1 AS FAMÍLIAS ESCRAVAS DOS RODRIGUES BARCELLOS: ESCRAVIDÃO, LIBERDADE, HIERARQUIAS SOCIAIS E MOBILIDADE SOCIAL NA CIDADE DE PELOTAS/RS, 1830/1888 Natália Garcia Pinto (UFRGS) Resumo: A pesquisa visa investigar e problematizar as experiências de liberdade e parentesco acionadas pelos escravos e seus familiares, abordando as questões sobre hierarquia e mobilidade social, tendo como foco de análise dessa experimentação, as escravarias da família dos Rodrigues Barcelos na cidade de Pelotas. Diante disso, a investigação dedica- se ao estudo da composição de laços familiares envolvendo os cativos das senzalas pertencentes a esse núcleo senhorial, através de um acompanhamento geracional das famílias cativas. A recomposição das trajetórias familiares dos escravos será realizada pelo método onomástico em distintas fontes tais como: registros paroquiais, inventários post-mortem, testamentos, alforrias, registros de compra e venda, processos-crimes. Palavras-Chave: Liberdade; Escravidão; Alforria. Abstracto: La investigación tiene como objetivo investigar y discutir las experiencias de la libertad y la relación con el cliente por los esclavos y sus familias, para abordar las cuestiones de jerarquía y la movilidad social, centrándose en el análisis de este ensayo, la familia escravarias Barcelos Rodrigues 'en la ciudad de Pelotas. Por lo tanto, la investigación se dedica al estudio de la composición de los lazos familiares que involucran cautivos de los cuartos de los esclavos pertenecientes al núcleo principal, a través de un monitoreo generacional de las familias cautivas. La reconstrucción de las trayectorias familiares de los esclavos se realizará por fuentes dispares método onomásticos, como los registros parroquiales, inventarios post mortem, testamentos, registros de manumisión, la compra y venta, y los procesos de crímenes. Palabras clave: Libertad; Esclavitud; Emancipación.
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AS FAMÍLIAS ESCRAVAS DOS RODRIGUES BARCELLOS: … · estratificação social dentro dessas senzalas. Observou-se que algumas famílias dessas escravarias estendiam seus laços parentais
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AS FAMÍLIAS ESCRAVAS DOS RODRIGUES BARCELLOS:
ESCRAVIDÃO, LIBERDADE, HIERARQUIAS SOCIAIS E
MOBILIDADE SOCIAL NA CIDADE DE PELOTAS/RS, 1830/1888
Natália Garcia Pinto (UFRGS)
Resumo:
A pesquisa visa investigar e problematizar as experiências de liberdade e parentesco
acionadas pelos escravos e seus familiares, abordando as questões sobre hierarquia e
mobilidade social, tendo como foco de análise dessa experimentação, as escravarias da
família dos Rodrigues Barcelos na cidade de Pelotas. Diante disso, a investigação dedica-
se ao estudo da composição de laços familiares envolvendo os cativos das senzalas
pertencentes a esse núcleo senhorial, através de um acompanhamento geracional das
famílias cativas. A recomposição das trajetórias familiares dos escravos será realizada
pelo método onomástico em distintas fontes tais como: registros paroquiais, inventários
post-mortem, testamentos, alforrias, registros de compra e venda, processos-crimes.
Palavras-Chave: Liberdade; Escravidão; Alforria.
Abstracto:
La investigación tiene como objetivo investigar y discutir las experiencias de la libertad y
la relación con el cliente por los esclavos y sus familias, para abordar las cuestiones de
jerarquía y la movilidad social, centrándose en el análisis de este ensayo, la familia
escravarias Barcelos Rodrigues 'en la ciudad de Pelotas. Por lo tanto, la investigación se
dedica al estudio de la composición de los lazos familiares que involucran cautivos de los
cuartos de los esclavos pertenecientes al núcleo principal, a través de un monitoreo
generacional de las familias cautivas. La reconstrucción de las trayectorias familiares de
los esclavos se realizará por fuentes dispares método onomásticos, como los registros
parroquiales, inventarios post mortem, testamentos, registros de manumisión, la compra y
Serra dos Tapes, fronteira com o Arroio de Pelotas, dividindo de um lado com terras do
co-herdeiro Luiz de Azevedo e Souza, de outro com Joaquim Surdo e tendo ainda como
confinante a propriedade dos herdeiros de Tomás Francisco Flores. Esta porção de
terras não deveria ser pouca, pois era estimada em 6 contos de réis, isso sem computar
as benfeitorias das sobreditas terras, “colocadas no lugar junto ao arroio do quilombo”
e avaliadas em outros 2 contos de réis.2
Em 1856, devido ao falecimento do comendador, a viúva Dona Silvana
Eulália de Azevedo Barcellos encabeçou a abertura do processo do inventário de seu
esposo.3 O comendador possuía um plantel de 86 escravos, e um rebanho de seiscentas
reses de criar, vinte cavalos, três éguas, sessenta bois mansos, dez ovelhas, quarenta
galinhas, além de uma charqueada na Boa Vista e propriedades no centro urbano da
cidade.
A escolha de trabalhar com a escravaria deste proprietário é pelo fato de
conseguirmos reunir um razoável número de fontes a respeito dos seus escravos, através
de um cruzamento nominativo. Pretendo observar como os escravos tramaram suas
redes familiares diante do “mundo das incertezas” da sociedade escravista, negociando
os projetos familiares com seu senhor. Além disso, postulo que esse estudo de caso
possa evidenciar as hierarquias sociais costumeiras construídas pelos cativos e quais os
mecanismos acionados pelos mesmos para uma mobilidade social tanto dentro como
fora das paredes das senzalas que habitavam. Conforme adverte João Fragoso:
Enfim, o parentesco fictício era uma língua franca, conhecida por
senhores, cativos, forros e consangüíneos. Podia, portanto, organizá-
los e estabelecer entre eles uma estratificação; ou, sendo mais correto,
ser um indício de uma hierarquia social costumeira (FRAGOSO,
2010, p. 267).
2 Parte deste texto já foi trabalhada pelos autores MOREIRA, AL-ALAM, PINTO, 2013, p. 35. 3 Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Ano de 1856, número 409. Vara de Família, Sucessão e
Provedoria. APERS.
8
Tabela A – As famílias escravas do Comendador Boaventura Rodrigues Barcellos,
4 Óbitos encontrados dos filhos do casal de africanos José (Congo) e Mariana (Rebolo): 24/04/1833 de
Sinfronia (crioula), de 8 anos de idade, morreu de espasmo; 16/09/1833 de Felipe, de nove anos, faleceu
de febre; 31/07/1834 Ignacio (crioulo), com 6 anos, morrerá de bexigas; 14/09/1834 de Maria, de
apenas sete dias, tendo como causa da morte espasmo; 27/09/1835 Maria, de um dia de vida, mas não
consta a causa da morte; 29/09/1835 Felisarda, de 3 dias, também não consta a causa do falecimento; e
no dia 07/04/1838 Maria, de 4 dias, que morreu de espasmo. Livros 01 e 02 de óbitos de Escravos da
Catedral São Francisco de Paula. ACDP.
9
Silva forra
Esperança,
crioula
Antônio
Sara
Boaventura Luiz
de Azevedo
Luis José de
Araújo, Liberto
Rosa Maria da
Conceição,
escrava
Maria da
Conceição,
liberta
Filho
Delfina, mina Albino, crioulo Mãe e filho
Maria Rebolo Sinfronia Antônio Congo,
escravo
Rita Maria,
escrava
Mãe
Fonte: Livro 01 (1812/1835) e 02 (1835/1852) de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de
Paula. ACDP.
Livro 01 e 02 de óbitos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula. ACDP.
Catálogo Seletivo de Cartas de Alforrias (1830/1888). APERS.
Inventário de Boaventura Rodrigues Barcellos. Ano de 1856, número 409. Vara de Família, Sucessão e
Provedoria. APERS.
Visualizando as informações presentes na tabela acima, nota-se que os
companheiros de senzala costuraram distintas relações familiares. O casal de africanos,
Congo José e a Rebolo Mariana, optaram por compadres escravos para batizarem seus
rebentos. Sabemos que o crioulo Domingos, a Benguela Maria e a escrava Teodora,
faziam parte do plantel do comendador. Descobri que Teodora era parda, casada com o
pardo Cosme, cativo da mesma propriedade que sua esposa. Ao contrário de seu marido
Cosme, que apenas foi convidado a comparecer uma única vez para apadrinhar, a parda
Teodora foi requisitada por quatro vezes para batizar. A primeira, ao apadrinhar junto
com seu esposo, os cativos Ivo e Sabino,5 a segunda ocasião batizando o filho do Congo
José e a Rebolo Mariana,6 a terceira apadrinhando os escravos africanos, Congo
Joaquim e o Gege Antônio, 7 e a última para o batizado do filho da africana Rosa,
5 Batizou no dia 23/07/1831 os escravos adultos Ivo e Sabino da escravaria de Boaventura Rodrigues
Barcellos. Livro 01 de Batismos de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 179. ACDP. 6 Batizou o crioulo Cosme filho legítimo de José Congo e Mariana Rebolo, escravos de Boaventura
Rodrigues Barcellos. Batizado ocorrido no dia 21/02/1833. Livro 01 de Batismo de Escravos da Catedral
de São Francisco de Paula, fl. 210. ACDP. 7 Batizou no dia 02/08/1835 os escravos africanos Ivo e Sabino pertencentes à Boaventura Rodrigues
Barcellos. Livro 02 de Batismo de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 7. ACDP.
10
escrava de Luís Azevedo de Souza.8 A parda Teodora não tinha apenas o
reconhecimento dentro da comunidade que pertencia, mas também fora dela, pois foi
requisitada como comadre pela africana Rosa para apadrinhar seu filho. Passados quatro
anos após batizar seu último afilhado, a parda Teodora consegue alforriar-se. Consta em
sua manumissão que fora concedida “em remuneração de seus serviços com a condição
essencial de conservar-se em minha companhia durante a minha vida”.9
A liberdade da parda Teodora foi cerceada, pois teria de esperar até a morte de
seu senhor para poder concretizá-la de fato, assim como tantos indivíduos libertados sob
condição pela morte do proprietário. Fato semelhante enfrentado por seu compadre, o
Congo José, o qual teve como condição para manumitir-se, de servir por mais quatro
anos ao charqueador Boaventura Rodrigues Barcellos. 10 Sobre o núcleo familiar
constituído pelo africano José, apenas constatei que ele foi alforriado, ficando seus
filhos e esposa presos ao cativeiro, afinal a liberdade não era possível a todos, sendo,
portanto, um privilégio de quem a conseguia de fato. Suponho que um dos anseios
resgatados pelo escravo Congo José foi à constituição de uma família, onde poderia
partilhar e galgar por espaços de autonomia, tendo uma liberdade “de mais tempo de
lazer, de trabalhar em roça própria, liberdade para acumular pecúlio, liberdade de ver
crescer os filhos juntos a si” (SALLES, 2008, p. 249), uma vez que o projeto de
liberdade da escravidão apenas foi possível para um membro da família.
Experiência semelhante foi vivenciada pela família do pardo Joaquim e da preta
da Costa Narciza. Somente o pequeno Alexandre conseguiu a sua emancipação no dia
da celebração de seu batismo. Aos dezoito de novembro do ano de 1832, o pardo
Alexandre, filho legítimo do pardo Joaquim e da preta da Costa Narciza, recebeu a
8 Batizou no dia 15/09/1846 o crioulo Gil, filho natural da preta de nação, Rosa, escravos de Luís de
Azevedo de Souza. Livro 02 de Batismo de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 90. ACDP. 9 Catálogo Seletivo de Cartas de Alforrias. Livro 03 (1848-1853), fl. 57v. Carta concedida em
22/06/1850 e registrada 21/08/1850. APERS. 10 O Congo José teve seu papel de liberdade concedido em 05/05/1847 e registrado em 05/05/1847. Livro
04, fl. 8v. APERS.
11
liberdade, segundo a declaração do sinhô de seus pais de que a partir daquele momento
passara a ser uma criança livre. Os compadres do casal foram Simão Vergara e sua
esposa Teresa Vieira da Cunha, ambos pretos forros. 11 Julgo a possibilidade da
libertação do pardo Alexandre ter sido agenciada pelo grupo familiar do menino. Quiçá
seus padrinhos ajudaram nessa empreitada. O casal de forros possuía uma modesta
venda de artigos variados em Pelotas. Aliás o padrinho do pardo Alexandre, o forro
Simão Vergara fornecia gêneros para os aquilombados de Manuel Padeiro na cidade,
sendo futuramente processado e condenado a cárcere por essa solidariedade aos
criminosos insurretos do quilombo. 12 Não consegui saber se os pais do pardo
Alexandre – com que grau de êxito – angariou a emancipação do seu rebento.
Poderiam ter se preparado há algum tempo, amealhando parcas economias, para
obter o papel de liberdade para seu filho que poderia apenas ser um objetivo calculado a
distância, visto que essa estratégia nem sempre era alcançada com sucesso por aqueles
que tentavam, sendo privilégio de uma minoria. No entanto, “não quer dizer que a
possibilidade da manumissão não permanecesse uma importante miragem a nortear boa
parte das ações dos cativos” (SALLES, 2008, p. 280). Ou por outra via de raciocínio,
pois como não se sabe se de fato a manumissão foi paga pelos familiares do menino,
talvez a carta de liberdade fosse gratuita, sendo neste caso, uma barganha do senhor
com estes cativos de confiança, os pais do pardo Alexandre.
Já no caso da família (i)legítima da africana Nazária houve o estreitamento de
laços sociais com pessoas do segmento livre, quiçá pudessem ser do círculo de
amizades ou negócios do Comendador ou de outro parente do clã dos Rodrigues
Barcellos, visto que os dois rebentos da cativa não tiveram como padrinhos e madrinhas
parceiros de cativeiro. Não se sabe que tipo de relação poderia ter a escrava com essas
pessoas. É certo que o cálculo senhorial sempre se fazia presente nas indicações de
quem seria os compadres de seus escravos. A africana Nazária foi libertada pelo
11 Livro 03B de Batismos de Livres da Catedral São Francisco de Paula, fl. 129. ACDP. 12 Processo-crime de número 74. Ano de 1835. Réu: Simão Vergara. APERS.
12
charqueador, sendo a carta concedida mediante o pagamento de 500$ mil réis por Luís
Azevedo de Souza.13 Que estratagema teria lançado a africana para que esse senhor de
escravos pudesse ter pagado por sua alforria? Teria ela contraído um empréstimo com
este homem para libertar-se? Ou seriam amásios e ele teria libertado a mãe de um dos
seus filhos? Custódio um dos rebentos dela era pardo, talvez fruto de uma união
consensual entre a escrava e um homem livre. 14
Para o historiador Fragoso, os escravos teciam suas estratégias buscando aliados
com os mais diferentes estratos sociais, estabelecendo laços de amizades e vínculos de
clientela entre os próprios parceiros de escravidão. Fato que pode-se observar pelo
seguinte trecho:
Como toda elite, a das senzalas de Sacopema, montava suas redes
sociais seguindo três princípios: buscar aliados entre estratos sociais
com mais recursos na sociedade local, forros e livres; reafirmar pactos
de amizade entre seus componentes; e formar uma clientela entre os
demais escravos (FRAGOSO, 2010b, p. 83).
Certamente, os escravos também procuraram estreitar laços de compadrio com
pessoas livres, e algumas dessas, eram familiares de seus proprietários. Lembrando os
dados colocados na última tabela, em vários momentos notamos os sobrenomes dos
Rodrigues Barcellos presentes tanto para padrinho como para madrinha dos filhos das
escravas. Exemplo disso é o caso do filho do comendador e charqueador Boaventura
Rodrigues Barcellos, Miguel Rodrigues Barcellos, o qual foi requisitado em duas
celebrações para apadrinhar os rebentos das cativas de seu pai.
No dia treze de junho do ano de 1833, em pleno inverno pelotense foram
batizados os filhos das escravas do Comendador Boaventura Rodrigues Barcellos. O
primeiro a receber os santos óleos foi o crioulo Emílio que nascera em dez de dezembro
do ano de 1832, filho legítimo dos escravos Manuel e Delfina crioulos. Os padrinhos do
13 A carta foi concedida em 07/07/1841 e registrada em 21/11/1842. APERS. 14 Custódio batizado em 23/07/1831. Livro 01 de Batismo de Escravos da Catedral São Francisco de
Paula, fl. 179. ACDP.
13
crioulinho foram os seguintes: Miguel Rodrigues Barcellos15 e sua irmã Dona Josefa
Eulália Barcellos. 16
No caso da família dos crioulos Manuel e Delfina, o Comendador poderia ser
um forte conector entre a senzala e o mundo exterior a ela, neste caso, o bando de seu
clã, formado pelos seus filhos Miguel e Dona Josefa. Sabiamente a agência escrava da
família do crioulo Emílio reconhecia o bando que frequentava a casa do seu sinhô,
aproveitando para estreitar vínculos de parentesco e proteção social com tal grupo
familiar dos Rodrigues. Ou seja, os jogos tramados entre as partes envolvidas na busca
de seus anseios tanto passava pelos cálculos senhoriais como pelas artimanhas dos
cativos ao estabelecerem as regras sociais em torno do compadrio (ENGEMANN,
2008).
Ao observar os laços de parentesco costurados pelos escravos do Comendador
Boaventura Rodrigues Barcelos, percebe-se a construção de hierarquias, contudo, “não
de qualquer hierarquia” (FRAGOSO, 2010, p. 266). Como foi possível detectar as
famílias legítimas ou não de cativos dessa senzala estreitaram laços familiares com
escravos da mesma senzala, mas também com a parentela senhorial. Conforme é sabido,
não era qualquer família cativa que possuía um parente espiritual com seu senhor ou
com os parentes da casa senhorial. Havia hierarquias complexas nesse jogo social. É
certo, segundo as palavras de Fragoso, “que existia uma preocupação senhorial de que o
compadrio dos escravos ocorresse num ambiente de endogamia, ela devia ocorrer,
preferencialmente, entre parceiros de uma mesma propriedade ou sob a tutela do mesmo
senhor” (FRAGOSO, 2010, p. 266). Notório salientar que as relações de compadrio
dessa escravaria não ultrapassavam os limites da rede social a qual o Comendador
pertencia.
15 Miguel Rodrigues Barcellos batizou também o pardo Cipriano, no dia 06/11/1834, filho natural da
parda Paulina, escravos de Francisco Teixeira de Magalhães. A madrinha foi Dona Silvana Rodrigues
Barcellos. Livro 01 de Batismo de escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 237. ACDP. 16 Livro 01 de Batismo de Escravos da Catedral São Francisco de Paula, fl. 214. ACDP.
14
Por outro lado, nota-se que poucos escravos foram alforriados por esse senhor.
Mas os escassos casos de escravos que receberam a alforria pertenciam a grupos
familiares que talvez estivessem em topo de uma hierarquia social dessa senzala
analisada. Talvez por uma inserção sócio-profissional no mundo do trabalho, por serem
famílias antigas nos plantel, pelo fato de algumas mães terem abastecido a escravaria do
comendador com bastantes crias, ou pelos laços fortes de dependência existente entre
essas famílias escravas e o proprietário Boaventura Rodrigues Barcelos. Analisando as
alforrias passadas a alguns membros familiares da senzala deste proprietário, postulo
que essa propriedade era marcada por estratificações e hierarquias sociais. A alforria era
um “instrumento de ascensão social por excelência para os escravos” (ENGEMANN,
2008, p. 52), talvez as estratégias do grupo familiar de alforriar a todos os membros não
fossem possíveis. O risco de a estratégia familiar malograr era bastante alto, por outro
lado, ser um egresso do cativeiro não era nada fácil também naquela sociedade marcada
por desigualdades. Para sobreviver nessa coletividade o individuo ou grupo familiar
teria de estar ligado a um bom número de laços sociais, pois liberdade naquele mundo
de antanho significava pertencer a alguém ou a um determinado grupo social.
A premissa de que esta sociedade escravista ancorada em um conjunto de
relações sociais era fundada em uma “natural desigualdade”, quiçá os primeiro passos a
serem dados por essas famílias talvez fosse a própria sobrevivência dentro dessa
coletividade antes de tentar libertar a si ou a um familiar. Dessa maneira, acredito os
projetos de liberdade eram plurais, ou seja, coletivos e não de cunho individual. Pois
quanto mais laços sociais ou inseridos em redes familiares os cativos estivessem,
maiores chances de sucesso teriam de alcançar a liberdade e manterem-se vivos dentro
dessa engrenagem social. Se o leitor esteve até aqui atento, observou que o filho do
comendador Boaventura Rodrigues Barcellos foi padrinho espiritual de uma das
famílias escravas de seu pai. Passamos adiante a analisar de que maneira o Dr. Miguel
15
Rodrigues Barcellos gerenciava a comunidade cativa que possuía naquela sociedade de
antanho.
Sob o signo da liberdade na senzala do Dr. Miguel Rodrigues Barcellos
Corria o ano de 1873 quando ocorre à abertura do inventário de Dona Eulália
Barbosa de Azevedo Barcellos, esposa do Dr. Miguel Rodrigues Barcellos. Dentre os
bens listados para a avaliação estavam sobrados e lances de casas no meio urbano da
localidade, uma charqueada, os escravos e uma cadeira no Teatro Sete de Abril da
cidade.17 O espólio da riqueza deste senhor era modesto se comparado a do seu pai,
visto que possuía um plantel com 16 escravos, sendo que destes nove cativos foram
doados a sua fortuna pelo seu sogro, o então também charqueador Heleodoro de
Azevedo Souza. Ao percorrermos a documentação cartorária das alforrias constatamos
dezenove escravos alforriados por Miguel Barcellos, sendo que nove destes possuíam
laços afetivos na comunidade de senzala, a qual geria como vemos na tabela abaixo:
Tabela B – Famílias cativas de Dr. Miguel Rodrigues Barcellos
Nome. do
Escravo
Laços
Familiares
Alforria Ofício Alforriados
Regina Mãe de
Angelina e de
Artur
Sim Costureira Dois filhos
Domingas Filha de
Joana
Sim Costureira Filha
Martinha Mãe de
Paula,
Roberto e
Joana
(ingênuos).
Filha de
Sim Costureira Martinha
17 Inventário de Dona Eulália Barbosa de Azevedo Barcellos. Segundo Cartório de órfãos e Ausentes da
cidade de Pelotas. Ano: 1873. Número do Processo: 10. APERS.
16
Joana
Paixão Filha de
Felisberta
Sim Costureira Mãe
Avelino Filho de
Joana
Pedreiro Filho
Abraão Filho de
Joana
Sim Carreteiro Filho
Virginia Filha de Rosa Sim Costureira Apenas
Virgínia
Paulo Filho de Rosa Sim Sem Ofício Filho
Inventário de Dona Eulália Barbosa de Azevedo Barcellos. Ano 1873. Número do Processo: 10. Segundo
Cartório de órfãos e Ausentes de Pelotas. APERS.
Livro 03 de Batismos de Escravos (1853/1859). ACDP.
Livro de Ingênuos de Pelotas (1879/1884). ACDP.
Registro de Matrícula dos escravos de Dr. Miguel Rodrigues Barcellos (1873).
Catálogo Seletivo de Alforrias (1830/1888). APERS.
É significativo averiguarmos que grande parte dos núcleos familiares da
escravaria do Doutor Barcellos conseguiu a liberdade. O caso da família da parda
Regina é exemplo disto. Sua filha Angelina era menor de idade quando foi agraciada
com plena liberdade por seu amo no ano de 1859. 18 Por sua vez, seu irmão o pequeno
Artur teve a liberdade concedida ao receber os santos óleos na pia batismal no ano de
1856.19 Todavia a mãe dos pequenos manteve-se escrava. Não sabemos se a alforria de
Artur foi paga por algum parente ou dada gratuitamente a ele. Conjecturamos a
possibilidade de que pelos bons serviços prestados pela mãe, a parda Regina podem ter
interferido positivamente para que suas crianças fossem contempladas com a liberdade.
Importante destacar que a grande maioria dos núcleos familiares eram
chefiados por mulheres, ou seja, forte presença da matrofocalidade, pois aparentemente
os lares negros eram chefiados por essas mães, ao que tudo indica solteiras. Contudo,
não é impossível que suas crias convivessem com seus pais na mesma comunidade de
18 Carta concedida em 11/09/1959 e registrada em 25/11/1859. Livro 05, fl. 64r. APERS. 19 Carta concedida em 09/04/1856 e registrada em 11/04/1856. Livro 07, fl. 25v. APERS.
17
senzala em que viviam. O Comendador Boaventura Rodrigues Barcellos, em sua grande
maioria, também possuía famílias escravas onde mãe e filho, predominavam como
componentes centrais, tendo poucos casos de famílias legítimas que foram sancionadas
perante a sociedade escravista pelos olhos da Igreja Católica. Esse cenário não foi
exceção na sociedade escravista pelotense. Mães e filhos nos núcleos familiares foi a
regra, talvez aqui resida a singularidade da família escrava nessa sociedade. Cenário
diferente encontrado pelo historiador Robert Slenes para Campinas no Século XIX,
onde o predomínio de famílias conjugais se fazia presente de maneira relevante em seus
dados (SLENES, 2011, p. 101-125). Para Slenes a família escrava potencializava
maiores recursos para obtenção da liberdade. Segundo a linha de seu raciocínio:
Especificamente, a poupança da família conjugal ou da família
extensa poderia ser coordenada com a finalidade de resgatar um de
seus membros do cativeiro, ou mais de um sucessivamente, de acordo
com o critério do grupo (SLENES, 2011, p. 206).
Concordamos com a linha de pensamento de Slenes. Todavia a singularidade
da família escrava em Pelotas reside que os esforços despendidos para a compra da
liberdade de um familiar foram projetados de maneira significativa pela figura materna
e não pelos casais, ou seja, a família conjugal. Em trabalho anterior constatei a agência
de mães que resgataram seus rebentos do cativeiro ora pagando pela manumissão da
criança ora pagando com seus longos anos de trabalho e fidelidade para com seu dono
ou ex-senhor (PINTO, 2012, p. 188).
Investigando as alforrias legadas pelo Doutor Miguel Rodrigues Barcellos às
famílias escravas de plantel, inferimos que em algumas liberdades foram concedidas
gratuitamente dando plena liberdade ao escravo, outras foram concedidas com a
condição de continuarem a prestar por mais um determinado tempo de trabalho a ele,
especialmente aquelas manumissões ofertadas no ano de 1884. Diante disso, vemos uma
significativa diferença de seu governo de senhor se comparado ao controle que seu pai
18
exerceu com suas famílias cativas, visto que a maioria destes núcleos familiares pagou
pela liberdade de um parente.
Vejamos o caso da família chefiada pela finada escrava Joana do Doutor
Barcellos. Pelo quadro acima observamos que quatro de seus filhos tidos durante o
cativeiro foram contemplados com a liberdade, Martinha, Domingas, Avelino e Abraão.
Por exemplo, os irmãos Abraão, Avelino e Martinha foram alforriados com a condição
de prestar por mais seis anos serviços a Miguel Barcellos. 20 Por sua vez, Domingas
também teve legada uma liberdade condicional de trabalho, todavia por menos tempo
em relação a seus irmãos, deveria continuar servindo seu senhor por mais três anos de
serviços. 21
Quiçá a família da escrava Joana ocupasse um lugar de privilégio na
escravaria de seu senhor, visto que todos os seus filhos obtiveram o papel de alforria.
Contudo, uma liberdade que carregava ainda um gosto amargo devido aos anos que
ainda teriam de ser cativos obedientes, leais e trabalhadores rentáveis até que o prazo
estipulado pelo Sr. Miguel Rodrigues Barcellos chegasse ao término. Indubitavelmente
que a passagem do cativeiro para o mundo dos livres para os integrantes da família da
finada cativa Joana deveriam passar pelos códigos senhoriais, ou como Slenes (2011, p.
28) pontuou pelas “políticas de domínio” senhoriais, entretanto isso não tirava a ação
desses agentes sociais para a conquista de suas liberdades. Além disso, se a família
escrava auferia um instrumento de controle de domínio a seu senhor, cabia aos escravos
e seus familiares jogarem dentro dessas margens de linha para tramarem a sua liberdade
individual ou de um familiar, mesmo que esse jogo passasse pelas linhas das políticas
de domínio senhoriais. Conforme destacou Araújo em seu trabalho, a alforria “era a
recompensa pela fidelidade, pelos bons serviços prestados e pela espera laboriosa até
20 Carta de Abraão concedida em 26/08/1884 e registrada em 27/08/1884. Livro (07, fl. 17v). APERS.
Carta de Avelino concedida em 26/08/1884 e registrada em 27/08/1884. Livro (07, fl. 18v). APERS.
Carta de Martinha concedida em 26/08/1884 e registrada em 27/08/1884. Livro (07, fl. 21v). 21 Carta concedida a Domingas em 26/08/1884 e registrada em 27/08/1884. Livro (07, fl. 15v).
APERS.
19
que fossem concluídas as condições impostas” (ARAÚJO, 2008, p. 207) ao indivíduo
ou ao grupo familiar.
Possivelmente as alforrias passadas aos núcleos familiares da comunidade de
senzala do Doutor Barcellos, ao que tudo indica se deve pelos laços familiares e
comunitários que estes cativos estavam inseridos e também pela via da mobilidade
ocupacional, visto que grande parte dos alforriados conforme indica a tabela acima eram
sujeitos com ofícios especializados, sobretudo em relação às mães dos libertados que
exerciam o trabalho de costureiras. Segundo Jonas Vargas o grupo ocupacional das
cativas costureiras “era muito importante nas charqueadas, pois seus serviços eram
utilizados para reformar o próprio estabelecimento e seus equipamentos”, realizando a
manutenção diária desses locais de trabalho (VARGAS, 2013, p. 210). Ressaltamos
ainda que no caso das costureiras essas profissionais poderiam locar seus serviços a
terceiros auferindo e amealhando recursos extras a renda de seu proprietário
(KARASCH, 2000).
Acreditamos mesmo que não tenhamos encontrado indícios a respeito da
compra com pagamento em espécie das alforrias pelos núcleos matrifocais dessa
escravaria analisada, postula-se a hipótese que essas famílias escravas tenham
envelhecido e feito história através da boa conduta de seus serviços. O que acarretaria
em um longo espaço de tempo o legado da liberdade via os bons serviços prestados por
suas mães e filhos, como também pela mobilidade ocupacional que estas famílias
possuíam. Como relata o historiador Guedes “a vontade de melhorar de vida, porém
começava no cativeiro, mediante a família escrava”, sendo um dos primeiros passos
para se diferenciar dos demais na hierarquia do mundo do cativeiro (GUEDES, 2008, p.
125).
Talvez tenha sido este o caminho traçado por essas famílias cativas que ao
potencializarem suas forças na família, no trabalho obediente ao seu senhor
conseguiram passar “pela porta estreita” da vida em liberdade, subindo mais um dos
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degraus da hierarquia social da sociedade escravista de outrora, isto é, vivem como
senhores de si e não mais como propriedade de outrem.
Considerações Finais
Analisando as trajetórias esboçadas nesse artigo, observam-se situações
singulares. Ao inferir a análise sobre as relações de compadrio e projetos de liberdade
das famílias escravas no plantel do Comendador Boaventura Barcelos, foi possível notar
uma estratificação social dentro dessa senzala. Observaram-se diferentes tramados de
parentesco e de relações sociais amalgamadas na pia batismal, onde em uma sociedade
marcada pela desigualdade iam sendo construída e traduzida pelas hierarquias sociais
realizadas tanto pelas famílias escravas legítimas ou não. Inferiu-se que algumas
famílias dessa escravaria estendiam seus laços parentais com cativos bem posicionados
na hierarquia social da senzala. Hierarquias assentadas em uma tradição costumeira,
onde “cada grau é conectado a outro pelos compromissos do compadrio, reforça a ideia
de diferenças no interior das senzalas” (FRAGOSO, 2010, p. 281). E essa conexão via
os laços de parentesco poderiam auferir barganhas sociais para os grupos familiares em
questão. Por exemplo, a liberdade de um familiar. Nota-se que nem todos os escravos
conseguiam de fato alforriar-se no plantel do comendador. Talvez os que conseguiram
passar “pela porta estreita da liberdade” fossem sujeitos bem posicionados na hierarquia
costumeira da senzala e que pertenciam a núcleos familiares já antigos nessa escravaria,
visto que os laços de parentesco seriam acionados na luta pelo projeto de liberdade de
um parente. Penso também que essas famílias escravas não cumpriam apenas o papel de
tentar o resgate de um familiar do cativeiro. Cumpriam também um “papel importante
nas estratégias de legitimidade de seu senhor” (FRAGOSO, 2010, p. 281) no poder
local, quem sabe. Os laços de dependências constituídos pelas famílias escravas de
Barcelos talvez lhes proporcionassem benefícios caros a sua sobrevivência dentro e fora
do cativeiro, pois como é sabido viver em liberdade em uma sociedade escravista,
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marcada pela desigualdade não era nada fácil. Provar que era um homem liberto naquela
época era uma situação complicada. Por isso, construir boas relações sociais com seus
senhores fosse um jogo estratégico dessas famílias escravas de tentarem manterem-se
vivas dentro da engrenagem social do mundo escravista de outrora. Entretanto, ao
observar-se o caso da família da escrava Joana, propriedade de Miguel Barcellos, filho
do Comendador tem-se a nítida impressão da linha tênue entre o cativeiro e liberdade.
Seus filhos foram libertados condicionalmente por seu senhor. Se porventura nenhum
de seus filhos respeitasse as regras sociais arquitetadas pelo mando senhorial do Doutor
Barcellos, o retorno ao cativeiro seria inevitável. Como relata o historiador Chalhoub
“parecia claro que a liberdade era experiência arriscada para os negros no Brasil do
século XIX, pois tinham sua vida pautada pela escravidão, pela necessidade de lidar
amiúde com o perigo de cair nela, ou voltar para ela” (CHALHOUB, 2012, p. 29).
Ocasião que não deve ter sido apenas experimentada pelo grupo familiar da finada
Joana, mas como tantos outros, que tiveram suas vidas pautadas pelas alforrias
condicionais. Mas é emblemático destacar que tanto na comunidade de senzala do pai
(Comendador) e do filho (Doutor) os escravos que conseguiram a liberdade eram
aqueles possuíam relações familiares e uma qualificação profissional, ou seja, eram
sujeitos qualificados e bem posicionados na hierarquia social das senzalas de seus
respectivos proprietários. Em suma, ainda há que se investigar com mais vagar a
respeito da liberdade geracional (BERLIN, 2006) desses indivíduos para
problematizarmos os projetos de liberdade liderados pelos familiares cativos.
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