram

cometidas pelas próprias vítimas, não invalida a importância que tiveram na restauração

da liberdade democrática e dos direitos humanos no país. Ao contrário, a certeza de que

estes crimes foram cometidos e tão inescrupulosamente negados, reafirmaram a

arbitrariedade do governo militar e a necessidade em se combatê-lo.

No que se refere ao caso do jornalista Vladimir Herzog, como ressaltado

anteriormente, confluiu um conjunto de fatores que permitiu com que se tornasse um

elemento catalisador das crises que se operavam entre os grupos de direita e ultradireita,

bem como um elo para que setores da sociedade civil se unissem e reivindicassem

mudanças para o país. A partir da morte de Herzog, muita coisa se alterou: houve

resistência e luta por transformação.

A ação civil movida por Clarice Herzog contra a União foi mais um importante

passo para se denunciar o arbítrio generalizado que vigorava no país e, a sentença

proferida no dia 27 de out. 1978, responsabilizando a União pela morte de Vladimir

Herzog, representou a vitória de uma árdua batalha travada por jornalistas, advogados,

estudantes, autoridades eclesiásticas e demais cidadãos, desde que Vlado havia,

covardemente, sido assassinado no dia 25 de out. 1975.

Diante do exposto, avaliando toda a conjuntura que se definiu após a morte de

Vladimir Herzog, verifica-se a importância e a dimensão deste acontecimento,

excluindo qualquer julgamento que apenas idealize Vlado como um mártir da ditadura

militar, mas recuperando a dimensão política de sua morte e até mesmo a sua própria

postura de homem político, pois Herzog fazia política e tinha consciência disto,

realizando suas convicções no território da informação.

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Capítulo 2

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“Ponto de Partida” de Gianfrancesco Guarnieri (1976): momentos da década de

1970 na dramaturgia brasileira

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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“Ponto de Partida” de Gianfrancesco Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

Ponto de Partida, uma parábola que se destina aos que desejam, buscam e são capazes de abrir os olhos com emoção, dúvida e reflexão.

Fernando Peixoto

Guarnieri atinge, com Ponto de Partida, um admirável amadurecimento como dramaturgo e como intelectual engajado. Poucos são capazes de olhar em volta de si com tanta perspicácia; de traduzir aquilo que vêem em tão serena linguagem de sofrida beleza; e de manter intacto, como pano de fundo dessa visão serena, o dom de se indignar diante das coisas que merecem que nos indignemos com elas, fundamental para qualquer autor que se pretenda tornar um espelho do seu tempo.

Yan Michalski

Gianfrancesco Guarnieri escreveu Ponto de Partida sob o impacto da morte de

Vladimir Herzog. Como ressaltado no capítulo anterior, a versão oficial de suicídio,

refutada por familiares e amigos, tornou-se expressão de uma “consciência nacional”,

que não suportava mais a opressão. No meio teatral, dramaturgos, diretores e artistas

optaram por uma “arte de resistência”, em que atuaram sob a censura de uma ditadura

militar. Isso significa dizer que embora houvesse uma manifestação contrária ao suposto

suicídio do jornalista, inclusive com denúncias em jornais, não foi possível narrar

explicitamente a morte de Vlado em um texto teatral1. Este foi um período em que

Guarnieri definiu seu teatro como “teatro de ocasião”, quando,

[...] justificado principalmente pelas circunstâncias externas – por aquilo que chamou “ocasião” – Guarnieri começa a andar por caminhos novos e elabora uma nova linguagem. Esta nova linguagem deve ser capaz não só de atravessar as barreiras da censura, mas principalmente, em um plano mais profundo, de

1 A morte do jornalista Vladimir Herzog também foi tema de outra peça teatral da década de 1970: Patética de João Ribeiro Chaves Netto, premiada com o 1º lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia no SNT, no ano de 1977. Porém, a narrativa direta e objetiva de Patética impediu sua montagem, sendo confiscada pelos órgãos de segurança.

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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atualizar um potencial poético inerente à própria vontade essencial, à própria imaginação criadora do autor. [...]2.

O dramaturgo, ao se apropriar de uma lenda medieval como recurso para a

construção de sua obra, teve o objetivo, portanto, não só de “atravessar as barreiras da

censura”, mas construir novos significados para o seu texto dramático. Isso porque o

homem enforcado no centro de uma praça de uma aldeia, ao qual se refere a parábola,

não é o jornalista Vladimir Herzog, o homem enforcado em uma cela do DOI-CODI.

Guarnieri (re)significou o “caso Vladimir Herzog”, por meio de uma linguagem

poética/rígida, associada à construção das personagens e de suas ações e omissões frente

a um suposto suicídio, sendo os conflitos gerados por estas personagens os responsáveis

pelas possíveis identificações com a realidade. Estes conflitos – novo x velho, liberdade

x opressão, verdade x mentira, vida x morte – articulados ao contexto de uma lenda

medieval, permitiram a formação de um novo sentido, em que a alusão Birdo/Vlado

tornou-se possível.

Estabelecendo como motivação básica as circunstâncias que impedem o autor de empregar a forma “direta”, imediata, particularizante, as análises críticas ressaltam o uso do modelo da fábula (idéia que o próprio dramaturgo sugere ao designar como fábula sua peça) e a força da linguagem sintética, estilizada, distanciada do quotidiano, apoiada em imagens sugestivas de um mundo distante no tempo e no espaço. Reconhece-se simultaneamente nesse esquema distanciador a riqueza de possibilidades conotativas, a plurivalência, que, exatamente, permite o retorno, a referência a uma situação próxima e concreta 3.

E é por meio da encenação de Ponto de Partida que se pode investigar a maneira

pela qual o texto teatral de Gianfrancesco Guarnieri, que, a princípio, não estabelecia

uma similaridade com a morte de Vladimir Herzog, – embora escrito com esta

finalidade – foi, a partir de sua realização em palco, assimilada e compreendida como

uma crítica e uma reflexão a propósito deste acontecimento. Assim, quando se

menciona a identificação do espectador em relação a este espetáculo, remete-se à

recepção deste junto ao público, para estabelecer os possíveis diálogos e interpretações

que a sociedade da década de 1970 manteve com esta encenação. E para também se

avaliar os novos significados de Ponto de Partida, a partir das experiências do presente, 2 VINCENZO, Elza Cunha. A Dramaturgia Social de Gianfrancesco Guarnieri. 1979. 293 f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Departamento de Cinema, Teatro, Rádio e Televisão, Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1979, p. 217. 3 Ibid., p. 219.

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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pois, se hoje não se verifica a morte de um homem, reconhece-se situações análogas, de

massacres e extermínios. Isto se torna possível, principalmente, ao se remeter às

considerações de Roger Chartier, ao afirmar que,

As obras não têm sentido estável, universal, imóvel. São investidas de significações plurais e móveis, construídas na negociação entre uma proposição e uma recepção, no encontro entre as formas e os motivos que lhes dão sua estrutura e as competências ou as expectativas dos públicos que delas se apropriam. [...] Produzidas em uma esfera específica, em um campo que tem suas regras, suas convenções, suas hierarquias, as obras escapam delas e assumem densidade, peregrinando, às vezes na longuíssima duração, através do mundo social. Decifradas a partir dos esquemas mentais e afetivos que constituem a cultura própria (no sentido antropológico) das comunidades que as recebem, elas tornam-se em retorno um recurso para pensar o essencial: a construção do laço social, a consciência de si, a relação com o sagrado4.

Recuperar a historicidade de Ponto de Partida significa, portanto, remeter-se ao

seu tempo, considerar o momento de sua escrita e encenação, dialogar com este

contexto histórico e com suas especificidades políticas, sociais e culturais. Reafirmando,

só em seu contexto se pode compreender as escolhas de diretores, atores, produtores e

dramaturgos que, numa conjuntura adversa à criação artística e cultural, buscaram um

redimensionamento de suas atividades. Diante da arbitrariedade da ditadura militar,

coube ao teatro desenvolver uma nova linguagem estética, possibilitando que inúmeros

espetáculos teatrais se destacassem tanto pela qualidade artística, quanto pela

construção de uma cultura de oposição.

No limite deste trabalho monográfico, não serão aprofundadas discussões sobre

recepção e encenação, mas que nem por isso deixam de ser referência indispensável

para esta pesquisa. Certamente, as decisões e ações do diretor Fernando Peixoto, do

cenógrafo Gianni Ratto, e dos demais atores, influenciaram na montagem do espetáculo,

permitindo a sua identificação com o tempo presente. E, como já ressaltado, esta

assimilação se estabeleceu, principalmente, pelo comportamento das personagens diante

deste morto, sendo profícuo refletir o papel por elas desempenhado nesse processo.

Como afirmou Fernando Peixoto,

Ponto de Partida é sobretudo a fria exposição de um instante histórico determinado e terrível. Um episódio serve de incontrolável estopim para uma crise sócio-política que envolve toda uma comunidade, no caso uma aldeia medieval imprecisa. Poderosos e dominados, perplexos e hesitantes. Impotentes

4 CHARTIER, Roger. À Beira da Falésia: A História entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 93.

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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e angustiados. Contendo gestos de ódio e revolta, taticamente recuando diante de forças transitoriamente invencíveis. Diante de um homem morto, todos precisam se definir. E a Guarnieri interessa o estudo destes comportamentos e das contradições que nascem entre os personagens-símbolos. Nada pode permanecer como antes. Ação ou omissão é ponto de questionamento. [...]5 (grifo nosso).

A análise destes personagens-símbolos permite recuperar fragmentos da década

de 1970, e apreender que, mesmo utilizando-se de uma linguagem metafórica,

“Guarnieri continua fiel ao mais possível e vigoroso realismo. Que consiste sem dúvida

em tornar reconhecível a verdade”6.

Comportamentos e contradições nos personagens-símbolos de Gianfrancesco Guarnieri

O centro de todo o enredo que envolve a peça é, como já citado, a morte de um

homem em uma praça de aldeia medieval; este homem enforcado é o estopim para o

desenvolver de toda a trama. Suicídio ou Assassinato? Em torno dessa interrogação, vão

se definindo comportamentos e atitudes sociais. D. Félix preside um inquérito para

descobrir se houve ou não o suicídio. Áida, sua esposa, é a única a sustentar

veementemente tal hipótese, ao contrário de Maíra, sua filha, que insiste em que se

descubra o assassino e se faça justiça. As demais personagens, Dôdo e Ainon,

respectivamente amigo e pai de Birdo, mesmo não acreditando na versão defendida por

Áida, aceitam o veredicto de que ele se matou. Os motivos que os levam a aceitação são

distintos. Ainon, por conformismo e Dôdo, por instinto de sobrevivência.

Cada personagem assume uma postura diante do poder instaurado por trás desse

episódio. Eles são símbolos das forças sociais que representam e, também, sujeitos que

sofrem, individualmente, a ausência do filho, amigo e amante. Mas, para Guarnieri, o

que interessa é o plano social destas personagens. Em Ponto de Partida, valorizou-se o

individual, mas um individual que se define politicamente e não emocionalmente, ou

seja, o que predomina são as relações político-sociais que estes indivíduos estabelecem,

5 PEIXOTO, Fernando. Teatro em Pedaços. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 192. 6 Ibid.

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a partir deste acontecimento e, não, as suas reações emocionais frente a esta ausência.

Não é somente um homem e uma mulher chorando a morte de um filho e um amante,

mas sim, a perda de um homem político, como revela Maíra:

MAÍRA – Não choro a morte, minha mãe. Choro a ausência. Sofro o absurdo, a violência. Esta morte não é de um homem, é de uma aldeia. É a voz da aldeia que morre, seu canto, sua poesia, seu humor, seu tédio e monotonia, sua virtude, graça e tristeza, sua beleza, carinho e alegria. E mais calado ficará o povo, pois se o povo cala é que não há povo em cada qual singularmente, mas sim em toda a gente que não tem expressão própria e caracterizada; mas sempre há quem diga e represente a fala, que embora de gente calada, traduz a fala de toda a gente. [...]7.

Mas quem era Birdo? O que ele representava? O que o tornava diferente dos

demais habitantes da aldeia? Só se conhece Birdo por meio da narrativa das demais

personagens: Áida, Maíra, Dôdo e Ainon e por seus objetos pessoais: sapatos, flauta,

cadernos e livros. Qual o significado destes objetos? Em uma sociedade oprimida pelo

poder de D. Félix e Áida, eles correspondiam às armas do poeta para atingir a

consciência daquele povo. Torná-lo ciente de sua condição de oprimido. Eis, portanto, o

estabelecimento do conflito liberdade x opressão, onde Guarnieri aponta que, mesmo

vivendo sob o jugo do autoritarismo, os indivíduos têm a liberdade de se tornarem

conscientes de sua situação:

PASTOR – [...] Birdo me comovia. Ao vê-lo meu coração saltava e sabia que algo de novo chegava. Sempre uma notícia, um verso novo, uma nova indagação.

FERREIRO – Era um moço inquieto. Onde punha a mão renovava, e contava o que a gente sentia mas a garganta travava...

PASTOR – Nunca passei de um boneco, mas junto dele eu me sentia vivendo. Mal, vivendo mal, mas sabendo. Saber porque se vive mal ou bem, mas saber. Só que eu sou tolo, Dôdo. Ele sabia e dizia e se fazia compreender (grifo nosso) (p. 34).

E não só conscientes, mas verdadeiramente livres. Birdo era a voz de um povo

que se mantinha calado frente à opressão. Uma voz destoante, um subversivo, alguém

capaz de raciocinar e levar os outros a fazer o mesmo. Correspondia à visão da

renovação e da mudança, da vontade de viver, da intolerância aos atos de injustiça,

características que o tornava uma ameaça e um incômodo ao casal Áida e D. Félix, que

7 GUARNIERI, Gianfrancesco. Ponto de Partida. São Paulo: Brasiliense, 1976, p. 25-26. As demais notas referentes à peça serão incorporadas ao corpo do texto.

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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projetam a imagem de um poder autoritário e repressivo. Em contraposição a Birdo, o

casal corresponde à síntese de duas personagens que se completam em um poder que se

revela contraditório: Áida age ante a cegueira do marido, sendo seu braço armado, mas

ao final da investigação evidencia-se que compactuam dos mesmos ideais. D. Félix ao

descobrir que Áida foi a responsável pelo assassinato encerra o inquérito, dando o

veredicto final de que houve um suicídio.

Durante toda a inquirição – e mesmo antes –, Áida se posiciona contra a hipótese

de assassinato. Por diversas vezes, argumenta com D. Félix sobre os perigos de se

prosseguir com a investigação, uma vez que o morto está ameaçando a tranqüilidade e o

sossego da aldeia. É evidente o seu desejo em encerrar o caso e evitar dar a Birdo uma

importância maior do que possui. Sua insistência se explica por seu desejo em se manter

no poder e, para que isto ocorra, é necessário contar com a complacência e ignorância

de um povo. Aquele homem enforcado no centro da praça gera dúvida e instabilidade,

pois não há como ignorar sua presença. Diante disto, é preciso desqualificá-lo,

imprimindo a certeza de que seu ato foi resultado de uma mente conturbada.

Responsabilizar o morto é a alternativa encontrada para que sua morte não se torne um

ato político, onde o poder do casal possa vir a ser questionado. Desprezar Birdo e

ameaçar os que clamam por justiça são as armas de Áida para impedir atos de

insurreição:

ÁIDA – [...] Convenhamos que teu filho não era como toda gente. Inseguro em sua falsa segurança, solitário apesar de muito amado. [...] Às vezes, ouvia-se seu canto na praça quando voltavam todos do trabalho. Canto mal disfarçado de revolta e raiva. [...] Reconhece em teu filho um ser pouco equilibrado. [...] Passava do abatimento à euforia, da tristeza à alegria, em tão rápida transformação que as pessoas se entreolhavam com espanto. Birdo sofria, ferreiro, todas as dores. [...] Publicamente, no meio da praça, teu filho se enforcou, como um derradeiro protesto, definitivo.

FERREIRO – Sei que não é assim. [...] Não era um louco, como pretendeis, nem desequilibrado. Era um homem bom, senhora, preocupado com as estrelas, mares e pessoas. Pobre tempo em que sensibilidade quer dizer loucura. Birdo foi morto, assassinado, por mais que isso vos incomode ou preocupe. [...].

ÁIDA – Não se pode raciocinar com um obstinado. [...] Desde que Birdo morreu, a aldeia não é mais a mesma. As pessoas sussurram, há medo em todos os rostos porque tu e alguns mal-intencionados estimulais a desconfiança, a discórdia. Cuida-te, ferreiro! Somos responsáveis por esta gente. Vivíamos em paz. Não queiras com a tua dor perturbar o que vai em ordem e avanço.

................................................................................................................................

ÁIDA – [...] As pessoas querem dias serenos e os terão, nem que para isso seja necessário exterminar os insidiosos. D. Félix tem a mão pesada, ferreiro. Deixo

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aqui meu sincero conselho. Que, depois, não te arrependas, pois não haverá misericórdia. (p. 60-63).

Se Birdo foi um incômodo em vida, morto, continuou uma ameaça. O clima de

medo e de incerteza, incompatível com a suposta paz reinante na aldeia é a evidência

disto. Áida numa pretensa preocupação com o povo o utiliza como pretexto para suas

arbitrariedades. É o povo, e não ela, que quer dias serenos. Em nome de uma ordem e

progresso tem suas atitudes justificadas, onde aquele que se revela contrário a estes

preceitos, torna-se hostil à comunidade. Mais do que salientar as razões pelas quais

Birdo teria para atentar contra a própria vida, Áida reafirma os motivos que levariam ao

seu assassinato. Uma contradição denunciada por Maíra:

ÁIDA – Não trago suposições, nem abstratas certezas, senhor. Trago fatos que nos desenham o perfil do morto. Quem era realmente o desditado? Porventura um cidadão pacato, cumpridor de seus deveres, um homem honesto, comportando-se de acordo com nossa moral e costumes, um ser normal, obediente às leis e de boa conduta? A resposta será: não! [...] Birdo foi um desequilibrado, um bêbado, um viciado.

MAÍRA – Protesto! Não é verdade.

................................................................................................................................

MAÍRA – Senhora, pretendeis enumerando estas razões defender a hipótese do suicídio, ou comprovar as inúmeras razões que teríeis para eliminá-lo?

ÁIDA – Por suas próprias mãos procurou a morte, sua única alternativa, pois jamais soube de alma mais conturbada e tão atritada com a vida [...] É um caso de medicina e não de justiça, senhor. Peço que a questão seja encerrada. (p. 70-73).

Cidadão pacato, homem honesto, obediente às leis e a boa conduta são

características apontadas por Áida como não condizentes com o perfil do poeta. Estas

qualidades – comportamento ideal para os moradores da aldeia – se não fossem aceitas e

assimiladas constituiriam uma ameaça ao poder, daí a necessidade de se eliminar o

rebelado. Mas como assumir publicamente a autoria de um crime, sem, contudo, perder

o respeito e a autoridade? Para isso se fez imprescindível criar a imagem de um homem

louco e conturbado, eximindo-se de qualquer responsabilidade pelo ato cometido. Ao

revelar seu crime, Áida ainda exprime um outro sentimento: o ódio:

ÁIDA – Sim, fui! Fui! Farta de tua cegueira, consciente de minha prisão! Esta tragédia é só minha, pois não tenho salvação! A ti estou atrelada! Sou o que passa, somos o velho e acabado e só tua força nos sustenta. Não suporto os gritos de prazer, a beleza e o canto! Birdo era a vida que já não é minha! Matei-o. Mandei que o pendurassem na praça, de ódio pelo seu amor, pela sua beleza, pela sua esperança! Quisera esmagá-lo, mordê-lo até sangrar; arrancar-lhe os

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olhos, a língua, o sexo... ele é vida, é sangue, é humanidade pulsando. Sou fria e tetra, sou passado, momento final! (p. 77).

A comprovação de que Birdo é vida, beleza e esperança, provoca em Áida a

certeza de sua impotência e superação. E, assim, mediante a certeza da impunidade, da

força e poder do marido, o que lhe resta é assassinar o novo para manter o velho.

Em contraposição às suas atitudes, têm-se a firmeza de D. Félix em exigir que a

verdade seja apurada. Se a hipótese de assassinato se insinua, é vital que se esclareça os

murmúrios e as insinuações. Promete justiça e, para isto, empenha nome, honra e

fortuna e, numa demonstração de integridade, afirma que esta se dará independente de

quem seja o culpado. Durante todo o processo, parece ignorar o fato de que sua esposa

foi a responsável por aquela morte, embora em algumas ocasiões desconfie de suas

constantes tentativas para que se encerre a investigação. Comanda o inquérito com

solidez, sendo sua cegueira uma alusão de que a justiça é cega. Também se preocupa

com o povo, mas não apenas no sentido de que este precisa recuperar a tranqüilidade

perdida. É, a reação da aldeia perante o morto enforcado, a sua grande preocupação.

Ainda que Áida revele esta apreensão, é D. Félix que tem a noção de que impor um

veredicto não é a estratégia política ideal para aquele momento:

D. FÉLIX – É gente mansa que teme complicações. Este, Áida é um morto incômodo para todos. A presença do enforcado inquieta. Fala-se em assassinato; as bocas murmuram; o medo se intromete em cada passo. Cada gesto é pensado e fortuito. Não é a atmosfera que nos convém. Os cidadãos temem e isto é mau. A autoridade deve prevalecer inatacável. Para tanto é necessário esclarecer o fato. O suicida será desmascarado.

................................................................................................................................

ÁIDA – Bastaria uma ordem e tudo estaria terminado.

................................................................................................................................

D. FÉLIX – Não é momento para imposições. Também quero o povo em paz, mas confiante. [...] Se encerro o caso, perpetuo o morto, deixando soltas dúvidas e suspeitas.

................................................................................................................................

D. FÉLIX – Quero a verdade somente. [...] Seja ela qual for não deixarei que interfira no que por nós é decidido; não será um poeta morto que ameaçará o conquistado. Mas tenho de saber, pois mesmo cego, dirijo tudo à minha volta e do modo que desejo. E se porventura não for este morto suicida, mas morto por gesto ou ódio, tenho de sabê-lo e afirmo que quem o fez terá castigo. Se matar é preciso, será meu o braço armado. (p. 40-42).

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Este diálogo demonstra toda a contradição que cerca a figura de D. Félix, ou

melhor, a contradição intrínseca ao poder. A busca pela verdade não é, simplesmente,

movida por um desejo de justiça, mas sim pela necessidade em se controlar tudo a sua

volta. O que se torna imprescindível é manter a autoridade independente da sentença

final. Contudo, ao afirmar que o criminoso será castigado, recua imediatamente ao

perceber aonde se chegará com o fim do processo. Diante de uma situação de risco, a

reação é autoritária: é proibido falar no morto! Assim encerra o processo e reafirma o

seu poder. Birdo não é mais um perigo, pois já se sabe como justificar a sua morte.

D. FÉLIX – Voltem todos às suas casas. O inquérito se consumou. Morreu Birdo por suas próprias mãos, suicidou de remorsos por ter violado uma donzela de casa nobre e pai poderoso. Voltai todos ao trabalho. E aqui severamente determino que do caso não se faça mais comentário. Que se apague o morto da memória e que conte com minha fúria quem desobedecer a ordem! [...] (p. 75).

O poder, enfim, se mantém nas mãos de D. Félix e Áida. E se esta decisão se

consolida – Birdo é um suicida – é porque existem aqueles que validam esta

determinação. Mas Guarnieri, por meio das personagens Ainon e Dôdo, expõe que

atitudes de conformismo, aceitação e omissão estão repletas de significado e que não

podem ser simplesmente concebidas como atos de covardia. Assim, tem-se Ainon, o

ferreiro, pai de Birdo, um homem bom, que ama o filho, mas que não o defende, por ser

incapaz de um ato de insubordinação. Sua dor é patente e, embora tenha pedido justiça

por não acreditar na versão de suicídio, se conforma com o veredicto final.

Recuperando a trajetória de Ainon, verifica-se que, ao saber da morte de Birdo,

ele tem como primeira reação a revolta e o clamor por justiça: “traga até nós o

assassino!”, “diante de todos reclamo justiça”, eis suas palavras. Ainon, assim como

Maíra, sente não a perda de um filho, mas a de um homem. Ambos lamentam esta

ausência por terem consciência da dimensão política de sua morte.

FERREIRO – [...] Juro, Dôdo, não é a perda de um filho que choro, é a perda de um homem, de um homem incomum. Não é somente a falta de um filho, não é a dor de um pai. Sinto a falta do companheiro, deste ser de olhos abertos e mente inquieta. Já não era eu que o levava pela mão, mas ele que me conduzia. Fizeram-no calar-se. [...] Assim era esse homem, Dôdo, que foi meu filho. E o que nos resta dele agora são estes objetos: sapatos, instrumentos e livros – andarilho, poeta, pensador. (grifo nosso) (p. 28-29).

No entanto, embora se mantenha firme na hipótese de assassinato, mesmo

quando Áida o ameaça, para que se encerre o inquérito, e ele afirma que isto seria uma

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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traição, Ainon não compactua dos ideais de seu filho. Não é a rebeldia e o desejo de

mudança que o motiva. Isso se comprova em duas ocasiões: a primeira, quando Maíra

declara seu amor ao poeta e confessa a sua gravidez. Diante deste fato, Ainon não só

recrimina a atitude de Birdo, como alega não ser possível que alguém da classe social de

Maíra se relacione com o filho de um ferreiro, evidenciando qual a sua postura frente ao

poder. Resignado à sua condição de homem submisso, vê nesta revelação uma

justificativa para este assassinato:

FERREIRO – Então é isso? Por teu amor foi Birdo enforcado? Uma vingança de pai? Pois se é assim, por Deus!, nada reclamo e direi que, neste caso, D. Félix foi justo e honrado!

MAÍRA – Meu pai não sabe de nada. Era segredo nosso. Mas mesmo que soubesse e por vingança o tivesse assassinado, não vejo nisto nem valor ou honra; [...]

FERREIRO – Não há crime em questões de honra!

MAÍRA – Não há honra quando há crime. E crime há em qualquer ser sacrificado!

FERREIRO – Enlouqueceste! [...] (p. 38).

Numa outra ocasião, quando convocado a depor, o ferreiro, mais uma vez, se

manifesta contrário ao caráter insubmisso de Birdo. As características anteriormente

ressaltadas e admiradas – andarilho, poeta, pensador – tornam-se a causa de sua

desgraça. A insubordinação é, portanto, desculpa para justificar a sua morte. Ainon pode

até não acreditar na versão de suicídio, uma vez que conhece tão bem o seu filho, mas já

não clama mais por justiça por ser incapaz de confrontar o poder de D. Félix.

FERREIRO – Senhor, sinto-me aturdido, cansado. Com ele, meu filho, se foi minha vida e espero passar deste mundo para outro que só pode ser melhor. Ouvi as declarações, e devo dizer que, de fato, Birdo, meu filho, não se comportou nunca como se espera de um subordinado. Foi livre enquanto pôde, desperto, desperto... Tanta coisa foi dita... Da menina agradeço o empenho em defender meu filho do que foi acusado. Mas enfim, declaro que já não suspeito de nada... Estou cansado. Que se dê Birdo por suicidado que já não importa... Foi somente dele a culpa, por esperar do desespero, por ver amor no estagnado... Só teve culpa... Senhor, que se dê o caso por encerrado! (grifo nosso) (p. 73-74).

Ainon não afirma que Birdo se suicidou, mas o responsabiliza por sua morte. E,

assim, compactua com o veredicto final. Para além de recriminar a sua decisão, é

preciso avaliar aquilo que o invalida: sua subordinação. É isto que o impede de

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prosseguir com o julgamento e mesmo quando solicita a Dôdo que revele o crime

cometido, não tem a coragem de se rebelar e, mais uma vez, se cala.

FERREIRO – Para minha calma ou tormento dize o que viste.

PASTOR – Uma mulher seminua, em fúria, archote na mão e dois vultos embuçados arrastando um corpo que foi na árvore pendurado. Desapareceram rápidos e silenciosos. Só ficou, por instantes, a dama. [...] Estava ali...

FERREIRO – Foi o que viste?

PASTOR – (apontando em diversas direções) Ou ali... ou ali... quem sabe aqui?!... pouco importa. São apenas visões, não são verdades. Me chamam Dôdo, companheiro, e Dôdo sou.

FERREIRO – Por Deus, grita, conta, fala!

PASTOR – Não te esqueças do decreto: que se risque o morto da memória. Deste tu a última palavra. Assim foi e assim fica!... (p. 75-76).

Este diálogo comprova também a omissão de Dôdo. Um camponês, amigo de

Birdo, e que também se cala perante a autoridade de D. Félix. Menos por conformismo,

mais por instinto de sobrevivência. Viúvo, perdeu a esposa e os cinco filhos. Todos por

um mesmo motivo: pela falta do que comer. Embora se faça de louco, não o é. “Se

refugiou na sua pseudo-doidice e na sua pseudo-simplicidade de camponês estúpido

como num abrigo inviolável. Sabe tudo, compreende tudo, mas não ergue a cabeça para

não vê-la decepada”8. Testemunha ocular da morte de Birdo mantém seu silêncio para

sobreviver em “tempos difíceis”. Afinal, quem irá acreditar no que Dodô tem a dizer?

No que afirma ter visto? Para que pôr em risco sua vida, se não pode mais salvar a do

amigo? Sendo assim, omite o que sabe. Mesmo quando Maíra tenta convencê-lo a

denunciar o crime cometido, Dôdo se mantém irredutível:

MAÍRA – Retorna e conta. Todos querem saber! Vai e conta!...

PASTOR – Que te faz supor, menina, que Dôdo saiba alguma coisa? Dôdo tem visões.

MAÍRA – Da mais triste realidade... Vai, Dôdo, expõe, grita, resolve... Camponês perdido no amplo, não te encerres nesta miséria, não no cubículo do comodismo. Pensas estar só, mas estamos juntos... [...]

PASTOR – [...] Não te metas onde não és chamado!... O silêncio é de ouro, a palavra é de latão!... [...] E eu aqui quero ficar mudo e quedo... Pois estou a morrer, e morrer de medo!

................................................................................................................................

8 PRADO, Décio de Almeida. Guarnieri revisitado. In: ___. (Sel.). O Melhor Teatro de Gianfrancesco Guarnieri. 2. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 15.

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MAÍRA – Abandonas o amigo, o irmão, aquele que te tirou da solidão. Que foi tua mais bela, mais real visão. Pobre de ti! Que o segredo não te esmague o peito e não te envenene o coração! [...] Com a certeza que me dá a imensa dor, declaro, digo e proclamo que não há mais cruel, mais vil, mais estúpido traidor!

PASTOR – [...] Tu mesma disseste que falas de dor. Não me ofendo, portanto, e fico em oração por ele, por ti e por mim. Que um dia a verdade apareça é o que quero só por enquanto... [...] Deixa Dôdo deitado, sob estrelas emborcado, vomitando, embriagado de vergonha e medo, paralisado, sozinho, tonto e maltratado... Amém! (p. 53-55).

Maíra o acusa de traição, afinal Birdo foi o único a lhe respeitar e a tirá-lo da

solidão. É como se Dôdo tivesse uma obrigação para com o morto e ele reconhece isto,

mas também tem dimensão de sua insignificância e de sua única virtude: a arte da

sobrevivência. E, para conservá-la, é preciso permanecer em silêncio. Revela-se com

medo e vergonha, contudo o limite de sua coragem está em afirmar o seu desejo de que

um dia a verdade apareça. Esta atitude supostamente egoísta deve ser compreendida

como reflexo de seu temor e da certeza de sua impotência. Dôdo, em sua pseudo-

doidice, adota um discurso irônico para criticar a si mesmo e todo o povo que finge

viver em completa felicidade.

PASTOR – A população muda contempla o morto. Façam-se as apostas, senhores. Cinco por um para o suicídio, pois já há posição oficiosa a respeito. Suicidou-se o assassinado. E todos concordam e aplaudem. Mais uma indagação será encerrada e no melhor dos mundos continuaremos trabalhando para o bem comum. Tudo sob controle, o destino foi dominado. Eia, balancem a cabeça, concordem como convém. Aplausos, senhores, e depois podem ir para seus campos e oficinas em nome do bem-estar. [...] Atenção! Que levantem as mãos os que passam fome! – Ninguém passa! – Que levantem os braços os infelizes! – Completa felicidade! – Quem chora à noite de aflição? – Todos dormem como justos! – Que façam coro comigo os amantes de injustiçados; os pais de corrompidos; as mulheres de assassinados; os parentes de explorados! Eia, é claro, existimos no melhor dos mundos! – Que fiquem parados e quietos os desesperados! – ah, assim vai melhor! Adeus, meus semelhantes! (p. 64-65).

O silêncio é compartilhado por todos, exceto por Maíra, a única que se revolta

com o fim do inquérito por não aceitar a versão de suicídio. Embora pertença ao poder,

não compactua com ele. Amante de Birdo, carrega em seu ventre, o fruto deste amor –

que é esmagado, quando descoberto pelos pais. O contato com Birdo e, principalmente,

a consciência que possui do significado de sua morte, faz com que Maíra, represente a

esperança e a força de transformação, sendo isto um legado de Birdo, como ela mesma

afirma:

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MAÍRA – Amo Birdo com toda minha alma. Porque o compreendo, porque o sei. Amo porque me deu vida. Através dele renasci. Como um mágico pintor mostrou-me as verdadeiras cores do mundo. Sem ele não veria o que vejo, não seria o que sou. De uma tola presunçosa fez de mim uma mulher. Sacudiu-me de tal forma, que como árvore frutifiquei. Arrancou-me do comodismo, libertou-me do tédio, partiu-me o coração e mente deixando livre o que em mim ainda havia de gente. Com ele ruíam preconceitos e tudo se mostrava em sua perpetua transformação. Birdo é incômodo, vivo ou morto, pois é a necessidade, presente, sorrindo. Meus pais, os senhores, comandam um inquérito na praça? Para provar o quê? Que Birdo é suicida, é o que pretendem, vida anulando vida. Mas o que ficará provado é que Birdo é chegado assim como ponto de partida. Birdo é meu amor, é o amor, pois Birdo é vida. (p. 33-34).

O importante neste depoimento é a constatação de que seu amor pelo poeta

transcende a relação homem-mulher, ou seja, há o reconhecimento por parte de Maíra,

de sua renovação enquanto ser político, em sua convicção de que se estabeleça a

mudança, mesmo com a ausência de Birdo, uma vez que ele revela, mesmo morto, a

necessidade de tempos melhores.

Ao contrário de algumas peças anteriores de Guarnieri, não coube aos

trabalhadores o papel de reivindicar a morte de Birdo. Ainon e Dôdo, representantes do

povo, assumem posturas contrárias às esperadas. Porém, seria equivocada a conclusão

de que não há um conflito de classes estabelecido e de que a classe trabalhadora está

ausente. Primeiro pela presença de Birdo – um operário e ponto central do enredo e,

segundo, pelo fato de que sua morte revela um conflito entre opressores e oprimidos.

Assim, quando se afirmou anteriormente que, em Ponto de Partida, valorizou-se o

individual, estava se declarando que o conflito central deste texto teatral não foi

definido pela organização da classe operária e, sim, pela condição de opressão a que

uma sociedade se encontra e que o dramaturgo concebeu, por meio de indivíduos que se

definem individual e politicamente. Maíra não pertence ao povo. O sentimento que

move sua ambição de justiça não é somente o amor que nutre por Birdo, mas é em que

se transformou a partir de seu contato com o poeta, que a faz lutar. É em nome desta

consciência política, que Maíra acusa o pai pela morte de Birdo. Sua coragem, no

entanto, leva à fúria D. Félix e aqui, mais uma vez, em nome de uma “justiça cega” ele

convoca a própria filha para ser interrogada. É a possibilidade de, novamente, defender

suas convicções, ressaltando que esta defesa se faz movida por sua politização:

MAÍRA – Não trago fatos, senhores, mas apenas uma certeza que me vem do conhecimento profundo que tive do morto. Birdo jamais atentaria contra a vida, pois para viver tinha as mais belas razões. Não direi do projeto de construção de um pouso para sua morada... [...] Direi das crianças que alfabetizava. Direi de

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um pai que necessitava de seu apoio e que jamais abandonaria por vontade própria... Direi de sua fé nos homens, tão grande e tranqüila que esbarrava na ingenuidade. Direi de sua indagação constante, sua inquietude, sua busca sem parada. Se a muitos estimulava, a alguns incomodava. Mas esses “alguns” têm poder e mando e força. [...] Por ser assim, e firmemente agarrada a esta certeza, é que como solução indico que entre os “alguns” a quem o morto perturbava, se preocupe a verdade desta morte. Para que possamos, daqui por diante, continuar existindo, mas olhando cada qual nos olhos do outro, sem vergonha e sem medo. O interesse leva à fúria, o amor à esperança. Em nome do amor, repito, amor, amplo e verdadeiro, exijo de quem é responsável pela lei e pela ordem, que nos dê o nome do culpado e que fiquem claras suas razões. (p. 69-70).

Maíra, ao acusar o pai pela morte de Birdo e se manter categórica contra o

veredicto final do inquérito, estabelece não uma atitude de afronta ao seu pai, mas sim

uma contestação ao poder que ele representa. Isso a difere dos demais personagens, pois

é a única a resistir a este poder e a sofrer as conseqüências deste ato. Esta resistência se

exprime também em suas tentativas de convencer Dôdo e Ainon a lutar por justiça e não

se omitir frente ao autoritarismo de seus pais.

MAÍRA – Vergonha! Vergonha!... Está sendo o morto trucidado!... Ele jamais se mataria, meu pai!... [...] Descobre a verdade, meu pai, denuncia o crime. Esta mentira envenenará o ar, as águas, viver nesta mentira será a morte! (p. 74).

Mesmo com a morte de seu amado e de seu filho, ela segue seus objetivos, pois,

embora seus pais tenham lhe tirado o filho, há outro tipo de legado que lhe permanece: a

certeza de que é preciso manter a esperança de que um dia as coisas serão diferentes.

Esta é a mensagem final de Guarnieri, em Ponto de Partida:

MAÍRA – Sozinhos, meu amado. Já em mim não continuas, que mataram ao pai e ao filho não nascido, e de ti só restará uma lembrança proibida. Mas eu ficarei, meu amado, no centro desta praça, até que estes tempos se acabem e os homens se reencontrem no que conservarem de humano. Eu e meu sangue, e minha fé, e minha coragem, minha certeza, e minha dor que é só o que há de irreversível! (p. 77-78).

Partindo do comportamento destes personagens, Gianfrancesco Guarnieri

construiu um texto teatral, “capaz de perturbar e provocar a reflexão crítica no

espectador”9. Foi objetivo do dramaturgo possibilitar que, por meio dos personagens, o

público estabelecesse as suas identificações com a realidade da década de 1970:

[...] E depois veio Ponto de Partida, que todo mundo, na época, desconfiava ter sido inspirada na morte do jornalista Wladimir [sic] Herzog, assassinado em

9 PEIXOTO, Fernando. Op. cit., p. 193.

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1975 nas dependências do DOPS. E as pessoas não podiam desconfiar disso, não: elas tinham de ter certeza. A peça foi baseada e inspirada na morte do Herzog, sim. [...] O público tinha medo de ir ao teatro para ver esta peça, eles achavam que uma bomba – sempre as bombas, meu Deus, que mania de bomba que o regime tinha – podia explodir o teatro. Mas as pessoas enfrentavam o medo e iam ver a peça, e isso era lindo. [...]10

À luz destas reflexões, pode se avaliar a importância deste texto teatral para a

construção de uma resistência democrática, bem como determinar o papel do intelectual

nesta conjuntura política. Assim, observando-se a década de 1970, no Brasil, é

impossível ignorar que nela a história política do país sofreu intensas mudanças, sendo

marcada, simultaneamente, por momentos de muita tensão e por transformações

culturais e sociais de grande alcance.

No período de 1969 a 1975, a repressão atingiu o meio intelectual com o

fechamento de diversos jornais e revistas, a censura sobre espetáculos e peças teatrais –

até mesmo com a invasão de teatros, a exemplo do Teatro Ruth Escobar que, em 1968,

após a encenação de Roda Viva, teve seu espaço invadido por um grupo do CCC

(Comando de Caça aos Comunistas), que, além de destruir os equipamentos e cenários,

agrediu fisicamente integrantes do elenco – prisões e perseguições a jornalistas,

estudantes, artistas e professores universitários que, em alguns casos, tiveram cassados

seus cargos de servidores públicos.

A política governamental direcionada contra esses intelectuais fez com que eles

vivessem sob uma intensa situação de restrição. Apesar disso, esse grupo – representado

também por advogados, cineastas, dramaturgos, artistas plásticos, atores – desenvolveu

iniciativas culturais e sociais por meio das quais se procurou questionar, de modo

metafórico e indireto, a arbitrariedade do regime militar numa luta travada no campo da

resistência democrática.

Atuar nas “brechas do sistema” passou a fazer parte do cotidiano destas pessoas,

que não se conformaram com os rumos seguidos pelo país. Alguns seguiram as

diretrizes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), uma vez que

O tema dos intelectuais e da cultura tornou-se prioridade nas discussões do PCB, sobretudo a partir do golpe de 1964. Sem dúvida, este acontecimento exigiu que o Partido repensasse suas estratégias de atuação política e suas

10 ROVERI, Sérgio. Gianfrancesco Guarnieri – um grito solto no ar. São Paulo: Imprensa Oficial, 2004, p. 152-153.

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Capítulo 2 “Ponto de Partida” de G. Guarnieri (1976): momentos da década de 1970 na dramaturgia brasileira

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relações com segmentos culturais, já que, a partir de então, as análises puramente “economisistas” não respondiam mais aos impasses vivenciados, nem à necessidade de organização da resistência articulada em setores não vinculados à produção. De acordo com esta perspectiva, o espaço da “resistência” e da “luta pela democracia” teve na cultura a sua arena, na qual a “pequena-burguesia” levantou a bandeira das reivindicações progressistas. Estas preocupações podem ser encontradas num conjunto de documentos, escritos em 1972, que visavam discutir o papel do intelectual na construção da resistência democrática11.

Partidários ou não, estes indivíduos buscaram por meio de suas atividades

profissionais encontrar alternativas de combate e denúncia à repressão. Neste contexto

histórico, o dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri se propôs a uma arte engajada capaz

não apenas de passar pelo bloqueio da censura, como afirmado anteriormente, mas,

sobretudo, produzir um “teatro de resistência democrática”.

11 PATRIOTA, Rosangela. 1972: intelectuais e resistência democrática. In: ___. Vianinha – um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 147.

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Capítulo 3

Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

Minha opção política sempre foi um retrato da necessidade que eu tinha de fazer alguma coisa, de contribuir com algo construtivo, e nunca arredei pé disso. Eu continuo, até hoje, fiel àquilo que eu senti quando comecei a fazer teatro. Isso me dá uma responsabilidade grande, imensa, de ser fiel a esta causa. Logo após a estréia de Eles Não Usam Black-Tie, no Teatro de Arena, que foi um enorme sucesso, eu fui chamado para uma homenagem. Naquele momento, eu fiz um juramento para mim mesmo, um pouco bombástico, mas fiz: a de que eu jamais trairia a causa de usar a minha arte para defender o povo.

Gianfrancesco Guarnieri/2003

Militância Estudantil, PCB, TPE: o processo de criação de “Eles Não Usam Black-Tie”

FP – De Black-Tie até Ponto de Partida, o que é que se mantém?

GG – São dois dramaturgos diferentes. Dois escritores diferentes. Mas há uma coerência entre eles. Conservam uma mesma coisa. Acho que de forma mais amadurecida, mais dura também. Tanto em nível formal como em nível de pensamento. Mas conservam o mesmo ponto de vista, a mesma esperança e a mesma confiança1.

À luz desta declaração, pode-se avaliar sobre o processo de criação do

dramaturgo em momentos distintos, uma vez que Eles Não Usam Black-Tie (1958) e

Ponto de Partida (1976) correspondem a períodos históricos diferentes. Para além da

afirmação do autor quanto à existência de escritores diferentes, o importante consiste

em recuperar a historicidade inerente a estes textos teatrais bem como os referenciais

que nortearam o trabalho de Gianfrancesco Guarnieri.

1 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri. Teatro em Movimento, 3. ed. São Paulo: Hucitec, p. 44-60, 1989. Entrevista concedida a Fernando Peixoto, p. 59.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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Eles Não Usam Black-Tie, encenada em 1958, pelo Teatro de Arena de São

Paulo, tornou-se marco não apenas para a dramaturgia do autor, mas para a História do

Teatro no Brasil. Elevada a modelo de um “teatro nacional”, Black-Tie foi objeto de

reflexão de críticos como Décio de Almeida Prado, Sábato Magaldi, Mariângela Alves

de Lima e Edélcio Mostaço. De acordo com a historiadora Rosangela Patriota2, estas

análises, embora apontassem aspectos específicos em suas abordagens, no conjunto,

promoveram uma articulação entre a peça e o seu contexto histórico.

Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, desta forma, assinalaram aquilo que

possibilitou a inovação da cena teatral: “a introdução do ‘povo’, a presença de

personagens operários como protagonistas da trama”3. Já Mariângela Alves de Lima e

Edélcio Mostaço discutiram o impacto de Black-Tie para o Teatro de Arena “e suas

conseqüências para as atividades posteriores, privilegiando o binômio arte e política”4.

Patriota ressaltou, ainda, as análises efetuadas por Lúcia Maria Mac Dowell Soares em

sua monografia, O Teatro Político do Arena e de Guarnieri, e as de Iná Camargo Costa

no livro A Hora do Teatro Épico no Brasil. Sobre a pesquisa de Mac Dowell, chegou-se

à conclusão de que a mesma projetou sobre a peça “qualidades que lhe foram atribuídas

posteriormente, na medida em que estas não compõem nem a estrutura dramática nem o

enredo da trama”5. Esta autora, utilizando-se de uma bibliografia teórica referente à

década de 1970, procurou avaliar Black-Tie a partir destas referências, tentando

encontrar, por exemplo, pressupostos do Instituto Superior de Estudos Brasileiros

(ISEB) na obra de Guarnieri. Iná Camargo Costa, por sua vez, embora tenha feito

ressalvas ao texto teatral, reconheceu “a importância da peça como documento

significativo da recente história brasileira, especialmente pela presença de personagens

operárias em cena estar em consonância com as discussões políticas e sindicais da

década de 50”6.

2 PATRIOTA, Rosangela. Eles Não Usam Black-Tie: projetos estéticos e políticos de G. Guarnieri. Estudos de História. Franca, v. 6, n. 1, p. 99-121, 1999. 3 Ibid., p. 104-105. 4 Ibid., p. 105. 5 Ibid., p. 107. 6 Ibid., p. 108.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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Estas reflexões tornam-se fundamentais uma vez que indicam o lugar de Black-

Tie na historiografia do teatro brasileiro, o qual estabeleceu-se pelas construções e

interpretações que críticos e pesquisadores realizaram a partir da encenação da peça.

Daí a importância em se recuperar a fala destes indivíduos e matizar suas considerações,

as quais, em certos momentos, mostraram-se equivocadas e deslocadas do contexto em

que Black-Tie foi escrita. Segundo Patriota:

Significativamente, Black-Tie suscitou várias interpretações e perspectivas de trabalho, entre elas a criação do Seminário de Dramaturgia do Teatro de Arena. Embora isso tenha ocorrido, o texto de Guarnieri possui uma trajetória própria, fruto das vivências do autor, de um lado, e, de outro, as experiências do Teatro Paulista do Estudante (TPE). [...] Com base neste repertório, é possível resgatar a historicidade de Eles não usam black-tie a partir de fragmentos, o que significa refletir sobre o processo de criação do dramaturgo, bem como observar o impacto que a sua infância, a militância estudantil e as atividades do TPE, no sentido de resgatar perspectivas que, em absoluto, estão presentes quando se debate a recepção do espetáculo e as discussões que ele suscitou7.

Tal conclusão aponta perspectivas para que se possa compreender a elaboração

de Eles Não Usam Black-Tie por meio não apenas de seu contexto histórico, mas

considerando a vivência de seu autor e, então, verificar até que ponto suas referências

refletiram em sua obra. Para tanto, torna-se fundamental recuperar aspectos de sua

infância e de sua militância tanto no movimento estudantil quanto no Partido Comunista

Brasileiro (PCB), além de sua participação no Teatro Paulista do Estudante (TPE) e os

contatos e experiências adquiridos neste grupo.

Nascido em Milão, Itália, Gianfrancesco Guarnieri mudou-se para o Brasil aos

dois anos de idade. Filho único de pais músicos, teve uma infância de classe média. Este

breve histórico não indicaria a importância de suas experiências na infância não fossem

os depoimentos do autor, nos quais revela:

[...] Uma coisa muito importante que me me [sic] aconteceu foi uma empregada lá de casa, que convivia mais comigo que minha própria mãe. Essa empregada cuidava de mim. Ela era de uma família vastíssima, paupérrima. Tive assim muita ligação com esse outro lado, o da favela. Eu, às vezes, passava os fins de semana no barraco dos parentes de Margarida – esse era o nome da empregada –, e meus pais achavam que esse contato era muito importante para mim. Eles achavam perfeito, e realmente tudo isso me foi muito útil8.

7 Ibid., p. 118-119. 8 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Atrás da Máscara, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 11-72, 1983. Entrevista concedida a Simon Khoury, p. 15.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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O contato com o pessoal da favela propiciou as referências com as quais

Guarnieri criou as personagens de Black-Tie. Isso fica mais evidente quando inquirido,

nesta mesma entrevista, sobre a possibilidade desta vivência no morro ter influenciado,

posteriormente, suas peças. A resposta do dramaturgo foi que em Black-Tie houve

muito mais das pessoas do que das situações. Significa dizer que temas como greve e

luta de classes não fizeram parte da trama central. Esta análise encontra-se presente no

texto de Rosangela Patriota, no qual a autora avaliou a construção das personagens,

ressaltando que estão expostos, na peça, os comportamentos e as relações sociais destes

indivíduos, onde as divergências foram construídas no interior das convivências

cotidianas9. Indicam, portanto, as experiências pessoais do autor com a gente da favela,

como ele mesmo ressaltou:

Bem, Black-tie que foi a primeira, eu me atirei, me joguei, falando de um tipo de personagem que eu conhecia e sem a mínima preocupação de que isso fosse uma obra, apenas colocar uma experiência que eu tinha com essas pessoas. O Black-tie está recheado de uma experiência pessoal mesmo, de vivência com essas pessoas. E eu acho que aí eu consegui colocar o proletariado em cena, como protagonista. Bem, depois de escrever Black-tie eu virei “autor”, eu não era aquele moleque mais. Então eu passei a ter preocupações formais, veio tudo na cabeça. (SOARES, 1980 apud PATRIOTA, 1999).

Encontram-se aqui definidas as intenções do autor ao produzir esta obra. Aliado

a isto, há a sua militância junto ao movimento estudantil e ao Partido Comunista

Brasileiro. É necessário salientar, no entanto, que tal militância não se encontra presente

no texto, ou seja, as personagens não pertencem a organizações políticas ou pelo menos

isto não ficou claramente exposto. Retomando as análises de Patriota, a historiadora

refere-se a esta questão da seguinte forma:

[...] verificou-se, em algumas interpretações, certa tranqüilidade em identificar Otávio como um militante do Partido Comunista Brasileiro. Porém, quando se resgatam os diálogos em que aparecem as suas referências políticas, observa-se que não são dadas ao leitor/espectador informações explícitas. As mediações são necessárias e os possíveis significados só serão construídos pela recepção do público. [...] [Assim] definir categoricamente o repertório político de Otávio é interpretá-lo a partir das expectativas do analista, e não das possibilidades contidas no texto10.

9 PATRIOTA, Rosangela. Eles Não Usam Black-Tie... Op. cit., p. 114-15. 10 Ibid., p. 118.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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A importância da militância estudantil e política na obra de Guarnieri torna-se

relevante na medida em que foi por meio dela que o autor se propôs a, efetivamente,

dedicar-se às expressões artísticas e a levar a arte aos estudantes como elemento

propiciador da tomada de consciência. Como ele mesmo afirmou em depoimento

prestado ao Serviço Nacional de Teatro (SNT), em 18 de fev. 1976:

[...] Mas, para me dedicar mesmo, foi por acaso, e esse acaso, foi o movimento estudantil. Não sabíamos realmente como fazer a moçada atuar, adquirir de qualquer maneira uma consciência. E nós achamos que o campo cultural estava sendo deixado de lado. Teríamos que incentivar os estudantes a terem uma vida mais ligada às artes, à cultura em geral. Nós íamos às companhias de teatro pedir ingressos para dar a grêmios, entidades etc. E nessa época, eu assisti a um espetáculo maravilhoso, que fiquei embasbacado com ele. Fui diversas vezes assistir, foi o Canto da Cotovia. E dali então, surgiu a idéia da formação do Teatro Paulista do Estudante, que fizemos como uma missão muito mais de política estudantil, do que fazer teatro realmente. Achamos que o Teatro Paulista do Estudante poderia influir no estudante paulista, no sentido de que ele adquirisse uma organização melhor, uma existência positiva. [...]11.

Em outra ocasião, durante as gravações do fórum Odisséia do Teatro Brasileiro,

realizado no ano 2000, o autor enfatizou a influência do Partido Comunista neste

processo:

Esse Teatro Paulista do Estudante foi fundado como resultado de uma discussão muito grande da Juventude Comunista e do Partido Comunista a respeito da atuação dos seus membros, de sua militância no campo cultural e no movimento estudantil. E foi feita uma boa autocrítica [...], pelo qual se via que o movimento estudantil [...] se preocupava muito em ser uma massa agitadora, mas não tinha nenhuma penetração real no meio estudantil. [...]. O teatro era realmente uma renovação naquele momento e a gente sentia isso, mesmo nós, estudantes, que nem pensávamos em fazer teatro. Mas pensávamos que o teatro era uma coisa legal que estava surgindo [...], porque o teatro, pela sua própria maneira de se realizar, por ser uma coisa coletiva, propiciava muitas discussões. [...]12.

Estes depoimentos são esclarecedores do ponto de vista do engajamento do autor

para com a organização estudantil e para se verificar como o teatro teve, num primeiro

momento, a função de instigar o pensamento político em termos de uma atuação prática.

O rememorar de Guarnieri, a propósito do Teatro Paulista do Estudante, evidencia a 11 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Depoimentos, v. 5. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Secretaria de Cultura/Serviço Nacional de Teatro, p. 61-92, 1981. Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado; Flavio Rangel; Mario Masetti; Miriam Muniz, p. 15. A presente citação é uma resposta à pergunta de Flavio Rangel sobre o que levou o dramaturgo, com formação musical desde menino, a se dedicar ao teatro. 12 GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia do Teatro Brasileiro. São Paulo: SENAC São Paulo, 2002, p. 64-65.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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formação de um grupo que tinha por objetivo básico a política estudantil, a qual se

realizava por meio do teatro. Para Berenice Raulino (2002), o fato destes estudantes

considerarem o teatro um veículo eficaz para potencializar seu raio de atuação política

provocou enormes lacunas em suas formações, originadas principalmente por este

imediatismo da militância política.

Se estes foram os pressupostos norteadores deste grupo de estudantes, não é

possível afirmar que a idéia original de formação do TPE foi embasada nestas mesmas

perspectivas. Isto porque o Teatro Paulista do Estudante foi, originalmente, um projeto

de Ruggero Jacobbi – embora isso não fique evidente nos depoimentos de Guarnieri,

mesmo quando o dramaturgo reconhece a importância de Jacobbi para o TPE –, diretor

teatral italiano que desenvolveu seu trabalho na cena brasileira no período de 1946 a

1960. Um dos responsáveis pelas grandes transformações que se operaram no teatro

brasileiro nas décadas de 1940/1960, este intelectual direcionou seu trabalho tanto para

o teatro quanto para a literatura e o cinema.

O panorama que se definiu para o teatro nacional, na década de 1950, teve em

São Paulo seu espaço de atuação, com o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia,

em 1948 e, posteriormente, do Teatro de Arena (1953) e do Teatro Oficina (1958). Isto

sem mencionar os grupos amadores e tantas outras companhias que se projetaram a

partir de iniciativas de atores e atrizes nos palcos brasileiros. Ruggero Jacobbi esteve

sempre atento às crises enfrentadas pelo teatro e em um destes momentos, em 1952, o

diretor, decidiu criar, por sugestão de Paschoal Carlos Magno, um grupo de teatro

estudantil.

A proposta de Jacobbi fundamenta-se na situação que observa na etapa de desenvolvimento em que se encontra o teatro brasileiro, ou seja, diante de duas únicas maneiras de afrontar a crise teatral generalizada e orgânica. De um lado existe a luta pela sobrevivência do teatro profissional, cujos imperativos econômicos traduzem-se em um grande esforço, do tipo custe o que custar, para conquistar ou manter uma platéia. De outro lado, porém, os imperativos são de ordem estética, cultural, de renovação da cena propriamente dita. E essa divisão – sem dúvida nefasta para ambas as facções – acaba por determinar que os amadores se encarreguem de promover a evolução da arte cênica, enquanto aos profissionais cabe a manutenção do métier propriamente dito13.

13 RAULINO, Berenice. Ruggero Jacobbi: presença italiana no teatro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 158.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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O projeto não se concretizou no decorrer dos anos seguintes, mas, em 1954,

Jacobbi ministrou um curso de teatro, em comemoração ao IV Centenário da Cidade de

São Paulo, e localizou, entre seus freqüentadores estudantes, jovens que se adequavam

ao perfil proposto pelo TPE. “O curso é freqüentado por estudantes de esquerda, em sua

maioria comunistas, bastante mobilizados politicamente, como Gianfrancesco Guarnieri

e Oduvaldo Vianna Filho. Jacobbi intui que aqueles jovens poderão efetivar o projeto de

criação do TPE”14.

Sua intuição estava correta e, em abril do ano seguinte, doze fundadores15

assinaram a ata que efetivou a criação oficial do Teatro Paulista do Estudante, com

Ruggero Jacobbi presidindo a reunião. Anos mais tarde, Guarnieri recordou a

importância de Jacobbi para o grupo:

Ele teve uma influência decisiva na formação. Nos deu o mínimo necessário para se fazer teatro. O entusiasmo sobretudo. Deu-nos verdadeiras aulas sobre história do teatro. Contando tudo. Toda e qualquer hora que ele encontrava a gente, ele começava a contar teatro, aquelas lendas, com data, porque ele era bastante meticuloso. Agora, ele não teve tempo de dar uma assistência metódica e tal. Logo quando o TPE começou, ele não estava mais em São Paulo16.

O rememorar de Guarnieri não registrou a participação do diretor italiano nas

atividades do TPE, o qual, neste período, dirigiu espetáculos para o TBC, para o Teatro

Popular de Arte e para as Companhias de Dercy Gonçalves e de Nydia Lícia-Sérgio

Cardoso, até sua transferência para o Rio Grande do Sul, em 1958, onde tornou-se

diretor e professor do Curso de Estudos Teatrais da Universidade do Rio Grande do Sul,

apresentando-se, neste momento, como referência para outro “homem de teatro”, que

anos mais tarde estabeleceu profícuas parcerias com Gianfrancesco Guarnieri, dirigindo

importantes espetáculos deste dramaturgo, a exemplo de Um Grito Parado no Ar e

Ponto de Partida. Este homem é Fernando Peixoto, que assim se manifestou a respeito

de Ruggero Jacobbi: 14 Ibid., p. 159-160. 15 Os doze fundadores do TPE são: Gianfrancesco Guarnieri (Presidente), Raimundo Duprat (Vice-presidente), Pedro Paulo Uzeda Moreira (Primeiro-secretário), Júlio Elman (Segundo-secretário), Oduvaldo Vianna Filho (Tesoureiro), Vera Gertel, Diorandy Vianna, Mariúsa Vianna, Maria Stella Rodrigues, Henrique Libermann, Natacha Roclavin e Sílvio Saraiva. Beatriz Segall, Raul Cortez e Araci Amaral. (Fonte: RAULINO, 2002, p. 160). 16 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Depoimentos... Op. cit., p. 69. A presente citação é uma resposta à pergunta de Décio de Almeida Prado sobre a influência de Ruggero Jacobbi sobre o grupo o qual pertencia Guarnieri.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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Ruggero foi um sujeito essencial para todos nós. A presença dele em Porto Alegre, dirigindo o curso de teatro da Universidade, em 1958/59, ao menos para mim, pessoalmente, foi tudo. Eu já tinha quatro ou cinco anos de teatro amador e tempo igual de idéias erradas na cabeça. Ruggero me fez abrir os olhos, não tenho a menor dúvida disso. Ele me fez pensar, encontrar o meu caminho e inclusive foi quem me situou dentro da minha própria geração. Foi através dele, em certo sentido, que consegui me definir, em nível de proposta ideológica de trabalho dentro do teatro, que eu já havia escolhido como campo de ação, pelo Arena e não pelo TBC. Justamente ele que, para mim, naquele instante, era uma espécie de representante do próprio TBC em Porto Alegre, um dos italianos importantes pela indústria teatral paulista17.

Neste momento de reflexão, Peixoto concluiu retomando as perguntas sobre o

TPE e sua existência anterior à fundação oficial, uma vez que chegaram a estrear uma

peça, no espaço do Teatro de Arena, antes de 1955. As lembranças de Guarnieri

apontaram novamente para a meta principal do grupo: a organização estudantil – o

teatro como meio. Mas, o importante a se registrar é que, a partir da existência concreta

do TPE, houve um confronto mais direto com o teatro realizado à época, quando as

preocupações daqueles jovens passaram a ser, também, com os rumos do teatro no país.

O questionamento de Fernando Peixoto sobre o objetivo fundamental do TPE e a

resposta de Guarnieri evidenciaram a mudança quanto às realizações desta instituição

quando de sua efetivação:

FP – E a idéia de usar o teatro como meio de organização estudantil, o que me parece problemático, deu em quê?

GG – Na prática, resultou numa organização teatral... É, foi no TPE que surgiram as pessoas, concretamente, em carne e osso, as pessoas que depois, juntas, ao lado dos remanescentes do Teatro de Arena, no momento em que os dois grupos se juntam, fazem uma proposta de mudar a face do teatro brasileiro. Aí surge o grande esforço, o grande movimento preocupado com a forma de interpretação brasileira, com a dramaturgia brasileira18.

Nesse sentido, conclui-se que o movimento estudantil foi fundamental para o

processo de formação do autor, mas o contato com o TPE contribui sobremaneira para

que Gianfrancesco Guarnieri chegasse a uma “dramaturgia nacional”, e foi na junção de

todos estes elementos – experiências da infância, militância estudantil e política, a

17 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Entrevista com Gianfrancesco Guarnieri. Teatro em Movimento... Op. cit., p. 46. 18 Ibid., p. 47.

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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prática no Teatro Paulista do Estudante – que se estabeleceu as bases para a composição

do texto de Eles Não Usam Black-Tie.

O TPE, originado no meio estudantil mais conscientizado da época, reunia vários integrantes decididamente empenhados nas lutas políticas e não escondia suas ligações com a esquerda. Em poucos anos de existência conseguiu reunir um bom elenco, onde se destacavam Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Vianna Filho, Vera Gertel, entre outros que logo estrearam no Arena. (...). O contato com Carla Civelli e Ruggero Jacobbi em muito auxiliou o grupo estudantil fundado na FFLCH-USP a adquirir uma visão cultural mais profunda da função do teatro. [...] [Eis] algumas das preocupações que ocuparão lugar central no grupo tepeísta dentro do Arena: a idéia ‘humanista’ de que a emoção é básica como sentimento que leva à luta, ao querer; a necessidade de uma arte desentorpecida, isto é, além de propor uma função para a arte, ao localizá-la como instrumento conscientizador. Estas idéias, com o tempo, serão melhor precisadas na práxis do Arena. (MOSTAÇO, 1982 apud PATRIOTA, 1999).

As referências ao Teatro de Arena justificam-se na junção deste ao Teatro

Paulista do Estudante, quando, inicialmente, o Arena reforçou seu elenco permanente

com os atores do TPE e, em contrapartida, este encontrou um espaço fixo para a

realização de seu trabalho. E se, posteriormente, esta união significou o fim do teatro de

estudantes, estes trouxeram novas experiências para o grupo de José Renato, pois foi

somente a partir desta adesão – aliado à entrada de Augusto Boal – que os integrantes

do teatro da rua Theodoro Bayma atentaram para a necessidade de elaboração de uma

dramaturgia nacional, embora possuíssem outras características que permitiram sua

aproximação com as propostas do TPE, uma vez que o Teatro de Arena inovou a

estética teatral do período promovendo uma “revolução” nos hábitos teatrais, onde o

espetáculo tornou-se mais importante que o ato social de freqüentar o teatro, ainda que a

maioria de suas peças encenadas fossem de autores estrangeiros. Assim, o ano de 1956

marcou o ingresso do diretor Augusto Boal, bem como os novos integrantes oriundos do

Teatro Paulista do Estudante, no Arena. Isto representou um passo para mudanças

estéticas e para a valorização de autores nacionais, proposta presente no estatuto de

fundação do TPE.

Assim, apreendemos que as discussões travadas nas décadas de 1950/1960 sobre

a necessidade de uma “dramaturgia nacional” e de um autor nacional não

estabeleceram, pelo menos naquele momento, uma relação direta com os ideários

isebianos e desenvolvimentistas, como expressam alguns pesquisadores do tema.

Recorrendo ao trabalho de Patriota (1999), esta afirma que em Black-Tie não se vê

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Capítulo 3 Gianfrancesco Guarnieri: de uma “dramaturgia nacional” à um teatro de “resistência democrática”

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princípios do ideário isebiano assim como são frágeis as análises que apontam estas

aproximações na produção artística do Teatro de Arena.

A década de 1970 e o surgimento de uma “cultura de resistência”

Retomando a fala de Guarnieri, no início deste capítulo, sobre a existência de

dramaturgos diferentes, cabe agora avaliar o momento em que o autor dedicou-se a um

“teatro de resistência democrática”. Até aqui construiu-se um repertório cujo objetivo

foi situar a “dramaturgia nacional” na obra do autor bem como o processo de criação de

Black-Tie. Como afirmado, estes “dois dramaturgos” situam-se em contextos históricos

distintos, o que revela a possibilidade ou a “necessidade” em se produzir um outro tipo

de trabalho, ainda que se mantenha uma coerência entre eles, decorrente das

experiências pessoais do autor.

Se o período anterior ao golpe militar foi marcado, portanto, por uma produção

artística que estimulou o surgimento de uma “dramaturgia nacional” na qual se

destacaram grupos e atividades afinados com esta proposta, no pós-1964, tais

expectativas viram-se interrompidas pela mudança na vida política do país. Neste

sentido, torna-se fundamental refletir sobre a situação do teatro brasileiro nos anos de

1970, uma vez que as manifestações artísticas e culturais estiveram marcadas pela égide

de um estado autoritário e repressor, principalmente após 1968, com a promulgação do

Ato Institucional nº 5, que suspendeu temporária e indeterminadamente a liberdade e a

democracia no país.

Diante desta nova conjuntura, o teatro brasileiro viu-se obrigado a redimensionar

as suas atividades, por meio de novas perspectivas e abordagens de trabalho – cientes

cada dia mais da necessidade de uma forma de resistência –, o que permitiu o

surgimento de uma cultura de resistência cujo objetivo era construir um espaço de luta e

de reflexão. Nesta direção seguiram dramaturgos como Gianfrancesco Guarnieri,

Oduvaldo Vianna Filho, Chico Buarque de Hollanda, entre outros, que contribuíram

para o desenvolvimento de um teatro atuante e engajado. É, portanto, mediante a

atuação arbitrária da censura que se deve refletir sobre a produção intelectual da década

de 1970. Assim se referiu Aimar Labaki sobre esta fase de Guarnieri:

Com a ditadura, se por um lado se fecharam os caminhos naturais dessa linha de que estou falando, [Labaki referia-se às novas possibilidades do teatro a partir

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das encenações de textos de dramaturgos como Guarnieri, Vianinha, Consuelo de Castro, Augusto Boal] por outro lado talvez se tenha aberto um pouco o leque. Surge a chamada dramaturgia de resistência, trabalhando com a metáfora, e aí mais uma vez não consigo me lembrar de ninguém que não tenha trabalhado de forma melhor essa metáfora do que o Guarnieri. E digo isso porque suas peças, ao contrário de várias da época, sobreviveram ao tempo. Um grito parado no ar e Ponto de Partida podem ainda ser montadas a qualquer momento19.

A partir desta reflexão, é possível avaliar como se definiu o processo de criação

artística do autor a partir de um contexto histórico caracterizado pelas arbitrariedades da

ditadura militar. O dramaturgo passou a conviver, cotidianamente, com uma censura

política que, se não impediu o desenvolvimento de seu trabalho e de seu potencial

artístico, dada a qualidade de seus textos teatrais, ao menos o obrigou a um

redimensionamento de sua produção dramatúrgica. Isto se estabeleceu por meio do uso

da metáfora e de uma linguagem poética, que teve por objetivo tornar possível a

realização de um espetáculo ao mesmo tempo que estabelecer uma forma de oposição

ao poder autoritário. Guarnieri definiu este momento como o de realização de um

“teatro de ocasião”:

É o que eu tenho chamado de teatro de ocasião. Quer dizer, um teatro que eu não faria se não fossem as contingências. Que não corresponde, exatamente, ao que eu, como artista, estaria fazendo. Agora, como artista, eu também verifico minha realidade, e sei até quando, até onde e como, a gente pode dizer e fazer as coisas. O que a gente não deve é parar. Isso a gente não pode admitir. Mesmo falando por metáfora. Mesmo deixando o grito parar no ar, eu acho que a gente tem de ir até aonde não nos matem. Porque há o passo também onde você chega a ser morto. Mas esta é uma realidade. E como para responder a ela, eu só tenho o meu grito, o meu choro, o meu amor, a minha vontade. Acho que temos de ir pra frente de qualquer maneira. Agora, sem deixar nunca de dizer que estamos sendo castrados, que estamos sendo impedidos. Estamos sendo impedidos temporariamente de exercer a profissão20.

Para Guarnieri, este teatro foi eficaz na medida em que trouxe a possibilidade de

manter a resistência e de não compactuar com a mentira. Atuar nas brechas do sistema

significou, então, a possibilidade de ver encenado seu texto dramático e, principalmente,

de não se calar frente à realidade imposta. O autor foi um ativo representante deste

19 GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia... Op. cit., p. 49-50. 20 GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Depoimentos... Op. cit., p. 71. A presente citação é uma resposta à pergunta de Flavio Rangel sobre a diferença existente no processo criador do dramaturgo em decorrência das pressões e da censura. Rangel aponta as peças Botequim e Um Grito Parado no Ar como representantes deste período.

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período e fez de sua obra um importante veículo de denúncia e reflexão. Diante da

atuação de uma rigorosa censura, recursos como a metáfora e a linguagem poética

tornaram-se, portanto, parte integrante da criação artística daqueles dramaturgos que

optaram por não se manter em silêncio, uma vez que acreditavam na possibilidade de se

criar alternativas que, com o tempo, fortaleceriam o surgimento desta cultura de

resistência.

[...] há momentos em que a metáfora é usada, realmente, não como uma expressão, mas por uma necessidade. [...] Então, realmente a metáfora é restritiva. Agora, eu acho que a gente está se preocupando muito com este negócio de metáfora. A gente precisa se preocupar mais, é em não ter de ser metafórico. Não é a metáfora que deve preocupar a gente. [...] O problema não é esse. O problema é que nós temos um teatro, que tem de usar, que obriga os autores a se igualarem até no estilo metafórico, alegórico, porque realmente ele não pode falar claro. Essa é a verdade. [...]21.

Guarnieri chamou a atenção para uma questão fundamental: o problema não está

no uso da metáfora, afinal ela corresponde a um estilo literário. O ponto central de seu

depoimento referiu-se ao “enquadramento” a que todos os autores foram obrigados a

submeter suas obras, em decorrência de uma situação política que impediu a

manutenção de uma cena teatral em consonância com a realidade do país. Para

Guarnieri, isto sim deveria ser objeto de reflexão para artistas e críticos. A metáfora se

tornou, em meio a este processo, uma forma de dialogar com a sociedade da década de

1970, o que para muitos críticos, ignorando o momento histórico no qual o teatro se

encontrava imerso, foi visto como recurso que levava a um certo empobrecimento da

linguagem teatral.

Em busca de um teatro que se pretendia à discussão da realidade por meio da

metáfora, Guarnieri escreveu Um Grito Parado no Ar (1973), na qual um grupo de

atores se vê impedido de ensaiar em razão das constantes interrupções – de cobradores –

em seus exercícios teatrais, ao mesmo tempo que, ao longo do ensaio, eles perdem

objetos cênicos essenciais para a realização da peça.

Esse despojamento das condições objetivas de se estrear a peça pode ser visto tanto em relação à atividade teatral propriamente dita, como em relação à interferência da situação política sobre a produção cultural. Porém, a grande

21 Ibid., p. 86. A presente citação é uma resposta à pergunta de Flavio Rangel sobre os aspectos negativos do uso da metáfora.

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riqueza da peça é que ela não se reduz a uma alegoria do autoritarismo no país. Vários aspectos ligados ao teatro são discutidos na peça. [...].22

Estes aspectos – baixo salário dos atores, hierarquização das tarefas,

importância do laboratório para a elaboração do espetáculo, individualidades das

personagens – fazem parte do cotidiano do autor, que os utiliza para construir um texto

que permite o intercruzamento entre o real e o simbólico. Assim, as experiências e as

crises vivenciadas no dia-a-dia da classe teatral e expostas em Um Grito Parado no Ar

funcionam como atos de resistência, pois “à medida que o palco se esvazia, perdendo o

gravador, o tapete de cena, os fusíveis – símbolos das condições econômicas em que no

mais das vezes trabalha o nosso teatro –, cresce a determinação do responsável pelo

espetáculo de levá-lo a cabo a qualquer custo e no dia marcado”23. Dessa forma, define-

se a “dupla resistência” do teatro brasileiro: resistir às crises e dificuldades do “fazer

teatral” e, também, opor-se, no campo simbólico, ao arbítrio do sistema.

Por fim, verificou-se que se em Black-Tie a construção do texto dramático foi

resultado da vivência do autor, em Um Grito Parado no Ar esta se condicionou à

utilização de uma linguagem metafórica que, naquele contexto, se fez necessária. É

preciso, entretanto, matizar estas reflexões, evitando um maniqueísmo tendencioso em

dividir a obra do autor em etapas estanques, como se a partir da instauração da ditadura

militar o autor anulasse a sua militância e experiências. É justamente pelo caminho

oposto que esta produção se estabelece: mantendo-se fiel aos seus ideais, Guarnieri

optou por uma dramaturgia que se pretendeu uma forma de oposição às arbitrariedades

do regime.

Pois, como ressaltou o crítico Décio de Almeida Prado,

Guarnieri escreveu com facilidade e fecundidade tanto na década de 60 quanto na de 70, antes e depois de 1964, porque tinha durante esse tempo todo um claro projeto político em vista. Sabia a favor do que ou contra o que manifestar-se. [...]. Se na qualidade de escritor engajado, Guarnieri nunca se recusou a tomar partido, na de poeta dramático equilibrou sempre a sua obra entre dois pólos: a sedutora simplicidade das grandes explicações históricas – no caso, o marxismo – e a extrema complexidade do mundo real dos homens. Daí o paradoxo (comum a toda boa literatura) desse teatro: não é preciso partir de suas

22 SOARES, Lúcia Maria Mac Dowell. O Teatro Político do Arena e de Guarnieri. In: Monografias/1980. Rio de Janeiro: MEC/SEC/INACEM, 1983, p. 74. 23 PRADO, Décio de Almeida. Guarnieri revisitado. In: ___ (Sel.). O Melhor Teatro de Gianfrancesco Guarnieri. 2. ed. São Paulo: Global, 2001, p. 11.

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premissas ideológicas para admirá-lo enquanto lição humana e realização estética24.

Estas palavras expressam o significado político do trabalho do autor e de seu

engajamento, refletido, por sua vez, em suas realizações estéticas. A importância da arte

e, especificamente, do teatro constituíram seus instrumentos de luta e de reflexão, onde

compreender a sua atuação na trajetória do teatro no Brasil é essencial para apreender

suas escolhas e o seu teatro definido como político, nacional, poético, de ocasião.

24 Ibid., p. 15-16.

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Conclusão

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Conclusão

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Conclusão

A última palavra ainda não foi dita.

Bertolt Brecht

Recuperando um trecho do segundo capítulo desta monografia, afirmou-se que

no limite deste trabalho monográfico, não seriam aprofundadas discussões sobre

recepção e encenação, mas nem por isso deixavam de ser referência indispensável para

esta pesquisa. Assim, é por meio destas discussões que tem-se a continuidade desta

pesquisa, na possibilidade de se recuperar fragmentos da encenação deste texto

dramático. Ao se privilegiar a montagem de Ponto de Partida, deve-se devolvê-la ao

momento de sua encenação e, em conjunto com as demais fontes documentais, construir

um diálogo com o processo vivenciado, buscando compreender suas especificidades. O

corpus documental, nesta nova fase do trabalho, se amplia e deverá ser analisado de

acordo com suas singularidades. Neste sentido, as críticas teatrais, os materiais

icnográficos e os depoimentos, permitirão construir novas interpretações sobre este

período histórico, pois, como afirma Walter Benjamin, articular historicamente o

passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”1. Assim, temos um passado em

permanente construção.

Outrossim, referiu-se também, nesta monografia, sobre a existência de outro

texto teatral baseado no “caso Herzog”: Patética, de João Ribeiro Chaves Netto. Porém,

a narrativa direta e objetiva de Patética impediu sua montagem, sendo confiscada pelos

órgãos de segurança. É interessante observar o que disse Fernando Peixoto a propósito

deste texto:

[...] “Patética”, escrita em 1976, nasce quando o teatro brasileiro está circunstancialmente castrado em seu mais legítimo potencial criativo, amordaçado por uma arbitrária censura que vem regularmente impedindo que dramaturgos e encenadores realizem um esforço de confronto crítico conseqüente com a realidade. Mas, escrita sem consciente auto-censura, a peça ao mesmo tempo se constitui num veemente documento, sem se limitar à

1 BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história. In: ___. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1, p. 224.

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Conclusão

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denúncia e à minuciosa reconstituição de fatos: a partir de um trágico acontecimento, que marcou profundamente a consciência do País, João Ribeiro Chaves Neto elabora um drama dilacerante, que não se reduz a fatos particulares, mas, sim, se transforma num ato de reflexão amplo e responsável. [...]2.

Mediante essas considerações, pode-se investigar as intenções do autor ao optar

por uma narrativa direta, mesmo diante de uma rígida censura, o que contribui para o

debate sobre as possibilidades de criação artística na década de 1970, diante da ausência

de liberdade, e o papel de dramaturgos e encenadores que viam castrados seus direitos

de expressão. Este é, portanto, um dos objetivos para o desenvolvimento desta pesquisa:

estabelecer um diálogo entre Ponto de Partida e Patética, visando apreender as

especificidades de cada texto, suas narrativas distintas e o impacto da censura sobre

ambos.

Deste modo, acentuando o caráter teórico-metológico da presente pesquisa, que

valorizou a relação Arte/Sociedade, procurou-se reafirmar o intenso e estimulante

debate interdisciplinar que pode ser travado entre História e Teatro, permitindo profícua

discussão e reflexão sobre a década de 1970 por meio de suas manifestações culturais e

artísticas.

Por fim, torna-se imprescindível recuperar as recentes reportagens que

trouxeram à tona a morte do jornalista Vladimir Herzog, quando o Correio Braziliense,

ao divulgar três fotos atribuídas ao jornalista morto após tortura, acarretou uma crise

que envolveu tanto a imprensa quanto o Governo Federal. Folha de S. Paulo e Correio

Braziliense promoveram uma verdadeira “guerra” de informações, na qual o segundo se

mostrou irredutível quanto à veracidade das fotos, baseando-se, para tanto, em

depoimento de Clarice Herzog, a qual, nas palavras do jornal, reconheceu o marido em

pelo menos uma das imagens. Posteriormente, a viúva negou que as fotos fossem de

Vladimir Herzog. Neste período, recebeu a visita do ministro Nilmário Miranda

(Secretário Especial dos Direitos Humanos) e do ministro-chefe do Gabinete de

Segurança Institucional, General Jorge Armando Félix. Em nota oficial, Miranda

afirmou que a viúva havia examinado uma série de fotos e comprovado não serem de

2 PEIXOTO, Fernando. São Nuvens. São Nuvens Que Passam. In: CHAVES NETTO, João Ribeiro. Patética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 8.

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Conclusão

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seu marido. Na contra-mão da informação, a Folha de S. Paulo3 noticiou que as fotos

eram, na verdade, de um padre canadense.

Quanto ao Governo Federal, o presidente Lula viu-se na obrigação de exigir que

o Exército se retratasse, mediante nota oficial divulgada por seu Centro de

Comunicação Social, onde demonstraram uma certa “nostalgia” em relação ao período

da ditadura militar, além de defender a corporação nos casos de tortura. O Exército

cedeu, mas instalou-se um “clima” entre a Instituição e o Governo Lula.

Este episódio trouxe à tona, também, o movimento que exige a abertura dos

arquivos da ditadura, questão acirrada diante das denúncias do noticiário “global”, o

qual informou a queima de documentos relativos ao período do regime militar em bases

militares.

Ao analisar a conjuntura delineada a partir das fotos divulgadas pelo Correio

Brazilense, pode-se verificar a fragilidade que ainda hoje cerca o tema da tortura à

época da ditadura militar, quando, em meio a este processo, pouco se refletiu sobre o

fato de que, independente de ser o jornalista Vladimir Herzog ou não, houve a

perseguição do regime militar aos cidadãos civis e atitudes arbitrárias por parte de seus

representantes.

3 Nunca vi nada parecido com o que aconteceu ao longo desta semana na imprensa depois que o “Correio Braziliense” divulgou, no domingo, três fotos de um homem nu que identificou como sendo o jornalista Vladimir Herzog. As fotos teriam sido feitas no cárcere do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, pouco antes de Herzog ser assassinado por pertencer ao Partido Comunista Brasileiro. A revelação do “Correio” provocou uma crise, que ainda pode ter desdobramentos, entre o governo petista e o Exército; deu dimensão nacional ao movimento que exige a abertura dos arquivos da repressão; e deixou os jornais brasileiros desatinados em relação à identidade do homem nu que aparece nas fotos. A certeza do domingo, de que o retratado era Herzog, foi sendo substituída, ao longo da semana, por questionamentos que culminaram, quinta, com a informação de que se tratava de um padre canadense, igualmente perseguido pelo regime militar. [...]. BERABA, Marcelo. O novo caso Herzog. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 out. 2004. Caderno Brasil, p. A 6, c. Ombudsman.

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Bibliografia

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Artigos e Capítulos de Livros

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Dissertações e Monografias

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Entrevistas Publicadas / Críticas

BERABA, Marcelo. O novo caso Herzog. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 out. 2004. Caderno Brasil, p. A 6, c. Ombudsman.

GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Atrás da Máscara, v. 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 11-72, 1983. Entrevista concedida a Simon Khoury.

GUARNIERI, GIANFRANCESCO. Gianfrancesco Guarnieri. Depoimentos, v. 5. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Secretaria de Cultura/Serviço Nacional de Teatro, p. 61-92, 1981. Entrevista concedida a Décio de Almeida Prado; Flavio Rangel; Mario Masetti; Miriam Muniz.

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