AUTONOMIA E EDUCAO EM IMMANUEL KANT E PAULO
FREIRE[footnoteRef:1]
VICENTE ZATTI
PORTO ALEGRE, 2007 [1:
http://www.pucrs.br/edipucrs/online/autonomia/autonomia/autonomia.html]
INTRODUO
O interesse em pesquisar o tema autonomia e educao tomando como
referncia Immanuel Kant1e Paulo Freire2surgiu a partir da constatao
de situaes do meio escolar e social atual que levam a ou se
caracterizam como situaes de heteronomia. Destaco dentre essas
situaes a forma como grande parte dos alunos desenvolvem uma
capacidade de compreenso insuficiente, se mostram arredios leitura,
seguem a moda irrefletidamente, apresentam dificuldade em pensar
por conta prpria e discutir criticamente os assuntos que envolvem,
inclusive, seu cotidiano. A nvel social destaco a estetizao do
mundo da vida que leva ao individualismo, indiferena com o humano,
irresponsabilidade, massificao e a consequentes formas de pensar e
agir homogeneizados, no autnticos e autnomos. Alm disso, a razo
instrumental promove hoje a colonizao de diversas esferas do mundo
da vida, gerando uma sociedade em muitos aspectos desumanizante e
irracional, que prioriza o econmico em detrimento do humano.A
realidade social permeada pela estetizao, pela racionalidade
instrumental, e que se caracteriza como sociedade de massa, ecoa
diretamente sobre a educao. Os modelos educacionais elaborados a
partir de um pensamento tecnicista-instrumental no abordam a educao
em sua totalidade formativa, se mostrando, portanto, insuficientes
na formao do educando enquanto homem e cidado. Dessa forma,
sociedade e escola acabam gerando um ser humano incapaz de formular
juzos prprios e autnomos, incapaz de pensar certo3, como diz Paulo
Freire, tanto no nvel de conhecimento como em nvel moral.
Permanecem as pessoas, ento, dependentes e determinadas por
pensamentos, normas de conduta, ideais, projetos que no so seus,
normalmente "impostos" pelos meios de comunicao ou pelo senso comum
vigente. E a determinao passiva do sujeito pelo que lhe externo
heteronomia. A autonomia supe que o sujeito seja capaz de fazer uso
de sua liberdade e determinar-se4.Alm do acima exposto, as condies
sociais desfavorveis como pobreza, misria, favelamento, em que
grande parte da populao brasileira vive, so elementos que
dificultam e at impossibilitam a autonomia. Em geral a pobreza
econmica condiciona a uma situao de pobreza cultural, o que
dificulta e limita o exerccio autnomo da cidadania, pois, privados
de boa formao, no conseguem estabelecer-se como sujeitos no
contexto social por no terem condies iguais de intercomunicao e no
terem condies iguais para disputar as oportunidades, inclusive de
emprego. As condies sociais desfavorveis limitam o poder ser
autnomo, tendo em vista que a autonomia engloba tanto a liberdade
de dar a si os prprios princpios, quanto a capacidade de realizar
os prprios projetos. Por isso, pensamos que papel da escola
promover uma educao que leve o educando a pensar livremente e,
tambm, capacit-lo para realizar os projetos que estabelece para
si.Mas por que estudar Kant e Paulo Freire para iluminar essa
problemtica?Quem definiu o conceito de autonomia na modernidade e
fez dele um conceito central em sua teoria foi Kant. Nesse ideal
viu o fundamento da dignidade humana e do respeito, o que foi
central para o desenvolvimento dos sistemas legais, dos sistemas
educacionais e da sociedade moderna como um todo. A concepo
kantiana de liberdade como autodeterminao influenciou muito a
educao e o modelo escolar criado a partir da modernidade. Mas para
entendermos melhor a concepo de autonomia de Kant, veremos tambm a
concepo de autonomia defendida pela filosofia de sua poca, o
iluminismo.Paulo Freire traz uma contribuio extremamente importante
para a educao, especialmente de pases em que situaes de opresso so
caractersticas marcantes, como o caso do Brasil. Ele formulou uma
proposta educacional que procura transformar o educando em sujeito,
o que implica na promoo da autonomia. Seu mtodo prope uma
alfabetizao, uma educao, que leve tomada de conscincia da prpria
condio social. A conscientizao possibilitaria a transformao social,
pela prxis que se faz na ao e reflexo. Teramos, ento, um sujeito
emancipado de uma condio social opressora. Em Freire, a libertao
das heteronomias, normalmente impostas pela ordem
scio-economica-educacional injusta e/ou autoritria, condio
necessria para a autonomia.As propostas de Kant e Freire possuem em
comum uma aposta esperanosa na humanidade, no potencial humano de
fazer-se melhor e construir um mundo melhor. A questo que se coloca
nessa obra refletir sobre as possibilidades de as concepes de
educao para a autonomia de Immanuel Kant e Paulo Freire iluminarem
uma educao que vise formar para a autonomia hoje, uma educao capaz
de formar para a superao das heteronomias do nosso tempo.No
primeiro captulo, fao a definio do conceito de autonomia e uma
exposio da compreenso de autonomia de alguns pensadores ao longo da
histria. No segundo captulo, procuro demonstrar o contexto
filosfico do iluminismo no qual o pensamento kantiano se
desenvolveu, definir a concepo de autonomia dos iluministas e
demonstrar contra quais heteronomias se colocam, demonstrar que a
concepo de autonomia dos iluministas considerada heteronomia por
Kant, demonstrar porque no pensamento de Kant h a centralidade dos
conceitos de autonomia e razo prtica, identificar contra quais
heteronomias Kant se coloca. Ainda no segundo captulo, analiso os
aspectos da pedagogia kantiana relacionados com o problema da
educao para a autonomia.O terceiro captulo procura analisar contra
que heteronomias Paulo Freire se ope, o que ser feito partindo de
temas como opresso, massificao, medo da liberdade, colonialismo,
invaso cultural, prescrio, sectarizao, irracionalismo, ao
antidialgica, concepo bancria de ensino, neoliberalismo, tica de
mercado. Tambm coloco aspectos da atualidade da questo heteronomia.
O quarto captulo se debrua sobre a concepo de educao para a
autonomia em Paulo Freire procurando analisar como devem ser as
relaes professor/aluno e as relaes sociais para a promoo da
autonomia, analisar a concepo antropolgica e social freireana bem
como suas implicaes em uma educao para a autonomia, demonstrar a
conscientizao e a educao dialgica como necessrias para a libertao e
gestao da autonomia. O quinto captulo procura comparar Freire e
Kant estabelecendo confluncias e dissonncias, destacar aspectos de
ambos que auxiliam na problemtica atual e, a partir de ambos os
autores, analisar a educao enquanto formao poltica, tica e esttica
e suas implicaes com a autonomia.Essa obra no pretende ser um
manual prtico que oriente procedimentos para a educao que vise
autonomia, pretende ser um trabalho terico que pensa aspectos de
uma educao que forme para a autonomia hoje a partir de Kant e
Freire. Ao tratarmos do tema autonomia, sabemos que uma autonomia
absoluta da forma como foi pensada na modernidade no possvel. As
estruturas sociais, o contexto no qual estamos imersos, a
debilidade da razo que possui seus limites, a nossa constituio
racional intersubjetiva impedem uma autonomia absoluta5. Mas
defendemos a possibilidade da emancipao do homem para a vivncia da
condio humana e liberdade, a fim de poder determinar sua prpria
vida autonomamente. E a educao possui papel central na formao desse
homem capaz de desvencilhar-se das heteronomias e fazer a si e ao
mundo com autonomia.
CAPTULO I - A AUTONOMIA
Etimologicamente autonomia significa o poder de dar a si a
prpria lei,auts(por si mesmo) enomos(lei). No se entende este poder
como algo absoluto e ilimitado, tambm no se entende como sinnimo de
auto-suficincia. Indica uma esfera particular cuja existncia
garantida dentro dos prprios limites que a distinguem do poder dos
outros e do poder em geral, mas apesar de ser distinta, no
incompatvel com as outras leis. Autonomia oposta a heteronomia, que
em termos gerais toda lei que procede de outro,hetero(outro)
enomos(lei). Ferrater Mora (1965) define autonomia como uma
realidade que regida por uma lei prpria. Ainda sugere dois sentidos
para o termo autonomia: o sentido ontolgico se refere a certas
esferas da realidade que so autnomas em relao s outras, por
exemplo, a realidade orgnica distinta da inorgnica, o sentido tico
se refere a uma lei moral que tem em si seu fundamento e a razo da
prpria lei. O ltimo sentido de autonomia foi desenvolvido por Kant.
Segundo Abbagnano (1962, p. 93), bastante usada a expresso
"princpio autnomo" no sentido de que o princpio tenha em si, ou
coloque por si mesmo, a sua validez ou a regra de sua ao.Mas a
definio que nos parece mais apropriada por designar melhor o
sentido de autonomia a doVocabulrio Tcnico e Crtico da
Filosofia:"Etimologicamente autonomia a condio de uma pessoa ou de
uma coletividade cultural, que determina ela mesma a lei qual se
submete".(LALANDE, 1999, p. 115). Como a autonomia "condio", como
ela se d no mundo e no apenas na conscincia dos sujeitos, sua
construo envolve dois aspectos: o poder de determinar a prpria lei
e tambm o poder ou capacidade de realizar. O primeiro aspecto est
ligado liberdade e ao poder de conceber, fantasiar, imaginar,
decidir, e o segundo ao poder ou capacidade de fazer. Para que haja
autonomia os dois aspectos devem estar presentes, e o pensar
autnomo precisa ser tambm fazer autnomo. O fazer no acontece fora
do mundo, portanto est cerceado pelas leis naturais, pelas leis
civis, pelas convenes sociais, pelos outros, etc, ou seja, a
autonomia limitada por condicionamentos, no absoluta. Dessa forma,
autonomia jamais pode ser confundida com auto-suficincia.Se
autonomia a condio de quem determina a prpria lei, a condio de quem
determinado por algo estranho a si heteronomia. Segundo Lalande
(idem), heteronomia "Condio de uma pessoa ou de uma coletividade
que recebe do exterior a lei qual se submete". Situaes como
ignorncia, escassez de recursos materiais, m ndole moral, etc, impe
determinaes que limitam ou anulam a autonomia, sendo
caracterizadas, portanto, como heteronomia. A autonomia exige uma
existncia que no de antemo determinada, a fim de que o sujeito
possa exercer o poder de determinar-se.Apesar de o conceito de
autonomia ter sido definido e adquirido centralidade na
modernidade, especialmente com Kant, j no pensamento grego era
desenvolvida uma noo de autonomia. Ao longo da histria essa noo vai
adquirindo significados diferentes e, assim, vai sendo elaborada.
Por isso, para entendermos a concepo de autonomia de um autor,
precisamos olhar a qual heteronomia ele se ops e o contexto
histrico e terico que o envolvia.Na Grcia antiga, historiadores
como Tucdides e Xenofonte citam povos que se rebelavam e buscavam
sua independncia (cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52), o que mostra a
presena da idia de autodeterminao poltica das cidades. Mas a noo de
autonomia dos historiadores gregos fica restringida idia de
autodeterminao das unidades polticas, as cidades. Ela distinta da
noo de soberania, de autarquia, de poder absoluto. aproximada do
conceito de autarcia, suficincia, de no ter necessidade de ningum
(cf. idem).Plato (428/427 a.C. - 347 a.C.) desenvolve uma concepo
pouco mais elaborada. Ao definir uma comunidade perfeita, a define
como autarcia, acrescentando o aspecto da suficincia econmica. (cf.
ibid). Em Plato a noo de autonomia ainda no possui carter moral,
mas ele, indiretamente, contribui para o desenvolvimento do carter
moral do conceito moderno de autonomia por ter pensado o
autodomnio, somos bons quando a razo governa e maus quando
dominados por nossos desejos (cf. TAYLOR, 1997, p. 155). Plato
distingue entre partes superiores e inferiores da alma, dominar a
si mesmo fazer com que a parte superior da alma controle a
inferior, ou seja, fazer com que a razo controle os desejos. O
governo da razo instaura a ordem, enquanto os desejos representam o
reino do caos. Somos bons quando a razo passa a governar e no somos
mais dominados por nossos desejos (cf. idem, p. 156). "Ser
governado pela razo era estar voltado para as Idias6e, portanto,
ser movido pelo amor a elas" (ibid, p. 189). Enfim, para Plato ser
governado pela razo, ser racional, ser senhor de si mesmo (cf.
ibid, p. 157), pensamento que inclui uma noo de autonomia. Em
Aristteles (384/383 a.C. - 322 a.C.) a noo de autarcia recebe uma
dimenso moral. Agora se refere ao indivduo humano e o que ele visa
na busca da felicidade. O Bem se basta por si mesmo, o seu prprio
fim, livre de toda necessidade. Assim a felicidade e a autonomia se
do ao sujeito que possui tal Bem7.(cf. BOURRICAUD, 1985, p. 52).Os
esticos8, embora ainda no usassem o termo autonomia, trouxeram
idias que contriburam muito para a evoluo da noo, como independncia
de toda regulao e de todo constrangimento vindo do exterior,
satisfao das prprias necessidades sem que a cidade ou o indivduo
precise estar em dependncia de outro. (cf. idem). Para eles, h uma
Razo divina (Natureza) que rege o mundo segundo uma ordem necessria
e perfeita, da mesma forma que o animal guiado pelo instinto, o
homem guiado, infalivelmente, pela razo (cf. ABBAGNANO, 1962, p.
356). Frente a isso, resta ao homem escolher entre duas atitudes,
uma de passividade e ignorncia e outra de consentimento reflexivo
ou recusa. A autonomia do sujeito se situa ao nvel de julgamento,
que compreende a capacidade de prever e escolher. (cf. BOURRICAUD,
1985, p. 52). A partir dessa dupla capacidade, qualquer um pode
construir sua prpria personalidade, pode se guiar pela prpria razo,
saindo da dependncia das emoes. A contribuio mais original do
estoicismo para a noo de autonomia a identificao entre liberdade e
obedincia Razo. No entanto, os pensadores esticos estavam ainda
distantes do sentido que a autonomia tem hoje, o qual foi definido
a partir da modernidade.Na modernidade, Maquiavel (1469-1527)
desenvolveu seu conceito pioneiro de autonomia poltica, na
obraDiscursos(cf. CAYGILL, 2000, p. 42), combinando dois sentidos
de autonomia. Um primeiro como liberdade de dependncia, e o segundo
como poder de autolegislar. Em Martinho Lutero (1483-1546) a
autonomia como liberdade de dependncia passa a ser liberdade
espiritual, interior, em relao ao corpo e suas inclinaes. Assim, o
sujeito seria autnomo na medida em que estivesse livre das
inclinaes do corpo e poderia obedecer a Deus (cf. idem).Os
iluministas apresentam uma noo de autonomia que anttese
Escolstica9, religio, tradio10, ao Antigo Regime11(Ancien Rgime).
Sua concepo de autonomia se refere razo que se dobra a evidncias
empricas e matemticas, libertando o homem da superstio e da
ignorncia. Defendiam a razo natural como uma espcie de tribunal
contra o qual se despedaaria toda e qualquer forma de conhecimento
sem credenciais construdas pela associao entre racionalidade
dedutiva e empirismo indutivo. Assim o homem, revelia da tradio, da
religio, deve ousar pensar por si mesmo e no admitir nada, exceto o
que discerne a partir da razo e da experincia. A busca pela
felicidade passou a ter importncia central, por isso a sensualidade
passa a ser exaltada. Concebem o homem como mnada, ou seja, apenas
sua existncia fsica considerada. A autonomia aqui est ligada
possibilidade de viver uma vida feliz, o que incluiria a vivncia da
sensualidade e a reduo do sofrimento que seria possibilitado pela
razo com eficcia instrumental. A caracterizao do homem como mnada
faz com que os iluministas percam o sentido de autonomia como um
todo, o tornando um conceito reduzido. em Kant que o problema da
autonomia ganha maior fora e centralidade, ele faz uma transposio
filosfica e crtica da autonomia religiosa de Lutero para a
autonomia moral. Ainda, Kant combina os dois sentidos usados por
Maquiavel numa explicao de determinao da vontade12. Autonomia, para
ele, designa a independncia da vontade em relao a todo objeto de
desejo (liberdade negativa) e sua capacidade de determinar-se em
conformidade com sua prpria lei, que a da razo (liberdade
positiva). Na obraSobre a Pedagogia, ele vai propor a disciplina
como a parte negativa e a instruo como a parte positiva de uma
educao formadora de sujeitos autnomos.Kant busca recuperar o
sentido de autonomia considerando a totalidade do ser humano,
considerando a racionalidade em sentido mais amplo que o
instrumental, o que havia sido perdido pelos iluministas. No
entanto, acaba perdendo o sentido emprico da autonomia, no
considerando devidamente o homem sensvel em sua corporeidade, o
homem em sua busca pela felicidade. Kant recupera, em certo
sentido, a concepo de dignidade humana fundada por Descartes
(1596-1650), o qual liga a concepo de dignidade ao seu modelo de
domnio racional. "Para Descartes, a hegemonia da razo uma questo de
controle instrumental" (TAYLOR, 1997, p. 198). Essa nova definio do
domnio da razo traz consigo uma internalizao das fontes morais.
Segundo Taylor (idem, p.200), quando a hegemonia da razo passa a
ser entendida como controle racional, como capacidade de
objetificar o corpo, o mundo e as paixes, ou seja, assumindo uma
postura instrumental em relao a eles, a fonte da fora moral no pode
mais ser vista como exterior a ns. "Se o controle racional uma
questo de a mente dominar um mundo desencantado de matria, ento o
senso de superioridade do bem viver, e a inspirao para chegar a
ele, devem vir da percepo que o agente tem de sua prpria dignidade
como ser racional" (ibid). Em Kant, a natureza racional existe como
fim em si mesma, dessa forma, os seres racionais possuem dignidade
particular, e diferentemente do restante da natureza, so livres e
autodeterminantes. Kant retomou de Descartes a idia da natureza
racional como fonte de dignidade, e a idia de dignidade est
inseparavelmente ligada idia de autonomia.Kant formulou sua posio a
partir da crtica de certas posies de sua poca que denominou
heternomas por dependerem da vontade, de causas e/ou interesses
externos. Tais princpios heternomos podem ser empricos quando
advindos do princpio de felicidade e baseados no sentimento fsico
ou moral, ou racionais quando advindos do princpio de perfeio e
baseados em um conceito racional de perfeio como um possvel efeito
de nossa vontade ou no conceito de uma vontade independente (Deus)
determinante de nossa vontade.(cf. CAYGILL, p. 170). Nesses casos,
teramos uma vontade heternoma, pois a lei dada pelo objeto e, os
princpios da produzidos seriam imperativos hipotticos13. Nesse
sentido, Kant se contrape a tradio filosfica aristotlica14, cuja
tica estabelecia a felicidade como o fim ltimo do homem, e as
correntes filosficas ligadas s religies que situavam a fonte de
preceitos para o homem em um Deus ou outros seres exteriores ao
homem.NaFundamentao da Metafsica dos Costumes(1974a) a vontade
autnoma concebe para si a prpria lei, por isso distinta da vontade
heternoma cuja lei dada pelo objeto. A vontade autnoma na medida em
que no simplesmente submetida a leis, j que tambm sua autora. O
princpio da autonomia o imperativo categrico, sua formulao geral15:
"Age apenas segundo uma mxima tal que possas ao mesmo tempo querer
que ela se torne lei universal" (KANT, 1974a, p. 223). Tal princpio
s possvel na pressuposio da liberdade da vontade; a vontade deve
querer a prpria autonomia e sua liberdade consiste em ser lei para
si mesma. A formulao do imperativo categrico que se refere
autonomia "a idia da vontade de todo ser racional concebida como
vontade legisladora universal" (idem, p.231). Segundo tal princpio,
a vontade absolutamente boa no simplesmente submetida lei moral
universal, mas sim submetida de tal maneira que tem de ser
considerada tambm como legisladora ela mesma, por isso submetida
lei que ela mesma autora (ibid). Da este ser o "princpio da
autonomia". Mas para que haja autonomia, a lei promulgada pela
vontade ter de ser uma lei universal vlida para todo ser racional,
em caso contrrio, a lei estar condicionada a algum interesse
subjetivo, e a vontade ser dependente do objeto de interesse, e,
portanto, heternoma. "A autonomia da vontade para Kant a
caracterstica da vontade pura enquanto ela apenas se determina em
virtude da prpria essncia, quer dizer, unicamente pela forma
universal da lei moral, com excluso de todo motivo sensvel"
(LALANDE, 1999, p. 115). Quando a vontade autnoma, promulga leis
universais isentas de todo interesse, que reclamam a obedincia por
puro dever, que a prpria idia do imperativo categrico. Dessa forma
Kant considera a autonomia da vontade o princpio supremo da
moralidade (cf. KANT, 1974a, p.238). A esta idia de autonomia se
prende a idia de dignidade da pessoa. O ser racional ao participar
da legislao universal, ao se submeter lei que ele prprio se
confere, fim em si, no possui valor relativo, mas uma dignidade, um
valor intrnseco. "A autonomia pois o fundamento da dignidade da
natureza humana e de toda a natureza racional".(idem, p. 235).Kant
no foi um estudioso de educao, foi um filsofo, professor
universitrio que se interessou pelos problemas da educao. Em seus
textos encontramos muitos pensamentos referentes educao. Ele possui
uma obra que trata especificamente desse tema, traduzida para o
portugus com o ttuloSobre a Pedagogiae publicada originalmente por
Theodor Rink, seu discpulo. No entanto, essa obra no um tratado
sobre educao, um conjunto de artigos resultantes dos cursos de
Pedagogia ministrados pelo filsofo entre 1776 e 1787. No sabemos se
Rink as publicou integralmente e na ordem como foram escritas, mas
sabemos que o prprio Kant autorizou sua publicao. A idia que
perpassa toda a obra acima citada a de uma educao pelo exerccio
racional que leva autonomia. "O homem no pode tornar-se verdadeiro
homem seno pela educao" (KANT, 1996b, p. 15). Esta afirmao de Kant
revela que a educao tem o papel de formar o homem. pelo fato dos
seres humanos nascerem um nada, por no terem instintos que lhes
determinem, que precisam ser formados pela educao, precisam de sua
prpria razo para se tornarem homens. Nesse sentido, o objetivo
principal da educao ser educar para a autonomia, para que se possa
fazer o uso livre da prpria razo. Se objetivarmos uma educao para a
autonomia, temos que entend-la como formao, como processo
percorrido, realizado pelo prprio homem.Poderamos objetar "contra"
Kant que a educao no deve visar apenas autonomia tico-moral, mas
tambm s condies para uma vida feliz. Para Kant, somos autnomos na
medida em que obedecemos a lei que damos a ns mesmos16,
independente de qualquer causa alheia e de qualquer objeto. Essa
concepo de autonomia "absoluta", pois submete o homem ao formalismo
da lei moral, no deixando espao devido para a vivncia de suas
tendncias sensveis. Defendemos que a autonomia tambm envolve a
prpria realizao e felicidade. Discpulos de Kant como Schiller
(1759-1805) e Herder (1744-1803) perceberam isso e procuraram
pensar um homem mais inteiro, em sua totalidade. Atentos a isso,
"Definamos o indivduo autnomo (em oposio autonomia absoluta de
Kant) como aquele que se determina, no apenas pela sua razo, mas ao
mesmo tempo pela sua razo e por aquelas suas tendncias que
concordam com ela" (JACOB apud LALANDE, 1999, p. 115).O projeto
pedaggico de Kant, de certa forma, continuador do projeto pedaggico
de Rousseau (1712-1778). "A educao para a razo e a liberdade
transforma-se no objetivo positivo do projeto pedaggico de
Rousseau" (FREITAG, 1991, p. 17). Em Rousseau, educar para a razo e
a liberdade implica em educar para a autonomia. Para ele, "o
impulso do puro apetite escravido, e a obedincia lei que se
estatuiu a si mesma liberdade" (ROUSSEAU, 1973, p. 43). No contrato
social a vontade geral constrange a vontade particular a abrir mo
de seus desejos inserindo a noo de dever. Na passagem do estado de
natureza para o estado civil, o homem adquire moralidade, pode
consultar sua razo antes de ouvir suas inclinaes (cf. idem, p. 42).
Mas como submeter indivduos a leis comuns e assegurar autonomia?
Rousseau postula uma identidade entre os indivduos e faz dessa
identidade um ideal a ser realizado pela vontade de cada um, os
quais reconhecem a liberdade dos outros como condio para a prpria
liberdade. Assim a autonomia um ideal que deve ser regra de todos
(cf. BOURRICAUD, 1985, p. 53).Outro pensador, herdeiro da temtica
educacional desenvolvida por Rousseau e Kant, que, portanto, faz da
autonomia um dos principais objetivos da educao, Piaget
(1896-1980). Segundo Kamii (1988, p.68), a partir da teoria de
Piaget podemos dividir a autonomia em dois aspectos, o moral e o
intelectual. Para a autonomia moral, importante que as crianas
tornem-se capazes de tomar decises por conta prpria, que sejam
capazes de considerar os aspectos relevantes para decidir o melhor
caminho a seguir. Isso implica aprender a levar em conta os pontos
de vista das outras pessoas, j que para este autor, a autonomia
moral se alcana a partir da inter-relao com as demais pessoas.
Autonomia intelectual a capacidade de seguir a prpria opinio,
enquanto a heteronomia seguir a opinio de outra pessoa. Nessa obra
no discutiremos as contribuies de Piaget quanto ao tema autonomia e
educao devido delimitao necessria.
CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE
DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT
2.1 - O ILUMINISMO E SUA NOO DE AUTONOMIA
2.1.1 - Razo iluminista
Em termos gerais podemos dizer que iluminismo "A linha filosfica
caracterizada pelo empenho de estender a crtica e o guia da razo em
todos os campos17da experincia humana" (ABBAGNANO, 1962, p. 509). O
prprio Kant noPrefcio primeira edio da Crtica da razo pura, define
a sua poca como de crtica:A nossa poca por excelncia uma poca de
crtica qual tudo deve submeter-se. De ordinrio, a religio, por sua
santidade, e a legislao, por sua majestade, querem subtrair-se a
ela. Mas neste caso provocam contra si uma justa suspeio e no podem
fazer jus a uma reverncia sincera, reverncia esta que a razo
atribui exclusivamente quilo que pode sustentar-lhe o exame crtico
e pblico. (KANT, 2005a, p. 15).A filosofia iluminista possui uma
confiana decidida na razo humana, prope um despreconceituoso uso
crtico da razo voltada para a libertao em relao aos dogmas
metafsicos, aos preconceitos morais, s supersties religiosas, s
relaes desumanas e tiranas polticas, os quais representam para os
iluministas heteronomia. A libertao dessas heteronomias por meio do
uso crtico da razo possibilitaria experincias de autonomia.A
definio dada por Kant ao iluminismo18talvez seja a mais conhecida e
para esse trabalho com certeza a mais elucidativa:Esclarecimento
[Aufklrung] a sada do homem de sua menoridade, da qual ele prprio
culpado. A menoridade a incapacidade de fazer uso de seu
entendimento sem a direo de outro indivduo. O homem o prprio
culpado dessa menoridade se a causa dela no se encontra na falta de
entendimento, mas na falta de deciso e coragem de servir-se de si
mesmo sem a direo de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso
de teu prprio entendimento, tal o lema do esclarecimento
[Aufklrung]" (KANT, 2005c, p. 63-64). bom lembrar que embora Kant
seja um iluminista, ele se afasta do iluminismo em aspectos
essenciais, que sero esclarecidos ao longo do captulo. Fica claro a
partir da citao acima, que em Kant oAufklrung, significa mais que
conhecer simplesmente, acima de tudo, significa a realizao de sua
filosofia prtica, que busca a moralizao da ao humana atravs de um
processo racional. Segundo Rouanet (1987, p. 209) o lemaSapere
aude(ouse saber) refere-se razo em seu sentido mais amplo, no
exclusivamente razo cientfica. OAufklrungimplica na superao da
menoridade, que uma condio de heteronomia, requer a deciso e a
coragem de servir-se de si mesmo, ou seja, de servir-se de sua
prpria razo para pensar por conta prpria, e guiar-se sem a direo de
outro indivduo. Segundo Mhl (2005, p. 309), o princpio fundamental
da pedagogia kantiana est relacionado palavraAufklrung, o
esclarecimento, dado pelas luzes da razo, "possibilita o indivduo
abandonar a ignorncia, permitindo sua ascenso a um nvel superior de
cultura, educao e formao" (idem). Kant alerta que difcil para um
homem desvencilhar-se da menoridade quando ela se tornou para ele
quase uma natureza (cf. KANT, 2005c, p. 64). Mesmo assim, para que
tal ocorra, nada mais se exige a no ser liberdade de fazer uso
pblico da razo em todas as questes (cf. idem, p. 65). Kant (ibid,
p.66) entende como uso pblico da razo aquele que qualquer homem,
enquanto sbio, faz dela diante do grande pblico letrado, todavia,
entende como uso privado aquele que qualquer homem pode fazer de
sua razo em um cargo pblico ou funo a ele confiado. A liberdade de
fazer uso pblico da razo necessria para que possa haver autonomia
de pensamento (pensar por conta prpria), autonomia da ao e tambm
autonomia da palavra.A filosofia iluminista otimista porque
acredita no progresso por meio do uso crtico e construtivo da razo.
No entanto, a razo no mais um complexo de idias inatas dadas antes
da experincia nas quais se manifesta a essncia absoluta das coisas.
A razo no um contedo fixo, mas muito mais uma faculdade que s se
pode compreender plenamente em seu exerccio e explicao.Em suma, os
iluministas tm confiana na razo - e, nisso, so herdeiros de
Descartes, Spinoza ou Leibniz -, mas, diversamente das concepes
desses filsofos, a razo dos iluministas aquela do empirista Locke,
que analisa as idias e as reduz todas experincia. Trata-se,
portanto, de uma razo limitada: limitada experincia e fiscalizada
pela experincia. A razo dos iluministas a razo que encontra o seu
paradigma na fsica de Newton, que no aponta para as essncias, no se
perguntando, por exemplo, qual a causa ou a essncia da gravidade,
no formulando hipteses nem se perdendo em conjecturas sobre a
natureza ltima das coisas, mas sim, partindo da experincia e em
contnuo contato com a experincia, procura as leis do seu
funcionamento e as submete prova. (REALE, 1990, p. 672).Portanto, a
razo iluminista uma razo independente das verdades religiosas e das
verdades inatas dos racionalistas. Assim, a noo de autonomia
iluminista se refere a uma razo que se dobra a evidncias empricas e
matemticas.O iluminismo proclama tanto para a natureza quanto para
o conhecimento o princpio da imanncia. A natureza e o esprito so
concebidos como plenamente acessveis, no como algo obscuro e
misterioso.Para descobrir essa lei devemos abster-nos de projetar
na natureza as nossas representaes e os nossos devaneios
subjetivos; devemos, pelo contrrio, acompanhar o seu prprio curso e
fix-lo pela observao, experimentao, medida e clculo. Mas os nossos
elementos de mediao no devem basear-se somente em dados sensveis,
devem decorrer igualmente a essas funes universais de comparao e de
contagem, de associao e distino, que constituem a essncia do
intelecto. Assim, autonomia da natureza corresponde a autonomia do
entendimento. Num s e mesmo processo de emancipao intelectual, a
filosofia iluminista procura mostrar a independncia da natureza ao
mesmo tempo que a independncia do entendimento. (CASSIRER, 1997, p.
74-75).No discurso dos iluministas, natureza e razo aparecem em
relao constante. Segundo Hazard (sd, p. 95), "a natureza era
racional, a razo era natural, acordo perfeito". Dessa forma, para
os iluministas, o conhecimento fsico tinha potncia quase ilimitada,
inclusive como possibilitador de autonomia para o homem. Para eles,
o homem no se reduz razo, mas tudo pode ser investigado por meio da
razo: princpios do conhecimento, a tica, as instituies polticas, os
sistemas filosficos, as crenas religiosas, sistemas educacionais. O
homem autnomo para o iluminismo, diferentemente do que para Kant,
esse homem imanente, que por meio de sua razo pode a tudo submeter
investigao cientfica.
2.1.2 - Antropologia Iluminista
As antropologias do sculo XVIII tm em comum o objetivo de
realizar o estudo positivo do homem. A pluralidade de dimenses
epistemolgicas abre caminho fragmentao do saber em funo da
especializao crescente das diversas disciplinas, tendo o homem como
objeto comum. O iluminismo elevou a antropologia a fundamento de
todos os saberes, deslocando a teologia que at ento realizava esse
papel.A antropologia das "Luzes" expresso de uma crena profunda na
inteligibilidade racional do domnio humano. Segundo Falcon (1986,
p. 59), tendo como premissas gerais o primado da razo e o carter
universal e eterno da natureza humana, os iluministas desenvolvem
os temas da humanidade, da civilizao e do progresso. Tambm, os
iluministas ligam sua concepo de autonomia a esses temas.A idia de
humanidade representa para os iluministas a imanncia contra a
transcendncia do homem, representa a afirmao do valor da realidade
terrena em si mesma, a importncia das cincias do homem segundo
princpios da cincia experimental. O homem transcendente para eles o
homem heternomo, j o homem imanente, que possui verdades desse
mundo fornecidas pelas cincias experimentais, o homem autnomo.O
iluminismo, em geral, considera o homem apenas em sua existncia
fsica. Segundo Holbach (1725-1789), o homem como tudo mais no
universo um ser inteiramente fsico (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para
Helvtius (1715-1771) a dor e o prazer fsicos so os princpios
ignorados de todas as aes humanas (cf. idem, p. 423), portanto no h
distino de espcie alguma entre corpo e alma, e o homem visto como
mnada, ou seja, apenas enquanto existncia fsica. Tanto a razo
quanto uma viso moral no distorcida levariam o homem a lutar pela
autopreservao e pela satisfao, a fim de aumentar a felicidade.
Nesse contexto, a sensualidade adquire valor, e a vivncia dos
desejos que emanam espontaneamente do homem representaria uma
espcie de autonomia. O homem autnomo dos iluministas um homem
sensualista, que busca satisfao na realizao dos seus desejos e na
diminuio dos sofrimentos. Por isso, conforme Taylor (ibid, p. 415),
a tica do iluminismo utilitarista, baseando o julgamento das aes em
suas conseqncias.Nas concepes de homem e de civilizao iluminista, a
pedagogia possui papel essencial, "S ela poderia propiciar a
eliminao, no futuro, do abismo que separava os espritos
bem-pensantes, moralmente bem-formados e socialmente bem-educados
da plebe ignorante, supersticiosa, inclinada aos maus costumes e
mal-educada" (FALCON, 1986, p. 62-63). No entanto, a pedagogia
vista pelos iluministas como uma cincia to exata quanto a
geometria, o que possibilitaria a ela produzir bons cidados, homens
esclarecidos e autnomos.A noo de autonomia dos iluministas deriva
de sua concepo antropolgica e pressupe a imanncia, a historicidade,
o materialismo, a atividade do homem, que, por meio do poder quase
irrestrito das cincias, suplanta os mitos, as supersties, medos,
opresses, imoralidades e assim se constri rumo a um progresso certo
em todos os campos de sua vida, garantido pela positividade, pela
exatido das cincias. Ainda, um homem que encontra a autonomia na
vivncia dos prprios desejos. Caberia educao formar esse homem
"esclarecido", "autnomo".
2.1 - O ILUMINISMO E SUA NOO DE AUTONOMIA2.1.3 - O Iluminismo
radical
O ideal da razo auto-responsvel como fonte de dignidade, herdado
de Descartes, desempenhou um papel essencial na radicalizao do
iluminismo. Sua realizao mais influente foi a postura de
desprendimento radical, de suplantao da tradio, que para os
iluministas era fonte de heteronomia. Essa postura contribui para a
definio iluminista de filsofo como pensador autnomo. Vejamos como
Diderot (1713-1784) apresenta no verbete sobre o ecletismo:Ecltico
um filsofo que, calcando sob os ps o preconceito, a tradio, a
respeitabilidade, a concordncia universal, a autoridade - numa
palavra, tudo quanto intimida o povo -, ousa pensar por si mesmo,
ascender aos mais claros princpios gerais, examin-los, discuti-los
e no admitir nada exceto pelo testemunho de sua prpria razo e
experincia. (DIDEROT apud TAYLOR, 1997, p. 418).O iluminismo trazia
consigo o desejo de anular grilhes. Essa rejeio/libertao compreende
a negao da religio e da metafsica e a afirmao da bondade e da
importncia da natureza. Para o iluminismo, o pleno exerccio da razo
auto-responsvel produz a maior clareza possvel sobre sua prpria
natureza e seu significado (cf. TAYLOR, 1997, p. 451). O exerccio
da razo desacorrentada leva ao desmascaramento do erro, liberta a
dignidade da natureza e possibilita a autonomia. O resultado seria
o progresso tanto do conhecimento quanto dos costumes. Para os
iluministas o avano da racionalidade cientfica possibilitaria por
si um "aumento" da autonomia. Mas segundo Foucault (1996, p.
107-108), a relao entre crescimento das capacidades cientficas e o
crescimento da autonomia no so to simples quanto supunham os
iluministas. Para ele, as tecnologias diversas transmitiam formas
de relaes de poder com fins econmicos ou de regulao social, o que
em vez de possibilitar a autonomia gerava uma nova forma de
heteronomia.Os iluministas radicais aderiram ao materialismo e ao
atesmo, no somente como resultado final da razo auto-responsvel,
mas tambm como forma de serem fiis s exigncias de sua concepo de
natureza (cf. TAYLOR, 1997, p. 420). Para Holbach, por exemplo, o
homem um ser inteiramente fsico, e a dimenso moral sua existncia
fsica considerada relativamente a algumas de suas formas de agir
(cf. idem). Assim, o homem teria um impulso inerente de se
autopreservar que corresponde ao amor por si, que uma tendncia a
buscar a felicidade, o bem-estar, o prazer. O homem lutando por
necessidade para preservar e aumentar sua felicidade para ele, a
verdadeira base da vida moral e da autonomia.O utilitarismo de
Bentham (1748-1832) e Helvtius reconhecia apenas um bem: o prazer
(cf. ibid, p. 428). Queriam acabar com a distino entre bens morais
e no-morais e tornar todos os desejos humanos dignos de considerao.
Na sua teoria moral, dor e prazer so os critrios da ao correta, mas
no da forma como afetam um indivduo e sim da forma como afetam a
todos. Devemos procurar a maior felicidade para o maior nmero
possvel de pessoas. Essas concepes aparecem como uma reivindicao de
autonomia como auto-responsabilizao e busca do aumento da
felicidade por meio do progresso racional. O ideal de
auto-responsabilidade influenciou Kant embora ele no o conceba
exatamente como os iluministas. J o utilitarismo para ele, no
atende a reivindicao de autonomia e , portanto, heteronomia.Hume
(1711-1776) tambm pode ser considerado um iluminista radical.
Defendia que o mtodo do raciocnio experimental preconizado por
Bacon (1561-1626) e Newton (1642-1747), o qual j havia construdo
slida viso da natureza fsica, deveria ser aplicado tambm natureza
humana, ou seja, no apenas aos objetos, mas tambm aos sujeitos. Ele
reduz a origem das idias a impresses, a hbitos, o que contrapunha
as idias de cincia e metafsica dos filsofos racionalistas.
NosProlegmenos(KANT, 1959, p. 28), Kant afirma que foi Hume que o
despertou do "sono dogmtico". Mas para Kant sua contribuio no vai
muito alm disso, todo sistema filosfico kantiano vai ter como um
dos objetivos contrapor-se ao empirismo ctico de Hume.Para Hume as
paixes so algo original e prprio da natureza humana, independente
da razo. A prpria vontade pode ser redutvel s paixes, ou ainda,
redutvel a uma impresso que deriva do prazer e da dor. "Para ele,
livre-arbtrio seria sinnimo de no-necessidade, vale dizer,
causalidade, constituindo assim, um absurdo. Segundo Hume, aquilo
que habitualmente se chama liberdade nada mais seria que a simples
espontaneidade, ou seja, a no coao externa" (REALE, 1990, p. 572).
Ao no considerar a determinao interna, Hume proclama a vitria do
jogo das paixes, e assim, nega a razo prtica, nega que a razo possa
guiar a vontade. Essa noo de autonomia de Hume como simples ausncia
de coao externa para que as paixes possam ser vivenciadas, oposto
ao defendido por Kant, e representa muito bem o que este filsofo
designou como heteronomia.
CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A CENTRALIDADE
DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT
2.2 - ROUSSEAU E A AUTONOMIA
O utilitarismo simplificava a vontade humana ao dedic-la apenas
a felicidade, promovendo uma espcie de nivelamento. Bem e mal se
tornaram uma questo de instruo, conhecimento e esclarecimento. A
autonomia, para esses iluministas, era uma questo que se referia
racionalidade cientfica e vivncia da prpria felicidade. Rousseau
formulou uma nova concepo de autonomia, de um homem que no apenas
corpo, mas tambm esprito, se distanciando, assim, dos
iluministas.Rousseau comeou como amigo dos enciclopedistas, em
especial de Diderot, e acabou como inimigo, por haver um ncleo de
discordncia filosfica em seus pensamentos (cf. TAYLOR, 1997, p.
456). Para Rousseau o mal humano no poderia ser compensado pelo
aumento do conhecimento ou do esclarecimento. Ele resgata a noo
fundamentalmente agostiniana de que o homem pode ter "dois amores",
ou seja, duas orientaes bsicas da vontade. O amor de si mesmo o
sentimento naturalmente bom que nasce com o ser humano, o
amor-prprio o sentimento de paixes "repulsivas" que surgem com a
socializao. A socializao e o conseqente aumento do amor-prprio
levam o homem alienao, pois passa a comparar-se com os demais e
perde a busca de viver bem consigo mesmo19. Para Rousseau, ambas as
orientaes de vontade, se permanecerem fechadas em si mesmas, sero
vontades heternomas."Rousseau no pode aceitar a noo naturalista do
Iluminismo de que o que precisamos para nos tornar melhores de mais
razo, mais cultura, mais lumires" (idem, p. 459). O progresso no
necessariamente nos torna melhores, nem autnomos, pelo contrrio,
muito freqentemente acompanhado pela decadncia moral. Para ele, o
progresso da razo calculista um dos indcios da corrupo. Essa oposio
entre moralidade e progresso no deve ser interpretada no sentido
primitivista. Rousseau no propunha a volta ao estgio pr-social20. A
idia de recuperar o contato com a natureza uma forma de escape da
dependncia calculista do outro, por meio da fuso entre razo e
natureza. A conscincia a voz da natureza que se manifesta em um ser
social que dispe de linguagem e razo.Ora, do sistema moral formado
por essa dupla relao consigo mesmo e com suas relaes com seus
semelhantes que nasce o impulso da conscincia. Conhecer o bem no
am-lo: o homem no tem o conhecimento inato dele. Mas logo que sua
razo o faz conhecer, sua conscincia o leva a am-lo: este sentimento
que inato. (ROUSSEAU, 1995, p. 337-338).Libertadas todas distores
devido dependncia do outro ou da opinio, a vontade geral representa
as exigncias da natureza por meio da lei publicamente
reconhecida.Para Rousseau, no somos individualmente autnomos,
apenas o somos como membros de um tipo especial de sociedade.
Segundo Schneewind (2001, p. 559), quando o contrato social cria
uma nova idia de bem comum o pensamento ativa em cada indivduo um
amor inato que permite controlar os desejos privados e agir como
membros de um todo moral. Passamos a ser livres e autnomos porque
podemos romper com a escravido dos nossos desejos e viver sob uma
lei que proporcionamos a ns mesmos21. No estado natural o homem
desfruta de uma liberdade natural que fsica e no vai alm de suas
foras. No contrato social o homem renuncia a liberdade natural em
favor da liberdade civil, que circunscrita pela vontade geral. No
estado civil o homem adquire liberdade moral, j que ele passa a
obedecer lei que ele instituiu a si prprio em vez de seguir o
impulso (cf. ROUSSEAU, 1973, p. 43). O papel da educao seria de
elevar a natureza do homem para alm da animalidade, numa esfera
onde existem leis. Em outras palavras, tambm podemos dizer que o
papel da educao tornar socivel a insociabilidade contida no amor de
si mesmo e no amor-prprio. Assim, o filsofo est na origem de
concepes morais que fazem da liberdade autodeterminante a chave
para a virtude. Dentre elas, a de moralidade como autonomia
desenvolvida por Kant. Mas a concepo de autonomia de Rousseau para
Kant heternoma. Para este, a lei moral no pode ser definida por
qualquer ordem externa, nem pelo impulso da natureza em mim. Para
que haja autonomia, a moralidade no pode estar fora da vontade
racional do homem.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E
A CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT
2.3 - KANT: HERANA E SUPERAO DA NOO DE AUTONOMIA ILUMINISTA
Kant com sua concepo de autonomia refuta, principalmente, o
desmo, o utilitarismo, o naturalismo, o voluntarismo, portanto,
nesse sentido, se ope tambm aos iluministas. Esses, no deixam espao
para a dimenso moral e, dessa forma, para a liberdade, pois a
liberdade precisa de uma dimenso moral. Para Kant, a moralidade no
deve ser definida segundo qualquer resultado, mas sim segundo o
motivo que a conformidade da ao com a lei moral.Isso liberdade,
porque agir moralmente agir de acordo com o que realmente somos,
agentes morais/racionais. A lei da moralidade, em outras palavras,
no imposta de fora. ditada pela prpria natureza da razo. Ser um
agente racional agir por razes. Por sua prpria natureza, as razes
so de aplicao geral. Uma coisa no pode ser uma razo para mim agora
sem ser uma razo para todos os agentes numa situao relevantemente
semelhante. Assim, o agente de fato racional age com base em
princpios, razes que so entendidas como gerais em sua aplicao. isso
que Kant quer dizer por agir de acordo com a lei. (TAYLOR, 1997, p.
465).A lei moral no deve ser definida de acordo com resultados
especficos. Dessa forma a deciso de agir moralmente a deciso de
agir com o propsito de conformar a minha ao com a lei universal.
Isso corresponde a agir segundo minha verdadeira natureza raciona,
e agir de acordo com as exigncias de minha razo ser livre. Para
Kant, a vontade dos seres racionais capaz de promulgar a legislao
universal a que se submetem, e esse o princpio da autonomia. Seguir
apenas os ditames do desejo cair na heteronomia. Kant discorda da
noo do humanismo iluminista segundo a qual os desejos emanam de ns
e a vivncia deles representaria uma espcie de autonomia. "A viso
kantiana encontra sua segunda dimenso na idia de uma autonomia
radical dos agentes racionais. A vida da mera satisfao dos desejos
no apenas rasa, mas tambm heternoma. A vida plenamente
significativa aquela escolhida pelo prprio sujeito" (idem, p. 491).
Segundo Vincenti (1994, p. 8), existir como sujeito significa no
precisar referir-se a outro ser ou existncia para definir,
compreender ou justificar o que se , sujeito aquele que se sustenta
ele mesmo na existncia, por isso a idia de sujeito est ligada
autonomia. Para Kant, o que realmente "emana de mim" produzido pela
razo, e ela exige que se viva de acordo com princpios. Essa
perspectiva se rebela contra as que afirmam que a ao determinada
pelo fato dado, pelos fatos da natureza, em favor da prpria
atividade como formuladora da lei racional.A partir do pensamento
de Kant podemos afirmar que tudo que h na natureza se conforma com
suas leis, exceto o homem. Isso porque o homem, na condio de ser
racional, conforma-se s leis universais que ele prprio formula. Por
isso os seres racionais so autnomos e tm uma dignidade
particular22, se destacam da natureza por serem livres e
autodeterminantes. (cf. TAYLOR, 1997, p. 467). Esse status racional
nos impe a obrigao de viver como agente racional. A natureza
racional a nica coisa que existe como um fim em si mesma. Esse
carter racional confere ao homem dignidade, todas as outras coisas
tm um preo, mas o homem possui dignidade. O homem, como ser
racional, possui valor absoluto e no pode jamais ser tratado como
meio, o que podemos ver em uma das formulaes de Kant ao imperativo
categrico: "Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente
como fim e nunca simplesmente como meio" (KANT, 1974a, 229). Por
isso, na viso kantiana, a pretenso do naturalismo iluminista em
submeter tambm o homem s leis da natureza nada mais que
heteronomia."O sentido da revoluo copernicana23consiste em ter ele
acabado com o predomnio absoluto do pensamento fsico e da filosofia
naturalista [...]". (MESSER, 1946, p. 342). A libertao do
naturalismo iluminista que impunha uma necessidade natural
onipotente e no deixava lugar genuno para a liberdade, consiste na
descoberta de que o objeto considerado pela fsica, a natureza, no a
realidade absoluta. Assim, a natureza no mais considerada coisa em
si, mas sim o sistema regular daquilo que o eu se representa. O eu
se torna o Sol em torno do qual os objetos giram. Ainda segundo
Messer (idem, p. 343), Kant no teria realizado tal revoluo se seu
pensamento no se achasse to profundamente enraizado na sua
conscincia moral, se no tivesse levado em conta a vontade que se
determina a si prpria e a lei que a vontade impe a si prpria, ou
seja, se no estivesse enraizado em sua concepo de autonomia moral.O
conhecimento das cincias deve ser estimulado dentro de seus
limites, no pode ser a ltima instncia para a nossa concepo de mundo
e da vida. Kant est certo de que o imperativo categrico da
conscincia regulativo e que a vontade tem que ser independente das
leis da natureza. Ainda, com isso Kant pensa o homem como cidado de
dois mundos, o mundo sensvel do conhecimento natural e o mundo
supra-sensvel da liberdade; assunto que retomaremos em seguida e
central para entendermos a concepo de autonomia desse autor."Kant
segue Rousseau em sua condenao do utilitarismo. O controle
instrumental-racional do mundo a servio de nossos desejos e
necessidades s pode degenerar num egosmo organizado [...]" (TAYLOR,
1997, p. 466). Kant parte das fontes morais da internalizao ou
subjetivao, inauguradas por Rousseau, mas fornece uma nova base.
Para ambos, a lei moral vem de dentro e no pode ser definida por
qualquer ordem externa. No entanto, para Kant, ela no pode ser
definida pelo impulso da natureza "em mim", mas apenas pela razo
prtica que exige uma ao de acordo com princpios gerais. Qualquer
concepo moral que derive seus propsitos normativos de uma ordem
csmica ou de uma ordem dos fins da natureza humana acarreta a
abdicao da responsabilidade de gerar a lei por ns mesmos e cai na
heteronomia. Assim, a exaltao da natureza como fonte , para Kant,
to heternoma quanto o utilitarismo.A concepo de autonomia de Kant
tambm se alia aos antivoluntaristas. Ele reprovava fortemente o
pensamento de dependncia de um ser racional s ordens e aos desejos
de outro, mesmo que este seja Deus, considerando essa concepo, de
certa maneira, oposta nossa ao livre essencial. "A moralidade da
autonomia kantiana decisivamente oposta ao voluntarismo, porque a
racionalidade da lei moral que guia Deus e ns to evidente para ns
quanto para ele" (SCHNEEWIND, 2001, p. 556).Kant no condena a razo
instrumental voltada para o controle racional. Considera que o
desenvolvimento da razo instrumental, necessrio para o homem
superar obstculos da natureza e sobreviver, pode lev-lo
racionalidade em sentido mais amplo (cf. TAYLOR, 1997, p. 468). Ele
manteve-se um homem do Iluminismo, herda da filosofia de sua poca a
problemtica da maioridade e autonomia, mas se ops em aspectos
essenciais. Preservou a centralidade da razo, mas a pensou em
sentido mais amplo que a razo instrumental. A diferena fundamental
que a questo crucial quanto autonomia para Kant o crescimento em
racionalidade, moralidade e liberdade, no em felicidade.O erro do
naturalismo iluminista ter interpretado mal o esprito com o qual a
vida deve ser vivida, o fim bsico que deve presidir tudo. No a
felicidade, mas a racionalidade, a moralidade e a liberdade. O
homem pode, de fato, atingir um alto grau de civilizao sem se
tornar realmente moral. (idem).Enfim, Kant manteve a leitura
emprica e matemtica da natureza que os iluministas haviam recebido
de Galileu e Descartes, no entanto a restringiu natureza, no a
aplicando ao homem, como haviam feito os iluministas. Quanto ao
homem, Kant o pensou como dotado de alma espiritual com o poder de
pensar o universal, vinculando a isso, sua liberdade e dignidade,
sua autonomia.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A
CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT
2.4 - KANT: RAZO PRTICA E AUTONOMIA
NaCrtica da Razo Pura, Kant demonstrou a possibilidade das
cincias matemticas e naturais e acabou chegando negao de uma
metafsica que se apia na mesma objetividade e universalidade dessas
cincias. A razo terica ficaria limitada ao mbito da experincia. S
podemos conhecer os fenmenos que nos so acessveis pelos sentidos;
liberdade, imortalidade da alma e Deus, temas da metafsica, no so
objetos de conhecimento. Rousseau j havia condenado a pretenso da
filosofia iluminista de buscar o bem no acrscimo de conhecimento. O
progresso humano no campo especulativo no significa o progresso
moral do homem. A partir da impossibilidade da metafsica enquanto
conhecimento, Kant precisa construir uma crtica para conhecer as
possibilidades que a razo dispe para elaborar uma
metafsica.NaCrtica da Razo Prtica, Kant demonstra que a razo pura
prtica por si mesma, ou seja, ela d a lei que alicera a moralidade,
a razo fornece as leis prticas que guiam a vontade. Leis prticas so
princpios prticos objetivos, regras vlidas para todo ser racional.
Elas se diferenciam das mximas que so princpios prticos subjetivos,
regras que o sujeito considera como vlidas apenas para sua prpria
vontade. "Admitindo-se que a razo pura possa encerrar em si um
fundamento prtico, suficiente para a determinao da vontade, ento h
leis prticas, mas se no se admite o mesmo, ento todos os princpios
prticos sero meras mximas" (KANT, sd, p. 31).Para Kant, se os
desejos, os impulsos, impresses, ou qualquer objeto da faculdade de
desejar forem condies para o princpio da regra prtica, ento o
princpio ser emprico, no ser lei prtica, no haver unidade nem
incondicionalidade do agir, e assim, no garantir a autonomia. A lei
moral deve independer da experincia. Uma vontade boa determina-se a
si mesma, independentemente de qualquer causalidade emprica, sem
preocupar-se com prazer ou dor que a ao possa provocar. Uma moral
que se determina por causas empricas cai no egosmo. "Todos os
princpios prticos materiais so, como tais, sem exceo, de uma mesma
classe, pertencendo ao princpio universal do amor a si mesmo, ou
seja, felicidade prpria" (idem, p. 33). Para Kant a busca da
felicidade prpria concerne faculdade inferior de desejar, ela se
relaciona s inclinaes da sensibilidade e no razo. O princpio do
amor por si ou da felicidade jamais poderiam servir de fundamento
para uma lei prtica, tendo em vista sua validade que apenas
subjetiva. Cada um coloca o bem estar e a felicidade em uma coisa
ou outra, de acordo com sua prpria opinio a respeito do prazer ou
da dor. Se formulssemos uma lei subjetivamente necessria como lei
natural, seu princpio prtico seria contingente e no garantiria a
autonomia.Somente a razo, determinando por si mesma a vontade, uma
verdadeira faculdade superior de desejar. "Um ser racional no deve
conceber as suas mximas como leis prticas universais, podendo
apenas conceb-las como princpios que determinam o fundamento da
vontade, no segundo a matria, mas sim pela forma" (ibid, p.37). Um
ser racional no pode conceber seus princpios subjetivos prticos,
suas mximas, como leis universais. A vontade para ser moral no deve
determinar-se pelo objeto, dever abstrair a matria da lei para
reter-lhe apenas a forma, a universalidade.Em suma: ou um ser
racional no pode conceber os seus princpios subjetivamente prticos,
isto , as suas mximas como sendo ao mesmo tempo leis universais ou,
de forma inversa, deve admitir que a simples forma dos mesmos,
segundo a qual se capacitam eles para uma legislao universal,
reveste esta de caracterstico conveniente e apropriado. (ibid).Para
o filsofo de Knigsberg, a vontade s pode ser determinada pela
simples forma legislativa das mximas. A mera forma da lei s pode
ser representada pela razo e no pelas leis naturais que regem os
fenmenos. A vontade deve ser independente da lei natural dos
fenmenos, e essa independncia se denomina liberdade. Ento, a
vontade que tem como lei a mera forma legisladora das mximas uma
vontade livre. "A razo pura por si mesma prtica, facultando (ao
homem) uma lei universal que denominamos lei moral" (ibid, p. 41).
A fora da lei moral est em sua absoluta necessidade e em sua
universalidade. Ora, a universalidade da lei moral, para Kant,
significa que ela tem de valer no s para os homens, mas para todos
os seres racionais em geral (cf. KANT, 1974a, p. 214). Em Kant,
universalidade significa racionalidade, se o dever ordena
universalmente porque racional. J a absoluta necessidade denota uma
necessidade que no seja condicionada a nenhum outro fim, mas que
seja necessria por si mesma. Por isso a lei moral deve ser um
mandamento, um imperativo, que seja categrico e no hipottico. Em
virtude de ser incondicional e universal, o imperativo categrico
possui apenas contedo formal, sendo, portanto, uma frmula. A lei
moral deve ser assim formulada, em termos de imperativo
categrico24: "Age de tal forma que a mxima de tua vontade possa
valer-te sempre como princpio de uma legislao universal" (KANT, sd,
p. 40). Segundo Kant, ns temos conscincia imediata dessa lei, ela
se impe como um fato, um fato da razo. Mas no um fato emprico, o
nico fato da razo pura que se manifesta como originariamente
legisladora, impe-se a ns de forma apriori.Todavia, no homem, a lei
possui [...] a forma de um imperativo, porque, na qualidade de ser
racional, pode-se supor nele uma vontade pura; mas, por outro lado,
sendo afetado por necessidades e por causas motoras sensveis, no se
pode supor nele uma vontade santa, isto , tal que no lhe fosse
possvel esboar qualquer mxima em contraposio lei moral. Para
aqueles seres a lei moral, portanto, um imperativo que manda
categoricamente, porque a lei incondicionada. (idem, p. 42).A lei
moral para ns um dever. a conscincia do dever que nos mostra que a
razo legisladora em matria moral, que a razo prtica em si mesma e
que o homem livre. A partir disso, Kant naCrtica da razo
prticaformula o seguinte teorema: "A autonomia da vontade o nico
princpio de todas as leis morais e dos deveres correspondentes s
mesmas" (ibid, p.43). O princpio da moralidade a independncia da
vontade em relao a todo objeto desejado, ou seja, de toda matria da
lei e, ao mesmo tempo, a possibilidade da mesma vontade
determinar-se pela simples forma da lei. Assim, a liberdade possui
o aspecto negativo e o positivo, os quais convergem na idia de
autonomia. A lei moral apenas exprime a autonomia da razo pura
prtica, ou seja, a liberdade.Fica demonstrada assim a possibilidade
e a centralidade da razo prtica e da autonomia na teoria
kantiana:Revela esta analtica que a razo pura pode ser prtica, isto
, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de todo
elemento emprico; - e demonstra-o na verdade mediante um fato, no
qual a razo pura se manifesta em ns como realmente prtica, ou seja,
a autonomia, no princpio da moralidade, por meio do que determina a
mesma a vontade do ato. - Por sua vez, a Analtica mostra que este
fato est inseparavelmente ligado conscincia da liberdade da
vontade, identificando-se, alm disso, com ela. (ibid, p. 49).A lei
moral implica que a vontade possa ser livre na medida em que se
determina por um motivo puramente racional. Mas o homem est sujeito
s leis da causalidade enquanto pertencente ao mundo sensvel, e por
outro lado tem conscincia que livre enquanto participante da ordem
inteligvel.Pelo dever, o homem sabe, pois, que no somente o que
aparenta a si mesmo, isto , uma parte do mundo sensvel, um
fragmento do determinismo universal, mas tambm uma coisa em si, a
fonte de suas prprias determinaes. A razo prtica justifica assim o
que a razo terica tinha concebido como possvel no terceiro conflito
da antinomia: a conciliao da liberdade que possumos como nomenos,
com a necessidade de nossas aes como objetos da experincia no
fenmeno25. (BRHIER, sd, p.205).Dessa forma, Kant confere ao homem
dois mundos, o mundo da causalidade, no qual no possvel prever grau
de liberdade para um fenmeno fsico e, o mundo da liberdade26, que o
mbito da razo prtica no qual possvel autonomia. O homem considerado
como fenmeno, sujeito necessidade natural, e comocoisa em si27, ou
livre. A liberdade s possvel porque acoisa em sino est determinada
e, portanto, no cognoscvel. A razo terica no atinge o "ser
noumnico", j a razo prtica se refere ao "ser noumnico". Assim, os
conhecimentos devem limitar-se sntese entre a sensibilidade e
categorias do entendimento, ou seja, aos fenmenos. J no domnio
prtico, "a razo se aplica a motivos determinantes da vontade,
enquanto faculdade de produzir objetos correspondentes, podendo
determinar-se a si mesma, engendrando sua prpria causalidade, na
sua atuao em relao a si mesma" (MARTINI, 1993, p. 114). Assim, como
participantes do mundo noumnico, somos livres, e como participante
do mundo fenomnico, somos determinados. No entanto, segundo Brhier
(sd, p. 199), o determinismo uma lei do nosso conhecimento, no uma
lei do ser, se aplica realidade tal como a conhecemos, e no tal
como ela .A distino kantiana entre dois mundos abre um espao
legtimo para o livre-arbtrio, j que o mundo noumnico no determinado
pelas leis da causalidade que determinam o mundo fenomnico. Se o
livre-arbtrio no deixar fundamentar-se pelo dever, que dado na razo
prtica, ou fundamentar-se em algo que contrrio a esse dever, a ao
ser heternoma. Em resumo, ao autnoma aquela que se guia pela prpria
lei, que lei da razo prtica, e ao heternoma aquela que se guia por
algo que externo ou contrrio lei da razo prtica.Quando a vontade
busca a lei, que deve determin-la, em qualquer outro ponto que no
seja a aptido das suas mximas para a sua prpria legislao universal,
quando, portanto, passando alm de si mesma, busca essa lei na
natureza de qualquer dos objetos, o resultado ento sempre
heteronomia. (KANT, 1974a, p. 239).Para Kant, a liberdade prtica ,
ento, a independncia da vontade em relao a toda lei que no seja a
lei moral. O homem no determinado pela natureza, e, pelo
livre-arbtrio, pode escolher agir por dever, e nisso consiste sua
autonomia. Ainda, a distino kantiana entre o carter inteligvel e o
sensvel, alm de negar o determinismo do homem pela natureza, nega o
determinismo teolgico. O homem assume a reinvidicao de
responsabilidade total.No entanto, penso que a concepo de autonomia
de Kant mantm a questo esttica subjugada ao dever, seu formalismo
restringe demasiadamente o sentido emprico, existencial da
autonomia. Dessa forma, podemos dizer que Kant tambm promove um
reducionismo28da autonomia, no entanto, no sentido inverso ao que
os iluministas haviam feito. E, importante destacarmos que a
dimenso esttica deve estar bem presente numa educao ou pensamento
que vise formar para a autonomia, por ser de carter diretamente
individuante, instncia que necessariamente integra o ser autnomo do
homem.NaCrtica da razo purae naCrtica da razo prtica, Kant enfatiza
a distino entre razo terica e razo prtica, naCrtica da faculdade do
juzoele aponta a faculdade de julgar como possibilitadora da
passagem de um domnio para outro, prope a tarefa de tentar uma
mediao entre os dois mundos. Assim o entendimento a fonte dos
conhecimentos, a razo o princpio de nossas aes e o juzo tem a funo
de pensar o mundo sensvel em referncia ao mundo inteligvel (cf.
PASCAL, 1999, p. 177). na faculdade do juzo29que Kant encontra o
intermedirio procurado. Dessa forma, Kant procura na terceira
crtica resgatar a dimenso esttica da autonomia que fica subjugada
ao formalismo da lei moral na segunda crtica. No entanto, mesmo na
terceira crtica, a idia de felicidade permanece submetida idia de
dever e universalidade, e, portanto, em Kant, a dimenso esttica da
autonomia no devidamente acionada. Segundo Suzuki (1989, p. 12),
Schiller vai procurar acabar a tarefa iniciada por Kant naCrtica da
faculdade do juzo, conseguindo dar maior nfase dimenso esttica da
autonomia.CAPTULO II - O CONTEXTO FILOSFICO DO ILUMINISMO E A
CENTRALIDADE DA AUTONOMIA NA FILOSOFIA PRTICA DE KANT
2.5 - A PEDAGOGIA KANTIANA E A AUTONOMIA
Na obraSobre a Pedagogia, Kant (1996b, p. 30) fala sobre a
importncia de a ao educativa seguir a experincia. A educao no deve
ser puramente mecnica e nem se fundar no raciocnio puro, mas deve
apoiar-se em princpios e guiar-se pela experincia (cf. idem, p.
29). A partir da pedagogia kantiana, podemos dizer que uma educao
que vise formar sujeitos autnomos deve unir lies da experincia e os
projetos da razo. Isso porque no caso de basear-se apenas no
raciocnio puro, estar alheia realidade e no contribuir para a
superao das condies de heteronomia e, no caso de guiar-se apenas
pela experincia, no haver autonomia, pois para Kant a autonomia se
d justamente quando o homem segue a lei universal que sua prpria
razo proporciona.Mas essa imprescindibilidade da experincia como
caminho para a educao possui segundo Philonenko (1966, p. 25-26)
uma razo metafsica, a liberdade humana. Na condio de livre, o homem
no pode ser objeto de cincia, de conhecimento, como pretendiam os
iluministas. Apenas os fenmenos possuem uma essncia determinada
pelas leis da natureza. As coisas podem ser conhecidas porque
possuem uma essncia que o entendimento pode perceber a priori. No
entanto, dizer que um ser livre dizer que ele no tem essncia que
determine a sua existncia, ou ainda, no ter essncia determinada o
que faz do homem livre. Por isso, no possuir a existncia de antemo
determinada um fator sem o qual no se pode falar em autonomia.A
tarefa central da educao orientar um ser que no pode ser conhecido
por no ter essncia determinada, e que, por isso, pode tomar
diferentes direes, o homem livre e por isso ele pode ser educado.
Mas, a liberdade est inclinada para o bem ou para o mal? Kant no
fala em uma natureza humana exatamente m, mas o homem no nasce
isento de vcios. No entanto, ao mesmo tempo em que nasce com
disposio para seguir impulsos, vcios, o homem nasce com a lei moral
dentro de si. EmSobre a Pedagogiaafirma: "A nica causa do mal
consiste em no submeter a natureza a normas. No homem no h germes
seno para o bem" (KANT, 1996b, p. 24). Com isso quis dizer que no
pode se afirmar no homem uma vontade, uma razo praticamente
legisladora que desejasse o mal. Ento, considerando seu carter
inteligvel, a humanidade integralmente boa. Cabe ao homem optar por
guiar-se pela sua razo ou no. Mas ele ser autnomo na condio de
guiar-se pela razo, por isso a educao deve objetivar a
racionalidade, isso porque o ser racional pode promulgar para si a
lei universal e assim, ser autnomo. J que o homem no nasce
determinado para o bem ou para o mal, Kant prope uma educao como
aprendizagem do exerccio das regras no plano terico e prtico.Como
Kant pensa o homem enquanto participante do mundo sensvel e do
inteligvel, prope que a educao deve disciplinar para impedir que a
selvageria, a animalidade, prejudique o carter humano (cf. idem, p.
26). Se nada se ope na infncia e na juventude, o indivduo conservar
uma selvageria a vida toda. Por isso a educao deve ter uma parte
negativa que Kant chama de disciplina. A disciplina educa para a
obedincia. No entanto, a obedincia possui dois aspectos: o primeiro
deve ser obedincia absoluta das determinaes de um governante, e o
segundo a obedincia vontade que o prprio sujeito reconhece como
racional e boa (cf. ibid, p. 82). A criana sendo habituada a
trabalhar por constrangimento na escola est submissa a uma
obedincia passiva, o que no incio da educao bom, para que ela
discipline sua vontade. Aos poucos a disciplina se interioriza e a
criana passa a obedecer a si mesma, quando descobre a liberdade.
Torna-se ento uma obedincia voluntria, no fundada na autoridade do
outro, mas na obedincia razo30, a si mesmo, descobrindo assim a
autonomia. Dessa forma a educao moral kantiana conjuga disciplina e
liberdade. Por isso para Kant a disciplina no oposta autonomia, ao
contrrio, a disciplina necessria para que o homem aprenda a guiar
sua vontade pela razo e assim possa ser autnomo. A viso
antropolgica kantiana dualista segundo a qual o homem , ao mesmo
tempo, um ser animal (irracional) e racional auxilia o entendimento
do papel da disciplina que converter a animalidade em humanidade. A
disciplina, que negativa, coage os impulsos animais para que o
homem se guie pela razo e assim, possa ser autnomo.Para Kant, a
disciplina extremamente necessria para que a vontade no seja
corrompida pelas inclinaes sensveis. No entanto, a disciplina no
pode tratar as crianas como escravos, elas precisam sentir sua
liberdade, mas de modo que no ofendam os demais (cf. ibid, p. 53).
O respeito dignidade da criana sempre deve estar presente para que
no se promova um simples adestramento. A vontade da criana no pode
ser quebrada, o que acarretaria um modo de pensar escravo e,
portanto, heternomo. Mas a vontade deve ser disciplinada para que
possa se guiar pela razo e assim haja autonomia. Em outras
palavras, educao para a autonomia em Kant no se funda na
disciplina, embora ela seja necessria para "domar as paixes" e
"abrir espao para a razo".Quanto ao desenvolvimento, Kant distingue
trs perodos da educao: a educao do corpo ou fsica, a educao
intelectual e a educao moral (cf. PHILONENKO, 1996, p. 43). A
educao do corpo se refere aos cuidados materiais dispensados por
quem cuida da criana. Os dois aspectos principais que devem ser
observados quanto educao do corpo a fim de gestar nas crianas a
autonomia, so: educ-las para que no sejam escravas das prprias
inclinaes e assim possam seguir a prpria razo, e proporcionar uma
educao ativa para que as prprias crianas por meio de suas
atividades possam ir se desenvolvendo e desenvolvendo seus
conhecimentos e habilidades.A partir da pedagogia de Kant, somos
levados a pensar uma educao intelectual que busca desenvolver as
diferentes potencialidades humanas, no apenas, por exemplo, a
memorizao. Segundo Philonenko (1966, p. 55), Kant resgata o
verdadeiro sentido de educao intelectual, ela deve ser antes de
tudo um exerccio da inteligncia. A educao deve ter uma finalidade
interna, e o exerccio de uma faculdade contribui para o
aperfeioamento das demais. Est aqui contida uma crtica ao ensino
tradicional, j que este sacrifica o entendimento, o juzo e a razo
mesmo em funo de privilegiar a memorizao. "O entendimento
conhecimento do geral. O juzo a aplicao do geral ao particular. A
razo a faculdade de distinguir a ligao entre o geral e o
particular" (KANT, 1996b, p. 67). Ele considera o cultivo da memria
necessrio, j que o entendimento no acontece seno aps impresses
sensveis, e cabe memria guard-las (cf. idem, p. 68). No entanto,
uma cultura fundada exclusivamente na memria superficial, pois
forma pessoas que no podem produzir por si mesmo algo razovel,
constituindo-se como Kant fala, metaforicamente, "burros de carga
do Parnaso" (ibid, p. 67), e deformada porque aniquila o
julgamento. Penso que a memorizao dissociada das outras capacidades
forma um indivduo sem capacidade de pensar por conta prpria, sem
autonomia intelectual.O perigo que subjaz numa educao que prime
pela memria que esta leve o homem a servilidade. Uma pessoa servil
no capaz de dar as prprias regras, se restringe a imitar ou
obedecer aos demais, caracterizando uma situao de heteronomia. Kant
contrape o verbalismo da memorizao sistemtica em favor do realismo
pedaggico. "A memria deve ser ocupada apenas com conhecimentos que
precisam ser conservados e que tm pertinncia com a vida real"
(ibid, p. 69). Kant na obraSobre a Pedagogia(ibid, p. 88-89) afirma
que a criana no deve se tornar um imitador cego, sob a pena de que
jamais seja um homem ilustrado e de mente serena. "Entretanto, no
suficiente treinar as crianas; urge que aprendam a pensar" (ibid,
p. 28).Para Kant "O homem pode ser, ou treinado, disciplinado,
instrudo mecanicamente, ou ser em verdade ilustrado" (ibid, p. 27).
Os animais so treinados e o homem tambm pode ser, mas para este, o
treinamento insuficiente. O treinamento no um fim e por isso no
pode ser usado como conceito sinttico que mediatiza natureza e
cultura, animalidade e humanidade, disciplina e liberdade. Como a
educao consiste em exercer uma espcie de imposio de limites sobre o
estado da natureza a fim de que a liberdade possa se expandir
abrindo espao para a cultura, Kant busca um conceito sinttico que
concilie essa passagem e os dois conceitos de liberdade subsumidos
nela, liberdade como espontaneidade e liberdade como autonomia.
Indica esse conceito sinttico no conceito de trabalho. " de suma
importncia que as crianas aprendam a trabalhar. O homem o nico
animal obrigado a trabalhar. Para que possa ter seu sustento,
muitas coisas deve fazer necessariamente para tal" (ibid, p. 65). O
trabalho traz consigo a necessidade, a submisso ao outro, o peso do
mundo, mas ao mesmo tempo o trabalho liberdade, pois nele o homem
se descobre obra de si mesmo. Assim, liberdade e obedincia so
unidas sinteticamente na noo de trabalho, mediante a passagem da
natureza cultura.Concluindo, podemos ver que as Reflexes sobre a
Educao de Kant encontram na idia de trabalho, na sua acepo mais
ampla, uma forma de integrar experincia de cada gerao humana ao
operar o mundo com a questo metafsica da liberdade que permite a
ligao dessas experincias a um ideal de humanidade esclarecida e
emancipada. (MARTINI, 1993, p. 113).Kant nos inspira a pensar uma
educao para a autonomia que busca desenvolver as capacidades dos
educandos para que tenham condies de perseguir as metas as quais se
prope livremente. Os conhecimentos aprendidos na escola so
importantes por instrumentalizarem os sujeitos a realizar seus
projetos aos quais se prope racional e livremente. Ou seja, o
conhecimento, a razo terica, pode alargar as condies para que o
homem seja autnomo. Conforme o pensamento de Kant, o conhecimento
pode possibilitar autonomia, idia com a qual concordo, no entanto,
penso que a razo terica no to inocente, to neutra, quanto ele a
pensava, o conhecimento no est imune ao das ideologias, e isso deve
ser levado em conta ao se pretender educar para a autonomia.No
pensamento educacional kantiano, com a educao moral chegamos ao
termo do desenvolvimento dos outros momentos da educao. A cultura
moral deve fundar-se sobre mximas e no sobre a disciplina (cf.
KANT, 1996b, p. 80). A disciplina no se justifica por si mesma, ela
necessria na medida em que prepara a insero no universo da razo. O
primeiro esforo da cultura moral lanar fundamentos para a formao do
carter. "Carter consiste no hbito de agir segundo certas mximas"
(idem, p. 81). Para Kant, a formao do carter possui trs traos
essenciais: a obedincia, a verdade e a sociabilidade. A obedincia
possui um duplo aspecto, ela pode ser obedincia absoluta ou
obedincia reconhecida como boa e razovel (cf. ibid, p. 82). A
primeira procede da autoridade e importante para que a criana
aprenda o respeito s leis que dever seguir como cidado. Mas a mais
importante o segundo tipo de obedincia que voluntria. Como j vimos,
a obedincia deve interiorizar-se para ser obedincia a si mesmo, o
que possibilitaria pensar por si mesmo, como ser racional e ser
autnomo. O segundo trao que se deve ter em vista na formao da
criana a veracidade. "Este o trao principal do carter. Uma pessoa
que mente no tem carter e, se h nela algo de bom, deriva-se do
temperamento" (ibid, p. 86). Verdade sempre pensar de acordo
consigo prprio, e mentir entrar em desacordo consigo mesmo. Esse
desacordo promove o rebaixamento da dignidade humana. Portanto em
Kant, a idia de verdade est ligada idia de dignidade, e esta idia
de autonomia. O terceiro trao da formao do carter a sociabilidade
(cf. ibid, p. 87). Ela envolve a disposio de sempre entender e se
colocar na posio do outro. bom lembrarmos que autonomia no
auto-suficincia.A consolidao do carter consiste na resoluo firme de
pensar algo e realmente coloc-lo em prtica (cf. ibid, p. 93). A
melhor maneira de solidificar o carter moral atravs de deveres a
cumprir. Estes podem ser deveres para consigo, se referem manuteno
da dignidade humana em sua prpria pessoa, ou para os demais, se
referem ao direito da humanidade. A educao deve fazer a criana
perceber a dignidade que h na prpria pessoa e em toda humanidade
(cf. ibid, p. 96). Ou seja, a consolidao do carter depende que a
criana esteja impregnada no pelo sentimento, mas pela idia de
dever. J vimos que o homem no bom nem mau por natureza, porque ele
no moral por natureza. "Torna-se moral apenas quando eleva a sua
razo at os conceitos de dever e da lei" (ibid, p. 102). Tambm vimos
que as inclinaes e os instintos o impulsionam para os vcios,
enquanto sua razo o impulsiona para a moralidade. A maior parte dos
vcios provm do estado natural de barbrie animal, por isso nossa
destinao sair desse estado, que de heteronomia. "[...] h uma lei do
dever e esta no deve ser determinada pelo prazer, pelo til ou
semelhante, mas por algo universal que no se guia conforme os
caprichos humanos" (ibid, p. 105). Esse algo universal o imperativo
categrico, lei universal que cada um d a si pela sua racionalidade
e que o princpio da autonomia.A educao uma das formas de realizao
da filosofia prtica de Kant, por meio da formao da criana,
contribui para que na fase adulta possa agir de acordo com a lei
moral e assim, possa ser autnomo. O homem deve ser formado para
poder ser livre. A subordinao da educao moralidade, promovida por
Kant, a insere no ncleo de sua filosofia prtica.Em Kant, a realizao
do bem e da liberdade no dependem do mundo sensvel, elas so
construes do homem. "O que o homem ou deve vir a ser moralmente,
bom ou mau, deve faz-lo ou s-lo feito por si mesmo. Ambos devem ser
um efeito de seu livre arbtrio" (KANT, 1974b, p. 384). Como no
homem as disposies naturais no se desenvolvem por si mesmas, o
homem precisa fazer-se, precisa educar e ser educado. a conseqncia
da liberdade humana, a radical auto-responsabilizao que incute no
homem a necessidade de fazer a si mesmo. E para Kant, na medida em
que o homem se constri a si mesmo, guiado pela sua razo universal,
que ele pode ser autnomo. "Da a importncia da educao: o homem
resultado desse processo; uma construo. O progresso da sociedade
vai depender do homem, especialmente no que se refere a sua ao
reguladora" (PRESTES, 1993, p. 67). O intuito de toda educao no
pensamento kantiano, tanto a fsica quanto a prtica, vai propondo o
acompanhamento da criana para que ela possa tornar-se capaz de se
guiar pela razo, o que a torna capaz de ser livre, a torna autnoma.
Nesse sentido, refuta o espontanesmo, a criana precisa ser
acompanhada, orientada, disciplinada, incentivada a agir por conta
prpria, para que deixe de se guiar pela sua natureza, seus
impulsos, e se guie pela razo e assim se construa como homem. Para
tal, a ao imprescindvel, a criana deve correr, jogar, saltar, etc,
exercitar seus sentidos para que suas potencialidades sejam
desenvolvidas. "Aprende-se mais solidamente e se grava de modo mais
estvel o que se aprende por si mesmo" (KANT, 1996b, p. 75). A
educao tambm deve ser essencialmente raciocinada para que a criana
possa aprender a servir-se do prprio entendimento e dar a prpria
lei em vez de copiar mecanicamente regras, modelos, conhecimentos
prontos. Na passividade ningum autnomo e no se torna o prprio
construtor, para tal preciso ao racionalmente dirigida.A proposta
kantiana que o homem aprenda a pensar por si mesmo. "Pensar por si
mesmo significa procurar em si mesmo a suprema pedra de toque da
verdade (isto , em sua prpria razo); e a mxima que manda pensar
sempre por si mesmo o esclarecimento [Aufklrung]" (KANT, 2005b, p.
61). Isso no significa apenas ter muitos conhecimentos, pois,
muitas vezes, pessoas com riqueza de conhecimentos mostram-se menos
esclarecidas que outras desprovidas de tais. Servir-se da prpria
razo perguntarmos em tudo que devemos admitir, se a nossa regra ou
mxima pode se estabelecer como princpio universal (cf. idem).
Qualquer indivduo pode realizar esse exame, e ele a garantia da
libertao de supersties e devaneios. Por isso educao cabe habituar
as crianas e jovens desde cedo a essa reflexo. Esse um trabalho
penoso e demorado, pois h muitos obstculos que dificultam a
realizao dessa educao. No entanto, em Kant, esse exame para ver se
a prpria mxima pode ser um princpio universal que garante a
autonomia. Fica claro a partir do pensamento kantiano, que pensar
por si mesmo no se d apenas pelo conhecer, antes de tudo, implica
na realizao da sua filosofia prtica que busca a moralizao da ao
humana atravs de um processo racional. Ainda, segundo Caygill
(2000, p. 184), Kant acreditava que a liberdade para pensar criava
a capacidade para agir livremente, embora o contrrio no fosse
necessariamente verdadeiro. Por isso a autonomia se d quando se
pensa por si prprio.Segundo Kant (2005b, p. 59), a liberdade de
pensar se ope coao civil que estabelece a submisso do sujeito a
leis externas no reconhecidas como racionais e boas, o que consiste
em heteronomia. A coao civil quando retira do homem a liberdade de
falar, de escrever, tambm retira a liberdade de pensar, pois ns
pensamos em conjunto com as outras pessoas na medida em que nos
comunicamos. Portanto, a supresso da liberdade de comunicar tambm
supresso da liberdade de pensar. Isso tambm pode acontecer quando
algum no tem acesso educao formal e de qualidade. No ter acesso
escola, normalmente faz com que o sujeito seja impossibilitado de
manifestar-se ou no sinta necessidade de faz-lo. Isso suprime a
autonomia de pensamento e a autonomia da palavra. Aqui se percebe a
importncia de condies que possibilitem a concretizao da autonomia,
dentre elas, a educao de qualidade.Para Kant, a liberdade de pensar
tambm se ope coao conscincia moral (cf. idem), o que promovido
normalmente pela f cega e irracional. Liberdade de pensamento
implica que a razo no se submeta a qualquer outra lei seno aquela
que d a si prpria (cf. ibid). Sem nenhuma lei nada pode exercer-se
por muito tempo, portanto, se a razo no quer se submeter lei que
ela d a si prpria, tem que se curvar ao jugo das leis que um outro
lhe d e, nesse caso, a liberdade de pensar fica perdida. Se a
liberdade de pensamento proceder de modo independente da razo,
destri-se a si mesma, cai em heteronomia.No sistema filosfico
kantiano h a primazia da razo prtica sobre a razo pura, tendo em
vista que a conscincia moral vai permitir atingir verdades
metafsicas, o mundo prprio do homem, que dotado de razo e liberdade
(cf. PRESTES, 1993, p. 68). Por isso, a grande tarefa da educao
para a autonomia a partir do pensamento de Kant educar o homem para
uma vida racional.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE
OPE
Paulo Freire no livroPedagogia da autonomiaafirma que o educador
que trabalha com crianas deve "estar atento difcil passagem ou
caminhada da heteronomia para a autonomia" (FREIRE, 2000a, p. 78).
Este um dos grandes temas que atravessam o pensamento de Freire.
Ele no diz textualmente o que entende por autonomia e heteronomia,
mas a partir de seu pensamento scio-poltico-pedaggico podemos
afirmar que autonomia a condio scio-histrica de um povo ou pessoa
que tenha se libertado, se emancipado, das opresses que restringem
ou anulam a liberdade de determinao. A autonomia tem a ver com o
que Freire (1983, p. 108) chama de "ser para si" e no contexto
histrico subdesenvolvido dos oprimidos para quem e com quem Freire
escreve, autonomia est relacionada com a libertao. J heteronomia a
condio de um indivduo ou grupo social que se encontra em situao de
opresso, de alienao31, situao em que se "ser para outro" (idem, p.
38). Segundo o que defendemos a partir de Freire, as opresses, em
geral, vo configurar uma situao de heteronomia, e uma educao
voltada para a libertao pode conduzir as pessoas a serem autnomas.
Tambm destacamos que os escritos de Freire so uma denncia aos
sistemas social, poltico, econmico, educacional, que favorecem a
perpetuao da heteronomia. Ele denuncia as realidades que levam a
heteronomia e prope uma educao que busca construir uma realidade
social que possibilite a autonomia, prope um processo de ensino que
possibilite a construo de condies para todos poderem ser "seres
para si".Freire cria um pensamento engajado, pensamento que
prxis32com e para o povo oprimido. Sua opo pelos mais fracos, pelos
esquecidos, em especial pelos povos chamados subdesenvolvidos, que
historicamente mais foram oprimidos com o colonialismo, com os
neocolonialismos, com as ditaduras militares e com o
neoliberalismo. Sua opo de professor democrtico e progressista que
busca a superao da heteronomia e construo da autonomia. Neste
captulo vamos ver quais as heteronomias a que ele se ops com seu
pensamento.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE
OPE
3.1 - A OPRESSO
A opresso, realidade histrica concreta da qual parte da
humanidade vtima, a negao da vocao do homem de "ser mais" (FREIRE,
1983, p.35), a negao da liberdade, negao do homem como "ser para
si" (idem, p. 189), portanto, a condio de opresso uma condio de
heteronomia. Ao anular a vocao humana de ser mais, a opresso insere
a dura realidade de ser menos. A opresso se verifica hoje em
situaes concretas como a misria, a desigualdade social, a explorao
do trabalho do homem, as relaes autoritrias, etc, situaes que fazem
o homem viver em condio de heteronomia j que limitam ou anulam sua
liberdade de optar e seu poder de realizar. A opresso uma realidade
desumanizante "que atinge aos que oprimem e aos oprimidos"33(ibid,
p. 35). A humanizao resultado da ao da prpria humanidade, o homem
que se faz homem, e isso s possvel porque possui liberdade. Toda
opresso, que em si mesma alienante, leva o homem a ser para outro e
ser menos, negao da liberdade humana, negao de seu carter criativo
e criador, heteronomia.Segundo Freire (ibid, p. 44-45), a proibio
de ser mais estabelecida pela opresso em si mesma uma violncia34. A
resposta dos oprimidos a essa violncia deve ser no sentido de
buscar o direito de ser, sua luta no sentido de fazer-se homem. Nas
nossas sociedades, o processo de violncia passa de gerao em gerao,
o que vai formando uma conscincia possessiva do mundo e dos homens,
tudo transformado em mercadoria, o dinheiro a medida para tudo e o
lucro torna-se o objetivo principal. No momento em que por meio
dessa ganncia desmedida dispe da vida de pessoas, tirando-lhes a
dignidade e a liberdade, transformando-as em coisa, as legam a
situao de heteronomia.Para Freire (ibid, p. 52), a conscincia do
oprimido se encontra geralmente dentro de um mundo mgico e mtico, o
que faz com que o destino, a sina, a vontade de Deus, sejam postos
como causa da opresso. Nesse caso a causa vista com carter mtico,
sendo assim, inacessvel, inatingvel, a mudana torna-se irrealizvel
e a heteronomia no superada. Esse "fatalismo" (ibid) um dos
principais perpetuadores de situaes de menoridade, de opresso, de
heteronomia, pois leva ao imobilismo. Outra caracterstica dos
oprimidos a "autodesvalia" (ibid, p. 55), ela ocorre quando o
oprimido introjeta a viso que o opressor possui dele. Da
consideram-se incapazes, enfermos, dizem no saber nada, etc. Para
superar a autodesvalia necessrio superar a viso mtica do mundo e
descobrir a verdadeira causa da opresso. Para Freire, na luta pela
libertao que comeam a crer em si mesmos e criam condies para
superar a condio de heteronomia.Um aspecto que contribui para a
continuidade de situaes ou condies de heteronomia a adeso do
oprimido ao opressor. O oprimido acaba adquirindo os valores dos
opressores, e assim o modelo de humanidade que vai procurar
realizar o do opressor. Passa a defender a viso individualista de
liberdade, o que lhe impede de lutar pela prpria libertao. "Em sua
alienao, os oprimidos querem a todo custo parecer-se com o
opressor, imit-lo, segui-lo" (FREIRE, 1980, p. 60). No momento em
que passam a desejar ser como o opressor, interiorizam suas opinies
e passam a desprezar a si mesmos, a se ver como incompetentes,
incapazes, etc. Isso representa uma espcie de "dependncia
emocional" (FREIRE, 1983, p. 57), e constitui uma forma de
heteronomia, j que o oprimido no busca ser ele mesmo e ser para si,
mas busca ser como o opressor, e dessa forma, acaba sendo para o
opressor. Muitas vezes, os oprimidos se reconhecem como tais e
buscam sair da opresso, mas isso, no contexto de contradio e
opresso em que vivem, significa ser opressor, por isso que libertao
precisa implicar em superao da contradio opressor-oprimido. a
superao da contradio que traz ao mundo o homem novo, no mais
oprimido nem opressor (cf. idem, p.36), o homem que para si, o
homem autnomo.CAPTULO III - A HETERONOMIA A QUE PAULO FREIRE SE
OPE
3.2 - MASSIFICAO E MEDO DA LIBERDADE
Paulo Freire (1983, p. 34) observou que em muitos oprimidos, o
que impede a libertao o medo da liberdade35, medo que os conduz a
manterem-se na situao de oprimidos, medo que impede a autonomia. O
medo da liberdade surge a partir da prescrio. "Toda prescrio a
imposio da opo de uma conscincia a outra" (idem). Por isso ela
alienante, faz com que uma conscincia "hospedeira" (ibid, p. 35), a
do oprimido, se guie por uma pauta estranha a si, a pauta dos
opressores. Dessa forma, o homem oprimido se encontra em uma situao
de heteronomia, j que sua conscincia pautada pelo outro (hetero)
que o oprime. Os oprimidos "(...) introjetam a 'sombra' dos
opressores e seguem suas pautas, temem a liberdade, na medida em
que esta, implicando na expulso desta sombra, exigiria deles que
'preenchessem' o 'vazio' deixado pela expulso, com outro 'contedo'
- o de sua autonomia" (ibid). De acordo com Freire (ibid, p. 36),
oprimidos vivem um trgico dilema entre querer ser e temer ser. Ao
se descobrirem oprimidos, descobrem que no so livres. A luta se
trava internamente, a vontade de serem autnticos, de expulsar o
opressor, de sair da