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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE DIREITO
AS PARCERIAS PBLICO PRIVADAS: INSTRUMENTO
DE UMA NOVA GOVERNAO PBLICA
MARIA EDUARDA AZEVEDO
Tese Orientada pelo Professor Doutor EDUARDO PAZ FERREIRA
DOUTORAMENTO EM DIREITO RAMO: CINCIAS JURDICO-ECONMICAS
2008
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Agradecimentos
A apresentao da presente dissertao de doutoramento animada
pelo
propsito de oferecer uma sistemtica de anlise da abordagem de
Parcerias
Pblico-Privadas, estruturada numa lgica de compreenso
jurdico-econmica
dos elementos relevantes.
Trata-se de uma deciso com um cunho marcadamente pessoal,
embora
influenciada de forma incontornvel por um leque de factores
externos que
determinam positivamente o sentido da escolha e ajudam no s a
superar os
aspectos mais complexos, mas tambm a atingir a elaborao final do
estudo.
Neste quadro, no queremos deixar de salientar os factores que se
nos
afiguram de maior relevo.
Em primeiro lugar, o significado de pertena comunidade
acadmica,
enquanto espao de reflexo, investigao e expresso da liberdade
de
pensamento, com uma responsabilidade mpar na educao dos cidados
e do
capital intelectual da sociedade.
Em segundo lugar, o exemplo transmitido pelos Senhores
Professores com
quem tivemos o privilgio e o prazer de aprender, em especial,
como
mestranda, e de trabalhar, como assistente.
Nesta medida, as nossas palavras iniciais de agradecimento so
devidas ao
Senhor Professor Paulo de Pitta e Cunha, com quem inicimos o
nosso
percurso docente e de quem absorvemos o gosto por um permanente
combate
de ideias e, bem assim, ao Senhor Professor Antnio de Sousa
Franco, a quem
prestamos uma singela homenagem com o presente relatrio centrado
em uma
rea relevante de Finanas Pblicas e Direito Financeiro, para cuja
elaborao
foi precioso o muito e profundo saber que nos legou.
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Em seguida, uma palavra especial de gratido , naturalmente,
devida ao
Professor Eduardo Paz Ferreira, que aceitou orientar a tese e
manteve uma
permanente disponibilidade para nos aconselhar e auxiliar, no
deixando nunca
de corresponder a qualquer solicitao que fizemos.
Mas, ao finalizar a elaborao de uma dissertao de doutoramento,
d-se por
concludo um perodo de investigao que nos confrontou com
mltiplas
dificuldades e em que se contraram outras inmeras dvidas de
gratido para
com quem, de modos diferentes, as tornou possvel superar.
Deste modo, no queremos deixar de salientar a ateno particular
que
encontrmos no Senhor Professor Paul Lignires, bem como nos
Senhores
Juzes Conselheiros Carlos Moreno e Jos Tavares e, atravs deles,
no prprio
Tribunal de Contas.
Por outro lado, impe-se agradecer tambm o auxlio recebido quer
da
Biblioteca do Centro de Estudos Fiscais, na pessoa do Dr. Joo
Paiva Bolo e
dos restantes funcionrios, quer da Biblioteca da Faculdade de
Direito, na
pessoa da Dr. Ana Martinho, quer, ainda, da Procuradoria Geral
da
Repblica, da parte das senhoras funcionrias da Direco de
Documentao,
cujas facilidades concedidas foram inestimveis no trabalho de
investigao
empreendido.
Por fim, as nossas ltimas palavras de agradecimento vo para os
dois pilares
fundamentais do equilbrio de um doutorando: a Famlia e os
Amigos. Neste
particular, uma referncia especial ao Jorge, pelo afecto e
sacrifcio com que
viveu trs anos de dedicao a este projecto e por nele termos
encontrado um
apoio permanente e incondicional, bem como uma estimulante e
sempre
esclarecida abordagem analtica do tema.
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Principais Abreviaturas e Siglas
AAAJ Accounting, Auditing & Accountability Journal
ACB Anlise Custo-Benefcio
Administ. Law Rev. Administrative Law Review
AID Associao Financeira para o Desenvolvimento
AJDA Actualit Juridique-Droit Administratif
Am.Econ.Rev. American Economic Review
Australian Ec. Rev. Australian Economic Review
BEI Banco Europeu de Investimentos
BJCP Bulletin Juridique des Contrats Publics
BM Banco Mundial
BMJ Boletim do Ministrio da Justia
Bol. Cien. Ec. Boletim de Cincias Econmicas
BOO Build, Owen, Operate
BOT Build, Operate,Transfer
BTO Build, Transfer, Operate
CDE Cahiers de Droit Europen
CESE Conseil conomique et Social Europen
CIPE Comitato Interministeriale per la Programmazione Economica
CNPF Conseil National du Patronat Franais
Col. J. Ec. Law Columbia, Journal of Economic Law
Col. J. Eur. Law Columbia Journal of European Law
CPA Cdigo de Procedimento Administrativo
CPC Custo Pblico Comparvel
CRP Constituio da Repblica Portuguesa
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CSP Comparador do Sector Pblico
DBFM Design, Build, Finance, Maintain
DBFO Design, Build, Finance, Operate
DCMF Design, Construct, Maintain, Finance
Dem. Dir. Democrazia e Diritto
EAR European Accounting Review
Ec. Journal Economic Journal
EFL External Financing Limits
ELRev. European Law Review
Ec. Persp. Economia e Perspectiva
ESA European System of Accounts
FAM Financial Accountability and Management
F&D Finance and Development
FDC Faculdade de Direito de Coimbra
FDUL Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
FDUCP Faculdade de Direito da Universidade Catlica Portuguesa
FMI Fundo Monetrio Internacional
Harv. Bus. Rev. Harvard Business Review
Harv. L. Rev. Harvard Law Review
IFLR International Financial Law Review
IGC Institut de la Gestion Dlgue
IJEB International Journal of Economic Business
IJPM International Journal of Project Management
IJPP International Journal of Public Policy
IMF International Monetary Fund
Int. Labour Rev. International Labour Review
JAPA Journal of the American Planning Association
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JCB Journal of Credit and Banking
JCMS Journal of Common Market Studies
JEL Journal of Economic Literature
JEP Journal of Economic Perspectives
JESP Journal of European Social Policy
JET Journal of Economic Theory
JF Journal of Finance
JFE Journal of Financial Economics
JLE Journal of Law and Economics
JLPEO Journal of Law and Political Economics & Organisation
JME Journal of Management in Engineering
J.Mon.Ec. Journal of Monetary Economics
JPE Journal of Political Economy
J.Publ. Economics Journal of Public Economics
JPF Journal of Private Finance
JPSM Journal of Public Sector Management
JTEP Journal of Transport Economics and Policy
JTP Journal of Theoretical Politics
Law Rev. Law Review
LEO Lei de Enquadramento Oramental
LEOE Lei de Enquadramento do Oramento do Estado
LIFT Local Investment Finance Trust
MBI Market Based Instrument
METP March dEntreprise de Travaux Publics
Mod. Law Rev. Modern Law Review
MOP Matrise dOuvrage Publique
NAO National Audit Office
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NTJ National Tax Journal
NYULRev. New York University Law Review
OE Oramento de Estado
OGC Office of Government Commerce
OREP Oxford Review of Economic Policy
Public. Adm. Rev. Public Administration Review
PSBR PSBR
PMM Public Money and Management
PO Plano Operacional da Economia
PMP Politiques et Management Public
Pol. Studies J. Political Studies Journal
PPP Parceria Pblico-Privada
Pub. Org. Rev. Public Organization Review
Publ. Pol. Adm. Public Policy and Administration
Publ. Pol. Rev. Public Policy Review
PwC PriceWaterhouseCoopers
QJE Quaterly Journal of Economics
RAE Revue des Affaires Europennes
RCP Revista de Cincia Poltica
RDCE Revista de Derecho Comunitrio Europeo
RDP Revista de Direito Pblico
RDPE Revista de Direito Pblico da Economia
RDPSP Revue de Droit Public et Science Politique
RDUE Revue du Droit de lUnion Europenne
RE Revue dconomie
REF Revista de Estdios Fiscales
REP Revue dconomie Politique
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Rev. Adm. Pol. Publ. Revista de Administrao e Polticas
Pblicas
Rev. Banca Revista da Banca
Rev. Banque Revue Banque
Rev.Dir. Ec. Revista de Direito e Economia
Rev. Dir. Publ. Ec. Revista de Direito Pblico e Economia
Rev. Ec. Dir. Revista de Economia e Direito
Rev. Econ. y Soc. Trabajo Revista de Economia y Sociologia del
Trabajo
Rev. Intern. Droit. Ec. Revue Internationale de Droit
conomique
Rev. Jur. Revista Jurdica
Rev. OA Revista da Ordem dos Advogados
RFDA Revue Franaise de Droit Administratif
RFECP Revue Franaise dtudes Constitutionnelles et Politiques
RFFP Revue Franaise de Finances Publiques
RIDC Revue Internationale de Droit Compar
RIDE Revue Internationale de Droit conomique
RIDPC Rivista Italiana di Diritto Pubblico Comunitario
RISA Revue Internationale de Sciences Administratives
Riv.Sc. Giu. Rivista di Scienze Giuridiche
Riv.Trim.Dir.Proc.Civ. Rivista Trimestriale di Diritto e
Procedura Civile
RLJ Revista de Legislao e Jurisprudncia
RMC et UE Revue du March Commun et de lUnion Europenne RMP
Revista do Ministrio Pblico
RSF Revue de Science Financire
RSJ Revista de Scientia Jurdica
RTDC Revue Trimestrielle de Droit Civil
RTDE Revue Trimestrielle de Droit Europen
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RTDP Rivista Trimestriale di Diritto Pubblico
RTE Redes Transeuropeias
SEBC Sistema Europeu de Bancos Centrais
SFI Sociedade Financeira Internacional
SNS Servio Nacional de Sade
SPV Special Purpose Vehicle
TC Tribunal de Contas
TIC Tecnologias da Informao e Comunicao
UE Unio Europeia
UEM Unio Econmica e Monetria
UNCITRAL United Nations Commission for International Trade Law
UNECE United Nations Economic Commission for Europe
VfM Value for Money
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Introduo
1. A escolha do presente tema para objecto de uma dissertao
de
doutoramento em Cincias Jurdico-Econmicas foi feita com a
conscincia de
que as Parcerias Pblico-Privadas (PPPs) so uma via alternativa
de
realizao de iniciativas pblicas centradas no investimento
infraestrutural e na
reestruturao dos modelos de prestao de servios pblicos, que
reclama
ainda uma reflexo jurdica adequada.
Uma carncia e apatia devidas, porventura, raiz gentica da
Private
Finance Initiative, enquanto epicentro do fenmeno PPP, que, como
Phillipe
Cossalter e Bertrand du Marais1 assinalam de forma impressiva,
se
desenvolveu originariamente num quadro de verdadeiro ascetismo
legal sob o
mote make deals, not rules, contribuindo para afirmar a
iniciativa britnica
conservadora num plano predominantemente econmico e retirando
premncia
construo de uma dogmtica jurdica prpria.
Nesta perspectiva, uma parte da Doutrina defende mesmo que as
PPPs
no constituem um objecto de direito2, encarando-as como um mero
modo
pragmtico e prtico de concretizar projectos de investimento
pblico.
Uma orfandade que no aceitamos uma vez que as Parcerias,
reguladas por um leque diversificado de normas jurdicas de
direito pblico e
direito privado que assumem, de forma varivel, caractersticas
com relevncia
econmica3, convocam uma abordagem de Direito da Economia que
entendemos, na linha de Sousa Franco4 como o ramo normativo do
direito que
disciplina, segundo princpios especficos e autnomos, a organizao
e a
actividade econmica.
1 Cf., Philippe Cossalter e Bernard du Marais, La Private
Finance Initiative, Institut de la Gestion Dlgue, Paris, 2001. 2
Cf., Paul Lignires, Partenariats Public-Privs, Paris, LITEC, 2 ed.,
2005, pp. XIII. 3 Esta constatao encontra-se, nomeadamente, em
Jean-Bernard Auby, no Prefcio a Partenariats Public-Privs, de Paul
Lignires, ob. cit., p. XI. 4 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de
Direito da Economia, Lisboa, AAFDL, vol. I, 1982-1983, p. 48.
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No mesmo sentido, a concepo do Direito da Economia como o
sistema resultante da ordenao de normas e princpios jurdicos, em
funo
da organizao e direco da economia5. De igual modo, as posies
que, no
respeito do ncleo central da formulao de Sousa Franco,
incorporam na
prpria definio os resultados da evoluo para uma sociedade em que
o
Estado no tem o exclusivo da disciplina da actividade
econmica,
respondendo assim o Direito Econmico s necessidades de uma
sociedade
em transformao6.
Deste modo, o Direito da Economia, ao consubstanciar um sistema
de
normas instrumentais de objectivos nitidamente definidos, que
ultrapassam a
dicotomia tradicional direito pblico/direito privado e promovem
a compreenso
das relaes fundamentais entre o direito e a economia no mbito de
um
verdadeiro encontro interdisciplinar, tem conhecido, como
fenmeno que se
manifestou no panorama jus cientfico da actualidade, uma evoluo
alicerada
em dados da cultura jurdica contempornea7.
Com o liberalismo, os Estados burgueses, empenhados em garantir
a
ordem social e a sociedade poltica, bem como a produo de bens
colectivos,
viram-se obrigados a prosseguir uma actividade de regulao e
ordenao
econmicas de modo a assegurar o respeito da regulamentao jurdica
que
visava a promoo dos valores constitucionais no sentido da plena
expanso
da autonomia privada, num ambiente de neutralidade, passividade
e
supletividade do sector pblico8. Um contexto em que as
codificaes
oitocentistas, com primazia para os Cdigos Civis, tiveram no
sculo XIX
preocupaes jus econmicas mais ou menos ntidas, configurando um
cenrio
fundamental para o emergir, em momento ulterior, do Direito da
Economia.
Mais tarde, depois do intervencionismo estatal haver provocado
a
desintegrao do substrato econmico, poltico e tico do Direito
Civil,
5 Cf., Antnio Menezes Cordeiro, Direito da Economia, Lisboa,
AAFDL, 1986, pp. 8 e ss. 6 Cf., Antnio Carlos Santos, Maria Eduarda
Gonalves e Maria Manuel Leito Marques, Direito Econmico, Coimbra,
Almedina, 2004, pp. 17 e ss., na linha de Champaud, Contribution la
Dfinition du Droit conomique, Paris, Recueil Dalloz, 1967, pp. 215
e ss. 7 Cf., Antnio Menezes Cordeiro, Direito da Economia, ob.
cit., pp. 73 e ss. 8 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito
da Economia, ob. cit., pp. 12 e ss.
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arrastando na queda as estruturas formais que envolviam a sua
implantao e
cristalizao nas codificaes civis9, o Direito da Economia
afirma-se e
autonomiza-se como um direito da interveno econmica do
Estado,
acompanhando a escalada da actuao pblica nos domnios
econmico,
social e cultural10.
Ento, esta viso de um direito do intervencionismo estatal
motivou
mltiplas crticas de Autores que, embora aceitando a existncia de
um Direito
Econmico autnomo, insistem na sua ligao com a liberdade de
empresa11
ou consideram que o acolhimento desta via seria limitativo ou
condicionaria
este ramo do direito12.
E, uma vez desvanecido o mito da interveno pblica, o Estado
reposiciona-se, comprimindo a sua interveno directa e retomando,
de forma
privilegiada, a fixao de quadros gerais para pautar o exerccio
da actividade
econmica privada e o seu espao de autonomia, mas reservando-se
agora o
poder de intervir afirmativamente como garante do respeito
dos
enquadramentos estabelecidos.
Porm, esse exclusivo da interveno disciplinadora da
actividade
econmica acaba por ceder, assistindo-se proliferao de formas
mais
abstractas e indirectas de regulao social, que viabilizam um
controlo jurdico-
poltico da auto-regulao social. Uma situao que reanima um debate
antigo
sobre o reconhecimento da existncia de uma pluralidade de
ordenamentos
jurdicos13.
9 Cf., Orlando de Carvalho e Antunes Varela, Direito Econmico,
So Paulo, Edio Saraiva, 1977, pp. 23 e ss. 10 Cf., Andr de.
Laubadre, Droit Public conomique, Paris, Dalloz, 1979, pp. 19 e
ss.; Robert Savy, Droit Public conomique, Paris, Dalloz, 1972, pp.
5 e ss.; A. Jacquemin e G. Schrans, Direito Econmico, Lisboa, Vega,
Universidade, 1979, pp. 53 e ss.; P. Benvenuti, Il Diritto
dellEconomia, Rivista Scienza Giuridiche. n 1, Anno XXXIV, 1997,
pp. 3 e ss.; Bruno Cavallo e Giampiero di Plinio, Manuale di
Diritto Pubblico dell Economia, Milano, Giuffr, 1983, pp. 183 e ss.
11 Cf., Berthold Goldman, La Libert du Commerce dans les Pays
Dvellops, in: Libert et Droit conomique, Bruxelles, De
Boeck-Wesmael, 1992, pp. 87 e ss. 12 Cf., Laurent Cohen-Tanugi, Le
Droit sans ltat. Sur la Dmocratie en France et en Amrique, Paris,
PUF, 1985, pp. 41 e ss. 13 A este respeito, nomeadamente, Del
Vecchio, Lies de Filosofia do Direito, Coimbra, Armnio Amado,
Coleco Studium, 1974, pp.510 e ss. (traduo de Antnio Jos
Brando)
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Assim, nos ltimos anos, num contexto de desinterveno estatal
na
economia e de reconfigurao do papel e das funes do sector
pblico, bem
como de reforo da contribuio dos agentes privados para a
governao
pblica, o novo relacionamento entre o Direito e a Economia volta
a suscitar o
alargamento do campo de reflexo do Direito Econmico e a reviso
dos seus
conceitos fundamentais.
No conjunto, trata-se de variaes no sentido do Direito Econmico
que
levaram van Themaat14 a colocar a hiptese da existncia de
ciclos,
semelhana dos ciclos da economia, e que so explicveis pelos trs
modelos
explicitados por Farjat15.
Neste contexto, as PPPs, enquanto uma forma de actuao
econmica
do Estado no actual panorama de globalizao de mercados, de
comprovadas
falhas de interveno estatal e de mercado, bem como de retraco
das
polticas pblicas, surgem na primeira linha da reafirmao do
Direito
Econmico, evidenciando a grande versatilidade e capacidade de
adaptao
deste ramo do direito s mutaes econmicas e sociais16,
projectando-se
tambm no campo da disciplina das Finanas Pblicas e do Direito
Financeiro,
chamada a absorver e regular o uso deste instrumento de vocao
financeira.
Na verdade, as Parcerias emergem, sobretudo, como uma
consequncia
da necessidade no s de reorientar e redimensionar o sector
pblico, mas
tambm de favorecer a participao da iniciativa privada na esfera
da
governao pblica17, tendo por base uma cooperao duradoura dos
agentes
pblicos e privados na proviso de infraestruturas e na prestao de
servios
14.Cf., P. ver Loren van Themaat, Les Rapports entre les Grandes
Prncipes de 1978, Leur volution dans le Temps et dans lEspace, ob.
cit., pp. 195 e ss. 15 Cf., G. Farjat, La Notion de Droit
conomique, Archives de Philosophie du Droit, Tome 37, 1992, pp. 27
e ss. 16 Desafios configurados por Laurende Boy, Le dfi dmocratique
de la mondialisation du droit conomique et le rle de la socit
civile, Revue Internationale de Droit conomique ns 3-4, Numro
spcial La Mondialisation du Droit conomique : vers un Nouvel Ordre
Public conomique, 2003, pp. 471 e ss.; Gerard Farjat, La mmoire du
Droit conomique, Rev. Intern. Droit Ec. ns 5-9, Numro Anniversaire
Bilan et Perspectives du Droit conomique, 2002, pp. 5 e ss. 17 Cf.,
Pedro Gonalves, Entidades Pblicas com Poderes Privados, Coimbra,
Almedina, 2005, pp. 13 e ss.
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pblicos mediante o recurso s capacidades de financiamento e
gesto do
sector privado.
Deste modo, inscrevem-se no mbito de uma estratgia que, ao
conjugar a privatizao de responsabilidades pblicas com a activao
de
responsabilidades privadas, associadas a uma redistribuio do
papel e das
responsabilidades do Estado e da Sociedade18, aponta de modo
indeclinvel
para o reforo da participao dos agentes privados na realizao do
bem
comum e na criao de bem-estar.
Em termos gerais, as PPPs propem-se combinar os pontos fortes
dos
sectores pblico e privado, partilhando riscos, em resposta s
falhas de
mercado mas minimizando as falhas de Estado, assumindo-se como
uma
terceira via que pretende superar a dupla lgica de predomnio do
mercado
versus interveno pblica e de substituio pendular de umas
imperfeies
por outras.
Logo, as PPPs representam tambm um instrumento pblico de
ndole
econmico-financeira que permite manter ou incentivar um ritmo
adequado de
investimento e modernizao dos servios pblicos, mesmo em condies
de
restrio oramental, procurando articular, em formatos variveis,
o
financiamento inicial e o pagamento final atravs do contribuinte
ou do utente,
tendo como ncora o financiamento prvio privado de acordo com
diferentes
matrizes de transferncia e partilha de riscos.
Nesta medida, a escolha pblica de prosseguir a via PPP
ditada
frequentemente pelo imperativo de limitar ou reduzir a presso
sobre a
despesa pblica de acordo com as polticas de conteno oramental
que, por
vrias razes, obrigam a generalidade dos pases, mormente, os
Estados
europeus sujeitos s exigncias decorrentes do Pacto de
Estabilidade e
Crescimento.
18 Sobre as dimenses da nova correlao entre o Estado e a
Sociedade no domnio da execuo de funes pblicas, Dolores Canais I.
Ametler, El exerccio por particulares de fonctions de autoridad,
Granada, Comares, 2003, pp. 72 e ss.
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14
Por fim, as Parcerias, assentes na mobilizao do financiamento
privado
e num relacionamento de longo prazo dos parceiros pblico e
privado,
envolvem a partilha de riscos entre as partes e o
estabelecimento de
compromissos financeiros que, quando implicam dispndio pblico,
alteram o
perfil e as caractersticas da despesa pblica, condicionando os
oramentos
futuros e requerendo do decisor pblico a avaliao dos custos e
benefcios
respectivos, em toda a sua dimenso e amplitude19.
Na verdade, embora as Parcerias repousem no recurso ao
financiamento
privado, tal no exclui que um amplo leque de esquemas contemple
uma
participao financeira do Estado com repercusso plurianual nos
oramentos
pblicos. Da que as parcerias devam suscitar um escrutnio
particular em
matria de disciplina e transparncia oramental, de controlo da
utilizao dos
dinheiros pblicos e, bem assim, de avaliao ex ante dos
projectos, seja do
ponto de vista da comportabilidade oramental, seja do respectivo
Value for
Money (VfM), tendo como pano de fundo a sustentabilidade das
finanas
pblicas e a equidade intergeracional.
2. Em matria de Relevncia e Actualidade do tema, perfilhamos a
viso
de que as PPPs constituem um fenmeno recente e em evoluo que, de
h
uns anos a esta parte, tem ganho uma expresso multisectorial e
mundial, ao
permitirem a prossecuo de polticas arrojadas de
desenvolvimento
infraestrutural e modernizao da prestao de servios pblicos em
condies
de restrio oramental, propondo uma abordagem alternativa s
formas
convencionais de montagem e implementao deste tipo de
iniciativas.
Ao reequacionarem e redefinirem o triplo vrtice
proviso-financiamento-
prestao de infraestruturas e servios pblicos, hoje as PPPs so
encaradas
como uma parte integrante das solues governamentais que visam
responder
19 Como sublinha John Clarke, Scrutinity through inspection and
audit, in: Public Management and Governance, London, Routedge,
2003, pp. 149 e ss., trata-se de um controlo a assegurar num quadro
de boa governao. No mesmo sentido, Michael Power, The Audit
Society, Oxford, Oxford University Press, 1997, pp. 24 e ss.
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15
premncia de superar os significativos dfices infraestruturais
que, escala
mundial, se observam na generalidade dos pases.
Em numerosos pases em desenvolvimento, as bases
infraestruturais
so incipientes e dbeis, representando um entrave e uma sria
condicionante
dos esforos gizados em prol do crescimento econmico. Por seu
turno, nas
naes mais desenvolvidas assiste-se necessidade de
redimensionamento e
renovao do parque infraestrutural, que mostram sinais de
acentuada
deteriorao e declino fsico aps dcadas de subinvestimento nas
infraestruturas econmicas e sociais por parte das autoridades
pblicas.
Num ambiente internacional em que a competitividade um
factor
decisivo de crescimento, torna-se imperioso inverter esta
tendncia e agir,
promovendo infraestruturas econmicas orientadas para o reforo
das
capacidades competitivas. Ao mesmo tempo, acresce que o
crescimento e
envelhecimento populacionais gerador, a par do consumismo, do
aumento
das exigncias colocadas aos servios pblicos, tanto em termos
quantitativos
como qualitativos, pretendendo-se satisfazer as expectativas
crescentes, mas
fugindo ao incremento da carga fiscal.
Presses que reclamam quer respostas menos complacentes com
as
imperfeies da gesto pblica, quer a procura de ganhos de
eficincia e
qualidade, rompendo com as formas tradicionais de prestao dos
servios
pblicos, cujo carcter monopolista, monoltico e burocrtico no
assegura uma
soluo adequada.
Assim, as PPPs configuram uma via alternativa exequvel e
abrangente
que, de forma paradigmtica, est ao dispor do decisor pblico para
mobilizar
as capacidades de financiamento e gesto do sector privado e
fomentar a
contestabilidade, franqueando a operadores privados a participao
na esfera
da prestao pblica.
Assumindo uma variedade de arranjos de natureza puramente
contratual
ou dando origem a formatos institucionalizados, o sector privado
tem a
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16
possibilidade de conceber, construir, financiar e explorar
activos infraestruturais
ou operar e gerir servios pblicos, que eram financiados
tradicionalmente
mediante recursos oramentais, com a execuo dos investimentos
contratada
ao sector privado e a explorao ou gesto cometida ao sector
pblico.
Em termos tpicos, as parcerias traduzem-se numa contratao global
de
longo prazo baseada em tcnicas concessrias, sendo os servios
contratados
prestados em nome do parceiro pblico directamente aos
utilizadores ou ao
prprio ente pblico, e o parceiro privado remunerado ora pela
cobrana de
tarifas aos utentes, ora por pagamentos pblicos em funo da
prestao
efectiva dos servios estipulados.
Para alm da sua pertinncia, as PPPs contemplam ainda traos
inovadores que apelam anlise e compreenso do que h de novo,
destrinando o ncleo dos elementos caracterizadores em presena
e
compaginando as respectivas implicaes nas sedes prprias.
Um aspecto inovatrio marcante o que se expressa no enunciado
do
princpio basilar de afectao dos riscos entre as partes e os
vrios
intervenientes, visando, no essencial, optimizar a matriz de
alocao numa
perspectiva de transferncia e partilha de riscos, no
proceder
necessariamente passagem, em quaisquer circunstncias, de toda a
lea
financeira para o operador privado, conforme era apangio da noo
pura de
concesso clssica.
Por outro lado, a introduo da abordagem PPP como uma poltica
transversal aplicvel aos vrios sectores da aco governativa
sugere a anlise
das condies em que esta opo se pode revelar superior s
prticas
tradicionais, cotejando as respectivas vantagens e
desvantagens,
nomeadamente na ptica do errio pblico e, em especial, quando est
em
causa optar por envolver recursos pblicos em uma ou outra via
para
concretizar um projecto determinado.
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17
Por fim, as PPPs inserem-se ainda na perspectiva geral de reforo
da
contribuio da iniciativa privada para a governao pblica,
incentivando a
colaborao entre os universos pblico e privado luz dos novos
credos de
redesenho do papel e das funes do Estado e de activao de
responsabilidades privadas, configurando no s um instrumento
privilegiado
ao servio das modernas finanas pblicas, mas tambm um veculo
de
assimilao dos valores e das prticas que enformam o new
public
management.
3. No presente estudo propomo-nos traar uma sistemtica de anlise
da
abordagem em PPP, estruturada numa lgica de compreenso
jurdico-
econmica dos elementos relevantes, no sentido mais exigente que
esta
expresso pode comportar20.
Para tanto, tomamos como base, exclusivamente, as Parcerias
de
natureza contratual, cuja raiz assenta na contratao de um
projecto de
parceria por um ente pblico a um parceiro privado, centrada no
fornecimento
de servios operacionais numa perspectiva de longo prazo,
consubstanciando
uma contratao global que se pretende mais eficiente do ponto de
vista
econmico21.
este o contributo que oferecemos, animados pelo propsito de
tornar
mais compreensvel o alcance e a riqueza deste instrumento e, bem
assim, as
suas possibilidades de explorao como um arranjo inovador entre
os sectores
pblico e privado, susceptvel de promover uma nova governao
pblica.
20 Sobre os sentidos que a qualificao jurdico-econmica
susceptvel de encerrar, cf., Antnio L. Sousa Franco, Noes de
Direito da Economia, vol. I, ob. cit., pp. 7 e ss e 52 e ss. De
qualquer forma, o estudo que empreendemos informado, naturalmente,
por uma metodologia jurdica que, no sentido e na perspectiva, segue
a orientao matricial traada por Eduardo Paz Ferreira, Direito da
Economia, Direito Econmico, AAFDL, 2001, p. 33, que, sem negar a
utilidade do recurso anlise econmica do direito como cincia
auxiliar, continua a sustentar a autonomia das normas jurdicas e a
funo conformadora que o direito exerce em relao actividade
econmica. 21 Cf., O. Hart, Incomplete Contracts and Public
Ownership: Remarks and an Application to Public-Private
Partnerships, Ec. Journal, vol.113, 2003, pp. 96 e ss.
-
18
4. Em termos Metodolgicos, o presente estudo apoia-se de forma
clara
numa perspectiva interdisciplinar de investigao, como prprio,
alis, da
abordagem de Direito da Economia.
Neste contexto, a especial nfase na anlise da dimenso
econmica,
que constitui um elemento incontornvel do processo de compreenso
e
apuramento da valia do fenmeno PPP, no significa, nem h-de
significar,
uma forma de secundarizao dos processos de construo jurdica.
Na realidade, o relevo dado s especificidades do quadro econmico
no
funcionamento do esquema das Parcerias no corresponde a uma
qualquer
diminuio de importncia das molduras legais indispensveis para
acomodar
os projectos, nem a uma desvalorizao dos cdigos inerentes a
verdadeiras
proposies normativas, antes consubstancia a associao de
elementos de
natureza econmica aos processos de base jurdica, tendo em vista
a
conjugao dos aspectos decisivos de ambas as reas.
Demais, esta coexistncia complexa que possibilita o
desenvolvimento
de um entendimento jurdico-econmico, tornando obrigatria a
montagem de
projectos em parceria quer a identificao das molduras legais
mais
adequadas, quer a busca das melhores solues econmicas consoante
os
objectivos a atingir por cada um.
Justifica-se, pois, a perspectiva apontada, tanto mais que, ao
no
questionar o peso muito significativo dos elementos econmicos na
construo
legal das Parcerias, esta anlise no deixa de atender s operaes
jurdicas e
problemtica que lhes est inerente.
Neste quadro, se a considerao dos modelos e objectivos das
Parcerias
torna natural a nfase posta nos elementos econmicos, a verdade
que se
impe considerar tambm o carcter decisivo seja das operaes
jurdicas,
seja dos aspectos metodolgicos, at mesmo como condio prvia
do
respectivo sucesso econmico, segundo defendem certos sectores do
universo
das PPPs.
-
19
Deste modo, possvel que esteja em definio uma via passvel de
prevenir o predomnio dos conceitos econmicos no enquadramento
das
PPPs, posio que encontra eco, alis, nas preocupaes, nas prticas
e nos
apelos de vrias Organizaes Internacionais22.
5. Em termos de Sistemtica do Objecto de Investigao,
propomo-nos
abordar as matrias relevantes segundo um encadeamento que
estabelece
vrios planos de anlise ao longo de quatro partes fundamentais,
conducentes
formulao de concluses.
A Parte I justifica-se pelo facto de as PPPs, ao inscreverem na
agenda
poltica uma reordenao de funes dos sectores pblico e privado
na
Economia e na Sociedade, tornarem de novo central a definio da
amplitude
dos dois universos, bem como os critrios de recorte das
respectivas esferas
de actuao.
Em causa est a questo do relacionamento entre ambos os
sectores
que, seguindo o pndulo da histria, tem conhecido oscilaes
cclicas,
inspiradas por razes de carcter filosfico-doutrinrio e motivaes
polticas,
dependendo essencialmente da opo das sociedades humanas pelo
recurso
actividade pblica ou privada para responder a necessidades
concretas.
Da que, sendo diversas as satisfaes proporcionadas por cada um
dos
universos, encontrar um princpio de equilbrio e conformar-lhe o
sistema
econmico-social haja representado um dos problemas fundamentais
de todos
os tempos. Afinal, com uma centralidade incontornvel, tais
relaes no
deixam de influenciar o ncleo das questes levantadas pela
actividade
econmica23.
22 A este propsito merecem referncia, designadamente, a Unio
Europeia, com as Guidelines for Successful Public-Private
Partnerships, e a ONU, atravs das suas Agncias, UNECE e UNCITRAL,
como sublinha H. Goldsmith e Mateus Turr, El papel de las
instituciones internatonales en el desarrollo de las asociaciones
publico-privadas, The Wall Street Journal, 21 July 2003. 23
Perspectiva-se aqui o ncleo das questes levantadas pela actividade
econmica do Estado, tal como sintetizadas por Stiglitz, Economics
of the Public Sector, New York-London, W.W.Norton & Company,
3rd.ed., 2000, pp. 3-7, 11-22, 55-90 e 127-149. No mesmo sentido,
Anthony Atkinson e Joseph Stiglitz, Lectures on Public Economics,
New York, McGraw-Hill, 1987, pp. 322 e 482 e ss.; John F. Due,
-
20
Neste quadro, reclamando a janela de Proust, vamos percorrer a
histria
econmica em busca do actual equilbrio entre os sectores pblico e
privado,
comeando a anlise pelo Liberalismo econmico firmado numa lgica
de
confrontao e clivagem entre os dois sectores, polarizando a
privatizao da
economia e a primazia do mercado na crena da sua capacidade
auto-
reguladora, face viso contrastante da absteno econmica do Estado
e da
neutralidade das finanas pblicas.
Em seguida, o Intervencionismo estadual que, considerando que
o
mercado no auto-regulado e reproduz desigualdades, reconhece ao
Estado
um papel central na estabilizao macroeconmica e na redistribuio
do
rendimento e dos servios. Ento, com esta inverso do paradigma, o
Estado
adquire a faceta de produtor e, mesmo, promotor do bem-estar
social,
passando a gozar de uma posio progressivamente crescente na
economia e
na prpria sociedade.
Por fim, ocupamo-nos da realidade econmica e social das
ltimas
dcadas, num ambiente em que o novo Estado mnimo no o apenas
por
opo ideolgica, mas tambm pela crise do Estado Providncia e
pela
acumulao de dfices pblicos, tornando imperativa uma reordenao
de
papis dos dois sectores luz dos novos credos sobre a dimenso
ptima do
sector pblico, baseada, sobretudo, em argumentos de
sustentabilidade das
finanas pblicas e apoiada pelo new public management.
Na Parte II a dimenso mundial das PPPs que vamos analisar,
tendo
presente que, para uma efectiva compreenso do fenmeno, se
afigura
indispensvel o conhecimento seja das suas origens, at pelo
papel
estruturante e enformador na conformao das polticas PPP, seja do
fruto da
ampla difuso de que a abordagem tem sido alvo, uma vez que nela
reside no
s uma importante fonte de inspirao e alimentao do esquema de
Government. Finance: Economics of the Public Sector, Illinois,
4th ed., 1968, pp. 22 e ss.; C. V. Brown e P. M. Jackson, Public
Sector Economics, Oxford, Martin Robertson & Company, 1983, pp.
22 e ss.; Robin W. Broadway, Public Sector Economics, Cambridge,
Massachusetts, Winthrop Publishers, 1979, pp. 34 e ss.; David N.
Hyman, Public Finance. A Contemporary Application of Theory to
Policy, New York, The Dreyden Press, pp. 4 e ss.
-
21
parceria, mas sobretudo a comprovao das suas potencialidades e
da
capacidade de resposta quando confrontada com uma diversidade
significativa
de cenrios em termos polticos, econmicos e jurdicos24.
S mesmo a impossibilidade, neste estudo, de dar testemunho
das
experincias PPP worldwide que impe conteno ao arrojo de ir
pelo
mundo ao encontro de uma metodologia espalhada de forma
inequvoca pelos
cinco Continentes, ultrapassando barreiras polticas e jurdicas.
Por isso,
seleccionamos alguns casos de referncia no tocante aos Pases e,
em matria
de Organizaes Internacionais, as que tm granjeado mais crditos
na
expanso e adopo da abordagem PPP.
Na Parte III considerada a experincia de Portugal, um dos
pases
europeus com uma maior percentagem de PPPs quer em relao ao PIB,
quer
em relao ao Oramento do Estado, onde a abordagem
reconhecidamente
uma realidade relevante, controversa e actual25.
O lanamento de Parcerias constituiu o factor motivador de
algumas
reformas legislativas importantes, cenrio em que sobressai a
aprovao da Lei
de Enquadramento Oramental que, de mritos indiscutveis como uma
boa
base de trabalho, no entanto no deixa de evidenciar algumas
fragilidades de
implementao, graves e perturbadoras na perspectiva de uma s
disciplina
oramental26.
Na Parte IV, com um carcter nuclear neste estudo, ocupamo-nos de
um
leque de instrumentos relevantes, que abordamos em termos de
anlise crtica.
24 Trata-se de uma ideia partilhada pelos estudiosos da
abordagem PPP que reputam essencial, para uma compreenso to ampla e
aprofundada quanto possvel, no s a apreenso do respectivo
desenvolvimento, corporizado no conhecimento quer de experincias
individualizadas e respectivas especificidades, quer da avaliao que
sobre elas haja sido realizada, quer, ainda, da consolidao e inovao
do adquiridoem matria de Boas Prticas. Cf., Frdric Marty, Sylvie
Trosa e Arnaud Voisin, Les Partenariats Public-Priv, Paris,
Collection Repres, La Dcouverte, 2006, pp.5 e ss. 25 Cf., Joaquim
Pina Moura, Modelos de Gesto e de Participao Privada no Sector
Pblico, in: O Estado no Sculo XXI: Redefinio das suas Funes?, INA,
Oeiras, 2005, pp. 47 e ss. 26 Neste sentido o TC, nomeadamente,
Auditoria aos Encargos do Estado com as Parcerias Pblico-Privadas
Concesses Rodovirias e Ferrovirias, Relatrio n 04/2007/2 seco,
Janeiro.2007, pp. 15 e 25-26, 34-35; Auditoria Gesto das Parcerias
Pblico Privadas Concesses Rodovirias, Relatrio n 10/2008/2seco,
Maro.2008, pp. 20-30, 40-46 e 65-66; Auditoria ao Projecto em PPP
do Novo Hospital de Cascais, Relatrio n 06/2008/2seco, Janeiro.
2008, pp.12-17.
-
22
Neste contexto, damos prioridade ao Posicionamento das PPPs,
entre as
privatizaes e a contratao pblica tradicional, identificando, em
especial, os
aspectos inovadores que so responsveis pela originalidade da
abordagem
em parceria.
Em seguida, relevamos a determinao do Conceito de PPP em
virtude
do seu carcter polissmico e, bem assim, da ausncia de uma noo
jurdica,
propondo a sua apreenso a partir de uma perspectiva stricto
sensu, mediante
a conjugao de um leque de caractersticas e objectivos
fundamentais,
enquanto critrios seguros e essenciais, quer de individualizao
da
abordagem, quer de destrina em relao a outras formas de cooperao
entre
as esferas pblica e privada, quer, ainda, de reconhecimento da
respectiva
identidade escala mundial e de adopo pelos ordenamentos
jurdicos
nacionais.
Em sede de Objectivos, introduzimos as Parcerias como o veiculo
que
permite prosseguir polticas de desenvolvimento infraestrutural e
de
modernizao e reestruturao das formas de prestao de servios
pblicos,
no quadro da disciplina oramental dominante e da reequao e
redefinio do
trinmio proviso-financiamento-prestao da interveno pblica no
domnio
dos servios pblicos. Um cenrio em que a abordagem PPP visa dotar
o
sector pblico de uma capacidade acrescida de realizao de
projectos e gerar
ganhos de valor para o errio pblico.
No tocante Dimenso Jurdica, comeamos por introduzir a
necessidade
quer de um enquadramento legal e institucional adequado ao
lanamento e
aprofundamento de uma poltica PPP, quer, em termos operacionais,
a
presena de Unidades Dedicadas e especializadas.
Em seguida, tendo o fenmeno PPP emergido num ciclo de
ressurgimento
do contrato, justifica-se que discorramos sobre o contributo que
as parcerias
tm emprestado revitalizao deste instituto atravs do seu
dinamismo
contratual. E, na ausncia de um modelo contratual especfico de
dimenso
universal para acomodar os projectos PPP, centramo-nos na
concesso,
-
23
apurando a influncia da PFI na recente metamorfose deste
instituto, sem
embargo de assumirmos que a realizao de parcerias admite a
utilizao de
um leque de outras estruturas contratuais, desde que respeitam
um ncleo
central de princpios que representam o cerne das parcerias.
Por sua vez, no tocante Vertente Econmica est em causa a
afirmao
das Parcerias como um instrumento de interveno pblica com
caractersticas
econmicas prprias, que visam mitigar falhas de mercado no mbito
da
proviso de infraestruturas e servios pblicos, distinguindo-se
tanto da
proviso pblica tradicional, como da proviso privada. Um quadro
em que as
parcerias procuram conjugar a eficincia de afectao do sector
pblico com a
eficincia produtiva do sector privado, pretendendo gerar uma
combinao
mais virtuosa do que a proviso pblica tradicional.
Ento, o interesse microeconmico das PPPs resulta do valor
acrescentado aduzido pela participao privada em termos de ganhos
de
produtividade e eficincia gerados na cadeia de produo e prestao
dos
servios. Todavia, a par dos benefcios, importa relevar o reverso
em termos de
custos, seja de custos de transaco, seja de o recurso ao
financiamento
privado tender a ser mais caro do que o endividamento
privado.
Por fim, indispensvel percorrer ainda a questo da Demonstrao
de
VfM, uma vez que a via PPP enuncia uma nova proposta de valor
para o errio
pblico com base numa frmula diferente de relacionamento entre os
sectores
pblico e privado, pretendendo proporcionar acrscimos de valor
para o sector
pblico face s linhas de montagem tradicionais.
Nesta medida, enquanto uma opo alternativa, a escolha da via PPP
h-
de, em cada caso, passar um duplo teste: por um lado, revelar-se
mais
suportvel em termos oramentais e, por outro, mostrar-se
susceptvel de
proporcionar ganhos acrescidos de VfM.
-
24
-
PARTE I EM BUSCA DO EQUILBRIO
ENTRE OS SECTORES PBLICO E PRIVADO
-
27
Captulo I Estado e Sociedade: Pblico versus Privado
1. Enquadramento
Nos fins do sc. XVIII e durante o sc. XIX, nos pases que
conheceram a
revoluo industrial nasceu o capitalismo liberal, que no plano
filosfico-poltico
adoptou a prefigurao Indivduo Sociedade Estado, como
sustenta
Rogrio Soares27, manifestada no pensamento dos enciclopedistas,
mais
concretamente em Locke, Montesquieu e Rousseau, abrindo o
caminho a uma
nova ordenao social28, e ao nvel econmico teve a teorizao nas
obras dos
clssicos ingleses Adam Smith, Ricardo e Stuart Mill e do francs
Jean-
Baptiste Say, defendendo a primazia do mercado e fazendo a
apologia do
Estado mnimo29.
Ento, o jusnaturalismo, a soberania nacional, a ideia de
liberdade, bem
como o princpio da igualdade, constituram o terreno ideolgico
sobre que se
edificou o Estado a que as revolues liberais vieram dar
origem30.
Revolues, cujas principais inovaes residiram no s na consagrao
dos
27 Uma nova racionalidade que repousou no indivduo livre,
isolado e igual; na sociedade enquanto somatrio de indivduos; na
comunidade, como o rbitro dos comportamentos individuais; e no
Estado, com um papel muito reduzido, que se limitava a promover a
garantia e permanncia da ordem jurdica. Por isso Rogrio Ehrhardt
Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, Coimbra, Ed. Biblioteca
Jurdica, 1969, pp. 39 e ss, defende que os quadros poltico-jurdicos
do Estado contemporneo foram criados principalmente para dar
satisfao s necessidades da ascenso da burguesia na sua luta contra
as formas monrquicas de governo, no como a decorrncia de uma espcie
de direito natural. 28 Cf., Fernando Vallespin, Contrato Social y
Orden Burgues, Rev. de Estudios Polticos, Centro de Estudios
Constitucionales, Nueva Epoca n 38, 1994, pp. 147 e ss. 29 Como
refere Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico. A Ordem Econmica
Portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 4 ed., 1994, pp. 42 e ss., se
a nsia e libertao do indivduo e da sociedade em relao ao poder
absolutista do Prncipe se sentiu em todos os campos, no subsistem
dvidas de que foi ao nvel do econmico que adquiriu maior incidncia
e relevo. 30 Cf., Maria da Glria Ferreira Pinto Dias Garcia, Da
Justia Administrativa em Portugal, Lisboa, Universidade Catlica
Editora, 1994, pp.271 e ss.; Diogo Freitas do Amaral, Curso de
Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, vol. I, 1986, pp. 75 e
ss.
-
28
direitos dos cidados perante o poder, mas tambm na pretenso de
os libertar
do Estado, colocando-os fora da respectiva rea de
interveno31.
De facto, a primeira motivao dos movimentos revolucionrios
radicou na
ruptura com certos privilgios de classe e, muito em especial, na
eliminao
dos limites s actividades comercial e industrial de uma
reivindicativa burguesia
em manifesta ascenso, que invocou a razo e o direito natural
como
sustentculo das suas pretenses.
Alis, foi a necessidade de libertar a produo e o lucro dos
poderes
intervencionistas do Estado absolutista que colocou esta classe
na primeira
linha do combate pela libertao dos poderes do Prncipe, exigindo
a
participao nos negcios estaduais e reclamando o reconhecimento e
a
garantia dos Direitos do Homem, designadamente a liberdade e a
propriedade
individual32.
2. O Primado do Mercado Auto-Regulado e a Absteno Econmica do
Estado
Para concretizao dos propsitos fomentadores dos movimentos
revolucionrios, os clssicos promoveram a separao rgida entre as
esferas
pblica e privada, realizando entre os dois sectores uma fractura
radical que,
como a generalidade das instituies polticas do liberalismo,
serviu a
burguesia ascendente na luta contra as formas de poder
monrquico
absolutista33. Ao mesmo tempo, o binmio pblico-privado arrastou
novas
dicotomias, como lei-contrato, sociedade de iguais-sociedade de
desiguais,
justia comutativa-justia distributiva, enquanto expresso dos
novos valores e
dos novos instrumentos ao servio da sociedade liberal34.
31 Cf., Jos Carlos Vieira de Andrade, Os direitos fundamentais
no mbito da Constituio Portuguesa de 1976, Coimbra, Almedina, 1983,
pp.57 e ss. 32 Cf., Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico, ob. cit.,
p. 51. 33 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares, Princpios da Legalidade e
Administrao Constitutiva, FDC, Bol. vol. LVIII, 1981, pp. 169 e ss.
34 Deve-se a Norberto Bobbio, Stato, Governo, Societ, Enclopdia
Einaudi, vol.14, Estado-Guerra, Lisboa, INCM (trad. port.) 1989,
pp. 178 e ss., uma anlise especialmente clara de como a dicotomia
pblico-privado, caracterstica nuclear da organizao do Estado
liberal, acarretou todo um conjunto de dicotomias.
-
29
Desenhou-se um cenrio em que foi determinante a proclamao de
um
omnipotente sector privado, com a contraposio em um diminudo,
quase
inexistente, sector pblico, cuja dimenso no ultrapassou em regra
nveis de
10 a 12% do PIB. E, uma vez assumida a supremacia da esfera
privada, a
ortodoxia econmica liberal ocupou-se em moldar rigorosamente as
reas de
aco e as funes de cada um dos universos, condicionando o
respectivo
papel e articulao.
Ento, promoveu-se a separao rgida entre o Estado e a
Sociedade35,
como pilar da construo poltica liberal, assente na dicotomia
entre os
sectores pblico e privado e em relaes baseadas numa lgica de
confrontao e excluso, que teve implcito o monoplio do espao
pblico pelo
Estado, e a actuao estadual determinada pelo interesse
pblico,
representando a Sociedade, liberta de intromisses do poder
poltico, o espao
de actuao privada, prosseguindo valores identificados
exclusivamente com a
satisfao de interesses privados36.
Com o triunfo do iluminismo e a separao das esferas pblica e
privada,
a nova ordem instalada e, bem assim, a ideologia que a promoveu
e sustentou
trouxeram um sopro emancipatrio que alterou profundamente a
imagem do
homem, como nota Barcellona37, enquanto senhor do seu destino,
sujeito da
liberdade e da propriedade, titular, face ao Estado, de direitos
e interesses
individuais que, em competio com os demais, podia satisfazer por
iniciativa
prpria no quadro de leis universais38.
Neste contexto, dominado pela necessidade de consolidar o
crescimento
com base na liberdade econmica das empresas, consumidores e
detentores
dos factores de produo e na economia privada, a primeira fase do
regime
35 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares, Direito Pblico e Sociedade
Tcnica, Coimbra, Atlntica Editora, 1969, pp. 39 e ss. 36 Cf., Pedro
Gonalves, Entidades Privadas com Poderes Pblicos, ob. cit., pp.
42-43 e 140-141. 37 Cf., Pietro de Barcellona, La metamorfose del
soggetto e il principio proprietario, Dem. Dir., 1986, pp. 230 e
ss. 38 Como defende, Fabrice Tricou, Le libralisme conomique
consquentialistte et les conceptualisations du march, in : La
lacit, Archives de Philosophie du Droit, Tome 48, Paris, Dalloz,
2004, pp.331 e ss., na rea da utilizao dos recursos e da movimentao
de bens, o ideal da autodeterminao individual casou-se com o
postulado bsico de que da livre manifestao de preferncias
individuais era resultado do bem-estar colectivo.
-
30
capitalista correspondeu a um modelo econmico conforme com o
lema
laissez-faire, laissez-passer le monde va de soit39, que
assentou no mercado,
na livre concorrncia e respectiva capacidade para gerar
equilbrios
automticos40; em comportamentos individuais que, apesar de
ditados
exclusivamente pelo interesse pessoal, eram capazes de assegurar
de forma
espontnea41 o equilbrio geral por via de uma mo invisvel42 e,
ainda numa
ordem natural de origem metafsica e divina43.
Um esquema em que o consumidor se afirmou enquanto detentor
do
poder econmico e o mercado como o instrumento de direco e
controlo da
economia; tendo o contrato passado a constituir o instrumento
jurdico por
excelncia para regular os negcios privados e devendo os
agentes
econmicos aproveitar plenamente a amplitude concedida pelos
princpios da
liberdade de contratar e da autonomia da vontade44.
Causa e efeito da construo liberal, a no interveno do Estado na
vida
econmica representou um elemento nuclear porquanto, como
sustentava
Adam Smith, o Estado era por natureza inadequado s funes
39 A este propsito, Adam Smith dizia que a poltica do
laissez-faire assentava no princpio da identidade natural dos
interesses privados e pblicos. Por isso, apontava a concorrncia
para fazer baixar espontaneamente os preos ao nvel do custo de
produo, a oferta para garantir a resposta procura por fora de um
mecanismo automtico, e os capitais a orientarem-se naturalmente
para as aplicaes melhor remuneradas. 40 Como sublinha Vital
Moreira, Auto-Regulao Profissional e Administrao Pblica, Coimbra,
Almedina, 1997, pp. 20 e ss., o paradigma doutrinal clssico no se
limitou a sustentar que a economia no carecia de ser regulada,
prescrevendo antes que no devia ser hetero-regulada para no se
desregular o seu funcionamento, visto que toda a regulao artificial
implicaria a perturbao da regulao natural inerente ao sistema. 41 A
ideia de espontaneidade das instituies econmicas foi uma daquelas
em que Smith insistiu frequentemente. Para se organizar, o mundo no
precisava de nenhum acordo prvio entre os homens. 42 A mo invisvel
apareceu ligada frequentemente atribuio a Smith de posies
favorecendo o egosmo (no que o confundem com Hobbes), ou advogando
um liberalismo desregulado. Essas ideias nasceram sobretudo do
facto de ter atribudo ao interesse pessoal um lugar de destaque na
sua anlise do comportamento social do Homem. No entanto, defende
Joo Csar das Neves, Uma Galeria de Arte. Visita guiada aos grandes
marcos da histria da economia, Lisboa, Editorial Verbo, 1995, p.
24, que Smith colocou o conceito de interesse prprio no seu lugar
adequado, isto , entre as virtudes humanas. No se tratou, pois, de
um interesse egosta ou selvagem, mas antes de uma regra de
comportamento em sociedade. 43 No sculo XVIII, considerava-se bom
tudo que fosse natural e espontneo. Natural, justo, vantajoso eram
termos que se empregavam frequentemente, como sinnimos. Adam Smith
no escapou a esta associao de ideias. E assim, mostrando a origem
natural das instituies econmicas, parecia-lhe provar, ao mesmo
tempo, o seu carcter til e benfico. 44 A iniciativa privada
concretizava-se numa srie de princpios, entre os quais assumiam
particular destaque: a liberdade de contratar, a liberdade de
trabalho e a liberdade de empresa. Cf., Antnio L. Sousa Franco,
Finanas Pblicas e Direito Financeiro, Coimbra, Almedina, 1992, 4
ed., vol. I., p.49, No mesmo sentido, Eduardo Paz Ferreira, Direito
da Economia, ob. cit., pp. 36 e ss.; Manuel Afonso Vaz, Direito
Econmico, ob. cit., p. 46.
-
31
econmicas45. Da que o liberalismo se haja pronunciado decidida
e
vigorosamente contra o exerccio de funes produtivas do Estado
que, ao
invs do papel desenvolvido durante o mercantilismo, devia no s
demitir-se
de qualquer participao na actividade econmica e social para no
falsear as
leis do mercado, mas tambm alienar o patrimnio e deixar agir
livremente as
foras do mercado e a concorrncia, sem pretender modificar o
livre
comportamento dos agentes econmicos privados46.
No quadro da proclamada absteno econmica pblica, uma vez que
o
funcionamento dos mercados requeria a defesa da propriedade
privada, da paz
e da estabilidade social para permitir relaes contratuais
estveis e a livre
circulao de pessoas e bens, a actividade do Estado restringiu-se
a assegurar
a proviso dos bens pblicos indispensveis: defesa e segurana
interna, leis,
tribunais e administrao da justia, bem como um conjunto de
infraestruturas
essenciais47. Nesta medida, o Estado mnimo viu-se reduzido a
uma
dimenso meramente formal, confinado a um modelo terico,
abstracto e
utpico, acatando pressupostos que se vieram, porm, a revelar
falaciosos48.
Assim, o pensamento clssico foi preciso quer quanto ao papel e
funo
da iniciativa privada e do mercado para atingir nveis mximos de
bem-estar
social, entendido como o somatrio de satisfaes individuais, quer
em relao
no actuao econmica do Estado, em si um factor perturbador
das
condies de concorrncia, quer, ainda, no tocante despesa pblica,
um mal
do ponto de vista financeiro49.
45 Como defendem Paulo Trigo Pereira, Antnio Afonso, Manuela
Arcanjo e Jos Carlos Gomes Santos, Economia e Finanas Pblicas,
Economia e Finanas Pblicas, Lisboa, Escolar Editora, 2005, Adam
Smith considerava que existia um sistema de liberdade natural que
passava por o Prncipe no interferir com as actividades produtivas
da populao. Na mesma linha, Ricardo, parafraseando uma regra de
ouro financeira enunciada por Jean-Baptiste Say, defendia que o
melhor de todos os planos financeiros consistia em gastar pouco e o
melhor de todos os impostos era o que proporcionava menores
receitas. 46 Estas exigncias dirigiam-se contra o Estado que
haveria de restringir-se a funes segundo o ideal do Estado jurdico
kantiano, ou seja, garantir a cada indivduo a liberdade, a
igualdade e a independncia. 47 Neste sentido Pedro Gonalves, A
Concesso de Servios Pbicos, Coimbra, Almedina, 1999, p.101. 48 Cf.,
Manuel Afonso Vaz, Direito Econmico, ob. cit., p. 49. 49 Foi por
isso, como defende Paulo de Pitta e Cunha, Introduo Poltica
Financeira, CCTF n 99, pp.25 e ss., que as finanas pblicas liberais
tiveram na passividade, no isolamento e na simplicidade as trs
caractersticas fundamentais. Afinal, com a total privatizao da
economia e as restries levantadas aco do Estado, a doutrina clssica
foi um verdadeiro bastio da liberdade econmica individual,
representando uma clara rejeio da poltica mercantilista e do
sistema econmico nela inspirado.
-
32
3. A Neutralidade das Finanas Pblicas
No plano financeiro, o rico e profundo pensamento da Escola
clssica
defendeu a total autonomia das finanas pblicas em relao
economia,
reas regidas por princpios especficos, tendo desenvolvido uma
separao a
que se atribuiu no raras vezes um carcter axiomtico50.
O Estado, alm de improdutivo, porque incapaz de criar
utilidades
superiores s que consumia, era tambm um mau gestor da coisa
pblica, pelo
que a actividade financeira liberal foi andina, inspirou-se no
ideal da
neutralidade e acabou reduzida simples satisfao das
necessidades
financeiras. Nestes termos, como assinala Sousa Franco51, as
instituies
pblicas estavam inibidas de propor-se alterar ou comandar,
estimular ou
dissuadir a actividade econmica privada, devendo ainda, a par da
estrita
neutralidade, rejeitar qualquer propenso para a definio de
polticas
financeiras.
A boa gesto da coisa pblica constituiu, portanto, uma
exigncia
primordial, sendo o equilbrio do oramento anual uma regra
poltica sagrada
de escrupulosa observncia a regra de ouro das finanas clssicas.
Assim,
como refere Pitta e Cunha52, o nivelamento anual entre as
receitas normais e
as despesas totais foi a condio indispensvel para o exerccio da
fiscalizao
correcta e eficiente do modo de obteno e aplicao dos dinheiros
pblicos.
Os argumentos de ordem econmica invocados decorriam da viso
esttica e optimista da escola clssica inglesa, tendo o dogma
liberal do
equilbrio do oramento representado uma barreira contra a
interferncia do
50 A separao radical de que fala. Sousa Franco, Finanas Pblicas
e Direito Financeiro, vol. I, ob. cit., p.54: separao
cientfico-administrativa; separao no plano dos princpios
inspiradores; separao, ainda, entre gesto financeira e a actividade
econmica. 51 Como sublinha Antnio L. de Sousa Franco, Finanas
Pblicas e Direito Financeiro, vol. I, ob. cit., p. 58, a nica
poltica financeira do liberalismo seria que no devia haver poltica
financeira, no sentido intervencionista e voluntarista. Alis, a
pretenso de ver os poderes pblicos fora da rbita do econmico
correspondeu ao que poderia designar-se por dirigismo negativo
(Huber) ou, como refere Mota Pinto, Direito Econmico Portugus.
Desenvolvimentos Recentes, FDC, Separata do Bol. vol. LVII, 1982,
p. 9, em que a forma de o Estado intervir ter decidido no intervir
na vida econmica, retirando-se para uma posio de observador. 52
Cf., Paulo de Pitta e Cunha, Equilbrio Oramental e Poltica
Financeira Anticclica, CCTF n 3, 1962, pp. 27 e ss.
-
33
Estado na vida econmica. Alis, a experincia histrica mostrou que
os
Governos propendiam para a realizao de gastos improdutivos, razo
pela
qual o abuso do dfice oramental induzia inevitavelmente os
Governos
realizao de despesas desregradas e sumpturias.
Por seu turno, os sistemas fiscais do liberalismo tributaram
relativamente
pouco as actividades empresariais e o trabalho, incidindo em
especial sobre a
riqueza das classes agrrias e dos consumidores. Nesta medida,
rejeitada a
utilizao do imposto como um instrumento de realizao da justia e
da
redistribuio da riqueza, para assegurar uma tributao justa
bastava garantir
o respeito da igualdade formal perante a lei e manter um nvel
moderado de
tributao, como sustenta Sousa Franco53, impondo-se o respeito do
princpio
da legalidade financeira, traduzido desde logo na exigncia da
aprovao
parlamentar dos impostos.
.
Idntico o procedimento em relao emisso de emprstimos pblicos
com a consequente inscrio oramental, que visou a publicidade
e
transparncia das operaes de modo a tornar possvel a todos os
cidados o
respectivo conhecimento54.
Configurou-se assim uma forma de conter o Estado dentro de
limites e
evitar a imposio de sacrifcios excessivos aos cidados,
reduzindo-os ao
mnimo possvel55. Ao mesmo tempo, procurou-se tambm que a
autorizao
parlamentar permitisse assegurar a realizao da operao no
efectivo
interesse da Nao que, por isso, assumiu as responsabilidades
emergentes56.
53 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e
Direito Financeiro, FDL, 1972, vol. I, p. 437. Assim, no
estabelecimento dos impostos havia que observar as quatro regras de
Adam Smith: regra de justia, como imperativo tico de acordo com o
qual o sistema fiscal devia fazer impender sobre cada contribuinte
um sacrifcio adequado s suas possibilidades; regras de comodidade e
certeza, critrios facilitadores da vida dos contribuintes; e regra
da igualdade de todos perante o imposto, resultado da a abolio
liberal dos privilgios. Tanto a justia, como a igualdade impunham
que o imposto fosse proporcional. 54 Cf., Pedro Soares Martinez,
Actualidade das Regras Oramentais, Jornal do Foro, 1956, pp. 353 e
ss. 55 Neste entido, Eduardo Paz Ferreira, Ensinar Finanas Pblicas
numa Faculdade de Direito, Coimbra, Almedina, 2003, pp.175 e ss. 56
Como defende Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e Das Garantias
dos Credores do Estado, Coimbra, Almedina, 1995, p. 314 e ss.
-
34
De facto, com os clssicos foi veemente a condenao quer da
despesa
pblica, entendida como um mal, quer do emprstimo pblico,
encarado como
um imposto diferido, como sustenta Paz Ferreira57. Na verdade,
os financeiros
liberais conferiam j despesa pblica uma importncia decisiva,
entendendo
que em matria de finanas pblicas as receitas deviam ser
determinadas
pelas despesas, supondo estas a privao de poder de compra
dos
particulares mediante a cobrana dos impostos58.
Deste modo, no s a despesa pblica conduzia diminuio da
despesa
privada, como tambm o Estado, enquanto mau gestor e propenso
ao
desperdcio, dava aos meios assim obtidos uma utilizao
inevitavelmente
menos proveitosa.
Embora um mal, a despesa pblica no deixou, porm, de se
mostrar
necessria na ptica clssica, devendo o Estado exercer a
actividade
financeira em domnios que ou no eram atractivos para a
iniciativa privada, ou
em que a sua aco era insubstituvel, apesar de semelhante
carcter
economicamente nocivo exigir a reduo ao mnimo dos gastos com
a
satisfao das necessidades pblicas, para cuja realizao no
influam
quaisquer consideraes de ordem econmica.
Dada a viso axiomtica de que o consumo do Estado era
necessariamente menos vantajoso do que o dos particulares e
desconhecendo
o efeito indutor da despesa pblica para repor os rendimentos
obtidos no
circuito econmico, os clssicos postergaram necessariamente a
contraco de
emprstimos, visto que limitados transferncia intergeracional de
encargos.
57 Segundo Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e das Garantias
dos Credores do Estado, ob. cit., pp.47 e ss., o primeiro bloco
slido de doutrina contrria ao endividamento pblico foi formado
pelos economistas clssicos, em particular por Adam Smith, Ricardo e
Hume, que desenvolveram uma teoria particularmente pessimista sobre
o recurso ao crdito pblico, pelas consequncias negativas, quer
econmicas, quer polticas. 58 Os preconceitos liberais em matria
econmica ditavam a ideia do Estado-conumidor, capaz de destruir
riqueza atravs das despesas realizadas. Neste sentido, Paulo de
Pitta e Cunha, Introduo Poltica Financeira, CCTF n 99, sendo o
Estado encarado, na concepo clssica, como uma entidade que
conseguia anular os rendimentos absorvidos aos particulares, que
teriam tornado possvel a satisfao das necessidades individuais.
-
35
Nesta mesma perspectiva, o recurso criao da moeda foi tambm
energicamente rejeitado, uma vez que a moeda devia permanecer
neutra para
evitar a ecloso de movimentos inflacionistas. A cobertura das
despesas
pblicas pelo recurso a adiantamentos dos bancos centrais
equivalia a um
imposto injusto e dissimulado.
No quadro de uma rgida separao entre os sectores pblico e
privado, o
Estado liberal, dominado pelas regras do mnimo econmico e da
neutralidade
financeira, dotou-se de um sector pblico de dimenso igualmente
mnimo.
Alis, a imposio do equilbrio formal do oramento representou, s
por si, um
poderoso argumento dissuasor, porventura um travo, a qualquer
pretenso de
crescimento da dimenso do sector pblico.
A supremacia do universo privado sobre o pblico foi assegurada
pelo
rigoroso respeito do princpio da legalidade, a pedra-angular da
construo do
Estado liberal e do direito administrativo, garantindo a
existncia de uma
Administrao pblica condicionada59 e com uma frgil autonomia em
relao
ao poder legislativo Um princpio que, alm de exigir que os
actos
administrativos no fossem contrrios lei, implicava tambm a
actuao da
Administrao apenas para suportar a respectiva execuo, como
defende a
melhor doutrina60, promovendo a certeza e a estabilidade to
vitais
segurana e resposta aos anseios da burguesia.
Neste contexto, o paradigma clssico de separao Estado
Sociedade
sups o monoplio estadual do poder poltico e da Administrao
pblica, bem
como a excluso das foras sociais quanto realizao das tarefas
administrativas. O Estado foi o espao da titularidade e do
imprio do interesse
geral, e a Sociedade, o espao da liberdade, da diversidade, da
luta pelos
interesses particulares. Entre estes dois mundos no podia haver
mistura.
59 Cf., Jos Marnoco e Sousa, Direito Poltico, Coimbra, Frana
Amado, 1910, pp. 681 e ss. 60 Cf., Marcelo Caetano, Manual de
Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, 10 ed., vol. I, pp. 28 e
ss; Srvulo Correia, Os Princpios Constitucionais da Administrao
Pblica, in: Estudos sobre a Constituio, 3 vol. Lisboa, 1979, pp.
661 e ss.; Rogrio Ehrardt Soares, Direito Administrativo
Apontamentos policopiados das lies proferidas no Curso de Direito
do Porto da Universidade Catlica, 1980, p. 44; Massimo Severo
Giannini, Tratato di Diritto Amministrativo, LAmministrazione
Pubblica dello Stato Contemporaneo, vol. Primo, Padova, CEDAM,
1999, pp.27 e ss.
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36
Conforme sustenta Figueiredo Dias, defendeu-se um Estado mnimo e
uma
Sociedade mxima61.
Quando confrontado no s com a introduo das inovaes
tecnolgicas
fruto da revoluo industrial, e a consequente aplicao em
equipamentos de
uso colectivo, mas tambm com a existncia de falhas de mercado62,
o Estado
liberal viu-se duplamente incapaz de realizar a proviso de
infraestruturas
essenciais ao funcionamento e desenvolvimento dos mercados,
nomeadamente em matria de transportes e comunicaes. Tratou-se,
por um
lado, de razes ideolgicas associadas proibio de envolvimento do
poder
pblico na esfera econmica e, por outro, de limitaes oramentais e
de
disciplina financeira.
Ento, viveram-se os anos gloriosos da concesso63, o
instrumento
jurdico do capitalismo liberal, uma tcnica de gesto dos servios
pblicos por
sujeitos privados ligada s iniciativas que visaram a implantao e
explorao
de novas infraestruturas industriais destinadas a satisfazer
necessidades
colectivas a cargo do Estado. Iniciativas em que as empresas
privadas
financiaram e executaram as obras pblicas indispensveis,
obrigadas a
comportarem-se como colaboradores da Administrao e ficando
sujeitas,
enquanto tais, definio unilateral das exigncias do interesse
pblico feita
por actos de autoridade da entidade concedente64.
61Cf., Jos Figueiredo Dias e Fernanda Paula Oliveira, Direito
Administrativo, Coimbra, CEFA, 2003, pp. 18 e ss. 62 Cf., F. M.
Batir, The Anatomy of Market Failure, QJE n 72, 1958, pp. 17 e ss;
Paulo Trigo Pereira, Antnio Afonso, Manuela Arcanjo e Jos Carlos G.
Santos, Economia e Finanas Pblicas, ob. cit., pp.46 e ss.; Fernando
Arajo, Introduo Economia, vol. I, 2 ed., Coimbra, Almedina, pp. 84
e ss.; Joseph E. Stiglitz, Economics of the Public Sector, ob.
cit., pp. 3 e ss.; David N. Hyman, Public Finance. A Contemporary
Application of Theory to Policy, ob. cit., pp.21 e ss.; Anthony
Atkinson e Joseph Stiglitz, Lectures on Public Economics, ob. cit.,
pp. 482 e ss. 63 Trata-se de uma anlise consagrada pela doutrina
nacional e estrangeira. Por todos, Jos Maria Tello Magalhes Collao,
Concesses de Servios Pblicos Sua natureza Jurdica, Coimbra,
Imprensa da Universidade, 1914, pp.14 e ss.; Diogo Freitas do
Amaral, Curso de Direito Administrativo, ob. cit., p. 78; Maria Joo
Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, Coimbra, Almedina, 1996,
pp.43 e ss.; Pedro Gonalves, A Concesso de Servios Pblicos, ob.
cit., pp. 7 e ss. 64 Como defende Pedro Gonalves, A Concesso de
Servios Pblicos, ob. cit., pp. 101 e ss., data, a concesso deixou
de ser um acto gracioso do Prncipe, criador de privilgios para os
beneficirios, para constituir, na ptica da Administrao, um acto de
organizao da execuo de tarefas pblicas e, na perspectiva do
concessionrio, um acto constitutivo de direitos. Por isso, em um
contexto especfico de absteno econmica e neutralidade financeira, a
necessidade de garantir o bom funcionamento dos mercados ditou a
expanso da utilizao deste instrumento, que passou a representar um
fenmeno de substituio do Estado por particulares no desempenho das
tarefas de servio pblico. Segundo o mesmo Autor, Entidades Privadas
com Poderes Pblicos, ob. cit., p 43, o exerccio privado de tarefas
pblicas na construo de obras pblicas e na explorao de servios
pblicos passava a ser uma figura essencial da
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37
4. O Prenncio da Mudana
Mal-grado o dogmatismo em que assentou, na prtica a economia
liberal
no foi o mero produto do funcionamento automtico das leis do
mercado,
asseguradas pelas codificaes oitocentistas, civis e comerciais,
afinal um
direito privado limitado a garantir a prosperidade privada e a
possibilitar o
funcionamento da ordem econmica fundada na autonomia privada e
na
liberdade contratual. Assim, ao longo do sculo XIX, com as
transformaes
que afectaram a ordem liberal e ditaram o pensamento
neoclssico,
apareceram tambm formas especficas de regulao pblica da
economia65.
Nesta medida, foram surgindo normas, princpios e instituies
regentes
da organizao e direco da actividade econmica ao nvel das suas
vrias
manifestaes produo, circulao, distribuio e consumo , impondo
limites, condicionando ou incentivando os agentes econmicos e,
mesmo,
alterando ou corrigindo algumas tendncias resultantes do livre
funcionamento
do mercado.
Embora se haja tratado de uma mudana importante, mesmo assim
no
permitiu que o Estado mnimo, manietado pela absteno econmica
e
passividade financeira, reagisse adequadamente quando
confrontado com
factores como a concentrao urbana, a mais ampla extenso e o peso
poltico
das massas operrias, o trabalho infantil, o nmero excessivo de
horas de
trabalho, o baixo nvel dos salrios, a ausncia de um servio
social de sade e
de um sistema de reformas66.
No final, a falncia dos automatismos equilibrantes da terapia
clssica foi
uma realidade que abalou o modelo e fez aumentar o clamor quer
contra o
individualismo liberal, quer, em sinal contrrio, a favor dos
valores sociais,
Administrao da poca liberal; J. Chevalier, Lassociation entre le
public et le prive, RDPSP. 1981, pp. 893 e ss.; G. Leondini,
Associazioni privati di interesse generale et liberta di
associazione, vol. I, Milano, Giuffr, 1989, pp. 84 e ss. 65 Cf.,
Antnio L. Sousa Franco, Noes de Direito da Economia, ob. cit., pp.
46 e ss. 66 Na anlise traada por Valentin Vasquez de Prada,
Historia Economica Mundial, vol. II, Porto, Civilizao Editora,
1973, pp. 307 e ss.
-
38
questionando os parmetros ticos abstractos e universais
veiculados pelo
racionalismo.
Na verdade, o maior problema que se colocou organizao poltica
do
mundo burgus, como defende Rogrio Soares67, foi claramente a
reivindicao de uma sociedade autnoma e separada do controlo do
Estado,
mas que ao mesmo tempo, sem se comprometer, tinha procurado
gradualmente que o Estado se propusesse garantir essa
autonomia.
Por isso, a partir de meados do sculo comearam a generalizar-se
as
correntes cientfico-ideolgicas que impugnaram, total ou
parcialmente, a
ideologia liberal e questionaram os mitos em que se fundou a
matriz econmica
clssica.
Ento, as reaces antiliberais iniciaram-se com os economistas
alemes68 que, profundamente influenciados pela aspirao unidade
nacional
e por uma filosofia idealista de tipo universalista, se situaram
na primeira linha
da reaco s teses liberais69.
De igual modo, os socialistas que, rejeitando a ideologia
liberal,
procuraram no s fundar um sistema econmico-social que reduzisse
as
desigualdades resultantes do funcionamento dos princpios do
mercado,
instaurando o primado de valores sociais sobre os individuais,
mas tambm
reforar a solidariedade e a igualdade, embora em detrimento da
liberdade7071.
67 Cf., Rogrio E. Soares, Direito Pblico e Sociedade Tcnica, ob.
cit., p. 50. 68 Facilmente convertidos aos princpios do
liberalismo, os economistas alemes cedo concluram pela inadequao do
modelo liberal economia alem, ainda fundamentalmente agrcola, como
defende Antnio L de Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e
Direito Financeiro, ob. cit., pp. 226 ss. 69 Em Adam Mller, a ideia
de que o Estado corresponde a um conceito econmico fundamental por
representar a comunidade e a vida econmica da Nao, competindo-lhe
assegurar a satisfao das necessidades; e, na linha directa deste
Autor, o pensamento de List e a formulao terica para abandonar a
ideia da actividade estadual como improdutiva, tpica dos clssicos,
tendo encarado a actividade financeira como uma economia individual
que tem por sujeito econmico o Estado e o Governo como rgo que
representa a Administrao financeira. A escola histrica, por sua
vez, operando com base em critrios histricos e pressupondo uma
sucesso regular dos vrios sistemas ao longo dos sculos, forneceu
uma viso segundo a qual seria uma tendncia histrica inevitvel o
crescimento da actividade estadual, embora sem absorver ou suprimir
a actividade privada. 70 As anlises de Engels e de Marx so, de
facto, o contraponto do modelo econmico liberal. Porm, a abstraco e
o formalismo que fazem da ideologia liberal uma utopia so
igualmente responsveis pelo modelo utpico a que conduzem tais
anlises. O Marxismo , em termos de sistemtica poltica, o reviver do
Estado-Polcia, embora fundado numa outra dialctica. Todavia, como
defende Cabral de Moncada, Problemas de Filosofia Poltica, Coleco
Studium, Coimbra, Armnio Amado, Editor, 1963, pp.45 e ss.,
-
39
No conjunto, tratou-se de correntes que representaram o prenncio
da
reviso do pensamento econmico liberal e tiveram uma inegvel
projeco
nas futuras polticas intervencionistas e socialistas.
Mas a antinomia clssica, fruto de razes polticas, econmicas e
sociais,
marcou o sistema social e econmico dos sculos XVIII e XIX, as
respectivas
instituies e instrumentos, condicionando a fisionomia e o
funcionamento das
actividades econmica e financeira e as relaes pblico-privadas72.
E, aps
haver comeado com a glorificao da liberdade econmica e da
iniciativa
individual, veio a acabar com apelos mais ou menos consistentes
e explcitos
interveno do Estado, projectando-se alm do seu tempo ao inspirar
ainda,
revisitado, uma leitura mais recente dos principais pressupostos
econmicos.
Marx pretendeu reduzir o jogo de todas as manifestaes da vida,
inclusivamente as de ordem espiritual, aos impulsos do factor
econmico. 71 Conforme A. J. Avels Nunes, Os Sistemas Econmicos,
FDC, Bol.Cien.Econ. vol. XVI, 1978, pp.79 e ss., neste quadro a
interveno do Estado passou a assumir forma, contedo e objectivos
qualitativamente diversos dos do sistema capitalista, passando a
actividade produtiva a ser um exerccio fundamental. 72 Cf., Antnio
L. Sousa Franco, Manual de Finanas Pblicas e Direito Financeiro,
ob.cit., pp.432 e ss.
-
40
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41
Capitulo II O Estado Intervencionista
1. Enquadramento Aps as tendncias expressas no ltimo quartel do
sculo XIX, o incio do
novo sculo foi particularmente propcio ao acolhimento, seno
mesmo ao
fortalecimento, de um pensamento reformador quanto s relaes
entre os
sectores pblico e privado, tendo as primeiras dcadas sido ricas
em
ocorrncias histricas de inegvel relevncia e repercusso sobre a
evoluo
econmica e social mundial que provaram a inadequao das solues
da
doutrina econmica clssica.
Contabilizando as duas Grandes Guerras e subsequentes processos
de
reconstruo, a instaurao do regime sovitico no antigo imprio
russo e uma
importante crise econmica de dimenso internacional, estes marcos
histricos
acabaram por representar verdadeiros desafios ao pensamento
econmico
dominante73. Nesta medida, evidenciada a falcia do dogmatismo
clssico e a
respectiva incapacidade para prover respostas apropriadas, a
doutrina
econmica liberal acabou por sofrer roturas inevitveis e cada vez
mais
profundas, ficando criadas as condies propcias para a busca de
alternativas.
semelhana de outros tipos de contestao, as reaces dogmtica
clssica nasceram tambm de dois factores em larga medida
convergentes:
por um lado, um sentido pragmtico que, face ao insucesso das
propostas
oferecidas pelo liberalismo, fomentou a procura de novas solues
capazes de
impedirem o vazio; e, por outro, uma elaborao cientfica, alis j
em esboo,
que procedeu reviso dos conceitos econmicos do liberalismo e
identificou
73 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito
Financeiro, vol. I, ob. cit., 59 e ss.
-
42
um leque de instrumentos prprios, moldados segundo novos
pressupostos
filosficos e polticos.
Deste modo, com o abandono das principais premissas do
liberalismo, o
Estado passou a desempenhar um papel central na vida da
comunidade,
agindo sobre a economia e a prpria sociedade em virtude de se
haver deixado
de acreditar nos equilbrios espontneos do mercado,
consentindo-se, ao
invs, a sua presena na resoluo dos conflitos emergentes no seio
da prpria
sociedade. Da que se haja assistido progressivamente afirmao do
sentimento de uma efectiva necessidade de o Estado, luz de uma
determinada concepo econmica e social, procurar corrigir as
falhas de
mercado74.
Uma aco acompanhada quer pela ampliao das reas de actuao do
Estado, quer pela diversificao dos tipos de interveno, acabando
o sector pblico por adquirir um cunho marcadamente complexo e
plural que justificou
no s o seu redimensionamento, mas tambm a definio dos objectivos
a
prosseguir e das formas de levar a cabo a respectiva
concretizao75.
Afinal, o apelo interveno do Estado trouxe ao sector pblico
o
protagonismo negado pela doutrina clssica, reflectido no novo
paradigma que
passou a pautar a relaes entre ambas as esferas, conduzindo
tanto
respectiva redefinio funcional, como dos instrumentos de
aco.
As fronteiras entre o Estado e a Sociedade esbatem-se: a lgica
liberal de
confrontao e excluso substituda, ou pelo menos complementada,
por
uma lgica de cooperao e de aco concertada76.
No entanto, as alteraes foram alm de um novo modelo de
relacionamento entre as duas esferas, projectando-se igualmente
sobre a
repartio da titularidade das tarefas pblicas e privadas e
respectiva natureza.
74 Uma situao abundantemente considerada pela Doutrina: ver nota
n 36. 75 Cf., Antnio L. Sousa Franco, Finanas Pblicas e Direito
Financeiro, ob. cit., pp. 61 e ss. 76 Cf., Rogrio Ehrhardt Soares,
Direito Pblico e Sociedade Tcnica, ob. cit., pp.114 e ss.; Eduardo
Paz Ferreira, Direito da Economia, ob. cit., pp. 338 e ss.
-
43
E, no final, o Estado perdeu o monoplio do pblico, tendo o
incremento do
fenmeno das administraes autnomas demonstrado a existncia de
um
espao pblico no estadual77.
Mutaes que tiveram uma expresso evidente na contraposio entre
o
direito pblico e o direito privado, tal como havia sido talhada
durante o
liberalismo, que sofreu modificaes profundas.
Neste quadro, a uma Administrao pblica que se havia limitado
a
funes mnimas, em consonncia, alis, com o modelo do Estado
liberal78,
sucedeu um novo tipo de Administrao com um papel central na
gesto dos
recursos e forada a repensar os instrumentos de actuao79. Nesta
medida,
passou a viver-se um perodo de responsabilidade mxima do Estado,
que no
se limitou j a garantir a prossecuo de determinados fins de
natureza
econmica, social e cultural, assumindo antes o encargo de
realizar as tarefas
que os prosseguiam80.
Tratou-se de um novo modelo de relaes do Estado com a economia e
a
sociedade, cuja compreenso requer que se percorram os marcos
nucleares
do caminho encetado com a I Guerra Mundial, acompanhando as
transformaes econmicas e sociais mais impressivas da primeira
metade do
sculo XX at ao dealbar dos anos setenta, destacando,
naturalmente, a
respectiva projeco sobre o tandem pblico-privado.
77 Cf., Vital Moreira, Administrao Autnoma e Associaes Pblicas,
Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 89 e ss. 78 Cf., Maria Joo
Estorninho, A Fuga para o Direito Privado, ob., cit., pp.36 e ss.
79 Como bem defende Eduardo Paz Ferreira, Da Dvida Pblica e das
Garantias dos Credores do Estado, ob. cit., pp. 325 e ss., a
Administrao, com funes ampliadas e solicitaes e meios de aco muito
diversos, passou a actuar num contexto em que deixou de se
circunscrever simples execuo da lei, requerendo que tivesse em
conta valores e condicionantes que tenderam a ganhar dignidade
constitucional, como que para compensar a maior flexibilidade do
princpio da legalidade. No mesmo sentido, Maria Joo Estorninho, A
Fuga para o Direito Privado, ob. cit., pp.36 e ss., e a referncia
de que, progressivamente, o Estado assumiu funes de um verdadeiro
aparelho prestador e a interveno tornou-se indispensvel. 80 Assim
se explica a reduzida importncia, porventura nula, da concesso
enquanto modelo de gesto dos servios pblicos. Cf., Pedro Gonalves,
A Concesso de Servios Pblicos, ob. cit., p. 20; Rogrio Ehrhardt
Soares, Direito Administrativo Apontamentos policopiados das lies
proferidas no Curso de Direito do Porto da Universidade Catlica,
1980, pp. 435 e ss.
-
44
2. A I Guerra Mundial e o Fim da Absteno Econmica do Estado
A I Guerra Mundial quebrou a tradio abstencionista e neutral
do
liberalismo econmico, obrigando o Estado a desempenhar o papel
de primeiro
responsvel pela economia81. Contudo, com os problemas tpicos da
transio
da economia de paz para a economia de guerra82 e um contexto
econmico
problemtico83, I Guerra no bastou a estrita interveno pblica84.
A
conjuntura de guerra exigiu muito mais.
Aps haver criado um verdadeiro e expectvel hiato no
funcionamento da
economia liberal, a guerra obrigou as novas economias
industrializadas a
adoptarem mtodos de actuao autoritria, sem oposio dada a
situao
excepcional que se vivia, e a passarem a funcionar em regime de
controlo
directo e, at, militar. A inflao, o desemprego e a carestia
impeliram a tomada
de medidas dirigistas, visando a luta contra a alta de preos e a
garantia da
repartio dos bens, com o firme propsito de colmatar as disfunes
de
mercado, sequela da guerra.
Neste cenrio, a exigncia de armamento e aprovisionamento
obrigaram o
Estado a assumir funes produtivas, tendo o clima de guerra
evidenciado a
necessidade de um controlo efectivo da economia. Controlo que
veio a
assumir-se no s como uma experincia concreta de total disciplina
pblica da
81 Numa perspectiva econmica, como refere Spagnuolo Vigorita,
LIniziativa Economica Privata nel Diritto Publico, Napoli, Novena,
1959, p.170, a Primeira Guerra quebrou a tradio do liberalismo e
acelerou violentamente a aco dos factores desagregadores. 82
Tratava-se, como ilustra Joo Pinto da. Costa Leite (Lumbrales), A
Economia de Guerra, Porto, 1943, pp. 15 e ss., por um lado, da
correco das perturbaes econmicas que acompanharam a ecloso do
conflito e, po