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HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006
As misses jesuticas entre os guaranis no contexto da
Ilustrao1
Beatriz Helena Domingues*
Resumo: Este artigo aborda, comparativamente, a avaliao das
misses jesuticas entre os guaranis por trs textos setecentistas
Relao abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas
estabelecero no Paraguai, do Marqus de Pombal, Cndido, de Voltaire
e O Uraguai, de Baslio da Gama apontando similaridades e
singularidades de suas motivaes pessoais, de seus estilos literrios
e suas respectivas nacionalidades
uma portuguesa, uma francesa e uma brasileira.
Palavras-chave: Voltaire, Pombal, Baslio da Gama, Jesutas no
sculo XVIII.
O empreendimento jesutico entre os guaranis gerou um nmero
expressivo de publicaes na segunda metade do sculo XVIII. Tendo
sido uma ordem religiosa bastante polmica desde sua fundao em 1540,
no sculo XVIII a Companhia de Jesus torna-se tpico inescapvel das
disputas polticas entre ilustrados franceses, portugueses e
brasileiros de um lado, e os prprios jesutas, de outro. Um dos
temas mais discutidos, e controvertidos, era o das misses jesuticas
entre os guaranis no sul da Amrica do Sul, que no era estritamente
uma questo jesutica: despertou a ateno de um pblico bem mais vasto
e heterogneo do que os prprios inacianos e seus tradicionais ou
novos inimigos. Isso pode ser medido, por exemplo, pelo interesse
de
renomados ilustrados como Montesquieu, Voltaire e Raynal. A
inteno abordar, comparativamente, trs textos de natureza bem
diversa,
publicados entre 1757 e 1769, que trataram da questo guarani de
uma perspectiva portuguesa (Pombal), europia (Voltaire) e
brasileira (Baslio da Gama). Sendo todos eles crticos do
empreendimento missionrio onde lhes parece transparece o
obsoletismo, maquiavelismo e perfdia dos inacianos , fazem-no por
motivaes bem
diferenciadas, e em estilos narrativos bem distintos. Comeo com
a anlise de um texto publicado em 1757, na poca como panfleto
annimo, Relao abbreviada da
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republica, que os religiosos jesuitas estabelecero no Paraguai,
posteriormente atribudo a Pombal, tradicional e declarado inimigo
dos jesutas2. A seguir interpreto algumas consideraes sobre o tema
nas misses guaranis em dois clssicos
setecentistas: Cndido, de Voltaire, 1759, e O Uraguai, de Baslio
da Gama, 17693. Voltaire era declaradamente arredio ao clero em
geral e aos inacianos em particular, e Baslio ocupa a interessante
posio de um ex-jesuta que se posiciona explicitamente contra o
empreendimento de seus ex-irmos de batina entre os ndios guaranis.
Mas,
reforamos, trata-se de trs formas bem peculiares de interpretar
a questo guarani, no s devido forma de expresso (panfleto, romance
ou poesia) como quanto ao grau de envolvimento dos autores com os
jesutas em geral, e com as misses em particular. Para Pombal, a
posse da regio fronteiria entre os imprios portugus e espanhol era
vital pela coroa portuguesa. Voltaire se referia repblica jesutica
na Amrica do Sul como um dentre muitos exemplos da
no-correspondncia entre o mundo real, americano ou europeu, e o
otimismo de Leibniz. J o poema de Baslio, explicitamente laudatrio
da ao das tropas portuguesas durante a guerra guarantica, vai muito
alm
de suas declaradas intenes, tomando como heri, ao invs de Gomes
Freire de Andrade, o casal indgena nativo Cacambo e Lindia: de
forma que o resultado um poema pico brasileiro.
Em meados do sculo XVIII circulavam panfletos annimos sobre a
suposta existncia de um Rei do Paraguai e Imperador dos mamelucos,
cujo poder se estenderia at So Paulo, e sobre as supostas regras
maquiavlicas que regiam a ao dos jesutas no interior da ordem e na
sua relao com o mundo, intitulado Monita Secreta4. Publicavam-se
tambm, ainda que sem muita divulgao, devido problemtica situao da
at ento poderosa Cia. de Jesus, escritos jesuticos reagindo Relao
abbreviada como o caso de Declaracion de la verdad contra un Livlio
infamatorio contra os PP. Jesuitas Missioneros del Paraguay, y
Maraon do padre Jos Cardiel5 , ou ao poema de Da Gama por Karen
Lorenz, Reposta apologtica ao poema intitulado O Uraguay6. Merece
tambm ser destacada a obra do jesuta espanhol Josep Perrams,
comparando a repblica dos guaranis com a Utopia de Plato7.
A meu ver, ao mesmo tempo em que ilustram a diversidade de
interpretaes de
que foram alvo as misses jesuticas entre os guaranis, os
escritos de Pombal, Voltaire e Baslio da Gama podem ser tambm
vistos como parte do processo de acirramento de
uma atitude intelectual e poltica antijesutica que caracteriza a
segunda metade do
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sculo XVIIII e que se acentuou nas primeiras dcadas do sculo
XIX. Mesmo que
indiretamente, e sem que fosse inteno declarada ou no de seus
autores, a difuso de textos como os de Voltaire, e especialmente o
de Baslio da Gama, pode ter ajudado a constituir um dos contextos
que justificaram a expulso dos padres do Brasil e Portugal em 1759,
as Guerras Guaranticas em 1762 e finalmente a supresso da Companhia
de Jesus em 1773. Este artigo se limita, contudo, a interpretar
suas avaliaes do empreendimento missionrio, sem entrar no mrito de
sua influncia no
desenrolar dos acontecimentos. Utilizo o termo contextos, no
plural, seguindo a sugesto de Dominik LaCapra
ao propor uma metodologia para o estudo dos por ele denominados
textos complexos, entre os quais se incluem e se destacam os
literrios8. Este historiador norte-americano alerta para o fato de
a historiografia contempornea no vir se ocupando dos grandes
clssicos de tradio ocidental, exatamente aqueles nos quais, segundo
ele, o uso da linguagem explorado de uma maneira especialmente
enrgica e crtica, comprometendo seus intrpretes com uma conversao
com o passado devido
abordagem de temas triviais de forma excepcional. Ao relacionar
intrinsecamente texto e contexto, o autor desconstri a idia de
contexto tal qual empregada correntemente: a palavra contexto no
pode ter o uso restringido apenas conjuntura histrica, nem sequer
ser usada no singular. Deve-se ter em conta que tambm os contextos
so textos, e no uma realidade ou conjuntura objetiva na qual os
episdios histricos acontecem. Seriam basicamente seis as principais
possibilidades de trabalhar um texto com contextos pertinentes: o
dilogo entre as intenes do escritor ao escrever e o texto que
gerou, entre o texto e a vida do escritor, entre o texto e a
sociedade em que foi publicado pela primeira vez, entre o texto e a
cultura que o envolvia, entre o texto e os demais
pertencentes ao corpus de um mesmo escritor, e, enfim, entre o
texto e os possveis modos de discurso.
Em diferentes medidas, e no necessariamente de forma organizada,
esses so alguns aspectos que tento levar em conta na anlise do
panfleto de Pombal, do romance de Voltaire e do poema pico de
Baslio da Gama. No que se refere relao do texto com a cultura que o
envolvia, por exemplo, pode-se dizer que, em geral, encontramos
em Pombal uma viso ibrica, em Voltaire uma europia e em Baslio
uma brasileira sobre a possibilidade ou no de uma civilizao nos
trpicos a partir dos parmetros
iluministas de civilizao e barbrie, fortemente presentes na
disputa entre o Velho e o
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Novo Mundo, ento em voga na Europa9. A filosofia da Ilustrao
inverteu a viso
paradisaca da Amrica, ao formar um novo discurso sobre o homem e
a natureza do novo continente, marcado pela negatividade. Esse
discurso, que rompe com a projeo da imagem do den sobre o Novo
Mundo, legitima a expanso colonial europia encarregada de difundir
as luzes da Europa civilizada. Iniciada com as formulaes do Conde
de Buffon sobre a inferioridade fsica (climtica) do continente
americano, a desvalorizao estendeu-se aos habitantes do continente
nas famosas teses de DePauw e
de Raynal10. A formao da antropologia e da cincia geral do homem
no final do sculo XVIII foi marcada pela tenso entre a imagem
negativa do homem e da natureza
americana por um lado (Buffon) e a imagem positiva de um estado
natural, representado pela filosofia de Rousseau, que proclama
mesmo a superioridade do homem natural e de seu equivalente
histrico o selvagem sobre o civilizado. Nos debates de ento, a
realidade do mundo selvagem encerrada em uma rede de relaes que
expressa tanto o desencanto com a civilizao quanto o seu elogio.
Conforme Roberto Ventura:
Ou se fala de povos sem histria, sem religio, escrita ou
costumes, imersos na ignorncia e na idolatria. Ou, ao contrrio, se
elogia a vida de homens livres e nobres, libertos de senhores e
padres, vcios e propriedades. Dois discursos antitticos interferem
na representao do mundo selvagem: um de afirmao da felicidade
natural e infinita nos trpicos; outro que proclama as vantagens da
civilizao.11
Esse debate, cujo objeto menos a condio do selvagem do que o
estatuto do civilizador e de sua concepo de histria, transparece,
ainda que de formas diferentes, nas consideraes do ilustrado
portugus, do francs e do brasileiro sobre diferentes aspectos
envolvendo as misses jesuticas no Paraguai.
O desencadear da polmica sobre os jesutas e guaranis pelo Marqus
de Pombal
Em 1758, um ano antes da ordem de expulso dos jesutas do Brasil
e de Portugal, foi publicado em Lisboa um livreto, naquela ocasio
annimo, intitulado Relao abbreviada da republica, que os religiosos
jesuitas das provincias de Portugal, e Hespanha, estabelecero nos
dominios ultramarinos das duas monarchias, cuja autoria foi depois
atribuda ao Marqus de Pombal. Neste panfleto parece explcita a
inteno antijesutica do autor de justificar sua campanha de
perseguio aos jesutas,
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no Brasil mas tambm em Portugal, ante seus compatriotas
portugueses, europeus e
mesmo brasileiros. Entre as principais acusaes contidas neste
texto destacavam-se: a resistncia dos jesutas aplicao do Tratado de
Madri, celebrado entre Portugal e a Espanha para a delimitao de
fronteiras na Amrica do Sul; a oposio, no Brasil setentrional, s
leis que regulavam a administrao das aldeias de ndios; o exerccio
de atividades comerciais proibidas a religiosos; a decadncia dos
jesutas portugueses; a difamao do rei no estrangeiro; e a
participao, pelo menos moral, dos referidos
padres no atentado contra D. Jos e na revolta popular do Porto
ocorrida em 175712. A ampla difuso do texto deste livreto nos
interessa aqui, no s como uma interpretao
(portuguesa) das misses guaranis, mas tambm por suas possveis
ressonncias na obra da Baslio da Gama e, em menor escala, na novela
de Voltaire. Ou seja, na relao entre pequenos e grandes textos no
mbito de discurso da Ilustrao.
O panfleto bilnge (francs e portugus) est dividido em duas
partes: a primeira, redigida pelo marqus, e a segunda, um apndice
com documentos que conferiam veracidade s razes por ele apontadas
em sua argumentao a favor da
expulso dos padres e dos prprios ndios das misses. O livreto
contm uma avaliao altamente negativa da ao jesutica, posteriormente
rejeitada por interpretaes otimistas da experincia, tais como a de
Cardiel e a de uma suposta utopia guarani nos
trpicos, por Josep Perrams, em 1787. Pombal apresenta uma
explicao, para um pblico europeu, eu diria mais especificamente
portugus, do que vinha acontecendo
nas misses jesuticas nas regies fronteirias entre Portugal e
Espanha na Amrica do Sul. O argumento central que, na medida em que
os padres jesutas desobedeciam s fronteiras estabelecidas pelo
Tratado de Madri, no se submetendo nem coroa portuguesa nem
espanhola, estava mais do que justificada uma ao enrgica contra um
iminente levantamento dos sditos indgenas sob os auspcios da Cia,
da Jesus. medida que descreve os acontecimentos a chegada dos
emissrios reais s aldeias, a
reao ou fuga de ndios desabastecendo as misses Pombal fornece
uma seqncia bem costurada das aes esprias dos inacianos para
controlar os ndios e insufl-los contra a coroa, conforme
documentadas pelo corregedor Gomez Freire de Andrade: 1) Proibio de
entrada de outros emissrios eclesisticos ou civis nas misses
paraguaias,
principalmente os portugueses, mas tambm os espanhis,
reconhecendo que o dio aos primeiros era ainda maior. Os padres
proibiam os ndios at mesmo de estabelecerem
comunicao com os colonizadores espanhis e portugueses j h longo
tempo
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instalados; 2) Proibio do idioma espanhol. Como os apndices
anexados ao final do texto confirmavam, toda a literatura
subversiva foi escrita em tupi-guarani. sabido que, na Ibria, uma
importante divergncia entre os representantes do Despotismo
Esclarecido e os jesutas estava no uso das lnguas nacionais ou
vulgares, defendido pelos primeiros, ou do latim, idioma que
continuou a ser usado pelos autores jesutas em seus escritos. Nas
colnias, entretanto, os inacianos demonstraram uma impressionante
capacidade de aprendizagem das lnguas locais, fosse na Amrica ou na
sia, utilizando-se destas no trabalho de converso; 3) Os jesutas
ensinam aos ndios os princpios da Igreja catlica condicionando-os
obedincia a eles mesmos. Foi dessa forma que conseguiro preservar
por tantos annos aquelles infelices Racionaes na mais
extraordinaria ignorancia, e no mais duro, e inssofrivel (sic)
cativeiro, que se vio at agora:
Soberanos despticos de seus Crpos e Almas: Ignorando que tinham
Rey a obedecer, criam que no mundo no havia vassalagem, mas que
tudo nelle era escravido. E ignorando em fim, que havia Leys, que
no fossem as da vontade de seus Santos Padres (assim os
denominaro). 13
Estabeleciam, portanto, entre os ndios a eles submetidos de
corpo e alma, axiomas imprprios sociedade civil e caridade
Cathlica. Os referidos padres
faziam os ndios acreditarem que todos os homens seculares eram
homens sem lei nem religio que adoravam o ouro como corpo religioso
e traziam o diabo no prprio corpo. Isso seria parte da estratgia de
fazer crescer entre os ndios um dio implacvel contra os brancos
seculares. Segundo o relato de Gomez Freire de Andrade, no qual se
baseia o texto, os ndios justificavam seu desconhecimento das leis
reais dizendo que el Rey estava muito longe, e que elles s
conheciam seu Benedito
Padre14. Ainda segundo o mesmo relato, alguns nativos
confessavam ter cortado a cabea de alguns portugueses capturados
porque seus Beatos Padres lhes garantiro
que os Portuguezes fariam o mesmo se os capturassem antes15.
Segundo Pombal, a obedincia cega implantada no seio das famlias
indgenas coloca-as em um estado de escravido pior do que o dos
negros em Minas Gerais, garantindo o poder de persuaso.
Outro aspecto criticado era o ensino do manejo das armas aos
nativos, que possibilitaria a reao organizada contra as coroas
ibricas. O que os jesutas queriam, por trs disso, era manter o
controle sobre os territrios e o trabalho dos ndios e,
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como estratgia, ofereceram coroa uma trgua, da qual se serviram
para se mudar para
outros povoados e melhor se armarem. Um recurso utilizado pelos
padres era despovoar as aldeias tidas como perdidas para os
brancos, de tal forma que no deixassem
suprimentos que permitissem aos vencedores sobreviver deles. Ao
condenar tal recurso, Gomez de Andrade e Pombal apelam para os
valores da Religio e da Humanidade: consideram inadmissvel que se
destruam igrejas, imagens, fontes de abastecimento, etc.
Uma vez constatada essa situao nas misses, era mister que as
cortes
espanhola e portuguesa se movimentassem para reprimir as
sublevaes, e os exrcitos espanhol e portugus se uniram para
protegerem-se dos ataques dos ndios. Tambm
na Amaznia, somos informados por Pombal, os jesutas excediam as
leis eclesisticas e rgias. Esses atos expressavam a deteriorao das
relaes entre a coroa e os inacianos, que j vinha de algumas dcadas,
culminando nas Ordens de 1756 que acusavam os jesutas de
desrespeitarem ao tratado de Madri, insuflar os ndios por todo o
interior contra os servios do Estado os Ministros e Oficiais de Sua
Majestade Fidelssima, ameaando-os com o poder da Cia. de Jesus no
reino. Os inacianos eram tambm
responsabilizados pelo despovoamento das aldeias do caminho do
Rio Negro para que as tropas reais, que vinham fazer as demarcaes
dos limites dos domnios das duas monarquias, perecessem por falta
de vveres e remdios.
interessante chamar a ateno para o uso feito por Pombal das
fontes primrias. Alm de embasar-se no relato de Freire de Andrade,
ele fundamenta a
veracidade de suas afirmaes em um dirio cuja autoria no revela.
Isso especialmente importante por ter sido esse o documento
apresentado uma das principais peas de acusao contra a Cia. de
Jesus: nesse dirio annimo que se encontram as mais detalhadas
descries de aldeias despovoadas e destrudas antes de serem
capturadas, a justificar a necessidade de recrutar ndios em
outras aldeias para acompanharem as tropas reais. O recurso s armas
no teria passado de um segundo
estgio das maquinaes artificiosas dos jesutas para ajud-los a se
sustentar, juntamente com seus colegas religiosos espanhis,
naquelas fronteiras do norte. O padre jesuta Aleixo Antonio teria
chegado a se infiltrar entre os oficiais portugueses com o pretexto
de lhes aplicar os Exerccios Espirituais.
Os quatro documentos includos nos apndices tm algumas
caractersticas em comum, segundo o compilador: foram todos escritos
na lngua dos ndios e traduzidos
fielmente para o portugus; e so todos eles documentos
apresentados como provas das
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maquinaes jesuticas contra os interesses da coroa portuguesa.
Uma questo que no pode passar despercebida quem os teria traduzido,
uma vez que o prprio autor refora, vrias vezes, que somente os
inacianos conheciam as lnguas indgenas. O
primeiro apndice consta de uma cpia das Instrues que os Padres,
que governo os Indios, lhes dero quando marcharo para o Exercito. o
nico dos documentos (provas) que no tem data, procedncia (nenhuma
informao de como ou onde foi achado) ou autoria. Ainda assim, o que
abre a parte contendo as provas documentais nas quais se baseava a
ordem de expulso: seu contedo parece o mais forte para embasar a
argumentao de Pombal sobre o perigo iminente representado pelas
misses
para os interesses do imprio portugus na Amrica do Sul. O texto
apresenta os jesutas insuflando os ndios, em nome de Deus, a mover
guerra contra espanhis e portugueses, que causam ainda mais
prejuzos aos ndios. Ou seja, embora os padres incitem os nativos
tambm contra os espanhis, o objetivo principal deles so os
portugueses no jesutas. O(s) autor(es) jesuta(s) (?) deste
documento anexado se ope(m) expressamente ao envio de Gomez Freire
de Andrada s misses, pois que obra to mal, enganando a seu Rei e a
nosso bom Rei. Uma vez que engana o Rei, Gomez Freire enganaria a
Deus. E, como foi Deus quem deu as terras aos ndios, no ser um mpio
traidor de Sua Majestade quem ir ordenar-lhes retirarem-se
delas.
Interessante notar a inverso do uso da figura real por Pombal e
pelo Autor das referidas instrues. Enquanto os adeptos do
Despotismo Esclarecido identificavam
Deus com o rei e o demnio com os jesutas, os inacianos (e seus
aliados indgenas) classificam os portugueses como emissrios do
demnio e o rei, ao qual servem, de Deus. por sua intrnseca relao
com Deus que no cabvel acreditar que o Rei pudesse se opor ao santo
empreendimento missionrio, afirma o documento atribudo
aos ndios, mas cujos indcios conduzem a um (ou mais) jesuta
disfarado de cacique, conforme sugere o texto de Pombal16. Ou seja,
os supostos autores (jesutas) do documento argumentam a favor da
sua relao com o rei e com Deus: alm de terem vindo dedicando suas
vidas s colnias do rei portugus, sempre que Sua Majestade
necessitou, foram os Apstolos de Cristo que se prontificaram a ir
para a rea do Paraguai. Por que ento, agora, vm esses agentes reais
nos dizer que devemos
entregar nossas terras, nossas lavouras e nossas estncias? Como
poderiam ento os nativos acreditar que sejam de fato ordens do Rei,
quando sabido que o Rey [, que o
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Rei sempre nutriu amor por ns] age de acordo com os desgnios de
Deus e no do demnio?. Portanto,
(...) com grandssima alegria nos entregamos morte antes que
entregar as nossas terras. Por que no da esse nosso Rey aos
Portuguezes Buenos Ayres, Santa F, Corrientes y Paraguai? S ha de
recahir esta ordem sobre os pobres Indios, a quem manda que deixem
as suas casas, suas Igrejas, e enfim quanto tem, e Deos lhe ha
dado?17
O documento termina com o lder indgena propondo um encontro com,
no
mximo, cinco castelhanos, j que no acredita nos portugueses, por
mais que lhe prometam que nada lhes acontecer. Ao mesmo tempo,
adianta que o intrprete da
negociao ser um padre (jesuta), pois so os nicos que sabem ler a
lngua dos ndios. Pombal parece sugerir que o autor desta pea, ao
mesmo tempo em que supostamente elogia o rei e as suas boas relaes
com os Apstolos de Cristo e com os vassalos indgenas, est no
somente justificando a desobedincia s ordens reais (sob o argumento
de que no acreditava provirem elas de fato dele), como incitando os
ndios a se organizarem militarmente e lutarem contra a implementao
delas.
O ttulo do documento contido no terceiro apndice diz mais do que
alguns
pargrafos de comentrios. Trata-se de uma Carta sedisiosa e
fraudulenta, que se finge ser escrita pelos Cassiques das Aldeias
Rebeldes ao Governador de Buenos Ayres:
Sendo inverossivel que se mandasse ao dito Governador, e que o
mais natural he que se compos debaixo daquelle pretexto para se
espalhar entre os Indios, ao fin de lhe fazer criveis os enganos,
que nella se contm, escrita na lingua guarani, e dessa traduzida
fielmente para a lingua Portugueza. 18
O que se exorta no documento atribudo aos caciques a unio dos
povos indgenas em reao injusta ordem de expulso de suas aldeias.
Fica claro que o(s) autor(es) tem(tm) noo da disputa territorial
entre Portugal e Espanha, podendo ser essa a motivao para enderear
a carta ao Governador de Buenos Ayres. Neste sentido, funciona como
uma espcie de ameaa aos portugueses. A sua incluso no apndice
parece ter a inteno de mostrar no somente a falsidade da autoria
como,
principalmente, de realar o que ento ocorria e se programava:
uma rebeldia organizada contra a coroa portuguesa, sustentada pelos
jesutas.
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Repete-se neste documento a assertiva contida no primeiro: os
ndios (porque aqui seriam eles os supostos autores) no acreditam
que a ordem de desocupao de suas aldeias procedesse de fato do rei.
E por motivos claramente aprendidos dos
jesutas: por ser o rei um enviado de Deus e no do demnio e por
ter estado Sua Majestade sempre ao lado dos ndios (inclusive quando
da recente lei de 1742 que lhes garantia a liberdade). Ao mesmo
tempo, tambm como no primeiro manuscrito, a Deus que os caciques
atribuem a doao das terras que habitam aos seus antepassados.
E como foram eles, os ndios, quem as cultivaram, a eles que elas
pertencem. Garantem os caciques que no somente enviaram
correspondncias (Papis) ao rei, tentando esclarecer o engano, como
dele recebero resposta (Papis), que no coincidiam com as ordens que
agora lhes chegam. Segundo eles, o rei notar a contradio entre os
Papis (correspondncia entre eles e o rei) e a Carta (de expulso) e
ficar do lado deles. Alm de enviarem ao rei, garantiam ter remetido
a correspondncia ao prprio Papa, para que pudesse tomar
conhecimento do que de fato se passava. Com isso tentavam
transmitir confiana aos demais caciques e povos para
agirem de forma coordenada. O ltimo apndice consta de uma
Conveno celebrada entre Gomez Freire de
Andrada, e os Cassiques para a suspenso das armas datada de
1754, sem qualquer meno subseqente sobre sua implementao ou no. O
documento insinua que os guaranis merecem punio por seus atos,
embora no sejam completamente responsveis por eles: At porque
Pombal no parece ver nesses selvagens e brbaros capacidade de reao
organizada contra suas reformas ou ao Tratado de Madri sem a
decisiva influncia dos inacianos. Como outras peas antijesuticas
apcrifas difundidas no perodo, o documento referia-se riqueza, ao
poder e
maquiavelismo dos padres. Um dos mais conhecidos, intitulado
Monita Secreta, expunha as regras secretas da Companhia de Jesus
que seguiam a mxima os fins
justificam os meios: autorizavam-se os comportamentos mais
desmedidos tendo em vista o aumento do poder da ordem19. Uma
exemplificao deste poder era o tema de outro libreto annimo
intitulado Historia de Nicols I, rey de Paraguay y emperador de los
mamelucos20. Ambos j circulavam antes do livreto de Pombal e da
expulso dos jesutas do Brasil, e continuaram a faz-lo nos anos
seguintes. Na mesma ocasio, a estria de Nicols I foi refutada pelo
padre jesuta Josef Cardiel, que morou entre os guaranis e
testemunhou as guerras guaranticas entre 1754 e 1759. Ele escreveu,
ainda
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em 1758, Declaracion de la verdad contra un Livlio infamatorio
contra os PP. Jesuitas Missioneros del Paraguay, y Maraon,
explicitamente respondendo s calnias contidas na Relao Abreviada da
Repblica que os religiosos jesutas estabelecero no Paraguai, de
Pombal, e no apcrifo Historia de Nicols I, rey de Paraguay y
emperador de los mamelucos. Seu texto foi considerado por Srgio
Buarque de Holanda a melhor fonte para conhecer o que de fato se
passou no Paraguai por ocasio da expulso dos jesutas e da
resistncia dos guaranis s ordens das coroas portuguesa e
espanhola21.
A polmica sobre os Jesutas e o Novo Mundo no Cndido de
Voltaire
Dois anos aps a primeira edio da Relao Abreviada publicado, em
1759, o Cndido, ou otimismo, uma novela de Franois Marie Arouet,
ento sob o pseudnimo de Voltaire, simultaneamente em Paris,
Londres, Genebra e Amsterd, ainda que condenado na Frana e na Sua.
Em se tratando de um grande (ou texto complexo) da tradio
ocidental, j mereceu decerto inmeras interpretaes, principalmente
de literatos e filsofos, mas tambm de historiadores. Considero este
romance uma pea importante na polmica em torno da experincia jesuta
no Novo Mundo, especialmente nas misses guaranis, na medida em que,
na qualidade de europeu e francs, Voltaire certamente observou e
criticou a experincia missionria entre os guaranis de um ngulo
bem diferente do de Pombal, e como veremos tambm de Baslio da
Gama. A motivao central da obra de Voltaire, seu fio condutor, no
eram os jesutas e
suas misses: era a crtica irnica e bem-humorada da filosofia
otimista de Leibniz. A experincia missionria da Cia. de Jesus na
Amrica do Sul nada mais do que um dos
exemplos de que se vale o irnico ilustrado para contrapor-se ao
postulado leibniziano que afirmava ser este mundo em que se vivia o
melhor dos mundos possveis. Nele
os jesutas so criticados lado a lado com filosofias e
sociedades, europias ou americanas, inclusive, e particularmente, o
suposto Portugal ilustrado de Pombal. As misses jesuticas
reproduzem, no Novo Mundo, o ambiente de hipocrisia e obscurantismo
presenciado por Cndido quando de sua passagem por Lisboa, aonde
chega em uma onda invadindo a cidade quando do terremoto de 1755
e se defronta com um auto-de-f.
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Sugestivo constatar, portanto, que, se foi certamente um severo
crtico dos
jesutas e do mundo ibrico, inclusive de sua catequese no
ultramar, no o fez de uma perspectiva eurocntrica: pelo menos, no
no sentido de sugerir, como seus
contemporneos, que a velha Europa fosse melhor que a Amrica.
Pelo contrrio,
enquanto viaja pelo mundo (Amrica, Europa e sia), o personagem
central do romance, Cndido, defronta-se, em todos eles, com
realidades que se mostram radicalmente opostas aos ensinamentos
otimistas de seu mestre Pangloss. A crtica
mordaz sociedade de seu tempo e daqueles que o precederam fica
especialmente visvel devido exatamente resistncia de Cndido
enxergar no que v um desmentido
do que aprendeu e no qual quer acreditar. Na Amrica, Voltaire
critica a expanso inca, a colonizao espanhola e portuguesa, o
imprio jesutico, os falsos eldorados e a escravido negra. A nica
exceo o Eldorado, do qual o autor se vale como eptome do melhor dos
mundos possveis: um lugar sem leis, prises ou guerras, mas
impossvel de se encontrar. Cndido l chegou por acaso, mas no
saberia retornar (e tampouco ensinar o caminho para outros).
Antes, contudo, de sua chegada fortuita ao El Dorado, a primeira
parada do heri, enquanto fugia de perseguidores espanhis e
argentinos (Buenos Aires foi seu porto de entrada no Novo Mundo),
Cndido, com a ajuda de seu amigo e guia americano Cacambo22, se
depara com as misses jesuticas entre os guaranis. Perguntado por
Cndido se j tinha estado no Paraguai e se ele sabe a lngua local,
Cacambo responde que por certo, pois tendo sido bedel no colgio de
Assuno, conhece to bem aquela regio como as ruas de Cdiz. E
esclarece:
uma coisa admirvel este governo. O territrio tem mais de
trezentas lguas de dimetro e est dividido em trinta provncias. Tudo
a propriedade dos padres. Ao povo nada. uma obra-prima da razo e da
justia. Por mim, nada vejo de to divino quanto os padres, que por
aqui fazem a guerra ao rei da Espanha e ao rei de Portugal e, na
Europa, so confessores destes reis. Matam aqui os espanhis e, em
Madri, os mandam para o cu. Isso me encanta. 23
Quando consegue se encontrar com o comandante jesuta da misso o
que s foi possvel quando Cacambo explicou no ser ele espanhol, mas
alemo , Cndido
logo se deu conta de que ele era o irmo de sua eterna amada
Cunegundes, seu futuro cunhado que julgava morto. J na descrio que
faz do comandante do reino para
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
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Cndido, Cacambo afirma ser ele jovem, bonito... e ter um ar
confiante que no era nem de espanhol nem de jesuta. Ao reconhecer o
cunhado, Cndido exclama:
- Mas como? o senhor, Reverendo Pai? O senhor, o irmo da bela
Cunegundes! O senhor, que foi morto pelos blgaros! O senhor, o
filho do baro! O senhor, jesuta no Paraguai! preciso admitir que
este mundo uma coisa muito estranha. Pangloss!24
A forma como o filho do baro conheceu e se associou aos jesutas
na histria faz referncia a vrios lugares comuns do imaginrio
europeu sobre a Companhia de Jesus no sculo XVIII. Uma delas a sua
suposta capacidade milagreira. O irmo de
Cunegundes confessa a Cndido que depois de toda destruio e
crueldade que se seguiu expulso de sua famlia do castelo de
Westflia
Iam nos enterrar em uma capela de jesutas a duas lguas do
castelo de meus pais. Um jesuta nos aspergiu com gua benta. Ela
estava horrivelmente salgada. Algumas gotas entraram em meus olhos
e o padre percebeu que minhas plpebras fizeram um pequeno
movimento. Ele colocou as mos no meu corao e o sentiu palpitar. Fui
socorrido e ao final de trs semanas estava curado. 25
Depois do milagre da cura veio continua o recm-converso jesuta ,
como j esperado, o recrutamento.
O reverendo padre Croust, o superior da casa, apegou-se a mim
com a mais tenra amizade. Me deu o hbito de novio e algum tempo
depois fui enviado a Roma. O padre geral da ordem precisava de uma
leva de jovens jesutas alemes. Os soberanos do Paraguai recebiam o
menos possvel a jesutas espanhis. Preferiam os estrangeiros que
acreditavam poder controlar melhor. 26
O recrutamento de jesutas no leste europeu parece se confirmar
pela quantidade de padres alemes e de outros pases na lista de
exilados em 1759. Com a sutileza e ironia que lhe so peculiares,
Voltaire vale-se dos mais adocicados e apimentados adjetivos quando
se refere ao comandante: jesuta baro de Thunder-tem-tronckh; baro
jesuta, padre coronel. sintomtico tambm o fato de Voltaire ter
atribudo o comando da misso a um jesuta, e no a um guarani: no
implausvel supor que ele pudesse estar reforando, pelo menos em
certa medida, alguns escritos apcrifos do perodo que
denunciavam o carter extemporneo da repblica fundada pelos
jesutas entre os ndios
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 57
no Paraguai, como era o caso da histria do imperador Nicolas I e
da Relao Abbreviada27.
Prosseguindo com a estria. Aps matar o padre coronel, seu
cunhado, Cndido
foge com Cacambo e chega ao pas dos Orelhes. Os episdios que se
seguem so uma stira aos encontros que so muito mais desencontros
entre europeus e sociedades indgenas cujos costumes eram muito
diferentes dos europeus: lembram as Viagens de Gulliver, de
Jonathan Swift. O primeiro mal-entendido entre os forasteiros e os
nativos,
como no podia deixar de ser, aflorou devido antiga prtica do
canibalismo, j muito comentada e criticada na Europa desde a
descoberta do novo continente. Mas, naquele
momento, traz tambm tona o antijesuitismo de Voltaire,
entrelaado com a temtica do direito natural, que ento associava a
prtica do canibalismo situao de barbrie. Vamos cena. Cndido,
aconselhado por Cacambo, havia vestido os trajes negros de inaciano
do cunhado morto para escapar com vida das misses paraguaias, e
logo objeto de averso entre os Orelhes: um jesuta! um jesuta!
Seremos vingados e faremos uma boa refeio. Comamos o jesuta,
comamos o jesuta!. Apavorado, Cndido exclama: seremos com certeza
assados ou cozidos. Ah! O que diria mestre Pangloss, se visse como
a natureza feita?28. Desesperado, pede a Cacambo, seu intrprete,
que explique a esses Orelhes que cozinhar homens um ato de uma
desumanidade pavorosa e muito pouco cristo. Mas Cacambo, que
entendia muito melhor o que estava ocorrendo, pois pertencia tambm
ao Novo Mundo, tem uma sada
de mestre. Pondera com os seus interlocutores americanos que, se
eles imaginam que vo comer um jesuta, isso estaria muito bem: nada
mais justo do que tratar assim os inimigos:
Com efeito, o direito natural nos ensina a matar ao prximo e
assim que se age em toda a terra. Mas, senhores, no seria do seu
agrado comer amigos. Acreditam que vo colocar um jesuta no espeto,
mas o seu defensor, o inimigo dos seus inimigos, que iro assar. O
senhor que aqui vem meu patro e, longe de ser jesuta, acaba de
matar um jesuta e dele carrega os despojos.29
Depois de se safar, Cndido exclama que a natureza
pura(barbrie?), no final das contas, boa, pois, ao invs de me
comer, me fizeram mil cordialidades assim que souberam que eu no
era jesuta. Neste trecho, a crtica aos jesutas no poupa tampouco a
hipocrisia do conceito de direito natural, to caro pensamento
contratualista e Ilustrao. A distino entre Velho Mundo (Europa) e
Novo Mundo (Amrica) vem
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 58
tona neste captulo e torna-se central nos prximos, quando
Voltaire descreve a
chegada, estada e partida de Cndido e Cacambo do Eldorado.
Quando Cacambo pondera com os Orelhes que o direito natural nos
ensina a matar ao prximo e assim
que se age em toda a terra, ele no est limitado a, como era
comum em seu tempo e nos sculos anteriores, criticar os hbitos
canibais dos aborgines americanos. Sem recorrer a qualquer defesa
dos hbitos brbaros dos canibais, est claramente criticando o Velho
Mundo e sua filosofia e religio, cuja prtica o contrrio do suposto
enunciado.
Durante sua estada no antigo reino do Peru, Cndido mostra
desapontamento
tanto com o Novo Mundo (onde foi quase devorado) quanto com o
Velho (para o qual no v como voltar: Se vou ao meu pas, os blgaros
e os rabos degolaram a todos. Se retorno a Portugal, seria
queimado)30. Com esperana em que a exceo do Velho Mundo seja a
Frana, Cacambo sugere que se dirijam a Caiena, onde encontraro
franceses, que esto em toda as partes do mundo e podem lhes ajudar.
para l que pensavam estar se dirigindo quando caram no Eldorado, um
lugar que se tivessem
procurado jamais teriam podido encontrar. Os captulos referentes
ao Eldorado lembram bastante as utopias de Morus,
Bacon, Campanella e outros, com as devidas adaptaes aos valores
do sculo XVIII,
tambm perceptveis na descrio feita pelo seu contemporneo jesuta
Perams sobre a repblica igualitria dos guaranis. Aqui, a dicotomia
barbrie X civilizao, to
relacionada com a referida oposio entre Velho e Novo Mundo,
claramente favorvel sociedade utpica que Cndido e Cacambo tiveram a
ventura de encontrar
Imediatamente aps o primeiro contato, Cndido e Cacambo se
perguntavam um ao outro que pas era este desconhecido do resto da
Terra onde toda a natureza de um
tipo to diferente da nossa?. E se anima: deve ser provavelmente,
o pas aonde tudo vai bem, pois absolutamente necessrio que seja
deste tipo. Mas nem mesmo isso suficiente para convenc-lo a
permanecer neste melhor dos mundos possveis. Embora reconhecendo
que, apesar do que dizia mestre Pangloss, muitas vezes percebi que
tudo ia muito mal na Westphalia, o heri convence Cacambo a partir
do Eldorado com o mximo possvel que riquezas (l desprovidas de
valor) para ver o que podemos comprar.
Diferentemente de seus contemporneos jesutas que localizavam
suas utopias no pas dos jesutas como o caso de Perrams, por
exemplo, estabelecendo
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
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comparaes entre a repblica dos guaranis e a de Plato , Voltaire
projetava a sua no antigo reino do Peru, mais precisamente no pas
do Eldorado. Seu Eldorado no se identificava de forma alguma com o
dos espanhis que visavam apenas riquezas
minerais. O Peru ao qual se refere corresponderia quele dos
incas antes de sua prpria expanso custa de outros povos ou de serem
destrudos pelos espanhis. A rigor, os espanhis jamais teriam
encontrado o verdadeiro Eldorado que, por estar cercado por rochas
inacessveis e precipcios, permanece at hoje ao abrigo da rapacidade
das civilizaes da Europa 31, que tm um furor inconcebvel pelas
pedras e pela lama desta terra, sendo capazes de atos inaceitveis
para consegui-los. Voltaire, pelo
contrrio, tenta mostrar, atravs dos olhos e comentrios dos dois
heris, o quo pouco civilizado era o mundo europeu das Luzes ou a
repblica jesutica no Paraguai. Isso se confirmou com a incapacidade
de os dois heris se satisfazerem com a felicidade, igualdade e
liberdade que a encontraram. Enquanto filhos do Velho Mundo, no
conseguiam se libertar da ambio e, conseqentemente, da ponderao
sobre o quo ricos poderiam se tornar caso retornassem Europa com o
pouco que levassem das
riquezas do Eldorado. Desde a partida dos heris do Eldorado, a
estria no abre mais excees: so
decepes atrs de decepes no retorno Europa ou na viagem Turquia,
onde a trama
tem seu fim. O autor explicita uma profunda desiluso com a
suposta racionalidade humana em escala universal. Quando trapaceado
por um comerciante que o levaria de volta Europa, Cndido exclama:
Ai de mim, eis um trambique digno do velho mundo. E cada vez mais o
protagonista v voar pelos ares a doutrina de Pangloss. A nica
exceo, conforme visto, era o Eldorado: certamente, se tudo vai bem,
no Eldorado e no no resto da Europa; vi ursos no meu pas. Homens s
os vi no
Eldorado. Durante a viagem de volta para a Europa, Cndido debate
a teoria otimista de Pangloss com a doutrina pessimista defendida
por Martinho, um maniquesta que
expunha argumentos filosficos contrrios queles ensinados por
Panglosss, e que o protagonista havia adotado como seu filsofo.
Voltaire no esconde sua afinidade com ele, com seu sentido de
realidade, que s poderia ser negativo, pessimista. Chegando a
Veneza, na companhia de Martinho, e no encontrando a amada
Cunegundes, exclama
j quase sem foras para prosseguir: Ah! Teria sido melhor
permanecer no paraso de Eldorado do que voltar a esta maldita
Europa!32.
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 60
Em suma, embora avalie negativamente o Novo e o Velho Mundo,
no
continente americano que se encontra a nica sociedade aceitvel o
Eldorado , mas que infelizmente, assevera Martinho, continua a ser
um lugar inacessvel onde
ningum pode ir. Voltaire ridiculariza tambm a forte presena da
histria natural nas explicaes cientficas tidas como mais
verdadeiras da poca. sintomtica a cena da venda do carneiro que
Cndido havia trazido do Eldorado para a Academia de Cincias de
Bordeuax, a qual imediatamente props um prmio quele que
descobrisse
a razo pela qual a l daquele carneiro era vermelha.
A polmica sobre os Jesutas no Uraguai, de Baslio da Gama
O mineiro Jos Baslio da Gama (1741Lisboa, 1795) nasceu em
Tiradentes, Minas Gerais, foi aluno do Colgio dos Jesutas no Rio de
Janeiro e expulso juntamente com seus irmos de ordem em 1759.
Depois de uma temporada na Itlia, vai para Portugal, abandona a Cia
de Jesus quando de sua expulso do reino de Portugal,
tornando-se ento membro da Arcdia Romana, com pseudnimo pastoril
de Termindo Siplio. Preso em 1768 por suspeita de jesuitismo,
safou-se do degredo com um epitalmio dirigido a uma filha de
Pombal. A partir de 1774, torna-se marqus.
Escreveu poesia lrica, satrica, encomistica e pica, caso de seu
texto mais conhecido, o poema antijesutico O Uraguai, de 1769. A
obra teve vrias edies e tradues, inmeras republicaes e, como seria
de esperar, recebeu diferentes avaliaes de sua prpria gerao e
daquelas que se seguiram, de forma que podemos dizer estar diante
de um texto complexo no sentido lacapriano: seno um grande texto de
tradio ocidental, certamente da brasileira.
O Uraguai tem sido considerada uma das mais importantes obras
produzidas na lngua portuguesa desde de sua primeira publicao.33
Referncia constante nos manuais
de literatura brasileira desde o sculo XIX at os dias de hoje,
passou, por isso mesmo, pelos mais diversos tipos de abordagem,
valorao, e teve a si atribudos mltiplos significados histricos: o
mais significativo deles, sem dvida, a atribuio ao poema do status
de modelador da identidade nacional brasileira no decorrer do sculo
XIX.
A temtica central de seu poema, como a do panfleto de Pombal, a
situao, ou melhor, os conflitos entre ndios, portugueses e jesutas
na rea fronteiria entre os imprios portugus e espanhol. O que no
ocorre, com vimos, com o texto de Voltaire.
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 61
Ainda assim, as motivaes e estilos de Pombal e Baslio divergem
significativamente.
Enquanto Pombal faz lobby para justificar uma certa ao poltica,
Baslio tenta sobreviver, literariamente (e materialmente) como lhe
parece possvel. Tornar-se um rcade, naquela conjuntura, era sem
dvida algo almejado pelos pertencentes da cidade letrada. A dupla
condio de ex-jesuta e de membro da Arcdia do autor, bem como o tema
por ele abordado, tornam sua obra especialmente interessante para
os fins deste artigo.
sabido que em Portugal e no Brasil as academias literrias,
criadas quando da expulso dos jesutas, tinham por objetivo exaltar
as Reformas Pombalinas e o reinado de dom Jos I. Isso no impediu
que dessas mesmas academias emergissem vozes criticando a poltica
indgena pombalina, que, segundo a maioria dos rcades brasileiros,
colidia com seus projetos pessoais de escrever as histrias
ancestrais de suas famlias34. Esse no foi, contudo, o caso de
Baslio da Gama, que, na condio de rcade, se props, explicitamente,
a fazer um elogio do marqus e de sua poltica. Mas, como em obras de
outros autores em situao semelhante, vrias dissonncias entre a
inteno
explcita enfatizar o herosmo do capito Gomez Freire de Andrade,
encarregado de levar a luz aos ndios que vinham delas sendo
apartados pelos jesutas e o que o leitor encontra no poema vm sendo
apontadas. O Uraguai narra a histria da guerra
guarantica, felizmente vencida pelo irmo de Pombal, para tirar
os ndios da tirania dos padres jesutas. A violncia, garante Baslio,
no era o propsito desse capito: a guerra que acabou por eclodir foi
resultado da insuflao dos guaranis pelos Padres. Qualquer semelhana
com a Relao Abbreviada no parece ser mera coincidncia: algumas
premissas aparecem quase literalmente na seqncia de notas de p de
pgina que pedagogicamente explicam fatos e personagens reais da
epopia. Ou seja, no nvel das intenes, o poema quase uma verso em
prosa do referido panfleto.
No nvel das concretizaes, contudo, Baslio se aproxima da atitude
de rcades
crticos da poltica indgena pombalina e mesmo de seus prprios
ex-irmos de batina to recriminados no poema, uma vez que no mago da
narrativa encontra-se o elogio da natureza e das populaes do Novo
Mundo. Aproxima-se, mas no se identifica inteiramente, uma vez que
seu forte indigenismo acompanhado precisamente do
elogio empresa pombalina e de uma ferrenha crtica ao suposto
trabalho missionrio (civilizador) dos jesutas entre eles. O elogio
dos rcades brasileiros nossa natureza, bem sabido, no inclua os
nativos. Os ndios louvados pelos jesutas, por sua vez, eram
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 62
no mais das vezes aqueles que tinham sido ou estavam sendo
cristianizados, ou seja, civilizados pelo modelo europeu. J Baslio
enaltece ambos: valoriza o brilho da natureza tropical, trao de
nosso pensamento que vem desde os relatos de viajantes de
missionrios jesutas do sculo XVI at a atualidade, e que, no sculo
XVIII, esteve em voga como uma forma de reao s teses sobre a
inferioridade do Novo Mundo, e os ndios que nestas terras habitam,
sem o concurso da cristianizao. Alis, um trao interessante do poema
exatamente a ausncia de referenciais religiosos, como que a
evidenciar a adeso do poeta luta setecentista contra o
obscurantismo e o fanatismo religioso.
De fato, os verdadeiros heris indgenas de Baslio no so ndios
catequizados e domesticados por missionrios, mas o casal indgena
Cacambo e Lindia35, cujo romance termina de forma trgica devido
perfdia do jesuta Balda, figura metonmia que encarna todos os
defeitos que o poeta encontra na instituio jesutica: crimes contra
o Estado, contra a populao indgena e contra a religio36. Cacambo e
Lindia tm valores e comportamentos nobres nada semelhantes s
descries de canibais do
Novo Mundo. A obra se caracteriza pela adeso afetiva aos ndios,
cujas culturas vinham sendo dizimadas pelo contato com o europeu,
dando origem ao indianismo romntico que toma o ndio como smbolo da
ptria no decorrer do sculo XIX37. No
poema predomina o sentimento de irrupo de um desequilbrio entre
a civilizao natural e a urbana por que o sossego da Europa assim
exige.
Sem criticar a colonizao portuguesa, ou mesmo fazendo discurso
em louvor do marqus de Pombal e especialmente da campanha contra os
Sete Povos das Misses, o Autor acentua, acima de tudo, as
qualidades do ndio e da natureza tropical brasileira. Est
subentendida, a meu ver, uma crtica da suposta preponderncia ou
superioridade
da Europa civilizada sobre os trpicos brbaros ou selvagens. O
heri indgena aqui no o ndio primitivo, mas o ndio cavalheiresco,
quase um nobre38. A obra de Baslio
questiona, nesse ponto, atitudes preconceituosas de pensadores
ilustrados europeus, como Montesquieu, em relao ao Novo Mundo.
Diferentemente do baro, que considera as misses jesuticas ilhas de
civilizao em meio barbrie americana, exatamente aos seus ex-irmos
de batina que Baslio atribui a corrupo e decadncia
das sociedades indgenas e da prpria colonizao do Novo Mundo. Os
jesutas exilados de diferentes partes da Amrica contribuam
significativamente para reforar essa imagem nas histrias
naturais e humanas das
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 63
ptrias que foram forados a abandonar quando escreveram: nelas
associava-se o triste
destino dos nativos expulso de seus protetores espirituais e
temporais. O que eu assinalo como excepcional o fato de, por um
percurso declaradamente inverso ou
seja, assinalando os avanos, em termos de luzes, trazidos para o
Brasil por Pombal, e criticando ferrenhamente a obra da Cia. de
Jesus na colnia , Baslio ter desembocado em uma defesa da natureza
do Brasil e de seus habitantes, que no difere significativamente
daquela dos jesutas exilados na Itlia. Pois, em geral, nesta etapa
da Polmica do Novo Mundo a defesa dos ndios estava associada
presena dos jesutas entre eles, fato reconhecido pelo prprio
Montesquieu, conforme assinalado, e pelo ex-jesuta abade Raynal,
crtico implacvel da colonizao portuguesa, da qual isentava os
civilizados missionrios. J no poema de Baslio, os principais
inimigos dos ndios no so os portugueses (ou quaisquer outros
europeus), mas os padres jesutas que os escravizam. Em O Uraguai
Pombal quem aparece como enviado das luzes, trazendo a civilizao
para povos at ento mantidos na escurido e barbrie pelos padres
jesutas.
Poderamos aventar ento que Baslio, ao atacar o empreendimento
jesutico, seria conivente com os detratores da Amrica, de seus
habitantes? No, e isso que faz dele um caso nico: o fato de ter se
posicionado contra a poltica jesutica e a favor da poltica colonial
pombalina, ao mesmo tempo em que fazia um encmio da natureza e do
homem nativo do Novo Mundo. Em sua pena, os padres eram os
responsveis pela
situao de obscurantismo em que se encontravam os ndios e a
colnia; mas tratava-se de uma situao passvel de mudana, e no
sintomtica de uma natureza inferior do ndio, conforme queriam
autores como DePauw e Raynal.
A celebrao da destruio das misses jesuticas por Baslio da Gama
deve ter provocado intenso desconforto entre os inacianos.
Levando-se em conta o momento nada favorvel para publicaes por
parte de ex-jesutas, fica difcil averiguar a extenso e intensidade
do descontentamento entre os padres exilados na Itlia, e ainda mais
entre aqueles aprisionados em Portugal. Tem-se notcia, contudo, de
pelo menos um texto questionando a veracidade histrica dos fatos
relativos s misses guaranis: a Resposta apologtica ao poema
intitulado O Uraguay, escrita pelo padre Lorenz Kaulen em 1786,
sustentando a verso do tambm jesuta Cardiel sobre as guerras
guaranticas39. O padre Cardiel afirmava que, alm de desconhecer o
nativo e sua
sociedade, Baslio era ignorante no que se referia geografia da
regio.
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 64
Outra possibilidade, em termos do dilogo do texto de Baslio com
o clima
intelectual de seu tempo, seria pensar seu poema como um
questionamento da verso jesutica da histria das misses apresentada
por Cardiel em 1758. Mas, diferentemente do que ocorre no que
concerne Relao Abbreviada, o texto no nos fornece muitas pistas: da
Gama no faz qualquer referncia ao jesuta que tantos anos morou
entre os guaranis, ou a nenhum outro. Segundo muitos crticos,
inclusive o prprio Cardiel, Baslio no tinha bons conhecimentos
sequer geogrficos da regio. Fica ento ainda
mais curioso o trajeto do Uraguai, transformado em exemplar de
americanismo e, posteriormente, de brasilidade. No estudo mais
completo sobre a histria da Companhia
de Jesus no Brasil, Serafim Leite faz referncia ao fato de
Baslio da Gama ser tido como um americanista40. O grande compilador
de nossa histria jesutica admite citando o verso:
Gnio da inculta Amrica, que inspiras A meu peito o furor, que me
transporta,
Tu me levanta nas seguras asas
Mas acrescenta: s foi americanista por ter-se referido Amrica.
No seu
mago, foi um traidor da ordem e da ptria. Como sabido, no foi
esse o juzo feito pelas muitas geraes que interpretaram e
reinterpretaram o poema de Baslio da
Gama41. Se seu antijesuitismo j foi plenamente ressaltado alis,
por ele mesmo ao escrever um poema com notas explicativas de p de
pgina , seu americanismo pode ainda ser abordado por vrios ngulos.
Um deles seria o seu posicionamento, mesmo que indireto, na disputa
do Novo Mundo, que ajudaria a explicar sua incluso entre os
possveis atores na construo de uma identidade na colnia braslica.
Outro seria a suposta ignorncia de Baslio sobre as misses, com a
qual no concorda Vnia Chaves.
Em seu entender, a carncia de informaes de Baslio deve-se,
provavelmente, falta de informaes de primeira mo. Mas Baslio parece
t-las obtido no propriamente pelo rigor documental, mas pela
qualidade literria de sua crtica Companhia de Jesus42.
Baslio da Gama freqentemente considerado o mais moderno e mais
ilustrado entre os rcades brasileiros. Em meu entender, ele tpico e
atpico entre
seus colegas de academia: tpico no seu pombalismo e atpico em
seu indigenismo. Por
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 65
outro lado, seria incorreto, contudo, ler Baslio como um
romntico avant a lettree. Moderno ou ilustrado no quer dizer
romntico, pois, como outros poetas coloniais, no escrevia poesia
como expresso ou subjetivao da experincia, mas como representao
retrica de caracteres, paixes e aes de gneros tradicionais. O poema
inova, sim, segundo Ivan Teixeira, o modelo de epopia camoniana
corrente em Portugal e um exemplar da poesia produzida com o
patrocnio do mecenato pombalino43. Como outros autores coloniais
representantes da Ilustrao catlica,
Baslio adapta sua poesia s circunstncias culturais das reformas
pombalinas. Baslio didtico e pedaggico. Trata o destinatrio como um
aluno silencioso que ouve a
lio. Mas no representa uma posio de ruptura que se pudesse
classificar como ideologia iluminista emancipatria ou
revolucionria, no significa rompimento com os princpios
tradicionais da poltica catlica contra-reformista do Antigo Estado
portugus44.
As figuraes do ndio como selvagem um homem da natureza, bom ou
mau , que as doutrinas ilustradas de poder ento propem como
pressuposto lgico e
cronolgico da constituio das sociedades, esto a presentes. Mas
Baslio um dos poucos autores a no embarcar na corrente oposio entre
brbaro e selvagem: ele inventa, conforme notado por Hansen, heris
ndios com virtudes de heris romanos e
uma herona, Lindia, com caractersticas trgicas da Ins de Castro
camoniana45. O general letrado do Uraguai se assemelha ao general
letrado da poesia do tempo de
Augusto, evidenciando a situao do autor de em busca de favores
dos poderosos com a tpica letras e armas do humanismo cvico do
sculo XVI46.
A atitude de Baslio de Gama pode, a meu ver, ser sumarizada no
ttulo de um captulo de Vnia Chaves: Com Pombal, contra os jesutas,
mas pelo Brasil47. a partir dessas trs idias-chave antijesuitismo,
pombalismo e brasileirismo que ele tenta dar forma potica a alguns
aspectos da realidade de seu tempo. Uma obra
brasileira difere, contudo, de uma obra sobre o Brasil: tem que
mostrar que o autor um homem de seu tempo e de seu pas.
Consideraes finais
No sculo XVIII, a utilidade da obra literria , freqentemente,
encarada como
uma tarefa de divulgao das luzes. Isso transparece nos trs
textos analisados. Os
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 66
textos de Voltaire e Baslio da Gama tm em comum o gnio artstico,
a preocupao
com a forma literria e, claro, um menor envolvimento com a causa
do que o documento posteriormente atribudo a Pombal. Conforme
LaCapra, a Literatura no
apenas registro, mas construo de realidade. De forma que,
conforme Vnia Chaves, por mais que tenham existido vozes
dissonantes que caracterizavam a experincia missionria no Paraguai
como cristianismo feliz, como foi o caso de Lodovico Antonio
Muratori conhecido pela seriedade de seus estudos e sem
qualquer
vinculao com a Cia. de Jesus, a qual j havia criticado
publicamente, mas que ento defendeu com paixo o tipo de sociedade
que os jesutas construram na Amrica do Sul , o que prevaleceu foi a
posio de Voltaire, porta-voz dos que condenavam o sistema das
misses. Nisso se assemelhava a Pombal e a Baslio.
Este artigo corrobora a afirmao de Vnia Chaves, segundo a qual
perfeitamente possvel traar uma linha de continuidade da inspirao
literria antijesutica, na qual se integram o Cndido e o Uraguai.
Embora publicado dez anos depois do banimento da Cia. de Jesus de
Portugal, surge em plena efervescncia, se no
mesmo na fase culminante, da luta antijesutica travada na
Europa48. Mas, diferentemente de Voltaire, Baslio fala das misses
com uma forte dose de patriotismo, de americanismo. Mais do que
criticar os jesutas, o que parece estar realmente em jogo em O
Uraguai o elogio da natureza e do homem tropical. O Novo Mundo de
Baslio o seu mundo; o de Voltaire, um mundo to corrompido como o
europeu, exceto pela
inatingvel utopia do Eldorado. J o mundo idealizado por Baslio o
do homem natural, que no precisa da evangelizao ou das luzes
europias para agir como um nobre.
A apario desses dois textos seminais sobre a temtica das misses
e de muitas
outras do sculo XVIII e dos que se seguiram se enquadra, como se
tentou mostrar, num vastssimo conjunto de escritos contra a
instituio jesutica, que tem mais valor como documento do que como
produo artstica, como o caso da Relao Abbreviada, da Monita
Secreta, da estria do Rei Nicols e muitos outros textos
panfletrios, apcrifos ou no, que circularam no perodo. Neles, como
na literatura ilustrada denegridora do Novo Mundo (Buffon, De Pauw,
Montesquieu), as fontes primrias americanas eram escassas para no
dizer inexistentes. Mas poderiam ser consideradas deficientes mesmo
que comparadas com seus contemporneos jesutas, desde ento
preocupados em
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AS MISSES JESUTICAS ENTRE OS GUARANIS...
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 67
escrever sobre terras e povos que conheciam em loco, ao mesmo
tempo em que
antenados com os paradigmas universalistas da poca das Luzes. O
que importa assinalar, contudo, que longe de simplesmente
refletirem
aquela conjuntura especfica, tais textos a criavam, eram parte
da dita realidade tanto quanto o eram as instituies polticas.
Conforme apontam Michel Foulcault e Roger Chartier, jamais existiu,
em qualquer perodo histrico, uma concordncia entre discursos e
prticas institucionais, freqentemente tidas como realidade
objetiva49. Os discursos (ou textos) so tambm partes constitutivas
de contextos histricos.
DOMINGUES, Beatriz Helena. The Guarani Jesuitic Missions in the
context of Enlightenment. Histria, So Paulo, v. 25, n. 1, p. 44-69,
2006.
Abstract: This article compares three eighteenth century
evaluations about jesuitic missions among the Guaranis - Relao
abbreviada da republica, que os religiosos jesuitas estabelecero no
Paraguai, by Marquis of Pombal, Candide, by Voltaire, and O
Uraguay, by Baslio da Gama pointing out their similarities and
singularities in terms of their personal motivations, literary
styles and nationality Portuguese, French and Brazilian,
respectively.
Keywords: Voltaire, Pombal, Baslio da Gama, eighteenth century
jesuits.
Artigo recebido em 09/2006. Aprovado em 11/2006.
NOTAS
1 Este artigo resultado parcial de pesquisa financiada por uma
bolsa de International Visiting Scholar
pelo Woodstock Theological Center, na Georgetown University,
Washington DC, USA, em 2004. Aproveito a ocasio para mais uma vez
agradecer ao Woodstock Center pela generosa bolsa. * Universidade
Federal de Juiz de Fora.
2 POMBAL, Sebastio Jos de Carvalho e MELO, Marqus de. Relao
abbreviada da republica, que os
religiosos jesuitas das provincias de Portugal, e Hespanha,
estabelecero nos dominios, ultramarinos das duas monarchias, e da
guerra, que nelles tem movido, e sustentado contra os exercitos
hespanhoes, e portuguezes. Lisboa, 1757. 3 VOLTAIRE (Franois Marie
Arouet)[1759]. Cndido, ou o otimismo. Porto Alegre: L&PM,
1992;
GAMA, Baslio da [1769]. O Uraguai. Rio de Janeiro: Record, 1998.
4 Anonimous. Secreta Monita. Societae Jesu. The Secret Counsels of
the Society of Jesus (in Latin and
English)[1596], 1835. 5 CARDIEL, Josef. Declaracin de la verdad
contra un Livlio infamatorio, impreso en Portugues contra
os PP. Jesuitas Misioneros del Paraguay, y Maraon [1758] 6
KAULEN, Lorenz. Reposta apologtica ao poema intitulado O Uraguay
composto por Jos Basilio da
Gama, e dedicado a Francisco Xavier de Mendona Furtado, irma de
Sebastio Jos de Carvalho, conde de Oeyras, e marquez de Pombal,
Lugano.s.n. [1786]. 7 PERRAMS, Josep Manuel. Platn y los guaranes.
Nueva versin del original latino por Francisco
Fernndez Preties y Bartolomeu Meli. Asuncin: Centro de Estudios
Paraguayos, 2004. A anlise dessa literatura e do contexto por ela
criado e/ou implementado tema de estudo em andamento.
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BEATRIZ HELENA DOMINGUES
HISTRIA, SO PAULO, v. 25, n. 1, p. 44-69, 2006 68
8 LACAPRA, Dominick. Repensar la historia intelectual y leer
textos. In: PALTI, Elas Jos. Giro
lingstico e historia intelectual. Buenos Aires: Universidad
Nacional de Quilmes, s/d. 9 Para uma viso panormica e detalhada da
Polmica do Novo Mundo, ver GERBI, Antonello. O Novo
Mundo. Histria de uma polmica (1750-1900). So Paulo: Cia. das
Letras, 1996. 10
BUFFON, George-Louis Leclerc, comte de. Histore Naturelle de
lhomme [1749-89]. In: Ouvres Choises. Paris: Daguin, 1824, v. 3;
RAYNAL, G. T. F. O Estabelecimento dos Portugueses no Brasil. Rio
de Janeiro: Ministrio da Justia, Arquivo Nacional; Braslia: Editora
UnB, c1998; RAYNAL, Guilaume. T. Franois. A Revoluo na Amrica
[1781]. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993; DE PAWN,
Cornellius. Recherches philosophiques sur les Amricains, ou Mmoires
intressants pour servir l'histoire de l'espece humaine; avec une
Dissertation sur l'Amrique & des Amricains, par Don Pernety;
Berlin [s.n.], 1770. 11
VENTURA, Roberto. Estilo tropical. Histria cultural e polmicas
literrias no Brasil. So Paulo: Cia. das Letras, 2000. 12
Apesar deste acervo de acusaes, o nico jesuta a ser objeto de
julgamento formal foi o P. Gabriel Malagrida, italiano, acusado de
heresia e condenado morte, em 1761, num processo que aproveitou a
debilidade mental de um ancio enfraquecido e j transtornado. 13
POMBAL, Marqus de. Op. cit., p. 8. 14
Idem, p. 10. 15
Ibidem, pp. 14-15. 16
Ibidem, p. 50. 17
Ibidem, p. 52. 18
Ibidem, p. 58. 19
Anonimous. Secreta Monita. Societae Jesu. The Secret Counsels of
the Society of Jesus. 20Annimo. Histria de Nicols I: rey del
Paraguay y imperador de los mamelucos. In Curiosa Americana, n. 3,
Santiago do Chile: Centro de Investigaciones de Historia Americana,
1964, com prlogo de Srgio Buarque de Holanda; Annimo. Historia de
Nicolas Primeiro. Rey del Paraguay y emperador de los mamelucos
[1756]. Asuncin: Editorial del Centenario, 1967. 21
CARDIEL, Josef. Op. cit. 22
Conforme veremos, o heri indgena de O Uraguai ter o mesmo nome.
23
VOLTAIRE. Op. cit. 24
Idem, p. 61. 25
Ibidem, p. 63. 26
Idem, p. 64. Lembrar que desde o sculo XVI, Nbrega e Anchieta
percebiam a importncia dos milagres da cura para melhor
impressionarem os ndios e depois poder melhor, ou em alguma medida,
convert-los. Ver EISENBERG, Jos. As misses jesuticas e o pensamento
poltico moderno. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001. 27
Entre eles importante mencionar os escritos annimos sobre o Rei
Nicols I e o panfleto de autoria do prprio Pombal. 28
VOLTAIRE, Op. cit., p. 70. 29
Idem, p. 71. 30
Esse tipo de critica inquisio portuguesa est presente em
praticamente todos os escritos da Ilustrao europia, com especial
destaque para os franceses. 31
VOLTAIRE, Op. cit., p. 80. 32
O terremoto de Lisboa de 1775 leva Voltaire a colocar clara
objeo ao otimismo leibniziano e compor o Poema sobre o desastre de
Lisboa. Em 1763, o Autor escreve o Tratado sobre a tolerncia.
33
A edio a qual tive acesso foi GAMA, Baslio da. O Uraguai. Rio de
Janeiro: Record, 1998. 34Uma anlise bastante instigante sobre as
complexas relaes entre a Arcdia literria e os poetas mineiros
envolvidos na Inconfidncia Mineira, pode ser encontrada em ANDRADE,
Oswald. A Arcdia e a Inconfidncia. In: Utopia Antropofgica. Rio de
Janeiro: Editora Globo, 1995. 35Segundo Sir Richard Burton, mais
provvel que a coincidncia dos nomes Cacambo no Uraguai e no Cndido
de Voltaire se deva a informaes sobre a existncia de um ndio com
esse nome na regio do Paraguai, compartilhadas pelos dois autores,
do que de um emprstimo de Baslio da Gama a Voltaire. GAMA, Baslio
da. The Uruguay (a historical romance of South America): the Sir
Richard F. Burton translation [1860]. 36
Aqui somos novamente reportados aos crimes enumerados na Relao
Abbreviada. 37
importante diferenciar esse indianismo do sculo XIX daquele que
foi abraado pelos modernistas no incio do sculo XX, que valoriza o
primitivismo do ndio, e no seus valores cavalheirescos,como faz
Baslio da Gama.
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38 A valorizao do primitivismo indgena vai aparecer com toda
fora no modernismo no incio do
sculo XX. 39Como ainda no consegui ter acesso ao texto de
Kaulen, uma explorao de seus argumentos fica para um prximo estudo.
40
Bigrafo, historiador, padre e literato, Serafim Leite veio para
o Brasil com 15 anos e, em 1914, entrou para a Companhia de Jesus.
Sobre ela, produziu vrios trabalhos de reconhecida importncia entre
os quais Artes e Ofcios dos jesutas no Brasi , em 1953. Ver tambm
LEITE, Serafim. Histria da Companhia de Jesus no Brasil. Lisboa:
Portugalia; Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, Civilizao
Brasileira, 1938-1950. 10 v. 41
A defesa do Baslio americanista pode ser encontrada, entre
outros, em CHAVES, Vnia Pinheiro. O Uraguai" e a fundao da
literatura brasileira. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. 42
Segundo a autora, a literatura sobre as Misses do
Paraguai-Uruguai floresce sobretudo entre 1750 e 1758 (19 opsculos
em 1758-60, 16 em 1767-68 e tambm reestampa e aditamento de
escritos anteriores). Op. cit., p. 233. 43
TEIXEIRA, Ivan Prado. Mecenato Pombalino e Poesia Neoclssica. So
Paulo: Editora da USP, 1999. 44
HANSEN, J. A. Op. cit., pp.36-37 45
HANSEN, J. A. Op. cit., p. 40. 46
HANSEN, J. A. Op. cit., p. 30. 47
CHAVES, Vnia Pinheiro. O despertar do gnio brasileiro. Uma
leitura de O Uraguai de Baslio da Gama. Campinas: Editora da
Unicamp, 2000. 48
Idem, p. 232. 49
CHARTIER, Roger. beira da falsia. A Histria entre certeza e
inquietude. Porto Alegre: Editora UFRS, 2002; FOUCAULT, Michel. As
palavras e as coisas. Lisboa: Martins Fontes, 1975.