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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS CURSO DE SERVIÇO SOCIAL AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO Natália Parizotto SÃO PAULO 2012
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AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Apr 22, 2023

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Page 1: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA

FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS

CURSO DE SERVIÇO SOCIAL

AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Natália Parizotto

SÃO PAULO

2012

Page 2: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO........................................................................................3

CAPÍTULO I

AS RELAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO NA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA.............................................................................10

CAPÍTULO II

EXPRESSÔES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO....................................31

CAPÍTULO III

AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE

VIOLÊNCIA DE GÊNERO....................................................................49

CONCLUSÃO.......................................................................................63

BIBLIOGRAFIA ...................................................................................67

ANEXO I...............................................................................................73

Page 3: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

INTRODUÇÃO

Page 4: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Este estudo tem por foco a reflexão crítica acerca das expressões da questão

social forjadas na situação de violência de gênero, particularmente dos homens contra as

mulheres, e instaladas nas relações familiares, na perspectiva da compreensão das

determinações sócio-históricas implicadas na produção e reprodução deste tipo de

violência.

Este estudo tem a análise fundamentada na perspectiva de gênero. Através do

estudo de gênero nos aproximamos da compreensão da desigualdade entre homens e

mulheres e passamos a entendê-la como fruto das relações sociais na sociedade

contemporânea. A criação desta categoria de análise, cunhada por Joan Scott, inaugurou

o entendimento de que há uma gramática sexual que é ensinada aos meninos e meninas

no seu processo de socialização. Desta forma, como disse Simone de Bevoir, as

mulheres não nascem mulheres, mas tornam-se. O mesmo se dá com os homens que

aprendem o papel que lhe é “devido” socialmente.

Por muito tempo, as diferenças biológicas foram usadas como fundamento para

justificar a transformação das diferenças dos gêneros em desigualdade. Aí reside a

importância da perspectiva de gênero neste trabalho: ela deflagra como as

determinações sócio-históricas operam na composição destas desigualdades.

O arcabouço ideológico socialmente desenvolvido para justificar a superioridade

masculina é denominado patriarcado. O estudo do patriarcado tem extrema importância

neste trabalho, pois permite a compreensão de como as diferenças entre os gêneros são

convertidas em desigualdades cujo ápice é a violência doméstica.

A violência de gênero (...) transforma diferentes em desiguais, hierarquiza a

desigualdade em superior e inferior, e submete a mulher à força e ao poder do

homem. A violência doméstica praticada contra a mulher é um concreto exemplo

de violação da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

(GUIMARAES, 2011:5)

A partir do momento em que uma hegemonia é instituída, surgem relações

permeadas por antagonismo, contradições e complementaridades. O homem, para

instituir seu poder passa a oprimir a mulher. É importante notar que se houver a

completa supressão do outro, a relação que dá poder ao homem terá se extinguindo.

Desta forma, entende-se que há uma correlação de forças entre o homem e a mulher, ou

seja, a mulher detém algum poder nessa relação, muito inferior ao dele.

Page 5: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Vivemos em uma sociedade capitalista cuja estrutura assenta-se na extração da

mais-valia do trabalhador por parte do capitalista detentor dos meios de produção.

Sendo um sistema essencialmente exploratório, o capitalismo tem no patriarcado um

grande aliado, visto que este é capaz de legitimar ideologicamente a exploração operada

por aquele.

O patriarcado legitima que o capitalismo pratique valores salariais mais baixos às

mulheres, aumentando a taxa de lucro do empresário. Por outro lado, a ideologia

patriarcal super responsabiliza o homem como “chefe da casa” o que lhe imputa a

obrigação de prover não apenas o seu sustento, mas o de toda sua família. Dessa forma,

ele se sente compelido a trabalhar o máximo que puder, vulnerabilizando suas

condições de venda de mão de obra. Ou seja, o homem teme muito mais perder sua

posição de trabalho, pois este é seu papel social, ele é o provedor, e deve fazê-lo a

qualquer custo, mesmo que seja nas piores condições de trabalho.

Alem da questão de gênero, é importante colocar que o vetor de raça / etnia

também age como potencializador da opressão de classe. Isto é: na sociedade capitalista

no ápice está o homem branco e rico e na outra ponta está a mulher negra e pobre.

Dessa forma, pode-se compreender a violência doméstica contemporânea, fruto de

uma sociedade capitalista patriarcal, como uma expressão da questão social – objeto de

trabalho do assistente social.

Compete ao Assistente Social a busca permanente das diferentes manifestações da

questão social que emanam de demandas – tanto institucionais quanto advindas da

população – nas quais atua na perspectiva da garantia e ampliação dos direitos sociais. A

produção teórica, neste sentido, é de extrema importância, pois instrumentaliza a

capacidade de analisar e elaborar propostas interventivas às estas demandas, na

perspectiva da objetivação do projeto ético político da profissão.

Segundo o Projeto Acadêmico do Curso de Serviço Social (2009:20):

As bases para a produção de conhecimentos necessários à atualização do arsenal

teórico-técnico-operativo da profissão estão no desvendamento da lógica das

determinações das novas configurações da questão social, no contexto das

profundas transformações que vêm sendo operadas no mundo do trabalho, com

amplas repercussões na esfera do Estado, nas novas conformações assumidas pela

sociedade civil, assim como nas mudanças no campo da cultura e da

subjetividade.

Por meio da leitura de Chauí e Rocha podemos compreender como a

dicotomização entre espaço público e privado também colabora para que a violência

Page 6: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

doméstica opere no âmbito das relações familiares, ainda entendida e protegida como

fórum do privado, com poucos canais de publicização e formas de enfrentamento pelo

poder público.

A utilização da dicotomia entre espaço público e espaço privado é ideológica,

constituindo parte das estratégias que sustentam as relações hierárquicas de

dominação, exploração e desigualdade entre homens e mulheres. (...) Para

entender a família e a violência doméstica, é necessário superar as posições

binárias mencionadas. Não se trata de uma instituição e de uma questão de

natureza exclusivamente privada e interpessoal. A família é uma instituição social,

perpassada pelas contradições e interesses em luta na sociedade, produto do

conjunto de suas determinações, ao mesmo tempo que constitui uma das

mediações que contribuem para a reprodução dessas determinações. (ROCHA,

2007: 31)

A partir do final da década de 1970 notícias acerca da violência contra mulheres

ultrapassaram as paredes das casas e começaram a ganhar espaços públicos. Desde

então, começou-se a dar importância para notícias de que mulheres sofriam violência,

sobretudo dos seus maridos ou companheiros dentro de suas próprias casas.

Diante desta situação, o movimento de mulheres e o feminista iniciaram intensas

lutas com resultados importantes, como por exemplo: a Criação do SOS Mulher em

1980, a criação do Conselho Estadual da Condição Feminina de São Paulo em 1982

seguido pela criação em outros estados e municípios; criação da COJE e de Delegacias

da Mulher em 1983, criação do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres em 1985,

entre outros.

Muitas foram as iniciativas, tanto dos movimentos de mulheres e do feminista,

como o de organizações não governamentais voltadas para o público feminino, com

vistas a cobrar do Estado políticas públicas voltadas a erradicação da violência contra a

mulher. Neste contexto, o Brasil assinou em 1984 a Convenção sobre a Eliminação de

Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher – CEDAW, aprovada pela ONU

em 1979, e em 1994 assinou a Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e

Erradicar a Violência Contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará,

que foi ratificada em 1995.

Consequentemente, as mulheres inseridas na trajetória de lutas dos movimentos

sociais foram construindo marcos de grande importância na questão da violência contra

a mulher como a Lei Maria da Penha, aprovada em 2006.

Page 7: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Infelizmente, a maior resistência para a erradicação da violência tem sido o

poder ideológico do patriarcado que se reproduz diariamente no cotidiano por meio das

relações entre homens e mulheres, homens e homens, e mulheres e mulheres. Seus

efeitos são a reprodução da violência, assim como sua naturalização. É um engano

pensar que apenas os homens são machistas, visto que as mulheres também são

socializadas no mesmo meio que eles. Segundo Toledo (1995: 68):

(...) o poder imanado do patriarcalismo não é uma prerrogativa do homem, um

poder hegemônico, privilégio apenas do homem, mas tanto a mulher quanto o

homem reproduzem esta questão.

A violência nesse panorama constitui-se como instrumento para a manutenção

do poder e consolidação da superioridade masculina. Ela funciona como controle social,

que opera baseado no medo e no controle, o que se acirra diante da ineficácia das

políticas públicas e sua baixíssima efetividade frente às relações cotidianas permeadas

pela opressão das mulheres.

Dessa forma, faz-se urgente o foco sobre a violência domestica, suas raízes e

suas expressões para que se possa elaborar propostas sólidas e eficazes para seu

combate.

INDAGAÇÃO CENTRAL

Quais as determinações sócio históricas da situação de violência de gênero?

OBJETIVO

Analisar as determinações sócio-históricas implicadas na produção e reprodução

da situação de violência de gênero nas relações familiares.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Analisar a construção social dos papéis de gênero imbricado à estrutura

de poder e subalternidade

Identificar as diferentes expressões da violência doméstica nas relações

familiares;

Analisar as conseqüências para as mulheres em situação de violência

doméstica e seus filhos.

Page 8: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

Pesquisa teórica

A perspectiva teórica adotada é a de gênero, tendo Heleieth Saffioti como uma

das principais fontes teóricas, dada sua expressiva produção intelectual nas últimas

décadas acerca do tema.

A pesquisa foi realizada em textos, livros e artigos acerca de gênero, divisão

sexual do trabalho, patriarcado, desigualdade, discriminação, estereótipo, preconceito,

ideologia, religião, cultura, poder, violência, espaço do público e privado, destino de

gênero e a força ideológica dos papéis de gênero, a naturalização da violência imbricada

ao território, o espectro do abandono implícito no legado geracional, a força do fraco,

co-dependência, dependência e reciprocidade; sofrimento ético-político e suas

manifestações nas doenças psíquicas.

Pesquisa em fontes secundárias

Foram utilizados dados estatísticos, como o Mapa da Violência e a pesquisa

“Mulheres brasileiras e gênero nos espaço público e privado” realizada em 2010 pela

Fundação Perseu Abramo. Através dessa pesquisa foi possível comprovar o número

expressivo de mulheres que sofrem violência doméstica atualmente. Segundo a

pesquisa, 40% das entrevistadas haviam vivido violência e 48% dos homens

entrevistados conheciam um agressor.

Foi consultada a Lei Nº 11.340, de 7 de Agosto de 2006 (conhecida

nacionalmente como Lei Maria da Penha).

A utilização de fontes eletrônicas por meio de consulta à internet nos permitiu

assistir vídeo aulas referente ao assunto, a utilização de fotos, gráficos e consultas a

sites embasados nessa questão.

Pesquisa em fontes empíricas

Procedemos à análise de oito entrevistas com mulheres vítimas de violência

doméstica. Os dados foram coletados pelos alunos que cursaram o Núcleo Família e

Sociedade do curso de Serviço Social, no segundo semestre de 2010, como parte da

pesquisa desenvolvida pelas professoras Laisa Regina Di Maio Campos Toledo,

Page 9: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

coordenadora do referido Núcleo, e a professora Sueli Gião Pacheco do Amaral,

coordenadora do Núcleo de Gênero, Raça/etnia.

Foram entrevistadas mulheres que vivem ou já viveram o cotidiano da violência

com o companheiro ou ex-companheiro. A condição é que os sujeitos entrevistados já

tivessem algum tipo de vínculo com os alunos entrevistadores para facilitar a coleta de

dados em base de um relacionamento de confiança, visto que o tema é delicado e causa

vergonha e constrangimento. A adesão foi espontânea, todos os entrevistados foram

informados sobre o propósito da pesquisa e deram consentimento para a realização e

gravação das entrevistas.

Instrumento

Entrevista semi estruturada, privilegiando: o perfil, o vínculo com o autor da

violência, o tipo de violência, o histórico de violência, as situações padrões que

desencadeiam na violência, como vê e enfrenta a situação vivida.

Sistematização e análise dos dados da pesquisa empírica

A sistematização dos dados coletados foi realizada a partir das categorias teóricas

já definidas a partir da pesquisa teórica, sendo elas: destino de gênero e a força

ideológica dos papéis de gênero, a naturalização da violência imbricada ao território e o

espectro do abandono implícito no legado geracional.

Estrutura do trabalho

No capítulo I intitulado: As relações sociais de gênero na sociedade

contemporânea - teorizamos acerca de gênero, divisão sexual do trabalho, patriarcado,

desigualdade, discriminação, estereótipo, preconceito, ideologia, religião, cultura, poder,

violência a fim de tentar esclarecer como se estabelecem os fundamentos da violência

domestica na sociedade contemporânea. A construção teórica se apoiou

fundamentalmente na perspectiva de gênero desenvolvida por Saffioti e demais

pesquisadores como Almeida, Chauí e Toledo.

No Capítulo II – Expressões da violência de gênero - apresentamos, a partir dos

dados estatísticos da pesquisa da Fundação Perseu Abramos, as várias expressões de

violência de gênero, dimensionando a sua visibilidade e incidência em relação ao

vínculo, perfil e a violência de gênero na perspectiva do autor da agressão.

Page 10: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

No Capítulo III - As determinações sócio históricas da situação de violência de

gênero -, procedemos a análise de oito entrevistas com mulheres vítimas de violência

doméstica – realizadas pelos alunos do Núcleo Família e Sociedade do curso de Serviço

Social em 2010 (Anexo I) – a fim de compreender as determinações sócio-históricas

implicadas na produção e reprodução da situação de violência de gênero nas relações

familiares.

Nas Considerações finais, a partir do processo empreendido nesta pesquisa,

refletimos acerca dos desafios na identificação e estudo da violência doméstica,

especialmente de suas determinações sócio-históricas, a fim de construir um arcabouço

teórico capaz de fundamentar a busca pelas melhores formas de enfrentamento a esta

expressão da questão social.

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CAPITULO I

AS RELAÇÕES SOCIAIS DE GÊNERO NA SOCIEDADE

CONTEMPORÂNEA

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GÊNERO

Com o aprofundamento do estudo de relações entre homens e mulheres, foi

cunhado o termo gênero que permite compreender o aspecto cultural das denominações

feminino e masculino rompendo com a naturalização que se faz a esses papéis.

Segundo Scott (2004:1-2):

Gênero é a organização social da diferença sexual. O que não significa que gênero reflita

ou implemente diferenças físicas fixas e naturais entre homens e mulheres mas sim que

gênero é o saber que estabelece significados para as diferenças corporais. Esses

significados variam de acordo com as culturas, os grupos sociais e no tempo (...) Não

podemos ver a diferença sexual a não ser como função de nosso saber sobre o corpo e

este saber não é “puro”, não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de

contextos discursivos.

Sendo assim, compreende-se que gênero é uma gramática sexual que apresenta

regras para a construção do masculino e feminino não necessariamente assimétrico.

Estas regras vão sendo desenhadas ao longo da história definindo a formas de viver, o

papel social de cada gênero na sociedade. Segundo Saffioti (2004: 58):

Entendido como imagens que as sociedades constroem do masculino e do feminino, não

pode haver uma só sociedade sem gênero. A eles corresponde uma certa divisão sexual do

trabalho, na medida em que ela se faz obedecendo ao critério de sexo. Isto não implica,

todavia, que as atividades socialmente atribuídas às mulheres sejam desvalorizadas em

relação às dos homens.

Ou seja, o gênero é traçado pelas práticas sociais permitidas no entendimento

daquela sociedade, naquele momento histórico. É o modo como cada gênero age, vive,

trabalha, veste-se, consome, relaciona-se etc. Obviamente essas definições estão em

movimento constante, alimentadas pelo gênero oposto que se desenha também nesta

relação. Não há como pensar o feminino sem pensar no masculino.

O gênero é composto por relações históricas, localizadas que concretizam em

normas, organizadas e impostas socialmente. Clastres (1988: 75) nos exemplifica tal

fato em seu texto O arco e o cesto:

…o seu primeiro cuidado, logo que se integra na comunidade dos homens é fabricar para

si um arco; de agora em diante membro “produtor” do bando, ele caçará com uma arma

feitas por suas próprias mãos e apenas a morte e a velhice o separarão de seu arco.

Complementar e paralelo é o destino da mulher.(…) Primeira tarefa do seu novo estado e

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marca da sua condição definitiva, ela fabrica seu próprio cesto. E cada um dos dois, o

jovem e a jovem, tanto senhores e prisioneiros, um do seu cesto, o outro do seu arco,

ascendem dessa forma à idade adulta. Enfim, quando morre um caçador, seu arco e suas

flechas são ritualmente queimados, como o é também o último cesto de uma mulher: pois,

como símbolos das pessoas, não poderiam sobreviver a elas.

Percebe-se que o gênero é universal, mas a forma como se expressa nas diferentes

sociedades varia de acordo com determinantes históricos e temporais. Na sociedade

contemporânea urbana ocidental as mulheres não produzem cestos, mas são

introduzidas ao longo de sua vida a um arcabouço de regras sociais que desenham seu

papel naquela sociedade e implicam em uma conduta específica: há um padrão de

beleza, uma padrão de conduta sexual, profissional, familiar, etc.

Estas regras permeiam as relações sociais implícita e explicitamente e nem

sempre são claras aos sujeitos. Além disso, o fato de serem impostas não exclui a

possibilidade de conflito com tais regras.

Vale notar que a importância da criação do termo gênero está na possibilidade de

explicar a criação destas regras pautadas em fatores sócio-históricos indo além do

simples respaldo biológico. Sendo assim, esse termo tornou-se um importante

instrumento de ação contra a desigualdade entre gêneros.

É importante notar que gênero obrigatoriamente denota diferença, mas este fato

não implica em desigualdades. A desvalorização que o gênero feminino sofre em nossa

sociedade advém do patriarcado.

Essa distinção entre gênero e sexo permite entender que não há nada de natural

nas funções e características atribuídas a cada um dos sexos e que, portanto, podem ser

transformadas. Pode-se dizer que gênero é definido pela sociedade através de normas e

comportamentos tidos como adequados para homens e mulheres. O gênero participa do

processo de construção do sujeito, portanto a desigualdade de gênero é construída pela

sociedade.

GÊNERO, CLASSE E RAÇA/ ETNIA

Para se entender com mais propriedade o processo de dominação-exploração que

subjuga as mulheres na sociedade capitalista, é interessante compreender outros vetores

nos quais a mesma dinâmica se reproduz e que estão fundidos com o patriarcado.

Segundo o VI Relatório Nacional Brasileiro para o Comitê CEDAW (2008: 188):

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No caso das mulheres, os problemas são agravados pela discriminação nas relações de

trabalho e a sobrecarga devida às responsabilidades com o trabalho doméstico. Outras

variáveis como raça, etnia e situação de pobreza realçam ainda mais as desigualdades. As

mulheres vivem mais do que os homens, porém adoecem mais frequentemente. A

vulnerabilidade feminina frente a certas doenças e causas de morte está mais relacionada

com a situação de discriminação na sociedade do que com fatores biológicos.

As esferas de gênero, classe e de raça/ etnia operam concomitantemente

agravando ou suavizando as condições de vida do sujeito. Isso significa que

Os sujeitos sociais integram uma ou outra categoria de gênero, pertencem a uma ou outra

classe social e a uma ou outra raça /etnia, simultaneamente e de forma simbiótica, de tal sorte

que ao enfocarmos uma destas contradições, automaticamente estarão presentes e atuantes as

outras duas (SAFFIOTI apud AMARAL, 2006: 22).

Nestas três esferas há a discriminação, ou seja, a valoração de um grupo em

detrimento do outro. Esta composição complexa é muito interessante para o capitalismo

porque potencializa a dinâmica de dominação-exploração e facilita o acúmulo de

capital. Ou seja, esta prática determina e reproduz um cenário favorável para que os

grupos rebaixados não possam assumir posições de igualdade nas relações sociais.

Sendo assim, reitera-se a supremacia do homem sobre a mulher; do burguês sobre o

proletário e do branco sobre o negro – no Brasil existem outras raças/ etnias

discriminadas, mas a mais representativa é a negra.

Dessa forma, pode-se averiguar que as variáveis classe e raça/ etnia devem ser

consideradas quando se faz um estudo sobre a opressão das mulheres, pois podem

aumentar sensivelmente o índice de vulnerabilidade do sujeito.

GÊNERO E PATRIARCADO

Homens e mulheres vivem na sociedade contemporânea sob a égide da divisão

sexual do trabalho. Isso significa que são atribuídos a homens e mulheres atividades de

natureza específica para garantir a reprodução da vida social.

Ao contrário do que geralmente acredita-se, a divisão sexual do trabalho na

antiguidade não designava obrigatoriamente aos homens a caça e às mulheres a coleta

ou agricultura. Há registros de tribos onde as mulheres, inclusive grávidas eram as

Page 15: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

responsáveis pela caça. Segundo Saffioti, é muito provável que as mães que

amamentavam seus bebês os levavam junto ao peito ou nas costas e no momento da

caça o choro das crianças afastava os animais. Sendo assim, crê-se que as mulheres

passaram a desenvolver as atividades de coleta e agricultura e os homens passaram a

caçar. Começou a haver a domesticação das mulheres e o acesso ao espaço público

apenas aos homens.

É importante notar que ainda nesse momento não havia desvalorização das

atividades do gênero feminino, é delimitado apenas o que diz respeito a cada um.

Segundo Barroco (2008: 3):

...as sociedades primitivas viveram outras formas de relacionamento de gênero. Por outro

lado, a divisão sexual do trabalho (primeira forma de divisão social do trabalho) não

derivava de necessidades de poder, mas de necessidades objetivas decorrentes das

diferenças biológicas entre os sexos em face da caça e da maternidade.

Com o desenvolvimento das atividades produtivas e do comercio os homens

passaram a ser responsáveis pelas atividades produtivas, ou seja, tudo que é ligado ao

mercado, e as mulheres ficaram responsáveis pelo trabalho reprodutivo, tudo que é feito

para uso e consumo próprio e a reprodução da família. Ou seja, as atividades que o

homem faz são vendidas no mercado, já as que a mulher desenvolve não são. Teve-se

início a opressão das mulheres. Segundo a cartilha do Coletivo Feminista Yabá (2011:6):

A dependência financeira das mulheres, gerada pela divisão sexual do trabalho, é a

grande geradora de outras formas de opressão nas relações particulares, tais como a

violência doméstica, a restrição à liberdade e a falta de autonomia sobre seus corpos.

Obviamente para que um homem trabalhe é necessário que tenha roupas limpas e

comida à mesa etc., ou seja, o trabalho de reprodução que a mulher faz está imputado no

trabalho que o homem vende, porém ela não se apropria da riqueza que gerou. Por essa

razão Engels (2008: 3) afirma que:

O primeiro antagonismo de classe que apareceu na história coincide com o

desenvolvimento do antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia, e a primeira

opressão de classe coincide com a opressão do sexo feminino pelo masculino.

Para entender melhor como se deu a opressão das mulheres é preciso entender o

conceito de patriarcado. Três fenômenos foram decisivos para a constituição do

patriarcado.

Page 16: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O primeiro deles foi a evolução das forças produtivas e consequentemente da

produção de excedente econômico. Quando começou a haver acúmulo de riquezas veio

à pauta a gestão de bens e herança. Barroco (2008: 2-3) diz que:

Segundo Engels, a conversão das riquezas em propriedade particular das famílias

significou a desestruturação da genes baseada no matriarcado e na família sindiásmica.

Antes, a divisão do trabalho no interior da família dava ao homem a responsabilidade de

procurar alimentos e instrumentos de trabalho, que passavam a ser de sua propriedade, em

caso de separação, à mulher cabendo os utensílios domésticos. No entanto a propriedade

que cabia ao homem não podia ser deixada de herança, pois a descendência era contada a

partir da mãe. Os bens deveriam ficar dentro da genes; logo, em caso de morte, os

parentes da mãe e os filhos (por linhagem materna) recebiam a herança. Na medida em

que os filhos não pertencem à genes do pai, não recebiam a herança paterna que ficava na

genes do pai, para os parentes.

O segundo fator foi a sedentarização dos povos. Nesse período ocorreu o domínio

da agricultura e a criação de animais. O acasalamento dos animais foi observado e

compreendido pelos humanos. Com esse entendimento as mulheres foram destituídas do

papel quase divino de gerar novos seres e alimentá-los. Os homens perceberam-se como

parte imprescindível da reprodução. Segundo relatos de Maurice Godelier (apud

SAFFIOTI, 2004: 59), o povo Baruia, habitante da Nova Guiné, tem por costume servir

aos jovens adolescentes do sexo masculino sêmen para que sejam iniciados à vida

adulta. Nestes casos torna-se taxativo como a importância da participação do homem na

atividade reprodutiva foi capaz de conferir-lhe poder traduzido através de simbologias

que configuram seus ritos.

Este foi o terceiro fator: o sistema simbólico construído pelos homens para lhe

atribuir prestígio e desvalorizar a mulher foi definitivo para a instituição do patriarcado.

A agricultura é uma atividade de característica repetitiva e rotineira, a caça, ao

contrario, é caracterizada pela ação pontual, explosiva. Sendo assim, a divisão sexual do

trabalho conferiu ao homem mais tempo livre, este foi utilizado para o exercício da

criatividade e consequentemente para a implantação de um regime de dominação-

exploração das mulheres.

A cultura do povo Baruia institui que o sêmen é o único responsável pela geração

de uma nova vida e também pela produção de leite pela mãe. Apenas sorvendo-o os

meninos poderiam tornar-se definitivamente superiores às meninas e mulheres,

tornando-se um homem.

Page 17: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de

poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais (SAFFIOTI, 2004:71).

Percebe-se, dessa forma, que o patriarcado

...refere-se especificamente a sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito

político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens (PATEMAN apud

SAFFIOTI, 2004:55).

É muito importante compreender que o patriarcado combina-se muito bem com o

capitalismo pois assegura uma organização social propícia ao acúmulo do capital, a

propriedade privada e a gestão de herança. Neste panorama a mulher passou a ser mais

uma propriedade. Sua sexualidade passou a servir ao homem para lhe gerar filhos que

lhe seriam braços úteis à produção, dar-lhe prazer e garantir a manutenção da herança

dentro da linha paterna. Para assegurar este terceiro ponto tornou-se mister controlar

mais profundamente o corpo da mulher: surge a obrigatoriedade da virgindade e da

monogamia feminina.

Assim como o gênero, o patriarcado pode ser considerado universal, variando de

acordo com a sociedade em que se manifesta.

Jessop (2007: 189), uma mulher americana que conseguiu fugir com seus oito

filhos de uma comunidade fundamentalista Mórmon na qual participava de um

casamento poligâmico conta-nos que

Esposas sempre faziam brincadeiras sobre tornarem-se a esposa favorita e deter o

máximo poder que pudessem dentro da família. Em nossa família eu tinha alguma

proteção, porque as outras esposas sabiam que Merril gostava de fazer sexo comigo

(tradução livre).

Apesar de ser um fenômeno universal e naturalizado, é essencial não perder de

vista que o patriarcado é um evento relativamente novo na história da humanidade –

toma cerca de sete mil anos dos cerca de trezentos mil que datam o início dos povos –

cujo fundamento é de caráter sócio-histórico pautado por sujeitos que mantêm entre si

relações de poder desiguais em detrimento da mulher. Há uma naturalização das

atribuições sociais, baseando-se nas diferenças biológicas.

Apesar da diferença entre os gêneros, é através do patriarcado que se apresenta a

desigualdade que permeia todos os espaços da sociedade: no mercado de trabalho, no

acesso aos direitos, informação, justiça, cidadania, etc.

Page 18: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Muitas vezes pode-se pensar que as “super-mulheres”, as “mães sem as quais

ninguém sobrevive” são modos de resistência ao patriarcado. Engano. Como afirma

Chauí (1985: 47)

...as mulheres estão impedidas de liberdade pela própria definição de seu lugar social e

cultural, pois sua subjetividade tem a estranha peculiaridade de colocá-las dependentes.

(...) Definida como esposa, mãe e filha (ao contrario dos homens, para os quais ser

marido, pai e filho é algo que acontece apenas), são definidas como seres para os outros

e não como seres com os outros.

Quando a mulher detém proeminência devido a necessidade que os outros

indivíduos sentem dela, nada mais faz do que legitimar o regime patriarcal no qual seu

valor está em ser para o outro e nunca para si mesma. A “super mãe” recebe o adjetivo

“super” pelo trabalho que desenvolve como mãe, como cuidadora, não como sujeito

protagonizando sua vida.

Outro engano pode ser cometido ao entender como poder matriarcal o poder que

a mãe exerce sobre seus filhos. Não é preciso que o patriarca esteja em cena para

exercer seu poder, ele pode ser designado à mãe por ventura de sua ausência. Ela evoca

a autoridade do pai, em sua impotência, e se torna cúmplice dele, perpetuando o regime.

No exemplo que segue, Jessop (2007: 135) narra a relação que vivia com a “esposa

preferida” em seu casamento poligâmico, momentos antes de uma viagem de família:

Barbara marchou para dentro da cozinha e disse em sua forma autoritária: "Que tipo de

decisões você estão fazendo, meninas, para alimentar as crianças? Quais são os planos

quanto às roupa das crianças?" Nenhuma das nossas respostas foi satisfatória. "O pai (o

marido) me deu a função de gerenciar o que vocês estão fazendo pra que fiquem da

maneira que ele prefere. É claro que nenhuma de vocês está em harmonia com ele pois se

estivesse teriam verificado comigo antes de começar este projeto” (tradução livre)

Além de o patriarcado fomentar a guerra entre as mulheres, funciona como uma

engrenagem quase automática, pois pode ser acionada por qualquer um, inclusive por

mulheres. (SAFFIOTI, 2004:101).

Neste contexto, entender o que é patriarcado também é necessário para entender o

exercício da autoridade dentro da ideologia machista. Saffioti (2004:57) explica:

no exercício da função patriarcal, os homens detêm o poder de determinar a conduta das

categorias sociais nomeadas, recebendo autorização ou, pelo menos, tolerância da

sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio.

Page 19: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O conceito de patriarcado refere-se a dominação-exploração das mulheres

pelos homens. Assim o ambiente familiar é regido por hierarquias onde se consideram

normal e natural que os maridos maltratem suas esposas enquanto os dois maltratam

seus filhos. Dá-se então a legitimação e ratificação da pedagogia da violência.

O machismo respalda-se no medo e no controle. Muitas vezes este mecanismo

passa despercebido, pois suas manifestações são entendidas erroneamente como

respeito, consideração etc. encobertos pelas dinâmicas sociais. É necessário estar atendo

às sutilezas através das quais o patriarcado se apresenta o que dificulta identificá-lo,

estudá-lo e consequentemente combatê-lo. A medica egípcia El Saadawi (2002: 33)

relata que nas sociedades árabes muçulmanas

As meninas são criadas numa atmosfera de precaução e medo, criando-se um tabu em

torno do contato ou exposição de suas partes genitais. Assim, toda vez que uma menina

manipular seu órgão sexual, naqueles movimentos exploratórios tão normais e saudáveis,

pois consistem em sua forma de adquirir conhecimento, haverá um pai ou uma mãe

vigilante cuja reação imediata será a de bater bruscamente na mão da criança. Algumas

vezes essa menina é surpreendida por um tapa no rosto...

O entendimento dos aspectos acima mencionados é essencial para a compreensão

de que não é possível haver a conciliação de interesses numa sociedade patriarcal.

Homens e mulheres vivem uma relação contraditória na qual o vetor de dominação só

pode ser superado pela transformação da desigualdade para benefício de ambos os

gêneros.Vale notar que o machismo prejudica tanto homens quanto mulheres, sendo o

saldo negativo maior para as mulheres.

As mulheres são “amputadas”, sobretudo no desenvolvimento e uso da razão e no

exercício do poder. Elas são socializadas para desenvolver comportamentos dóceis,

cordatos, apaziguadores. Os homens, ao contrario, são estimulados a desenvolver

condutas agressivas, perigosas, que revelem força e coragem (SAFFIOTI, 2004: 35).

Os homens chegam a suprimir toda a gama de emoções, necessidades e possibilidades,

tais como o prazer de se cuidar os outros, a receptividade, a empatia e a compaixão,

experimentados como inconsistentes com o poder masculino (FONSECA apud

TOLEDO, 2007:7).

Esses “amputações” são indesejáveis para ambos os gêneros pois encerram as

possibilidades destes indivíduos desenvolverem suas potencialidades. Em muitos casos

de violência doméstica contra mulheres, os agressores encontravam-se desempregados

há muito tempo e sofriam um profundo sentimento de impotência por não poderem

protagonizar o papel de provedor familiar que lhes foi conferido.

Page 20: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

PODER E VIOLÊNCIA

Tomando-se pode referência Foucalt, entende-se poder como uma correlação de

forças que perpassa toda a sociedade atravessando as relações sociais. O poder flui em

rede, ou seja, quando as pessoas se relacionam estão exercendo poder e sofrendo sua

ação. Ninguém é imune ao poder ou apenas um emissor dele.

O poder nunca está absolutamente nas mãos de uma pessoa ou de um grupo, mas

na verdade encontra-se em movimento. É verdade que o poder circula muito mais entre

os homens do que entre as mulheres, mas é equivocado pensar que as mulheres não

detêm nenhum poder.

A relação de dominação-exploração não presume o total esmagamento da personagem

que figura no polo de dominada-explorada. Ao contrário, integra esta relação de maneira

constitutiva a necessidade de preservação da figura subalterna. Sua subalternidade,

contudo, não significa ausência absoluta de poder. Com efeito, nos dois pólos da relação

existe poder, ainda que em doses tremendamente desiguais (SAFFIOTI apud AMARAL,

2006: p. 25-26).

Quando o poder não é partilhado igualmente entre os sujeitos surgem as

desigualdades. A discriminação e a opressão. Como foi explicada anteriormente, a

discriminação opera por três veios: gênero, classe e raça /etnia e é legitimada pela

ideologia.

… a explicação da subordinação das mulheres não se apóia nas diferenças físicas ou

biológicas que conformam uma anatomia de mulher ou de homem, conforme insistiam

aqueles que afirmavam a existência de uma natureza masculina superior e de uma

natureza feminina incompleta, frágil e, portanto, inferior. Na realidade, a explicação da

subordinação das mulheres aponta para o valor simbólico que a cultura atribuiu a essas

diferenças colocando no masculino e no feminino qualidades que, além de diferenciadas,

embasam discriminações e fundamentam relações de poder. Compreender a relações de

gênero é considerar como se constituem as relações entre homens e mulheres face à

distribuição de poder (BARSTED, 2001).

Chauí (1985: 35) concebe violência como a

Conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação hierárquica de

desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é, a conversão dos

diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo

lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta

se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo que, quando a

atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência.

Page 21: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Dessa forma, pode-se compreender como o patriarcado é uma forma de violência,

pois resulta em dominação, exploração e opressão das mulheres pelos homens. Sendo

assim, estabelece-se uma relação fundamental de desigualdade onde parece ser natural

que as mulheres sejam espoliadas da riqueza que produzem através do seu trabalho,

tenham seu corpo transformado em um objeto para reprodução da vida e prazer dos

homens, enfim, sejam treinadas para exercer o lado mais sombrio do poder: a

impotência. Os homens, em contrapartida, são socializados para exercer o outro lado do

poder: a potência. O gênero masculino é preparado para o exercício do poder e,

portanto, convive muito mal com a impotência.

Além de serem socializados a serem agressores, na maioria das vezes agem de

forma violenta para que não haja deslegitimação do poder exercido pelo homem.

Quando ele se sente desrespeitado, logo corrige as posturas que podem tirá-lo da

condição superior que exerce. Os machistas jamais podem protagonizar a situação de

impotência ou minimização.

Acredita-se ser no momento da vivência da impotência que os homens praticam atos

violentos, estabelecendo relações deste tipo. (SAFFIOTI, 2004: 84)

Ou seja, a sociedade patriarcal legitima o poder do homem e sua devida

implementação. Quando ele não consegue exercer este papel por estar numa situação de

impotência desenha-se um dos cenários mais comuns que antevêem a violência

doméstica.

Dentro do panorama apresentado acima sobre gênero e patriarcado tendo como

pano de fundo o capitalismo, é possível entender em que contexto histórico, como e

porque as relações de poder se estabelecem. Logo temos as relações violentas,

conseqüências do sistema patriarcal e capitalista em que vivemos.

A violência é um ato de constrangimento que consiste em fazer com que

determinada realidade opere sob uma ação de força externa contrária a natureza. Atos

violentos são formas de legitimação do poder. Logo a aceitação da violência como

“não-violência” é uma arma nas mãos da ideologia dominante, visto que há uma

naturalização das determinações sociais e históricas. O machismo, o modelo de

estrutura social, já é um tipo de violência contra a mulher, pois a coloca em uma

posição inferior em relação aos homens.

Page 22: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O papel de provedor das necessidades materiais da família é, sem dúvida, o mais

definidor da masculinidade. Perdido este status, o homem se sente atingido em sua

própria virilidade, assistindo à subversão da hierarquia domestica (SAFFIOTI, 2004: p

84-85).

Partindo do pressuposto de poder como uma correlação de forças, violência,

consequentemente, é entendida como uma situação relacional que pressupõe atores

inscritos dentro de determinações socio-históricas particulares.

Essa perspectiva insere a mulher como um dos protagonistas desta relação

superando o antagonismo reducionista que a coloca no papel passivo de vítima. O

subalterno constitui ativamente uma das partes da relação de dominação-exploração.

...a subalternidade não é uma via de mão única: é antes uma dinâmica plena de

antagonismos e complementariedades, sem a qual não se poderia reconhecer a própria

condição do subalterno e de quem subalterniza. Nesse sentido a mulher também

complementa e é sujeito dessa questão tanto quanto o homem (TOLEDO, 1995:66).

No senso comum, violência é entendida como a ruptura de diferentes tipos de

integridade: física, sexual, emocional e moral. O uso deste conceito é discutível, pois

abre margem para variações do limite da integridade para cada indivíduo. Será dada

preferência para o conceito de violência articulado aos direitos humanos, sendo “todo

agenciamento capaz de violá-los” (SAFFIOTI, 2006: 76).

Em 1979, a Convenção das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas das

Formas de Discriminação contra as Mulheres - o primeiro instrumento internacional de

direitos humanos especificamente voltado para a proteção das mulheres - constituiu

discriminação contra as mulheres como:

… toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou

resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher,

independente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos

direitos humanos e liberdade, fundamentais nos campos político, econômico, social,

cultural, civil ou em qualquer campo.

A partir dessa perspectiva torna-se mais claro porque a violência contra a mulher

é muito ampla e pode ser definida tanto pela ação ou omissão baseada no gênero que lhe

cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico, moral ou patrimonial. Este

tipo de violência não está restrito à espaços privados, como o lar, e pode ocorrer em

espaços públicos.

Page 23: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Vale ressaltar a diferença da violência que geralmente acontece com homens e

com mulheres.

A violência que ocorre com os homens geralmente se dá em ambientes públicos, é

pontual, tem testemunhas e não se conhece o agressor.

No caso das mulheres, a violência se dá, em sua maioria, no ambiente doméstico,

não há testemunhas, ela é cotidiana, sistemática e têm laços de afetividade com o

agressor. Segundo a cartilha do Centro de Referência da Mulher Inês Israel dos Santos,

em Itapecerica da Serra, no Brasil de 53% a 70% dos agressores contra mulheres são

marido, parceiro, ex-marido, ex-companheiro, ex-namorado.

Por todos os fatores elencados nesse capítulo, pode-se enfim compreender a

complexidade da situação de violência de gênero contra a mulher. Ela tem início no

processo de socialização, quando é ensinado que a mulher é secundária e impotente e se

desdobra ao longo da vida culminando em episódios de espancamento, estupro, cárcere

privado, morte etc. Também é válido compreender como esse processo está inscrito em

uma sociedade capitalista na qual meios de opressão de gênero, classe e raça /etnia

validam e mantêm a ordem econômica e política que vivemos.

DESIGUALDADES: DISCRIMINAÇÃO, ESTEREÓTIPOS E PRECONCEITOS

A discriminação, estereótipos e preconceitos têm em sua gênese preceitos

religiosos, senso moral e segmentos que legitimam os mecanismos do sistema societário

vigente.

A cultura judaico-cristã tem a figura do homem baseada na imagem e

semelhança de Deus, o Criador, enquanto a mulher tem sua figura baseada em Eva,

aquela que induziu o homem ao erro, que foi criada da costela de Adão para que

pudesse ser companheira dele.

Na Idade Média mulheres consideradas “castas”, tinham que ter o

comportamento adequado segundo os preceitos da igreja. A sexualidade feminina era

ocultada: a mulher não podia se tocar e até mesmo conhecer seu próprio corpo porque

não podiam experimentar o prazer, “pecado”. A figura feminina devia ser monogâmica,

fiel e casta.

Na sociedade contemporânea ainda há reprodução desses pensamentos que

estabelecem um modelo de mulher que são “boas para casar”, aquelas que possuem

comportamento submisso, obediente, bondoso e de preferência são moças virgens.

Page 24: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Uns dos fatores culminantes para a violência contra a mulher é a construção

social que a discrimina, julga pelas formas de comportamentos não “adequados”, e as

coloca num patamar inferior por ser o “sexo fraco e sensível”. A história das mulheres

na sociedade patriarcal é marcada pela discriminação decorrente de padrões culturais

pré-estabelecidos pela mesma.

O ato da discriminação é uma ação deliberada que exclui segmentos sociais do

exercício de direitos humanos. É segregar, isolar, desconsiderar. Esse conceito difere-se

do preconceito, porém podem ser considerados similares já que a discriminação é a

exteriorização do preconceito.

O preconceito é formado por conceitos tidos como verdadeiros sobre

determinado lugar ou pessoa, onde se manifestam falta de aceitação ou desconfiança

diante conceitos diferentes daqueles tidos como verdadeiros.

O preconceito que as mulheres sofrem, pode ser visto em todos os campos da

vida social onde possuem o intuito de fortalecer a idéia de inferioridade da mulher,

pautada em estereótipos de submissão e fragilidade, de acordo com o ideário patriarcal.

De tal forma, se comportamentos e idéias são desenvolvidas por uma sociedade

patriarcal, logo o pensamento de homens e mulheres passam concordar culturalmente

com os segmentos patriarcais, tais como o desempenho masculino está vinculado à

virilidade, agressividade e o feminino a fragilidade, doçura e sedução.

Padrões esperados de comportamentos geram estereótipos que passam ser a

referência conhecida, o modelo dominante. Portanto, estereótipo é um conjunto de

idéias prontas sobre pessoas, lugares ou objetos sem uma análise dos elementos que o

compõem.

Portanto, esse sistema de preconceitos e estereótipos permeia todas as relações

sociais, estabelecendo diferenças entre seres humanos, negando os direitos

fundamentais e gerando conflitos. Isso acarreta prejuízos facilmente percebidos como a

perda do respeito humano, restrição à liberdade, ênfase na desigualdade, manutenção da

discriminação e promoção da injustiça.

Assim, mulheres vivem e quase sempre viveram em relação de subordinação.

Tais pensamentos incutidos enfatizam as desigualdades entre os gêneros, tidas como

naturais pela sociedade, imbuídos de preconceitos que por sua vez justificam atos

violentos e a discriminação contra a mulher. A este respeito Pimentel (1987:37) afirma

que:

Page 25: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

É inaceitável a utilização de argumentos baseados em preconceitos sociais e

estereótipos de gênero que busquem qualificar a vitima como responsável por ato

premeditado de seu agressor, o qual, ao que parece, não possuía recursos

emocionais suficientes para lidar com a situação do rompimento amoroso, valendo-

se do mais antigo, cruel e machista dos métodos de superação de sua frustração.

Tendo o gênero masculino como centro de referência na sociedade em que

vivemos torna-se difícil as mulheres perceberem o papel subordinado que lhes foi

atribuído pela ordem social.

Portanto, a dificuldade de aceitação da igualdade entre homens e mulheres,

entre outras questões, é decorrente da dicotomia entre público e privado, onde em casos

de violência ocorridos dentro de casa ou num ambiente particular não pode haver

interferência externa. Isto está sendo mudado graças às insistentes lutas feministas que

tem o intuito de alcançar a igualdade social entre os gêneros. Tal acontecimento merece,

de fato, um tratamento aguçado já explicitado anteriormente no que se refere a criação

de uma defesa específica para a mulher, já que a mesma sofreu e sofre com as

desigualdades sociais decorrentes das práticas machistas e patriarcais ocultadas pela

ideologia que é fruto da manutenção do sistema econômico-social vigente.

IDEOLOGIA DO PATRIARCADO

Como já foi dito anteriormente o patriarcado é complementar ao capitalismo, pois

o trabalho reprodutivo das mulheres está imputado no trabalho produtivo que o homem

comercializa, gerando lucro para a parte favorecida. Além disso, a mulher é capaz de

reproduzir a vida, gerando mais trabalhadores. Dessa forma, pode-se dizer que o

patriarcado potencializa o capitalismo. Ele legitima o acúmulo de bens, a propriedade

privada e o gerenciamento de propriedade.

O capitalismo e o patriarcado separados produzem consequências muito ruins para

a sociedade, e juntos são capazes de aprofundar e complexificar suas consequências.

Para que sejam suportados juntos, é necessário que seja criado um arcabouço ideológico

capaz de sedimentar valores e normas, vulgarmente conhecidos como senso comum,

que permita a legitimação e reprodução desta ordem.

Em uma sociedade que sempre teve o homem como referência de fortaleza, de

poder, de um ser com posicionamento racional, ligado ao campo social, político ou

produtivo tem a visão da mulher como um ser submisso e complementar.

Page 26: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Contudo, a busca da igualdade entre os gêneros sofre resistências pelo fato das

mulheres sempre terem vivido numa cultura que coloca o homem no centro, o que as

faz pensar da mesma maneira, pois que a elas assim foi ensinado. Sílvia Pimentel

(1987:160) explica:

[...] sempre interessou à sociedade manter a mulher numa situação de alienação. Para

isso, vale-se não só de um conjunto de normas morais, jurídicas, religiosas, mas

também de crenças, preconceitos e valores que são inculcados de tal maneira

O PATRIARCADO NA RELIGIÃO

Muitas vezes crê-se que a religião é o grande órgão ditador das regras sociais, mas

El Saadawi (2007: 100-101) é taxativa ao dizer que as religiões, tanto muçulmana quanto

a cristã, são capazes de fazer muitas concessões, às vezes contraditórias, para atender às

necessidades econômicas. Crê-se que a religião tenha o papel de legitimador, mas não

de definidor desta ou daquela prática social. Segundo a autora:

Os princípios e as posições parecem variar muito mais em razão das estruturas

socioeconômicas das nações do que pela religião em vigor. Isso se torna evidente na

maneira com que a Igreja Cristã mudou radicalmente sua posição em relação a muitos

assuntos. (…)

As autoridades religiosas muçulmanas (…) afirmam categoricamente que o Islamismo

aprova o planejamento familiar e até mesmo o aborto; outras se mantêm firmes na

posição de que o Islamismo não só condena o aborto, mas também a utilização de

anticoncepcionais.(...)

No que toca a essência do Islamismo, não há nada no Alcorão que defenda ou contradiga

o controle da natalidade ou as medidas anticoncepcionais .

Conforme El-Saadawi (2007), o crescimento populacional é uma preocupação do

Estado, visto que a economia é sua propulsora e este fator interfere diretamente em seu

bom funcionamento. As políticas públicas relativas à natalidade tendem a ser as mais

permissivas em países com baixos índices populacionais - como a Suécia, por exemplo

– e mais repressivas em países superpopulosos, como a Índia e o Egito.

Como a reprodução acontece exclusivamente no corpo da mulher, sua sexualidade

passou a ser alvo do controle de natalidade.

A circuncisão feminina surgiu neste cenário como uma das formas mais eficazes

de controlar-se a sexualidade da mulher. Existem tipos diferentes de circuncisão, mas

Page 27: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

em todos os casos há duas consequencias obrigatórias: a perda do prazer na relação

sexual pela mulher e o fechamento do canal vaginal permitindo-se apenas a saída de

fluidos corporais. Estas duas conseqüências garantem ao homem a certeza de que a

mulher não terá relações com outro homem porque esta não desejará e também porque

não terá possibilidades concretas de fazê-lo, visto que o canal foi fechado. Essa é a

maior prova de que o corpo da mulher foi reificado, tornando-se propriedade privada de

um homem. O controle sobre a sexualidade deste corpo permite ao homem ter certeza

de que só ele “fará uso” de seu bem e de que todos os herdeiros gerados serão seus

filhos legítimos.

No trecho que segue, El-Saadawi (2007: 69) conta como se dá um dos tipos de

circuncisão feminina, chamada “circuncisão sudanesa”

...se faz a extirpação do clitóris e dos lábios externos e internos, e fecha-se a abertura

vaginal com uma tira de intestino de ovelha, deixando-se apenas um pequeno orifício

que mal permite introdução de um dedo, suficiente apenas para a passagem do fluxo

menstrual e urinário. Essa abertura é cortada por ocasião do casamento, sendo

aumentada ao ponto de permitir a penetração do órgão sexual masculino. É novamente

aumentada durante o parto, sendo, em seguida, estreitada. O fechamento quase que

completo do orifício é efetuado em mulheres divorciadas, que praticamente tornam-se

virgens novamente, impedido-as de manter qualquer relacionamento sexual, exceto na

eventualidade de outro matrimônio, quando se faz nova restauração.

O relato acima demonstra com clareza como o corpo da mulher é reificado sendo

costurado e descosturado para que se conforme ao papel que lhe foi estipulado naquele

momento: virgem, esposa, mãe ou divorciada.

Segundo El-Saadawi (2007) é um engano acreditar que a circuncisão feminina é

uma tradição apenas muçulmana ou apenas de religiões monoteístas. Ela já foi praticada

por diferentes religiões do Ocidente e Oriente com os mais diversos fundos religiosos,

podendo ser Cristão, Islâmicos e até ateu. Aconteceu na Europa até o séc. XIX e

acontece na África (Egito, Sudão, Somália, Quênia, Etiópia, Tanzânia, Quênia, Ghana,

Guiné e Nigéria, por exemplo), na Ásia (Sri Lanka e Indonésia, por exemplo) e na

América Latina. No esforço de provar que as tradição religiosa tem fundamentos em

fatores econômicos, a autora conta-nos sobre uma pesquisa a cerca dos “bosquímanos”

do deserto do Kalahari que desvelou a submissão do comportamento sexual em relação

às necessidades econômicas:

Os bosquímanos vivem em pequenos grupos familiares, ao redor de um limitado

número de poços que mal satisfazem suas necessidades. As leis que regem seu

Page 28: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

comportamento sexual são extremamente rigorosas, sendo as relações extraconjugais

estritamente proibidas. A razão para tanta severidade é o fato de não desejarem mais

crianças, e sabe-se que, em muitas ocasiões, eles cometem infanticídio com o

nascimento do segundo filho (EL-SAADAWI, 2007: 120).

Sendo assim, percebe-se que a religião funciona como um meio e não como um

fim nesse processo. Ela dá-se ao papel de legitimar ideologicamente as práticas que se

harmonizam melhor com as necessidades econômicas vigentes.

Segundo Chauí (1985: 29):

No início da Idade Média, (…) a atitude com relação à sexualidade era extremamente

variada, segundo as necessidades locais e, sobretudo, do ponto de vista das classes

sociais. Enquanto não houve necessidade de dinastias e linhagens, a Igreja defendeu, para

as classes dominantes, o “casamento casto”, isto é, sem relações sexuais, ao mesmo

tempo em que permitia a relação sexual pré-nupcial para as classes camponesas porque

nestas a necessidade de mão-de-obra tornava a fertilidade condição do casamento, a

relação sexual anterior ao casamento sendo indispensável para o “teste” de fertilidade.

A cultura judaico-cristã produziu um complexo sistema simbólico que reitera a

dominação do homem sobre a mulher, que recebe a ordem de ser submissa. Segundo

Paiva (1993), no livro dos Esplendores da tradição esotérica judaica conta-se que havia

uma mulher antes de Eva. Lilith foi criada do mesmo barro que Adão e se recusava a ser

submissa a ele. Ela questionava por que deveria se posicionar sempre por baixo de Adão

no ato sexual. Dizia que não havia razão para supremacia dele, visto que eram feitos da

mesma substância. Adão não abriu mão de sua hegemonia e ela se rebelou contra ele,

afastando-se.

Adão, triste e só, pediu a Deus para que a rebeldia de Lilith terminasse. O Criador

enviou um batalhão de anjos para convencê-la, mas não obtiveram êxito. Deus, então,

decidiu condená-la a comer todos os filhos que gerasse e criou para Adão uma mulher.

Esta foi feita de sua costela, já em situação de submissão. Eva, por sua vez, comeu o

fruto proibido e incitou Adão para que também o fizesse.

Sendo assim temos, nessa tradição duas figuras masculinas: um Deus, Pai Todo

Poderoso, Criador, Legislador, e Adão criado como sua imagem e semelhança. E

também duas figuras femininas: Lilith, rebelde que é severamente punida, e Eva, que é

naturalmente submissa, desobediente, curiosa e causadora da expulsão do casal do

Paraíso. Com o advento do nascimento de Cristo é criado mais um arquétipo: o de

Maria, mãe misteriosamente virgem, cuidadora e bondosa.

Page 29: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Vê-se dessa forma sendo desenhados os três papéis possíveis para uma mulher

na sociedade: a rebelde, que deverá ser severamente punida; a pecadora e a mãe virgem

cuidadora. Não é á toa que ainda convivamos com a prática vulgar de separar as

mulheres que são ou não “pra casar”. Usualmente as mulheres “boas pra casar” são

moças virgens, bondosas, obedientes e submissas.

OUTROS ASPECTOS DA CULTURA

Além da religião há uma série de outros aspectos da cultura que legitimam o

machismo como a publicidade, a música, as novelas, o cinema, o meio editorial (jornais

e revistas) etc.

De uma forma geral, é sempre reiterado o papel secundário da mulher cabendo-

lhe as atividades de reprodução familiar ou o papel de objeto sexual. Seguem alguns

exemplos:

No primeiro caso de publicidade, abaixo, a mulher aparece cuidando de sua

família quando surge a “Neura”, seu duplo que não consegue se desligar das obrigações

domésticas e tenta convencê-la a fazer uma faxina. A protagonista argumenta, dizendo

que, com o auxílio do novo produto, já conseguiu acabar as suas tarefas e pode desfrutar

do lazer de estar com seu filho. Três pontos são muito importantes nesta análise: a

mulher é responsável pelas tarefas domésticas, e só após seu cumprimento poderá

desfrutar de algum tempo para si, o que implica que o lazer da mulher não trata de suas

próprias necessidade e prazeres. Como diria Chauí, a mulher não existe com o outro,

mas para o outro, logo, o lazer da mulher é cuidar de seu filho.

É importante colocar que não se faz a crítica ao tempo que as mães desfrutam com

seus filhos, mas apenas à ausência de tempo em que passam desfrutando de prazeres

pessoais, circunscritos em seu universo particular.

Page 30: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O mesmo pode ser dito dos cuidados com beleza: não há nenhum problema em

uma mulher cuidar de sua aparência, mas é muito grave o entendimento destas

atividades como o momento de lazer da mulher. O segundo problema está na obsessão

em atender às expectativas do outro, do gênero masculino. A mulher tem sua aparência

como mais uma tarefa de se fazer agradável ao homem. No exemplo que segue, há uma

peça publicitária disponível no site da empresa Emporium Baño(2011) no qual se sugere

que a mulher viva um momento de prazer ao tomar banho e hidratar-se:

O banho pode ser um momento de prazer e de cuidar de sua beleza. Basta adicionar

ingredientes como esfoliante corporal, bucha vegetal, óleos corporais, sabonetes líquidos

cremosos, aromas diversos e incorporar massagens. É bastante importante e prazeroso

também hidratar a pele após o banho.

Segundo El-Saadawi (2002:76), nas sociedades muçulmanas ocorre um fenômeno

muito semelhante à sociedade judaico-cristã:

Uma menina é precocemente treinada a se preocupar inteiramente com a aparência de seu

corpo, os cabelos, as pestanas, as roupas em detrimento de sua evolução mental e de seu

futuro como ser humano. As árabes são educadas para o papel do casamento, função

suprema da mulher dentro da sociedade, enquanto o saber, o trabalho, a carreira, são

consideradas questões secundárias...

Ou seja, quando a mulher tem tempo livre deve usá-lo para fins de usufruto de

outrem: seja da família, seja do homem amante.

Ainda na publicidade existem exemplos mais tênues – e por isso mais perigosos –

da reiteração da mulher no papel de reprodução familiar: quando a mãe surge em cena,

está na cozinha; quando o pai surge, chegou do trabalho. No exemplo que segue vê-se

esta dinâmica uma propaganda de automóvel:

Além disso, encontramos muitos exemplos do corpo da mulher sendo usado como

objeto para vender os mais diversos tipos de produtos: cerveja, cigarro, automóveis até

festas universitárias. Seguem o exemplo da publicidade da cerveja Antártica:

Page 31: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Abaixo, o flyer da festa universitária “Cabaret” e a seguir as fotos da festa, na

qual as mulheres se vestem de prostitutas e os homens de cafetão.

Page 32: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Fonte:http://solteagravata.com/2011/08/30/fotos-cabaret-2011-direito-

puc/

Podemos perceber que é reiterado que ao gênero feminino cabe os papéis de

reprodução familiar ou objeto sexual.

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CAPÍTULO II

EXPRESSÕES DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Page 34: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Este capítulo tem por referência a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos

espaço público e privado” realizada em 2010 pela Fundação Perseu Abramo, por meio

de seu Núcleo de Opinião Pública, e em parceria com o SESC (Serviço Social do

Comércio). Esta pesquisa apresenta a evolução do entendimento sobre o papel das

mulheres brasileiras na sociedade e será instrumento fundamental para a compreensão

da violência doméstica, principalmente no que se refere aos tipos de violência, o perfil

da mulher agredida, o perfil do agressor e a publicização da violência.

O destaque deste capítulo é os dados acerca de violência doméstica, porém

apresentamos os demais eixos que complementam a pesquisa: percepção de ser mulher:

feminismo e machismo; divisão sexual do trabalho e tempo livre; corpo, mídia e

sexualidade; saúde reprodutiva e aborto; democracia, mulher e política. Apresentamos,

a seguir, os procedimentos metodológicos da pesquisa e o perfil da amostra.

A pesquisa foi realizada em agosto de 2010 e ouviu a opinião de 2.365 mulheres

e 1.181 homens, com mais de 15 anos de idade, de 25 unidades da federação, cobrindo

as áreas urbanas e rurais de todas as macrorregiões do país. A mesma pesquisa foi

elaborada em 2001, apenas com entrevistadas mulheres, e os resultados são comparados

de forma que seja possível perceber a evolução das questões elaboradas.

Com relação ao perfil sociodemográfico da população, a quantidades de

entrevistados em cada faixa etária (15-17; 18-24; 25-34; 35-44; 45-59; 60 ou mais) foi

uniforme sendo um pouco mais elevada na faixa entre 25-34 anos. O maior contingente

da população entrevistada cresceu e vive em áreas urbanas, especialmente no interior,

dividido de forma igualitária entre municípios de pequeno, médio e grande porte. A

maioria dos entrevistados está em um relacionamento estável, sendo a maioria casada

com registro civil e possui filhos.

Com relação à composição familiar no domicílio, a média é de quatro pessoas

por moradia, sendo em maior parte composta pelo cônjuge e filhos, mas há também a

presença de outros parentes como pais e irmãos.

A maioria é branca, mas há expressivos contingentes de entrevistados de pele

preta e parda. A ascendência mais presente é mestiça entre brancos e negros.

A religião mais evidente é a católica, mas há uma cota expressiva de

evangélicos, seguidos pelos espíritas (kardecistas, umbadistas e candomblecistas).

Page 35: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Pouquíssimas mulheres e homens declaram-se sem religião e mesmo nesses casos,

acreditam na existência de Deus.

A maioria das mulheres entrevistadas possui ensino médio, assim como os

homens, porém o contingente de mulheres com ensino superior e pós-graduação

aumentou em dez por cento com relação à pesquisa de 2001, ultrapassando o

contingente masculino em 2010. A quantidade de mulheres que passou a ter acesso a

computadores e à internet neste intervalo de tempo também aumentou expressivamente,

elevando-se em torno de trinta por cento.

O nível de mulheres que está e não está inserido no mercado de trabalho é quase

o mesmo: 52% contra 48%. Este número não mudou muito entre 2001 e 2010. Os

homens, em contrapartida, estão mais profundamente inseridos: 79% têm atividade

econômica remunerada em 2010. A maior parte das mulheres trabalha entre vinte e

quarenta horas semanais enquanto os homens trabalham em períodos mais extensos:

55% trabalham mais de quarenta horas semanais.

O número de famílias com renda até dois salários mínimos foi o mais

significativo, sobressaindo-se também a faixa entre dois e cinco salários mínimos.

A natureza do trabalho executado pela maior parte das mulheres entrevistadas é

braçal e requer apenas ensino fundamental (47% - empregada doméstica, manicure,

promotora de vendas, etc), sendo seguida por ocupações técnicas que requerem ensino

médio (35% - vendedora, secretária, recepcionista, etc) e em último lugar as ocupações

que requerem ensino superior (17% - professora, enfermeira, psicóloga, etc).

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Tipos de violência

A pesquisa indica 7 tipos de violência: controle e cerceamento, física ou ameaça

(à integridade física), psíquica / verbal, sexual, assedio, moral e patrimonial.

No quadro abaixo podemos observar o dados colhidos sobre o cinco tipos mais

freqüentes de violência.

VIOLÊNCIA SOFRIDA PELAS MULHERES

COMPARATIVO 2001/2010

Page 36: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

MULHERES 2001 2010

JÁ SOFREU ALGUMA VIOLÊNCIA? 43% 34%

FÍSICA OU AMEAÇA (À INTEGRIDADE FÍSICA) 28% 24%

Deu tapas, empurrões, apertões ou sacudiu você. 20 16

Ameaçou dar uma surra em você. 12 13

Bateu os espancou você, deixando marcas, cortes ou fraturas. 11 10

Quebrou coisas suas ou rasgou suas roupas. 15 09

Usou armas de fogo ou facas para ameaçar você. 08 06

PSÍQUICA / VERBAL 27% 21%

Insinuou constantemente que você tem amantes ou te xingou repentinamente de um jeito que ofende a sua conduta sexual.

18 16

Desqualificou continuamente a sua atuação como mãe. 15 09

Desqualificou seu trabalho doméstico ou seu trabalho fora de casa. 12 -

Falou mal do seu trabalho doméstico repetidamente. - 06

Criticou repetidamente o sue desempenho em trabalhos fora de casa. - 05

SEXUAL 13% 10%

Forçou você a ter relações sexuais quando você não queria. 11 08

Forçou você a praticar atos sexuais que não lhe agradam. 06 04

Estuprou você. 02 03

ASSÉDIO 11% 07%

Assediou você sexualmente, lhe tocando ou insistindo em sair com você depois de você mostrar que não queria.

11 07

Te obrigou ou pressionou a fazer favores sexuais em troca de promoção ou aumento de salário, ou ainda para não demiti-la do emprego.

- 01

CONTROLE / CERCEAMENTO 09% 07%

Impediu você de sair de casa, trancando você em casa. 09 07

NUNCA SOFREU NENHUMA VIOLÊNCIA (ESTIMULADA) 57% 66%

Page 37: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

80% das mulheres alegam nunca ter sofrido violência, dentre as que sofreram, a

violência física é mais expressiva (12%); seguida da sexual (4%) e da psíquica (4%).

Perfil da mulher agredida

A percepção sobre a violência é maior entre as mulheres com nível superior

(15%) frente às mulheres com nível fundamental (6%). Esse índice pode indicar a

naturalização da violência nas camadas pauperizadas da população. Quando as mulheres

foram estimuladas na entrevistas através de exemplos de violência, o índice saltou para

40% das entrevistadas. Esse fator pode comprovar a dificuldade das mulheres em

compreender a condição de violência em que vivem. 24% das mulheres se

reconheceram em situação de cerceamento / controle, 24% sentiram que sua integridade

física foi ameaçada; 23% sentiram que sua integridade psíquica foi ameaçada; 10%

sofreram violência sexual e 7% foram assediadas.

Os níveis de violência são maiores na faixa etária de 25 a 34 anos e se divide

igualmente entre as faixas salariais e os níveis de escolaridade. As mulheres pardas são

as mais violentadas (44%) assim como as casadas (56%).

As justificativas para a violência distribuem-se de forma igualitária dentre as

faixas salariais analisadas. Com relação à idade e escolaridade: controle de fidelidade

gera mais vítimas dentre as faixas mais jovens, mas é dividido igualmente dentre os

níveis de escolaridade; a pré-disposição psicológica (alcoolismo, nervosismo etc) causa

mais agressões nas faixas acima de 60 anos e nos mais baixos índices de escolaridade;

afirmação de autonomia produz mais vítimas dentre as faixas mais jovens, mas é

dividido igualmente dentre os níveis de escolaridade; as tarefas domesticas e a

submissão causam agressões de forma igualitária dentre as diferentes faixas etárias e de

escolaridade.

Perfil do agressor

91% dos homens acreditam que bater em mulheres, em qualquer situação, é

errado. Porém 8% deles assumiram já tê-lo feito. Dentre os agressores, 57% dizem ter

agredido apenas uma vez, 76% acreditam que estava errado em fazê-lo e 56% não o

fariam novamente.

Page 38: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

As agressões são, na sua maioria, tapas e empurrões (84%); seguido de

espancamentos (7%) e xingamentos (6%). Segundo as mulheres, a maior causa para as

agressões sofridas é o controle da fidelidade, seguido de pré-disposição psicológica

(alcoolismo, nervosismo etc); afirmação de autonomia; filhos (tarefas domésticas);

submissão (baixa auto-estima), questões financeiras e por fim porque a vítima estava

sozinha. Pode-se perceber que apenas no último caso, o menos freqüente, o agressor é

desconhecido da vítima. Em todos os outros casos remonta-se o modelo de papéis

sociais de gêneros na sociedade machista, sendo que a violência se expressa quando um

dos gêneros não consegue atender às expectativas. O homem agride, na maior parte dos

casos, quando sente que a mulher não atende ao papel de propriedade privada do

homem (fidelidade), depois devido ao fato de que ele não se sente forte, seguro e

poderoso como deveria e por fim quando a mulher não desempenha as tarefas

domésticas como o homem acredita que ela deveria fazê-lo.

Vínculo com o agressor

Com relação ao vínculo com o agressor em todos os casos o companheiro é o

indicador de maior expressão, sendo: 73% nos casos de controle / cerceamento; 69%

nos casos de violência física; 72% nos casos de violência física e verbal; 62% nos casos

de violência sexual e 25% nos casos de assédio.

A publicização da violência

A maioria das mulheres vítimas de violência não contou ou pediu ajuda nem fez

denúncia. Nos poucos casos de pedido de ajuda, a mãe foi a figura mais presente. A

maioria das mulheres auxiliadas não foi instruída a fazer denúncia.

84% das mulheres e 85% dos homens conhecem a lei Maria da Penha, sendo que

os homens têm uma percepção mais positiva da lei que a mulheres (80% contra 78%). A

critica das mulheres dá-se ao fato de que “é uma lei que não é eficaz porque a polícia

espera acontecer a tragédia / deveria ser mais rigorosa / demora muito pra punir os

homens / o homem fica detido algumas horas e faz serviços comunitários”.

Nesta parte da pesquisa podemos conhecer as piores expressões da desigualdade

de poder estabelecida na sociedade capitalista. A família que poderia ser o ambiente

onde os indivíduos encontrariam proteção e conforto - que o prepararia para o convívio

Page 39: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

mais complexo, em sociedade - torna-se o centro de violência exercida contra as

crianças (em maior parte exercida pelas mães) e contra as mulheres (em maior parte

exercida pelos maridos).

Além disso, a pesquisa demonstra um dos maiores desafios das políticas

públicas na defesa das mulheres: embora se tenha alcançado uma grande vitória com a

aprovação da Lei Maria da Penha, há muito a se fazer para que as mulheres possa

efetivamente sentir-se protegidas. Essa questão será problematizada no capítulo três

deste trabalho.

PERCEPÇÃO DE SER MULHER: FEMINISMO E MACHISMO

Foi perguntado às mulheres se “em comparação com a vida há uns 20 ou 30

anos atrás, você diria que a situação das mulheres hoje está melhor, pior ou não teve

mudanças?” As mulheres, em sua maioria, crêem que está melhor e essa perspectiva se

aprofundou de 2001 a 2010.

Aos homens foi perguntado se “Em comparação com uns 20 ou 30 anos atrás,

você diria que a relação entre homens e mulheres hoje: está melhor, pior ou não teve

mudanças?” As opiniões se dividiram igualitariamente entre pior e melhor.

As mulheres responderam de forma positiva a questão: “você diria que tem mais

coisas boas ou mais coisas ruins em ser mulher?”. 68% acreditam que há mais coisas

boas em ser mulher e esse número cresceu em relação a 2001, quando era de 58%. Essa

resposta se divide igualmente entre mulheres inseridas ou não no mercado de trabalho e

também dentre os diferentes estratos de renda. Com relação à idade, concentra-se nas

mulheres entre 24 e 35 anos, com ensino médio.

Os homens também parecem gostar de seu papel social, pois responderam em

68% que há mais coisas boas que ruins em ser homem. Dentre estes, sua maioria tem

renda familiar entre 2 e 5 salários mínimos e ensino médio.

As mulheres foram questionadas sobre “como é ser mulher hoje?”

Com relação ao espaço público e a vida social, ao responder esta pergunta, a

maioria das mulheres menciona a conquista da liberdade e independência social,

seguida pela conquista do mercado de trabalho, a independência econômica, a conquista

de direitos, o acesso aos estudos e a discriminação devido ao machismo. Este último

fator é a mais eloqüente resposta frente à questão “quais são as piores coisas de ser

mulher?” e o acesso ao mercado de trabalho é a mais expressiva resposta quanto às

Page 40: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

melhores coisas em ser mulher hoje assim como é a primeira coisa que a maioria das

entrevistadas faria para melhorar a vida de qualquer mulher. Mostra-se claramente que a

maioria das mulheres compreende que, para que tenham melhores condições de vida,

precisam ser economicamente independentes.

É exatamente no mercado de trabalho onde mulheres e homens entendem que

estão suas maiores diferenças. Tanto mulheres quanto homens percebem que as

mulheres são discriminadas no mercado de trabalho e as mulheres gostariam que

houvesse equiparação salarial entre homens e mulheres.

Com relação ao espaço privado, as mulheres entendem que ser mulher hoje

ainda está, em sua maioria, relacionado à maternidade (gerar filhos, dar continuidade a

vida, criar os filhos). Em segundo lugar vem um entendimento da mulher como uma

guerreira, batalhadora que tem jornada dupla, que deve ser corajosa para conquistar a

liberdade que os homens já possuem.

Com relação à pesquisa de 2001, pode-se dizer que o número de mulheres que

via na maternidade e no casamento um determinante para defini-las em seu papel social

regrediu enquanto que seu reconhecimento através de sua independência financeira e de

seus atributos femininos aumentou.

O entendimento do que são atributos femininos concentra-se no arquétipo da

mulher vaidosa, que se cuida e se arruma para o marido, mas é considerável o cociente

de respostas em torno do modelo da mulher batalhadora e corajosa que trabalha dentro e

fora de casa. Entre 2001 e 2010 o reconhecimento do segundo arquétipo aumentou. Esta

constatação pode apontar para um sinal de emancipação da mulher. Pode ser que esteja

se formando o entendimento da mulher para si e não no seu papel frente às necessidades

alheias (mãe, amante, filha).

No espaço privado, para a maioria das entrevistadas, a violência contra a mulher

é o pior de todos os males, seguido pela maternidade (responsabilidade da criação dos

filhos, especialmente quando sozinha), pelas preocupações referentes à saúde da mulher

(incômodo de ficar menstruada, ter cólicas, TPM, etc) e o cotidiano doméstico

permeado pelo machismo (não ser valorizada, não ter apoio, o marido não deixar

estudar).

No espaço público, a discriminação e o machismo aparecem como os piores

males, seguidos pela desigualdade no ambiente de trabalho e pela falta de liberdade.

Page 41: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Percebe-se que os maiores problemas nos dois âmbitos: publico e privado, são

faces da mesma moeda, já que o machismo e a discriminação estão diretamente ligados

com a violência doméstica.

As mulheres percebem claramente o cerceamento do acesso ao espaço publico,

balizado pela violência. Elas dizem que “A mulher não pode andar sozinha porque é

estuprada/ a mulher não tem segurança para sair à rua sozinha/ ela não tem como se

defender/ não serem respeitadas na rua/ sofrer assédio dos homens nas ruas”

Page 42: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO
Page 43: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Quando os homens são perguntados sobre as “melhores e as piores coisas em ser

homem”, torna-se flagrante o machismo inerente aos papéis sociais de gênero masculino

e feminino em nossa sociedade.

Para a maioria dos entrevistados, os melhores fatores em ser homem são: as

características inerentes de ser homem (não engravidar, não menstruar, ser fisicamente

mais forte); seguido da liberdade e independência (pode sair sem dar satisfação, pode se

relacionar com várias mulheres sem ser criticado, não precisa dar satisfação dos seus

atos); o trabalho (o mercado dá preferência para os homens, ter melhores oportunidades,

ser mais forte para trabalhos braçais e receber melhores salários) e a preponderância no

âmbito familiar (ser o chefe da família, ser responsável pela família, ter o poder de

decisão, estar à frente das coisas, saber o que é certo ou errado para ensinar). Percebe-se

por essa pesquisa que os homens têm total clareza sobre sua hegemonia nas relações

sociais.

Como aponta Saffioti (2004) o machismo prejudica tanto homens quanto

mulheres, sendo o saldo negativo maior para as mulheres. Ao responder a questão sobre

“as piores coisas em ser homem” os entrevistados pontuaram todas as dificuldades e

Page 44: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

angústias que vivem para atender ao papel de chefe de família. O pior de todos os

fatores para os homens é a responsabilidade com a família (ter a obrigação do sustento,

preocupações em dar o suficiente, não deixar faltar nada, ter que trabalhar mais);

seguido das características masculinas (ter mais responsabilidades, maiores cobranças

por ser homem); depois vem o trabalho (ser cobrado pelos pais desde muito cedo a

atingir estabilidade financeira, ter que trabalhar muito, ter que pagar as contas e não lhe

restar nada de seu salário); a violência (brigas, uso de drogas e conflitos com a polícia) e

o desemprego (responsabilidade de sustentar a família, pagar pensão, perder espaço para

as mulheres). Torna-se claro como pesa sobre os homens a responsabilidade de seu

papel social como provedor de uma família, sendo de uma forma geral a fonte de todos

os seus males. Outra preocupação que podemos perceber nos homens é sua

vulnerabilidade à violência que está diretamente relacionada com o maior acesso aos

espaços públicos.

Quando foi perguntado às mulheres se existia machismo no Brasil em 2001, a

percepção foi de 73% baixando para 67% em 2010. Já os homens, em 90%, acreditam

que existe machismo no Brasil, porém 74% não se consideram machista. Apenas 22 %

reconheceram-se machista. A leitura destes indicadores aponta para duas possibilidades.

A primeira seria a de que os homens estão começando a entender o machismo como

algo negativo e, portanto não se reconhecem nele. A segunda é que o machismo está tão

imbricado em nossa cultura que os indivíduos não conseguem reconhecê-lo.

Provavelmente as duas possibilidades estão corretas mostrando que há um progresso na

luta por igualdade entre os gêneros, mas que a ideologia vigente, ao longo dos anos

gerou a naturalização do machismo de tal forma que homens e mulheres têm muita

dificuldade de reconhecê-lo em suas vidas.

Em 2001 a maioria das mulheres entrevistadas não sabia o que era significava

ser feminista. Esse quadro se manteve em 2010, observando-se uma pequena melhora

nos indicadores: houve a diminuição no número das mulheres que não sabem o que é e

o aumento das mulheres que se consideram feministas.

A maioria dos homens, 54%, acredita que não existem feministas no Brasil ou se

existem, são pouca. 28% dos homens acreditam que existem feministas e 18% não sabe

o que é isso.

Foi perguntado às mulheres e aos homens o que entendiam por feminismo.

Dentre aqueles que acreditavam que o feminismo era algo bom, a maior parte das

respostas contemplava a luta por direitos iguais, seguido pela luta em favor da liberdade

Page 45: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

das mulheres e sua valorização. Dentre aqueles que acreditavam que o feminismo era

algo ruim, a maioria acreditava que se trata da luta pela superioridade das mulheres,

como um machismo das mulheres.

Quando perguntado a ambos os gêneros o que era machismo, a maioria

respondeu como o poder do homem em relação à mulher.

É possível compreender pelo estudo destes números que essa discussão mostra-

se demasiado esvaziada visto que os sujeitos têm pouca ou nenhuma apropriação sobre

o conhecimento elaborado sobre o machismo e feminismo. A gravidade deste fato

repousa-se na compreensão de que sem que os sujeitos tenham compreensão sócio-

histórico da condição vivenciada torna-se praticamente impossível pensar em um outro

modelo de relação de gênero.

DIVISÃO SEXUAL DOS TRABALHOS DOMÉSTICOS E REMUNERADO E A

SATISFAÇÃO COM O TEMPO LIVRE

Enquanto 79% dos homens trabalham, apenas 52% das mulheres estão inseridas

no mercado de trabalho.

A maior razão para a maioria das mulheres nunca ter trabalhado é devido à

gravidez e filhos, seguido das poucas oportunidades no mercado de trabalho, das

obrigações do trabalho doméstico e por fim, porque o marido era capaz de prover o

sustento sozinho. Essa ordem de fatores mantém-se como resposta às razões pelas quais

as mulheres param de trabalhar.

56% das mulheres preferem ter uma profissão e dedicar-se menos às atividades

com a casa e a família e essa perspectiva se manteve de 2001 a 2010.

Foi perguntado às mulheres quem era a pessoa responsável pelo sustento da casa

e da família e quem era o chefe da família. Em ambos os casos a resposta era os

homens, com uma suave diminuição de 2001 a 2010. As mulheres parecem ter recebido

mais autonomia para gerir a renda familiar já que eram 46% dos responsáveis em 2001

passando para 52% em 2010.

As mulheres se vêem como as maiores responsáveis pela execução (ou

orientação) dos serviços domésticos. Em 2001 reconheciam-se em 93% caindo para

91% em 2010. Porém quando é apresentada a frase “Homens e mulheres deveriam

dividir por igual o trabalho doméstico”, 93% das mulheres concordam assim como 84%

dos homens. Porém para a maioria de mulheres e homens (51% e 62%) é

Page 46: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

principalmente o homem quem deve sustentar a casa e quando tem filhos pequenos, é

melhor que o homem trabalhe fora e a mulher fique em casa (75% e 79%). Ou seja, os

gêneros reconhecem que deveria existir a igualdade, mas em seu dia-a-dia definem os

papéis sociais de forma completamente desigual, parecendo que não há articulação entre

uma coisa e outra.

A satisfação das mulheres com a sua capacidade de tomar decisões tem

aumentado, de 59% de 2001 para 67% em 2010, mas ainda é inferior à dos homens, de

74%. Eles ainda são mais satisfeitos com maneira como passam seu tempo livre, assim

como com o tempo que passam com a sua família.

De uma forma geral, percebe-se que os gêneros apontam para uma possível

igualdade entre si quando refletem sobre o assunto, mas que seu cotidiano é atravessado

por desigualdade. As mulheres ainda perdem pros homens em grau de inserção no

mercado o que desdobra uma série de conseqüências para sua vida como relegar ao

homem o sustento, a chefia da família, a tomada de decisões e os momentos de lazer. Às

mulheres cabe um papel menor nesse cenário assim como todos os afazeres domésticos.

CORPO E REPRESENTAÇÃO NA MÍDIA – SEXUALIDADE

Foi perguntado às mulheres e aos homens se eles se sentiam satisfeitos em

relação à vida amorosa, à sua saúde física e à sua aparência. As repostas de ambos

gêneros foi positiva, acima de 50%, mas as masculinas foram muito superiores às

femininas. Essa análise permite o entendimento do quanto, nos quesitos acima

elencados, os homens vivem sob menos pressão que as mulheres em nossa sociedade.

Foi perguntado às mulheres se elas se sentem elogiadas ou desrespeitadas

quando um homem mexe com ela na rua. Em 2001 a maioria se sentia desrespeitada

enquanto que em 2010 a maioria se sente elogiada.

Tanto em 2001 como em 2010, a maioria das entrevistadas acredita que quando

uma mulher usa uma roupa que marca o corpo, “elas saem perdendo”.

Sobre a exposição do corpo da mulher na mídia, em 2001 e 2010, a maior parte

das mulheres acredita que este fato seja ruim, pois supervaloriza o corpo da mulher em

detrimento de sua personalidade. As mulheres ainda são a favor, em sua maioria, de que

haja controle da exposição do corpo da mulher na mídia.

A maioria esmagadora dos entrevistados homens e mulheres eram

heterossexuais e a vida sexual já tinha sido iniciada.

Page 47: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A média de idade das mulheres ao perder a virgindade é de 18 anos enquanto

dos homens é de 15 anos. Dentre as mulheres a média de idade é menor nas novas

gerações em relação às mulheres mais velhas: entre 15 a 17 anos é de 14 anos e 60 anos

ou mais é de 19. Isso pode denotar um movimento para o rebaixamento desta média no

futuro. Além disso, a média tende a ser cada vez mais baixa quando mais baixa for a

renda familiar. Provavelmente havendo a pauperização da população, a média também

cairia.

Quando perguntadas sobre o prazer de ter relações sexuais, os maiores

contingentes de mulheres dividem-se entre “sentiu muito prazer” e “achou gostoso”,

mas revelam-se mulheres que o fazem por obrigação, que não sentem nada e também as

que sofrem.

Grande parte das mulheres teve relações sexuais com apenas um homem na vida,

enquanto maioria dos homens teve com mais de 15 pessoas.

Com relação a experiências sexuais fora do casamento, a maioria das mulheres

acredita que seu parceiro nunca a traiu sendo os índices de 31% em 2001 e em 2010 de

52%, já aquelas que acreditam que foram traídas são da ordem de 39% em 2001 e 29%

em 2010. Como pode se averiguar, em 2001 o contingente era basicamente o mesmo de

mulheres que acreditava que tinha e não tinha sido traída, mas esse número se

concentrou no segundo caso em 2010. Pouquíssimas mulheres afirmam ter traído o

companheiro.

Os homens em 45% alegam já terem traído e em 53% que nunca trairiam.

Apenas 16% acreditam que já tenha sido traído e 58% acredita que isso nunca tenha

acontecido.

Por essa análise é possível perceber que as respostas coadunam com os papéis

estipulados para homens e mulheres numa sociedade capitalista machista. As mulheres,

propriedade privada dos homens, devem ter um único amante em vida e devem ser fiéis

a ele. Os homens, cuja competitividade e agressividade são estimuladas, podem e

devem se relacionar com o máximo de mulheres possível. O grau de permissividade à

traição masculina é alto, eles admitem-se infiéis. As mulheres, em contrapartida, negam

infidelidade. É importante notar que indiferente do fato das mulheres e homens ter

mentindo ao não, a pesquisa é o registro da resposta que homens e mulheres sentem que

cabe em seu papel social.

A máxima “amarre sua cabra que meu bode está solto” parece cair como uma

luva nessa pesquisa, já que as mulheres se portam como amantes fixas de poucos

Page 48: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

homens enquanto eles se sentem livres pra se relacionar com quantas mulheres for

possível. A idade de iniciação da vida sexual também denota um alto grau de

permissividade e até encorajamento para a vida sexual dos homens em contrapartida às

mulheres que iniciam a mesma com três anos de atraso.

SAÚDE REPRODUTIVA E ABORTAMENTO

A maioria das mulheres entrevistadas tem uma vida sexual ativa, sendo que sua

última relação sexual ocorreu entre 1 e 3 dias, sendo as casadas as mais ativas. 88% das

atividades sexuais aconteceram dentro de um relacionamento estável.

A maioria dos casais não usou camisinha em sua última relação sexual. A causa

mais comum para a não utilização do preservativo é a confiança no parceiro, seguido do

uso de outros métodos contraceptivos, o fato de estar em uma relação estável e não

gostar de usar.

Dentre as pessoas que usaram camisinha, a maior razão é a prevenção de

doenças, seguido de evitar a concepção, por segurança e por não confiar no parceiro.

50% das mulheres já fizeram teste de HIV e esse número dobrou de 2001 a 2010

enquanto que apenas 36% dos homens o fizeram.

O método anticoncepcional preferido das mulheres é a pílula (25%), seguida da

laqueadura (21%) e por fim a camisinha (19%), 33% das mulheres não usa método

algum.

44 % das mulheres que não usam métodos anticoncepcionais por ter feito

laqueadura, 10% por ter efeitos colaterais, 8% porque o parceiro não gosta.

77% das mulheres conhecem a pílula do dia seguinte, sendo que a proporção

aumenta quanto mais alto o nível de escolaridade. 16% das entrevistadas já fizeram uso

da pílula, 41% nunca tomou e outros 41% nunca tomaria, especialmente porque entende

o método como um aborto.

74% das entrevistadas já tiveram uma gestação, sendo a media de 3,5 gestações

por mulher. A idade media do primeiro filho dentre as mulheres é de 21 anos e entre os

homens é de 24 anos. Os partos, em sua maioria foram realizados na rede pública (68%)

e não houve maus tratos (85%).

Dentre as mulheres que sofreram algum tipo de violência durante o atendimento

de parto destacam-se as seguintes práticas: o exame de toque lhe causou dor (10%), foi

negado ou não ofereceram algum tipo de alívio para sua dor (10%), gritaram com a

Page 49: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

paciente (10%), não lhe informaram sobre algum tipo procedimento que estavam

fazendo (10%), negaram atendimento (10%) e xingaram ou humilharam a paciente

(10%).

Dentre as frases mais ouvidas durante estas humilhações destacam-se: “Não

chora que ano que vem você está aqui de novo” (15%) e “na hora de fazer não chorou,

não chamou a mamãe, por que está chorando agora?” (14%).

A maioria das mulheres nunca teve uma gravidez interrompida e esse índice tem

diminuído, sendo de 67% em 2001 e 75% em 2010.

A quantidade de mulheres que fez aborto induzido através de remédio

industrializado aumentou entre 2001 e 2010 e mantém-se como a prática mais utilizada

entre as mulheres. As clínicas de aborto estão em segundo lugar com índices estáveis

entre as duas pesquisas.

A principal razão que leva as mulheres a fazer aborto é a dificuldade financeira

(41%), seguido pela pressão do parceiro (13%); depois por estar sozinha (20%); porque

era muito nova (13%) ; porque desejava trabalhar e/ou temia perder o emprego (13%) e

por fim por medo de rejeição da família (11%). Dos índices apresentados, apenas o

último diminuiu de 2001 a 2010.

63% das mulheres que fizeram aborto tiveram apoio de alguém, sendo na

maioria dos casos do parceiro. No entendimento da maioria das mulheres e dos homens

a decisão sobre o aborto é principalmente dela.

A grande maioria das mulheres que fez aborto não teve orientação medica

(60%), mas esse índice melhorou de 2001 a 2010, quando era de (66%). A maioria das

mulheres que fez aborto provocado e passou por consulta médica em seguida sofreu

algum tipo de violência (53%), destacando-se as seguintes práticas: “perguntaram

insistentemente se tinha tirado o bebê e ficaram te tratando com suspeita” (34%); “não

lhe informaram sobre o procedimento que iam fazer” (22%) e “disseram que você tinha

cometido um crime e ameaçaram denunciar você para a polícia” (17%).

72% das mulheres conhecem a legislação sobre o aborto contra 63% dos

homens. O índice dobrou entre 2001 e 2010, pois era de 36% dentre as mulheres.

Quanto maior a renda familiar e o nível escolar, maior o conhecimento sobre a lei.

Para a maioria dos entrevistados a lei sobre o aborto deve ficar como está, sendo

maior a aceitação dentro os homens (69%) com relação às mulheres (61%). O número

de mulheres que acredita que a lei deveria permitir o interrompimento da gravidez em

mais casos é mais expressivo (20%) que o número de homens (16%), sendo os casos

Page 50: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

mais eloqüentes as gestações de bebês anencéfalos, falta de condições financeiras e a

mãe ser muito jovem. 17% das mulheres acreditam que o aborto deveria ser proibido em

todos os casos contra 12 % dos homens.

42% das mulheres e 52% dos homens acreditam que a mulher que fez aborto

deve ser punida, sendo a punição mais popular o encarceramento tanto na opinião das

mulheres (32%) como dos homens (37%).

Tanto as mulheres quanto os homens (59% nos dois casos) acreditam que as

igrejas estão corretas ao tentar controlar as leis sobre aborto.

Os índices da análise acima apresentada são de extrema eloqüência para o

entendimento da condição da mulher com relação ao seu corpo na esfera da sexualidade

e da reprodução sexual.

A maioria dos entrevistados não usa proteção contra doenças ou contraceptivos.

A relação de confiança entre as pessoas parece ser a maior proteção para os indivíduos

envolvidos, provavelmente apontado para a centralidade familiar que estrutura nossa

sociedade. A partir do momento em que os indivíduos estão em um relacionamento

estável sentem que não precisam temer doenças ou fazer planejamento familiar.

A análise sugere que as mulheres estão tendo cada vez mais acesso às

informações que lhe dizem respeito como os métodos contraceptivos e de proteção

contra doença, assim como à testes de HIV e a legislação sobre o aborto.

Talvez pela interferência religiosa, que é amplamente apoiada pelos

entrevistados, a maioria de homens e mulheres acredita que a mulher que aborta deva

ser presa o que aponta para a secundarização da mulher. Sob essa ótica, ela deixa de ter

autonomia sobre seu corpo a partir do momento em que engravida. O moralismo

atravessa várias esferas da sociedade, expressando-se nos dogmas da Igreja, no medo da

mulher de ser julgada pela sua família e chegando à assistência medica onde ela é

vitima de violência ao ser atendida após um aborto induzido.

Ou seja, de uma forma geral vemos um movimento de emancipação da mulher

com relação à sua saúde reprodutiva, porém quando se toca na questão do aborto o

moralismo impera destituindo a mulher de qualquer protagonismo.

DEMOCRACIA, MULHER E POLÍTICA

Page 51: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O número de mulheres que entende a política como uma esfera importante de

sua vida aumentou de 2001 (70%) para 2010 (80%), mas ainda é inferior ao índice

masculino (82%).

A análise nos aponta que a quantidade de mulheres que acredita que a política

influencia “um pouco” sua vida caiu, enquanto o cociente de mulheres que acredita que

interfira “mais ou menos” aumentou. A porcentagem daquelas que acreditam que

interfira “muito” se manteve no patamar de 27%. O contingente de homens que acredita

que a política influi na sua vida é de 37% denotando um maior grau de politização

masculina. No entanto é mais ou menos igual o índice de mulheres e homens que

acreditam que tem influência pessoal na vida política, um índice baixíssimo em torno de

dez por cento.

Tanto as mulheres como os homens acreditam que a democracia é sempre

melhor do que qualquer outra forma de governo, sendo de 63% entre as mulheres de

72% entre os homens. O índice de mulheres que acredita que tanto faz se o regime de

governo é uma ditadura ou uma democracia é maior (17%) que o dos homens (12%).

Isso pode indicar um posicionamento antidemocrático das mulheres, ou, embasado no

menor grau de importância dado a política por parte das mulheres, a ignorância sobre o

que define cada regime de governo.

Tanto homens (49%) quanto mulheres (70%) acreditam que a política seria

melhor se houvessem mais mulheres em postos importantes.

Foi perguntado às mulheres e aos homens se eles votariam em candidatos com as

seguintes características:

negro ou negra: 96% das mulheres e 94% dos homens votariam;

mulher: 92% das mulheres e 91% dos homens votariam;

homossexual: 63% das mulheres e 59% dos homens votariam;

é a favor da união entre pessoas do mesmo sexo: 52% das mulheres e

46% dos homens votariam;

participou da luta armada contra a ditadura: 41% das mulheres e 56% dos

homens votariam;

é a favor da pena de morte: 39% das mulheres e 48% dos homens

votariam;

pratica umbanda e candomblé: 51% das mulheres e 45% dos homens

nunca votariam;

Page 52: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

é a favor da legalização do aborto: 57% das mulheres e 56% dos homens

nunca votariam;

não acredita em Deus ou é ateu: 66% das mulheres e 61% dos homens

nunca votariam;

é a favor da legalização da maconha: 74% das mulheres e 66% dos

homens nunca votariam;

Percebemos que os temas que tocam em dogmas religiosos cristãos como a

homossexualidade, a pena de morte, outras crenças religiosas, a legalização do aborto e

do uso da maconha tem altíssimo grau de rejeição.

78% das mulheres e 76% dos homens afirmaram que as mulheres estavam

preparadas para governar o país, o estado e a cidade.

Quando perguntadas sobre o baixo contingente de mulheres na política, as

causas mais apontadas foram:

44% machismo: os homens acham que as mulheres não têm competência,

que lugar de mulher é na cozinha, que a política é coisa de homem; que

as mulheres não são inteligentes;

14% falta de interesse: as mulheres se interessam menos pelo assunto,

entendem menos e se candidatam menos

13% preconceito e discriminação.

11% falta de confiança: o povo não confia nas mulheres, as próprias

mulheres não se acham capazes de assumir cargos políticos.

9% falta de oportunidade

6% falta de competência: os homens são mais capacitados

5% falta de envolvimento: as mulheres não se envolvem com política,

não querem ter a responsabilidade.

3% fragilidade: as mulheres têm menos força pra lutar.

De uma forma geral, pode-se observar dentre as mulheres um reconhecimento

maior da vida política, mas a apropriação desta esfera ainda está distante.

Infelizmente, tanto para homens como para mulheres, a vida política ainda está

imbricada com a vida religiosa. Aspectos que não sofrem a crítica da Igreja como a cor

de pele e o gênero são muito mais tolerados do que os aspectos que são abertamente

Page 53: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

combatidos como a homossexualidade (tida como antinatural), o aborto (pecado) e a

legalização das drogas (pecado).

As mulheres demonstram um nível de conhecimento sobre política mais baixo

que os homens e, portanto, um grau de politização inferior. Embora elas reconhecem-se

muito pouco como agentes de sua história, responsabilizando os homens inclusive pelo

seu baixo acesso à vida política, já reconhecem a possibilidade de uma mulher ser

governante do país, do estado e da cidade.

Concluindo, esta análise nos permite compreender que a situação da mulher tem

apontado para melhoras, mas que a concretização da igualdade entre os gêneros ainda

parece distante.

As mulheres têm tido maior acesso à escolarização e à informação, porém sua

participação no mercado não obteve incremento entre 2001 e 2010. Este fato não

coaduna com a conquista da emancipação financeira das mulheres, um dos fatores

essenciais para o rompimento de sua submissão.

As mulheres também afirmam trabalhar menos horas que os homens. Esse

índice denota maior participação dos homens na esfera econômica, cerne de nossa

sociedade e provavelmente aponta para o fato de que as mulheres não têm calculado as

horas de trabalho doméstico. Este fato indica que esta atividade ainda é compreendida

como uma tarefa inerente do ser feminino que não está inserida na mesma esfera do

trabalho remunerado o que é fator fundante da opressão das mulheres.

Parece claro dentre as mulheres que a inserção no mercado de trabalho é um dos

caminhos possíveis para a conquista de sua liberdade de forma que esse item se

sobressaiu como a primeira conquista que a maioria das entrevistadas faria para

melhorar a vida de qualquer mulher. Entretanto, para a maioria das mulheres, sua

identidade ainda está diretamente relacionada às suas funções com relação ao outro,

sendo a maternidade a representação mais expressiva. Felizmente esse contingente

diminuiu e o papel da mulher batalhadora, que luta por seus interesses já desponta

representativamente na pesquisa.

A violência doméstica tem uma representatividade alarmante, constituindo-se

que como a expressão de constrangimento e sofrimento mais contundente que afeta as

mulheres no ambiente privado. No espaço público, a discriminação e o machismo são os

mais expressivos índices. Esses fatores estão diretamente relacionados e deflagram a

Page 54: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

secundarização da mulher culminada pela violência. Porém, é importante notar que

esses índices sofreram uma leve queda entre 2001 e 2010. Ou seja, a violência de

gênero é, sem dúvida, expressiva e precisa ser combatida, mas as ações implementadas

como respostas tem alcançado pouco resultado positivo.

Quando questionados sobre as melhores e piores coisas em ser homem, os

entrevistados delineiam claramente a hegemonia masculina em nossa sociedade, pois

lhes agrada a liberdade e o poder e desagrada-lhes o peso da responsabilidades. Ou seja,

os homens sentem-se sobrecarregados pelas obrigações que lhe são imputadas em seu

papel social revelando o prejuízo causado a eles pela tutela que exercem sobre as

mulheres – tolhidas de liberdade e poder.

Outro fator importante desta análise está na compreensão sobre o machismo.

Pelos indicadores, a ideologia vigente alcançou níveis assustadores de abrangência. A

maioria dos entrevistados acredita que o machismo existe, mas não conseguem

reconhecê-lo.

O conhecimento sobre feminismo também é inconsistente. A maioria dos

homens acredita que ele não exista e a maioria das mulheres não se considera feminista.

Esse fato é preocupante, pois exprime a condição alienada da relação entre os

gêneros. Homens e mulheres se relacionam sem reconhecer os papéis que lhe foram

socialmente impostos, não distinguem as raízes sócio-historicas deste processo e

consequentemente não são capazes de protagonizar a elaboração de um projeto

societário voltado à emancipação humana.

Page 55: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

CAPITULO III

AS DETERMINAÇÕES SOCIO HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE

VIOLÊNCIA

Page 56: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Neste capítulo procedemos à sistematização de oito entrevistas com mulheres

vítimas de violência doméstica realizadas pelos alunos do Núcleo Família e Sociedade

do curso de Serviço Social em 2010 (Anexo I), a fim de analisar as determinações

sócio-históricas implicadas na produção e reprodução da situação de violência de

gênero nas relações familiares.

Neste estudo entendemos as determinações sócio-históricas como categorias

socialmente produzidas pelos indivíduos em determinado espaço e tempo que

cristalizam estruturas sociais. Estas estruturas sociais cristalizadas, por sua vez,

delimitam o espectro de possibilidade de atuação dos seres sociais. Sendo assim, os

seres sociais e as determinações sócio-históricas se alimentam mutuamente, num

movimento dialético. Segundo Salem (1987: 56):

Inscrevem-se nessa orientação, por exemplo, os trabalhos de Berger e Luckman (1973),

de Bordieu (1972) e Giddens (1978). O circuito dialético entre exterioridade e

interioridade proposto pelos três primeiros autores (traduzido no duplo processo de

interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade) apóia-se em

pressupostos similares aos que fundamentam o conceito de “dualidade da estrutura” de

Giddens. Em ambos os casos nega-se ao indivíduo o caráter de possibilidade absoluta;

pensado como agente historicamente situado, sugere-se que as condições externas

delimitam o escopo e a direção tanto de suas representações quanto de suas práticas e

estas, por sua vez, tendem a reproduzir as estruturas vigentes. Nessa medida, os

indivíduos são vistos, simultaneamente, como produtores e reprodutores da ordem social.

A partir da literatura e do conteúdo das entrevistas podemos categorizar as

seguintes determinações sócio históricas: destino de gênero e a força ideológica dos

papéis de gênero; a naturalização da violência imbricada ao território e o espectro do

abandono implícito no legado geracional. As categorias não esgotam a complexidade do

tema, mas já indicam um caminho possível para o alcance dos objetivos desta pesquisa.

A intenção é compreender como as categorias acima elencadas se repõem no discurso

das entrevistadas denotando os traços comuns dentre as mulheres vítimas de violência.

É importante notar que a intenção de categorizar as determinações sócio-históricas

que compõe o discurso das entrevistadas não tem a intenção de parcializar ou subdividir

o entendimento da situação de violência. O objetivo na verdade é dar visibilidade à

complexidade deste fenômeno, tendo por fundo o entendimento do indivíduo em sua

totalidade. Como será possível observar, geralmente em uma única fala das

Page 57: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

entrevistadas é possível encontrar mais do que apenas uma das categorias, como será

exemplificado a seguir.

DESTINO DE GÊNERO E A FORÇA IDEOLÓGICA DOS PAPÉIS DE

GÊNERO

Como já foi tratado no capítulo I deste estudo, o surgimento da categoria gênero

permitiu a compreensão de que não há nada de natural nas funções e características

atribuídas ao feminino e ao masculino. Este fato torna claro como a desigualdade de

gênero é construída pela sociedade.

A desigualdade, longe de ser natural, é posta pela tradição cultural, pelas estruturas de

poder, pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais. (SAFFIOTI: 2004,71)

Através da força ideológica dos papéis de gênero cristalizam-se os papéis

atribuídos ao masculino e ao feminino: o homem protagonista e provedor da família que

tem poder sobre a mulher submissa e responsável pelas tarefas domésticas.

Esta lógica oculta o fato de que o patriarcado é constituído socialmente e faz crer

que há uma predestinação dos gêneros, sendo que caberia à mulher o destino de

sofrimento e opressão. Dessa forma, dá-se a naturalização da violência contra a mulher

legitima o destino de gênero.

Podemos chamar de destino de gênero a resignação, que significa a aceitação do

sofrimento enquanto predestinação por ser mulher. Aceitar o seu destino é a resignação

da mulher e o que é esperado pela sociedade. Na qualidade de sofredora a mulher deve

aceitar o seu destino sem reclamar. (GUIMARÃES, 2011: 56)

Segundo Saffioti:

destino de mulher é ser infeliz. Foi assim que a sociedade determinou. Não quer dizer isto

a tão popular expressão “ser mãe é padecer num paraíso”? (1987: 31)

Dada a sua formação de macho, o homem julga-se no direito de espancar sua mulher.

Esta, educada que foi para submeter-se aos desejos masculinos, toma este destino como

natural. (1987:79)

Page 58: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Sendo assim, nas entrevistas encontramos muitos relatos de mulheres que

buscaram ajuda junto aos seus familiares e foram instruídas a voltar para seus maridos

porque esta era a ordem natural das coisas, como foi o caso de Helenice (51) e Maria

(43):

Quando ele me empurrou e veio pra cima, eu corri e peguei a barra de ferro pra me

defender. Porque, ele tem 110 kg e eu tenho que? 45 kg. E ele é aquela massa bruta

mesmo, tanto alto como aquela massa bruta mesma. Não é baixinho e gordo de gordura

não. Aí nisso tudo também as irmãs dele foram a favor dele, jogaram na minha cara que

ele nunca deixou faltar o arroz e o feijão dentro de casa. (...) minha mãe viveu com a

gente dez anos. Dez anos eu passei por isso empurrando com a barriga. A gente discutia,

minha mãe entrava no meio e punha pano quente. Então na hora de discutir ele falava,

falava, falava e minha mãe falava: “Você fica respondendo, cala a tua boca. Você tem

que ficar quieta”.

Triste e chorando Maria foi para o banho, seu marido subiu depois e começou a discutir,

afirmando que Maria o tinha traído. Os ânimos se exaltaram e ele a empurrou pela

escada (Maria estava grávida de cinco meses), a mãe dele presenciou, mas não fez nada.

Pode-se observar o papel-chave da família na naturalização da violência. Lenilda

(57), aos quatorze anos começou a namorar com um homem vinte anos mais velho que

era conhecido de sua mãe, assim como seu histórico de violência contra a ex-mulher. A

avó, preocupada, critica a omissão da mãe:

minha vó descobriu e contou pra minha mãe. Como ele já era um homem mais velho do

que eu, que já, que ele era violento com a mulher, como que minha mãe tava ficando

louca de deixar eu namorar, uma criança, como um homem desses, que já tem esses

passado, né? (...)Minha mãe com aquele monte de filho, eu queria ter o meu canto

também. E minha mãe por outro lado, achava que ele era um bom partido pra mim. Ele

não era de manguaça, nem nada, então achava que era uma pessoa boa.

Percebe-se pela fala de Lenilda que sua mãe via no casamento uma saída para

uma vida melhor para sua filha e que o histórico de violência de seu futuro marido não

era um grande empecilho.

Outras instituições, como a Igreja, também são protagonistas na reprodução do

Destino de Gênero, como foi o caso de Maria Alice (30):

Cresci em uma igreja evangélica e aprendi que a mulher teria que casar, ter filhos e ser

obediente ao marido, ou seja, submissa a todas as vontades dele.

Naquela tarde marquei com o conselho da igreja e coloquei toda a situação, o conselho

da igreja ainda tentou me convencer a dar uma nova chance para ele, já que ele era um

membro assíduo da igreja.

Page 59: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

E o caso de Carla (31) dentro de uma delegacia de polícia:

A relação era difícil, tivemos outra briga onde ele me agrediu e então fui a delegacia, lá a

escrivã não abriu a ocorrência, alegando que como era pouco tempo de casada, iríamos

nos acertar, mas chamou ele para conversar, nessa conversa ele colocou sua explicação

passando que eu era muito nervosa, resumindo acabei saindo como errada nessa situação,

e ele saiu de lá, se sentido forte...

As mulheres, como sujeitos dentro deste quadro sócio-histórico, também

reproduzem o destino de gênero. Muitas vezes elas se mostram resignadas frentes a uma

situação de violência, pois acreditam que estão cumprindo seu papel de mãe, como é o

caso de Helenice (51) e Lenilda (57):

quando ele chegava bêbado além de me chamar de tudo isso, ainda me pegava a força na

cama e com agressão, chute pontapé e eu agüentava com medo de acorda as criança.

Como você pode brigar com seu marido, você não pode envolver seus filhos, porque os

filhos começa a ter raiva do pai, e não, pai é pai, se fosse um cachorrinho, mas é pai.

Então eu sempre falava “deixa eu com seu pai”, (...) Foi tão engraçado que ninguém

tinha raiva do pai, eu nunca passei isso, (...) acabava de me bater, sentar no sofá e

deitava no meu colo. (...) E ele fazia isso, dormia no meu colo. Pegava o meu braço

deitava por cima dele, e colocava a mão e colocava a minha mão assim, passando a mão

na cabeça dele, aí eu pensava “meu Deus, será que é normal?”. Sozinha, chorando,

porque tinha acabado de apanhar, e passando a mão na cabeça dele. (...)

A mulher em situação de violência muitas vezes vive uma confusão entre a

onipotência e a impotência, pois crê ser capaz de mudar o companheiro e quando se

depara com a impossibilidade de fazê-lo, culpa-se.

Talvez por serem encarregadas da educação dos filhos, as mulheres, em geral, sejam tão

oniponentes. Julgam-se capazes de mudar o companheiro, quando a rigor, ninguém muda

outrem. A pessoa pode decidir transformar-se e, com auxílio de um bom profissional psi,

ter êxito. Tal sucesso pode também ser obtido sem ajuda de ninguém, sendo, entretanto,

mais penoso, mais lento e de duvidoso êxito. (SAFFIOTI, 2004: 66)

Em sua entrevista, Maria (43)

reconhece que por perceber esse histórico aceitava se submeter às vontades do

namorado, por ter dó. Ele a usava como “escape” da família, o que gerava problemas

para Maria no relacionamento com a família dele.

O destino de gênero escamoteia a situação de violência sob o argumento da

virtude feminina. Ele legitima a abnegação das mulheres, justificando sua dor e sua

Page 60: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

tristeza, como um caminho para que alcancem esse ideal, como se pode observar nas

entrevistas de Lenilda (57) e Maria Alice (31):

meu carma era esse, Deus pôs ele na minha vida, meu futuro era cuidar dele, (...) Por

Deus, a gente só tem aquilo que Deus quer. Deus não dá mais nem menos pra ninguém,

Deus só dá aquilo que a gente agüenta.

Fiquei por 6 meses sofrendo calada sozinha sem contar ninguém por amor a minhas

filhas e a igreja, em nosso meio evangélico a gente se expressa “Para não escandalizar o

nome de Jesus”. Então eu levei a sério por seis meses, orava dizendo Senhor se assim

que tem que ser, então eu quero obedecer. Mas eu estava ficando doente, emagrecendo

muito, as pessoas perguntando o porque estava emagrecendo tanto, e ele dentro da

igreja com a cara de santo se como nada tivesse acontecendo.

Outra conseqüência deste processo é a tendência a esconder o sofrimento. A

mulher tem vergonha de expor seu cotidiano de sofrimento e acredita que faça parte de

suas atribuições proteger o ambiente doméstico da interferência de outras pessoas. Era o

que Lenilda (57) fazia:

não dava, eu não mostrava pra ninguém que eu sofria. (...) eu achava que não tinha que

se envolver nos meus problema com ele.

As mulheres tentam ao máximo corrigir a trajetória de sofrimento em que vivem,

esforçando-se para compreender o que se passa com o companheiro. Como procuram

fazer Helenice (51) , Lenilda (57) e Eronita (46):

eu acho que ele era um homem doente, agora que ta tudo calmo eu acho que ele é doente.

Porque ele... como eu posso te explicar? Ele era uma pessoa carente, eu acho que ele

ficou tudo isso porque ele perdeu a mãe com dezesseis anos e não teve apoio de ninguém.

peço pra que Deus perdoe os pecados do meu marido e que dê o melhor pra ele, porque

talvez na cabeça dele, ele não tava fazendo mal pra nós. Nós pensa “ele foi mal, ele foi

ruim, ele foi assim, ele foi assado”, mas, e os meus defeitos também, né? Porque eu não

sou perfeita, ele não é.

Por isso é que eu digo que era bruxaria, macumbaria, alguma coisa, ele xingava de um

jeito que meu coração, eu acho, eu acordava ali sabe, quantas vezes eu acordava no

susto, num pulo só.

O destino de gênero outorga ao homem o poder de oprimir e explorar a mulher,

como Lenilda (57) exemplifica muito bem em sua fala:

Ele às vezes chegava do serviço e vinha, ai eu tinha que fazer tudo correndo, pra mim

não deixar ele brigar. (...) Se ele chegasse... é... do serviço, ele ia nos móvel, se tivesse pó

ele me batia, assim normal, me batia. “Por que eu não limpei e não tirei os pó das

coisa”. Que eu já não trabalhava pra fica dentro de casa pra tira... deixa tudo

Page 61: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

certinho.(...)... se alguma coisa tive fora do lugar, ele vinha reclamar. Eu não era pra

fala sim nem não. Eu tinha que fica calada. Se eu reclamasse, ai eu apanhava. Como as

vezes eu ficava com tanto medo que eu só chorava, ficava quieta só ouvindo ele fala.

“Amanha se eu chegar e tiver no mesmo lugar, vc vai vê. Ai eu já sabia, já acordava e

fazia tudo isso, que nem um robô dentro de casa. Eu não sentia minha casa, eu me

sentia... como se eu fosse uma empregada.

Pode-se perceber pelo discurso das mulheres entrevistadas que o destino de

gênero é reproduzido intergeracionalmente, ou seja, as gerações adultas transmitem

através da educação esse padrão de comportamento que passa a se reproduzir entre os

filhos, como contam Lair (56), Eronita (46) e Lenilda (57):

(seu filho) odeia o pai e mesmo assim tem atitudes idênticas a do pai. Lair diz que sua

nora Vanessa, 26 anos, também sofre agressões pelo marido e que cresceu presenciando

pessoas sendo agredidas. Vanessa não desejava se relacionar com pessoas violentas mas

mesmo assim, ela tem contato com pessoas que a agridem desde a infância, o tio que a

espancava e hoje seu marido.

As meninas também tinham medo dele. Eu acho que elas ainda tem, porque a menor é

como eu, fica preocupada em ajeitar as coisa para o pai quando ele chegar. (...) Sabe,

porque, elas estão como eu era com ele, elas estão sabe, eu era debaixo da saia dele e

elas estão indo no mesmo caminho

sempre achei que o homem tem que ter o pulso mais firme em casa, porque os filhos não

obedece a mãe, mas o pai é bom, pra ele por respeito. Então nunca tirei o direito dele

corrigir meus filhos, se querem ir à algum lugar “vá pedir pro seu pai” (...)

meu genro ele é chato, se meu genro desse um tapa na orelha da minha filha, era bem

dado, porque tem hora que ela extrapola, você entendeu?

O destino de gênero também consolida o ideal de que a mulher deve sempre tentar

uma reconciliação com seu companheiro, já que seu destino é estar ao lado dele,

incondicionalmente. Lenilda (57) relata em sua entrevista que foi reencontrar o marido

para uma reconciliação encorajada pela irmã, embora temesse pela própria vida:

Aí minha irmã pegou e falou “Olha, se você acha que não dá certo, que ele vai ficar

atrás de você, dá uma chance pra ele, quem sabe, você nunca separou dele desse jeito

pra ficar tanto tempo, quem sabe ele mudou agora”. Aí eu comecei pensar e falei “é

mesmo, a Cris ta esperando neném, vai ser uma barra, vai ser uma barra até pra contar

pra ele, né?” Aí eu falei ta bom, aí fui pra firma falei com ele, marquei com ele pra

conversar com ele, aí ele foi e eu fui prevenida, porque de repente ele pode fazer alguma

coisa comigo, aí eu já tinha ido na delegacia, fiz um B.O., que ele me ameaçava, então se

acontecer alguma coisa, então não podia imaginar, aí eu fui.

Outra expressão do destino de gênero é a dupla moral sexual, através da qual ao

homem é permitido o adultério, ao contrário da mulher.

Page 62: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A sociedade não apenas aceita o adultério masculino como também encontra sempre uma

maneira de justificá-lo através da conduta da esposa. A mulher acaba, quase sempre,

sendo culpabilizada pelo seu próprio sofrimento. Se apanhou do marido, se foi por ele

assassinada, é porque assim o mereceu. A polícia, a justiça, enfim, a sociedade transforma

a vítima em ré, até depois de sua morte. (SAFFIOTI,1987:45)

Podemos perceber a resignação de Eronita (46) e Helenice frente a esta situação

em seus relatos

ele tem essa amante, uma noite sim outra não vem aqui pra casa, mas a gente não se fala

mais, ele dorme no quarto das meninas (...) agora nem minha comida ele come mais

quando o wellington estava com 3 pra 4 meses, ele pegou e teve um... começou a

frequentar um bordel. então, hum. então ele chegava em casa e culpava eu, que eu era

isso, por exemplo que eu era cachorra, eu era sem vergonha, eu era tudo de mal que tinha

eu era. ele era o bom, até então eu não sabia. (...) eu falei com ele, ele desmentiu. daquele

dia em diante então começou a tragédia, quando ele não queria, quando ele não saía com

essa menina, ele me queria a força. não se importava com que eu tava fazendo, a situação

que tava, ele me pegava. e tem mais, ele me tratava como ela, ele acaba de ter relação, ele

nunca me dava atenção, ele virava pras costas e dormia. e quando eu falava que eu não

queria, aí ele começava a me chutar com os pés, a me cutucar, a me empurrar da cama.

tudo ali, eu quieta, com criança pequena passando e minha mãe também junto com a

gente.

Como foi tratado anteriormente, o patriarcado

...refere-se especificamente a sujeição da mulher, e que singulariza a forma de direito

político que todos os homens exercem pelo fato de serem homens (PATEMAN apud

SAFFIOTI, 2004:55).

quando há uma separação, o homem - muitas vezes inconformado com a perda de sua

amada ou de seu objeto de dominação - passa a perseguir a mulher, ameaçando-a de

morte, caso ela não concorde em restabelecer a relação marital e, não raro, comete esse

homicídio. Isso significa que, embora o casamento formal tenha sido desfeito, a relação

continua existindo para o homem, pelo menos simbolicamente. A grande diferença entre

o galinheiro e a sociedade, entre os animais e o ser humano, reside na capacidade humana

de simbolizar. Por construir cultura, elemento ausente nas sociedades animais, o ser

humano atribui significado a suas ações e às dos outros, assim como aos objetos e aos

fatos. Em virtude disso, o macho da espécie humana estabelece não apenas seu território

geográfico, mas também um território simbólico no qual reina soberano sobre mulheres,

crianças, adolescentes e idosos. O homem é socialmente poderoso, e essas outras

categorias são frágeis. Isso é fruto do processo cultural de simbolização. (SAFFIOTTI:

1997)

Neste panorama percebe-se que a mulher passou a ser mais uma propriedade do

homem. Nas entrevistas é notório que todas viviam controladas por seus parceiros e

sofriam com os acessos de ciúmes dos mesmos.

Maria (43) contou que:

Page 63: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Na primeira fase do namoro o rapaz sempre a tratou bem, mas já era perceptível à Maria

e à sua família, que o rapaz exigia submissão. Eventualmente, algumas brigas

aconteciam devido ao ciúme do namorado. (...) No caminho parou para comprar um

presente, devido a isso chegou alguns minutos mais tarde em casa. O que foi suficiente

para o marido ter uma crise de ciúmes, principalmente, porque Maria na ingenuidade

contou que pegou carona para não se atrasar tanto.(...) Devido ao ciúme não trabalhou

por sete anos. Um dia seu marido a agrediu na frente do filho que na época estava com

mais ou menos quatro anos. Maria não se recorda do motivo exato, na realidade tudo era

motivo para brigas, tapas e humilhações. (...)Aos poucos deixou de ir à igreja para evitar

crises de ciúme do marido, o que a fez se anular por completo, pois, lá também era um

local onde podia ser mais livre.

Eronita (56) relatou que:

Eu sempre gostei muito de conversar e uma vez quando ele saiu de minha casa e foi para

o bar, eu sai para casa de uma amiga para contar as coisas do meu namoro porque eu

tava contente e queria contar para outra pessoa, mas ele me viu saindo e brigou comigo

e me fez voltar para casa. Ele foi meu primeiro namorado sério.

Lenilda (57) também narrou em seu cotidiano muitos exemplos de cerceamento e

ciúmes:

Aí uma vez ele deixou, falei vou voltar a estudar. Por que aí eu vou escrever. Eu tenho

mania de comer letra. Só que ele ia me levar e buscar, e ele ficava parado no carro até

eu sair da escola

Ai eu cheguei e falei pra ele, eu vô te de fala, arrumei um serviço e vou trabalhar numa

firma. Ele arregalou os olhos e falou: você trabalhar em firma? Não eu não tenho

mulher pra trabalhar fora.

Outra expressão do destino de gênero que pode ser encontrada nas entrevistas é a

culpa que as mulheres se atribuem pela violência vivida, como pode ser observado no

discurso de Eronita (46) e Lenilda (56):

Porque se eu percebi desde o inicio e continuei com uma vida dessas é porque eu tenho...

a minha família me avisava, mas eu tava aceitando, né?

Como eu sabia que tudo isso meu pai, minha mãe avisou antes e eu quis, né lutei pra mim

casar com ele. Então eu achava que não tinha que se envolver nos meus problema com

ele.

Dessa forma, pode-se perceber como a categoria destino de gênero é uma

ferramenta relevante para a análise sócio-histórica da violência doméstica contra a

mulher, pois nos permite perceber padrões de comportamento específicos que são

reproduzidos dentro do tecido social e que fomentam a violência cotidianamente.

Page 64: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

O destino de gênero vela e revela uma dinâmica impregnada de resignação, sujeição e até

formas de explicação pela perspectiva da vitimização do agressor. É uma das

determinações históricas assentadas na ideologia patriarcal que vem se reproduzindo e

resistindo na cultura. (GUIMARAES: 2011, 64)

A NATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA IMBRICADA AO TERRITÓRIO

A categoria território é entendida nesse estudo como um elemento importante na

complexa constituição da situação de violência. As pessoas que convivem em um

espaço produzem e reproduzem uma dinâmica cotidiana que está diretamente

relacionada ao ambiente que as circunda.

O território vem sendo um elemento importante abordado em diversas experiências, não

apenas sob o ponto de vista do Estado, mas também da sociedade. Esta perspectiva

fomenta também o debate sobre a inclusão social, a cidadania, a democratização das

informações e a participação dos cidadãos na vida da cidade. Pois o território, para além

da dimensão física, implica as relações construídas pelos homens que nele vivem.

(KOGA, 2002:24)

A análise das entrevistas permite que se perceba como as condições de vida da

população assim como a convivência comunitária delineiam um leque de possibilidade

que parece bem restrito. Na verdade, como nos aponta Koga,

as histórias de vida parecem repetir-se de geração em geração: gravidez precoce,

desnutrição, educação precária, desemprego. São sofrimentos já naturalizados. (2002: 43)

A potencialidade destes destituídos é cotidianamente cassada não apenas na falta de

oportunidade de acesso ao trabalho, mas também na forma com que se desdenham da sua

própria condição humana, da sua dignidade.

Quando a política pública desconsidera a condição humana desta população, ela também

cassa ou “mata” seu potencial. (2002: 42)

Dessa forma, percebe-se que nos territórios vulnerabilizados os índices de

violência são mais altos, assim como a naturalização destes eventos. Este fato pode ser

comprovado pela fala de Helenice (51):

E muitos. Muitos casos. É cheio, é cheio, é cheio e isso é só na rua onde eu moro. Se for

ver a comunidade você vai ver muitos casos.

Nos dois relatos que seguem de Helenice (51) e Lenilda (56), podemos perceber

como a pauperização da população intergeracionalmente legitima a violência. Nos dois

casos, as mães, incapazes de prover sozinhas o sustento de suas filhas, acreditam que

viver com um homem agressor é um mal menor:

Page 65: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Minha mãe alegou que eu tava com a criança pequena, já tinha a Michele que tava com

quatro anos, tinha o Wellington que tava com alguns meses. Então ela alegou como que

eu ia manter essas duas crianças. Porque nem eu, nem ela trabalhava. Minha mãe nunca

teve pensão nem nada, então, ia sim, ia ficar uma situação difícil, né. Mas daí em diante,

minha filha, a situação começou a piorar.

...que minha mãe tinha muito irmão, muito filho, é que nem eu falei. Todo sábado minha

mãe ganhava filho, então não tinha condições, quando comprava o sapato pra um, o

sapato do outro já tava rasgado, então minha mãe não tinha uma madrinha. (...) Olha eu

nem sabia o que era amor direito. Mas foi o amor, na época, que eu amava ele, que eu ía

me casar com ele, que eu queria ter um quartinho pra mim, porque ele falava, né? Que

vamo ter a nossa casa. Então ele falava as coisas bonita, que era o que eu queria ouvir.

E eu queria sair dali. Minha mãe com aquele monte de filho, eu queria ter o meu canto

também. E minha mãe por outro lado, achava que ele era um bom partido pra mim.

Acredita-se que o território constitui um instrumento importante para o estudo da

violência doméstica, pois se compreende que em territórios violentos a reprodução e a

naturalização deste fenômeno é potencializada, como pode ser observado no relato de

Helenice (51):

essa minha vizinha, ela passou pela mesma forma, ela passou pela mesma situação só

que o marido, o problema do marido dela não era de álcool. O problema dele era a

droga. Parede e meia com a minha, então ela também passou por um sistema muito

doloroso, inclusive ela veio, se abriu pra mim. Muita ameaças. Só que agora ele saiu de

casa, e ela virou a cabeça, ela ta pagando com a mesma moeda o que ele fazia com ela.

Então a situação ta difícil. (..)

Nos territórios onde o poder público se omite geralmente surgem poderes

paralelos que atuam na sua ausência. Este fato legitima ainda mais as ações violentas

dentro da comunidade, como discorre Helenice (51):

Onde a gente mora, se a gente for atrás dos bandidos eles da um jeito, mas jamais eu vou

mexer com bandido pra pegar ele. O Wellington mesmo, muitas vezes falou que ia atrás

dos bandido para pegar o pai, porque o pai me tratava daquela forma. (...) Inclusive ta

fazendo quase dois meses que mataram um rapaz, que ele abusou de uma menina de 14

anos.

Dessa forma, percebemos como a violência domestica é potencializada em

territórios violentos constituindo-se como uma questão pública sobre a qual deve incidir

uma política específica.

A intervenção das políticas públicas deveria estar atenta não só às condições individuais

de vida das pessoas, mas também às construções de relações acumuladas na coletividade.

Page 66: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Significa um novo olhar sobre a população e o território. O aspecto relacional se faz

intrínseco às condições de vida das pessoas. (KOGA, 2002: 41)

O ESPECTRO DO ABANDONO IMPLÍCITO NO LEGADO GERACIONAL

No processo de socialização a mulher é ensinada desde a infância de que não será

capaz de viver fora da tutela de um homem, seja de seu pai ou de seu marido. Na sua vida

cotidiana ela vivencia este fato: seja pela desvalorização das tarefas domésticas (que ela

aprendeu como “naturalmente” femininas), seja pela sua maior vulnerabilidade à violência,

seja pela super exploração no mercado de trabalho, seja por entender sua importância apenas

atrelada à outros sujeitos etc.

As experiências de abandono acabam, de forma paradoxal, apenas lhes confirmando a

crença em sua baixa capacidade para operar em território masculino, reiterando,

paralelamente, a suposição de que o que lhes faltou foi o “homem certo”. Dessa

imprescindibilidade percebida entre o feminino e o masculino segue-se a transferência de

figura de amparo como uma estratégia na luta por exaurir todos os recursos para minorar

seu sentimento de indeterminação. (SALEM, 1981:97)

Dessa forma, as mulheres que vivem sob o espectro do abandono nutrem o medo de

serem abandonadas, pois temem as conseqüências de viver sem o respaldo de um homem.

Em comunidades vulnerabilizadas, as famílias acabam se reestruturando de forma que

todos os indivíduos possam sobreviver. Há casos em que filhos são enviados para serem

criados por parentes em situação mais favorável, assim como os maridos que saem de casa

em busca de melhores oportunidades de trabalho longe da família, constituindo as

denominadas “viúvas de marido vivo”.

Uma estratégia do grupo familiar que, em face da carência material a níveis insuportáveis,

diminui precocemente seu tamanho por meio da dispersão artificial e antecipada de alguns de

seus membros. (SALEM, 1981:69)

Sendo assim, muitas mulheres entrevistadas tinham o abandono em seu histórico, seja

na infância pelo pai ou pela mãe, na vida adulta pelo marido ou finalmente pelos filhos.

Em seu relato, Lenilda (56) contou como temia separa-se do marido e o medo que

tinha de ser abandona pelo filho:

... porque eu achei que eu podia sair e não conseguir viver sem você, só que eu sei que eu

consigo.

Page 67: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Agora eu to vendo meu filho se virando contra mim. O meu filho que eu pulei na frente do

meu marido com uma faca, meu marido pegou uma faca pra ir em cima dele, ai eu pulei

na frente sabe? Agora, meu filho, que por causa de uma mulher que amou, que não sabe

da onde essa mulher saiu, tá contra mim? (...) Esses dias ele falando pra mim: vamos no

medico, eu não quero, não posso ficar sem a senhora, então esse filho que eu tava

perdendo, não, tem que ter sabedoria, a gente não pode usar só com a emoção, tem que

ter sabedoria, e é isso por que, por que? Eu deixava ele fazer tudo, eu deixei tudo que eu

mais gostava na vida, dançar, quando meu pai morreu pra você vir aqui, não ter

sabedoria pra agir na minha casa

Percebe-se no discurso das mulheres um descontentamento com a presença-

ausência da figura masculina em seu papel de gênero assim como o temor por uma

abandono que pode vir a se concretizar a qualquer momento.

...essa indeterminação (...) fundamentada no gênero e aguçada pelas condições de vida

desse estrato. Ela resulta, basicamente, da conjugação entre a delegação do enfrentamento

do mundo extrafamiliar à figura masculina e à vivência de situações várias nas quais o

homem, como personagem efetiva de suporte, mostrou-se, aos olhos da mulher omisso ou

esteve, de fato, ausente. (SALEM, 1987: 66)

Lenilda (56) viveu uma infância de muita pobreza apesar de seu pai ganhar muito

dinheiro, pois ele mantinha duas famílias.

... não tinha condições, quando comprava o sapato pra um, o sapato do outro já tava

rasgado, então minha mãe não tinha uma madrinha. Então era uma vida mesmo ali, de

pobreza, sabe? Aí meu pai tinha a minha madrasta, então meu pai tinha duas família,

ganhava bem, que naquela época, os pedreiro, que agora chama consultor, né?

Ganhava muito bem!

Helenice (51) foi negligenciada pelo marido em pleno trabalho de parto e

enquanto viveu com ele passou muita necessidade:

“Minha mãe vai ganhar neném e ela precisa ir pro hospital e eu vou chamar minha tia,

porque o pai chegou bêbado.” Ela sempre chamou ele de pai, o pai chegou bêbado. Aí

ele pegou e falou pra ela assim: “Vai lá chamar a tia que eu vou procurar um carro pra

levar a tua mãe”. Aí voltou lá no bar, viu um colega dele que tava com uma caminhonete,

acho que tinha cerca de uns cinco ou seis homens que tava tudo lá, foram tudo em cima

dessa caminhonete (risos) porque se ela atolasse no barro né, eles empurrava. Foi o que

aconteceu, a caminhonete, a caminhonete atolou e aquele bando de homem meio bêbado,

todo mundo empurrando essa caminhonete para que nois chegasse no posto vinte e

quatro horas. (risos) Quando nois chegamo no posto, a médica disse assim: “Quem é o

pai?” O meu vizinho dizia assim: “Aqui não tem pai não, socorre ela que ela ta

precisando, não tem pai, socorre ela”.

Aí tudo isso foi corroendo, aí eu chegava em casa, começava a ficar nervosa e às vezes

as crianças tinha algum problema durante o dia e eu precisava dele em casa mais cedo,

ele não vinha.

Page 68: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Mal e mal ele punha o arroz e o feijão dentro de casa, ele não comprava medicamento,

ele não comprava uma roupa, não comprava um calçado. Ele achava que o essencial era

o arroz e feijão, né. Porque, mistura, minha filha, se eu não fizesse uns biquinhos a gente

não comia nenhuma mistura, não tinha carne, uma verdura, não fazia feira. (Risos) Era

tudo isso, tinha dia que ele saía, me deixava com as duas crianças e com R$ 1,00 dentro

de casa e o arroz e o feijão, mais nada, que era o real do pão. Aí sempre tinha aquela

coisa uma mistura, às vezes tinha algum problema que eu tinha que sair, levar em posto,

dinheiro de condução, dinheiro de remédio, essas coisas pra ele não existia, nada disso.

É importante notar que a ausência masculina se faz presente tanto no plano

concreto como emocional. Helenice (51) lamentava muito a falta de apoio que tinha do

marido:

E ele chegava bêbado e xingando. No dia da morte da minha mãe, ele não teve coragem

de chegar e me da um ombro pra mim chorar, mas nem no cemitério... ele ficou metros e

metros longe de mim. Ele não me deu uma palavra de consolo, ele não se aproximou de

mim e nem dos meu familiar.

Pode-se observar que ao se separar Helenice (51) teve que enfrentar um cotidiano

difícil:

Olha, eu não sei se se julgava amor. Porque a gente sente falta de uma segurança, que

apesar de tudo isso, eu sabendo que eu tinha um homem dentro de casa, eu me sentia

segura. Porque eu moro num bairro que é meio perigoso. Então a partir que ele foi

embora, só ficou eu e os três menino, eu me sentia insegura. E o que foi que aconteceu?

Eu chego em casa e eu sentia preocupação com os menino, com a escola,

responsabilidade da casa. Eu passei muitos dias sem dormir. (...) Com a alimentação eu

nunca me preocupei, mas com o bem estar das criança, a segurança, a noite, do

falatório. Que a gente com o companheiro é uma coisa, sozinha é outra. A pessoa vê a

gente de outro modo.

Devido à dependência objetiva e subjetiva que desenvolvem, muitas mulheres

temem viver sozinhas e acabam optando por ter um relacionamento, mesmo que isso

signifique viver em situações de violência, como foi o caso de Regiane (49), Maria (42)

e Helenice (51):

emocionalmente se encontrava carente, frágil e desprotegida, fatores que a levam ter

uma relacionamento amoroso com Ângelo.

Confesso que ainda tinha um fio de esperança que o casamento viesse a melhorar, como já

frequentava a igreja conversei com o pastor. O mesmo nos chamou para conversar, meu

marido ficou transtornado quando percebeu que sua imagem perante o pastor estava

“manchada”, quase que apanho do marido na frente do pastor, que teve que intervir para eu

não apanhasse. Desde então, percebi que não tinha mais jeito, meu marido sempre pedia

Page 69: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

perdão, mas após alguns minutos tudo voltava tudo ao normal. Após nove anos de casamento

fiquei grávida do segundo filho (uma menina), novamente parei de trabalhar, o que evitou

muitos conflitos e agressões físicas. Porém, as agressões psicológicas sempre permaneceram,

meu marido sempre me acusava de ser prostituta. Em minha bolsa não podia ter batom, senão

era motivo de mais brigas.

Aí houve a separação, ele foi pra casa da irmã dele e eu continuei em casa. Aí ele queria

porque queria a casa, dizia que a casa era dele e isso e aquilo. Tava todo dia na porta de casa

ameaçando. Eu sei que eu peguei, juntei tudo as minhas coisa e fui pra casa da minha irmã. O

galpão onde eu fiquei era muito úmido e as criança começaram a passar mal. Eu voltei pra

casa e nois ficamos três meses separados, aí ele começou a ir no final de semana, mais calmo,

diz que tinha parado de beber, que as coisa ia mudar, pedindo pra voltar.

Dessa forma, percebe-se como a construção do papel de gênero feminino imputa à

mulher uma incapacidade de viver sozinha que lhe custa muitas vezes a própria vida.

Page 70: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

CONCLUSÃO

Page 71: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A pesquisa em questão permitiu compreender como a violência doméstica de

gênero contra a mulher é uma expressão da questão social, demandando uma resposta

efetiva do aparelho estatal para seu enfrentamento.

No primeiro capítulo estudado foram analisados os fundamentos teóricos que

explicam a opressão das mulheres: gênero, capitalismo, patriarcado, violência,

discriminação, ideologia e preconceito. Conhecer o entrelaçamento dialético dentre

esses fatores nos permite reconhecer as possibilidades para poder desconstruir as

relações sociais que oprimem as mulheres.

No segundo capítulo fez-se a análise das expressões da violência, com base na

pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaço público e privado” realizada em

2010 pela Fundação Perseu Abramo com o objetivo de fornecer visibilidade quantitativa

do objeto estudado. A pesquisa deflagra a violência no cotidiano contra a mulher: no seu

lugar na sociedade, na limitação de seu acesso aos espaços públicos, no seu baixo

acesso ao mercado de trabalho, na sua remuneração depreciada, no cerceamento de sua

sexualidade (que deve ser vivida com poucos homens, preferencialmente com apenas

um), na violência doméstica, na pouca participação política etc. Percebe-se que apesar

de haver alguma melhora na condição das mulheres, a igualdade entre gêneros desponta

num horizonte distante.

No terceiro capítulo foram analisadas as determinações sócio-históricas presentes

nas situações de violência. Percebeu-se que o discurso das mulheres vítimas de

violência tinha muitas similaridades, tanto no entendimento da realidade quanto nas

ações empreendidas na busca de saídas dessa situação. Foram analisadas seis categorias

elencadas: destino de gênero e a força ideológica dos papéis de gênero; a naturalização

da violência imbricada ao território; o espectro do abandono implícito no legado

geracional; a força do fraco; co-dependência, dependência e reciprocidade; sofrimento

ético-político e suas manifestações nas doenças psíquicas. Estas categorias apontaram

eixos importantes para a problematização e superação das formas de pensar e enfrentar a

ideologia e as relações de gênero que fundamentam e legitimam a violência doméstica

contra a mulher.

Sendo assim, percebe-se que o presente estudo sistematiza um conhecimento

importante sobre as particularidades da violência domestica: suas raízes, sua percepção

e expressão na sociedade contemporânea além de fornecer dados importantes sobre as

determinações sócio-históricas que a fomentam.

Page 72: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Destacamos que este estudo deflagra a violência domestica como uma expressão

da questão social, tanto pela sua condição de ser socialmente determinada como pela

sua expressividade demandando uma resposta efetiva pelo do poder público.

Dessa forma entendemos que a violência contra a mulher carece de discussão

tanto na esfera pública quanto na privada objetivando o acesso à informação e à

desconstrução dos papéis sociais desencadeadores de desigualdades. Indubitavelmente,

é inconteste a necessidade de superação da transfiguração das diferenças sexuais em

desigualdades de poder político, econômico, social e cultural. O debate acerca dos

preconceitos e das discriminações contra a mulher mostra-se imperativo frente ao

desenvolvimento da sociedade e da melhoria na qualidade de vida de todos.

A luta pelo acesso aos direitos e principalmente a uma vida sem violência

constitui fundamental relevância merecendo colocar-se entre as prioridades do poder

público enquanto manifestação do acesso à cidadania e à igualdade. A preocupação

primordial na criação, manutenção e fiscalização da correta aplicabilidade de políticas

públicas capazes de garantir os direitos assegurados pela Constituição, porém

negligenciados pela população faz-se imprescindível. Portanto, o reconhecimento da

importância da ação estatal é indispensável no que concerne ao avanço do quadro de

luta contra a violência.

Vale ressaltar, que assim como o Estado é necessário que a sociedade civil

também se conscientize quanto ao aspecto impreterível da maior visibilidade da

violência doméstica despojando-se de comportamentos evasivos os quais muitas vezes

representam o agravamento da situação de violência. Ademais, não se pode relevar a

indispensabilidade da existência de órgãos e instituições qualificados, dispondo de

atendimento multidisciplinar, devidamente habilitados e aparelhados aptos ao

acolhimento dessas mulheres. Outrossim, pode-se destacar o caráter fundamental da

manutenção de profissionais capacitados em seus campos de ação, que disponham de

supervisão quando necessário e que possam compartilhar as dificuldades do trabalho

com sua equipe visando a um contínuo atendimento humanizado, equilibrado e

competente vislumbrando às mulheres um horizonte de emancipação isento de toda e

qualquer manifestação de violência.

Page 73: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

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16:55.

Page 79: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

ANEXO I

Page 80: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

ENTREVISTAS NA ÍNTEGRA

REGIANE ALVES

Identidade

Idade: 49 anos

natural de São Paulo

segundo grau completo

ocupação profissional: fiscal de ônibus.

evangélica da Igreja Batista

moradora do bairro Pedreira, região Sto. Amaro zona sul – SP.

Quando você conheceu seu marido?

Se deu por volta dos anos 90 quando eu me encontrava viúva com 4 filhos pequenos. Na

época Trabalhava como cobradora de ônibus e na empresa conheci o funcionário

Ângelo que era motorista. Interessado em ter um relacionamento com comigo ficou me

cercando por meses, fazendo investidas amorosas.

No Começo resisti, por meus filhos serem pequenos e por ter medo de me relacionar

novamente, neste momento não havia a necessidade de ter um homem ao meu lado, pois

tinha uma vida financeiramente independente, além do salário de cobradora, ainda rece

uma pensão que o marido deixou. Mas emocionalmente me encontrava carente, frágil e

desprotegida, fatores que me levaram a ter um relacionamento amoroso com Ângelo.

Eu tinha casa própria e ele decidiu ir morar como comigo, na minha residência, com o

passar do tempo Ângelo trouxe para morar com eles 1 filho de seu relacionamento

anterior.

Durante o primeiro1 ano e 6 meses tudo era “mil maravilhas” até minha filha caçula

com poucos anos de vida passa a chamá-lo de pai, pois tamanha era a manifestação de

amor para com todos.

Quando seu marido se tornou agressivo?

Perto de completar 2 anos de relacionamento, Ângelo ficou desempregado, e sua

personalidade muda completamente.

O tempo passa e ele não se interessa mais em procurar emprego e passa a depender

financeiramente de mim.

Page 81: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Enquanto eu trabalhava, ele gasta o dinheiro que recebeu da empresa com coisas fúteis e

se envolve até mesmo com outra mulher.

Ele tinha ciúmes de você?

Ângelo, por ser adúltero acredita que eu faça o mesmo, pois as pessoas me achavam

uma mulher muito bonita, isso fazia ele ter um ciúmes doentio.

Sem ocupação, durante um ano ele passa a me seguir sem que eu soubesse, quando eu

menos esperava lá estava ele, me amedrontando, quando não ele disparava um

questionário de perguntas sobre meu dia, querendo saber de sua rotina, com quem havia

conversado e assim por diante.

A coisa vem a piorar, quando ele se entrega a bebidas e passa a judiar fisicamente e

psicologicamente não somente de mim, mas das crianças também.

Já caminhando para quatro anos de convivência, sendo os últimos dois só de transtorno,

Ângelo propõe que eu coloque não somente os quatro filhos dela como também o

próprio dele em um colégio interno; que abandone meu emprego, pois a pensão que ele

recebe daria pra nós vivermos sozinhos.

Seu marido te ameaçava?

Ângelo passou a fazer ameaças, por várias vezes, tentando me matar com requintes de

crueldade e as crianças assistem a tudo. Foram vários os boletins de ocorrências

expedidos contra Ângelo, que não resultou em nada, mas apesar de tanto sofrimento eu

ainda nutria um sentimento por ele.

Quando eu começo a entender que o que sente por ele era uma obsessão, decidi fugir

somente com meus filhos da Zona sul para Leste da capital, para me abrigar na casa de

uma amiga,com o intuito de que não me encontre.

O que foi inevitável, pois depois de tanto Ângelo investigar descobre o endereço da

minha amiga e em uma sexta-feira chegando em casa por volta da meia noite, depois de

um turno de serviço, no portão de minha nova casa, ele me abordada com uma arma em

punho, tentei correr, mas não consegui ele disparou o primeiro tiro em meu rosto

dizendo que começaria acabando com minha beleza, não satisfeito descarrega o revolver

38 sobre mim e fugiu. Gritei por socorro, mas ninguém apareceu para me ajudar, mas

não sei quem, acionou o resgate e fui socorrida.

Page 82: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Você deu queixa da tentativa de homicídio?

Na delegacia das mulheres foi lavrado contra Ângelo, um boletim de ocorrência por

tentativa de homicídio, eu e meus filhos fomos colocados em regime de proteção, pois

Ângelo estava solto.

Só sei que quem ama não bate e nem mata, cuida para que o amor seja eterno.

Depois de recuperada, a delegacia das mulheres em ação multidisciplinar, me

encaminhou para a defensoria pública e para o centro de referência da mulher (CASA

ELIANE DE GRAMMONT), para tratamento psicológico onde permaneço até os dias

de hoje. Já passados mais de 12 anos, mas ainda tento superar os meus medos, tenho

orgulho em dizer que a casa de referencia foi a luz no fim do túnel.

Você conseguiu refazer a sua vida?

Consegui crescer profissionalmente, exercendo a função de fiscal de linha, agora tenho

mais tempo para me dedicar aos meus filhos, sendo que os dois primeiros já se casaram,

refiz minha vida amorosa me casando com o Marcos, um homem que me valoriza e

respeita.

O que você diria a mulheres que estão passando por situações de violência de

gênero?

Acredito na importância de nós mulheres não nos calarmos diante a violência, para que

o fim não venha a ser trágico, e que há pessoas e órgãos comprometidos à ajudar

mulheres vítimas de violência como a equipe da casa Eliane de Grammont.

Entrevista realizada pela aluna Noemia Bettencort Albuquerque.

Page 83: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

ERONITA

Identidade

Idade: 46 anos

Escolaridade: 2º grau - magistério

Profissão: Vendedora autônoma

Residência: Terceira Divisão – Zona Leste - São Paulo

Quantidade de filhos: 02 filhas (18 anos e 12 anos)

Situação Civil: Casada (mais ou menos 20 anos)

Como você conheceu seu marido?

Ele é do mesmo interior que eu, mas eu só o conheci quanto ele voltou do Rio

Janeiro, aonde tinha ido procurar trabalho. Eu o conheci mesmo na casa de uma

pessoa que fui visitar, ele estava lá. Depois nos encontramos de novo e aí

começamos a namorar. A família dele não queria nosso namoro. Quando ele disse

que ia casar comigo o pai dele e ele brigaram de faca no quintal da casa dele.

Lembro que a primeira vez que eu fui na casa dele, ele teve que pagar a galinha que

a mãe dele fez pra eu almoçar... Ele teve uma família muita complicada... O pai

dele teve duas mulheres, do primeiro casamento ele teve seis filhos, do segundo teve

cinco e ele e a irmã dele são os mais velhos..

Como era o relacionamento de vocês na época de namoro?

Era uma ciumeira só. Dos dois lados, eu também cobrava muito ciúme dele. Por

isso brigávamos muito, eu sempre gostei muito de conversar e uma vez quando ele

saiu de minha casa e foi para o bar, eu sai para casa de uma amiga para contar as

coisas do meu namoro porque eu tava contente e queria contar para outra pessoa,

mas ele me viu saindo e brigou comigo e me fez voltar para casa. Ele foi meu

primeiro namorado sério.

Quando as brigas começaram?

De verdade, as brigas sempre existiram. Mas antes ele nunca me xingava com

violência, era só briga por ciúme. Mas depois de casado acho que a briga mais seria

Page 84: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

que agente teve foi quando ele foi para Areia procurar emprego. Meu coração dizia

para eu ir atrás, então fui, e quando cheguei lá de manhã depois de ter viajado a

noite toda, o sobrinho dele pequeno, de uns quatro anos na época, disse que o tio

tinha dançado a noite toda com a vizinha deles. Aí eu não agüentei, briguei feio

com ele. Ele disse que só tinha sido uma dança, mas eu não quis nem saber.

Como era o relacionamento do seu marido com a família dele?

Ele o pai brigavam muito. Tem muita historia pra contar. O pai dele parece que

teve uma vida também muito sofrida, ele também fez os filhos e a mulher sofrer

muito. Ele, o meu marido, já bateu em duas irmãs deles por causa briga.

Por que ele bateu nas irmãs?

É muita historia.

Como era o relacionamento do seu marido com a sua família?

Hoje eu vejo como eu fui do lado dele. Na minha casa a televisão era como se não

fosse do meu pai e da minha mãe. Ele chegava lá e assistia aquilo que ele queria,

não importava o que meu pai e minha mãe queria ver na televisão. Agora eu lembro

que meu pai chegava da roça, cansado de tanto trabalhar e pegava o prato dele e ia

para a casa do vizinho assistir televisão porque o Paulo César tava assistindo o que

ele queria na televisão.

Alguma vez ele te agrediu fisicamente?

Não. Só me xingava com todo tipo de palavras. Ele usava as palavras mais feias.

Quais palavras eram essas?

De porra, rapariga e miserável pra lá. Ele me ameaçava dizendo que eu sa o peso da

mão dele.

Por isso é que eu digo que era bruxaria, macumbaria, alguma coisa, ele xingava de

um jeito que meu coração, eu acho, eu acordava ali sabe, quantas vezes eu acordava

no susto, num pulo só. Ele já chegava de mal humor. Se ele fosse lá no quintal e ele

percebesse que eu tivesse dado uma rosa, pronto, ali já me esculhambava, porque

pras rosas... era tanto nome, pra magoar... na frente das meninas, e até pouco tempo

Page 85: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

ele falava na frente das meninas, isso é... como a senhora vê, é assustador pra elas

mais tarde, né, ficar revoltada.

Uma vez eu senti a mão dele bem aqui no rosto (neste momento ela colocou a mão

sobre o olho esquerdo), mas minha filha disse que o pai não me bateu não, mas eu

senti alguma coisa. Acho que bateu.

No dia seguinte tinha algum hematoma no local?

Não, não tinha nada.

As brigas de vocês eram na frente das meninas?

Sim. Ele não media palavras. Para ele tudo era dele, nunca nosso. Ele dizia minhas

filhas, meu carro, minha casa. Quando ele chegava em casa do trabalho ele nem

respeitava se eu tava dormindo, já ia reclamando de tudo, dizendo que aquilo estava

desarrumado, sujo, que eu era preguiçosa. E eu acordava assustada.

E quanto às meninas?

As meninas também tinham medo dele. Eu acho que elas ainda tem, porque a

menor é como eu, fica preocupada em ajeitar as coisa para o pai quando ele chegar.

Muita gente pensa que as meninas são do lado dele. As meninas tem medo também.

A pequena, falou eu vou estudar o ano que vem de manhã, e perguntou: ‘quem vai

fazer a comida de papai?’, ela fica já pensando, porque eu é quem faço a comida,

mas de vez quando eu escuto ele dizendo pra ela: ‘ah, Helen, eu vou sair amanhã

cedo Helen, num sei o que, fala pra ela sabendo que sou eu quem vou fazer. Então

fica tudo...

Quando as coisas começaram a mudar entre vocês?

Foi quando eu não quis mais fazer o sexo do jeito que ele queria. Aí ele ficou cada

vez pior, mais ignorante.

Como era esse sexo que você menciona?

Ele queria fazer coisas que não se faz com uma esposa, ele queria fazer sexo como

se eu fosse uma prostituta.

Sempre foi assim?

Page 86: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Não. No começo do casamento não.

Era um sexo violento?

Não. Só que ele queria que eu fizesse coisas que eu não acho certo.

Você procurou ajuda ou conversou com alguém sobre o assunto?

Uma vez falei para a uma das minhas irmãs. Também quando eu tava morando na

favela, eu uma vez fui ao posto de saúde e conversei com a enfermeira e ela me

disse que era caso de denunciar ele a polícia. Sai dali e nunca mais voltei.

E quanto às ameaças?

Ele me repetiu muitas vezes de que eu conhecia o peso da mão dele. Uma vez ele

chegou bem perto de mim... assim... Ele dizia que eu era doente, e uma vez me

disse, bem que minha irmã avisou que eu não cassasse com você porque você é

doente, eu não sei de onde ele tirou isso.

Como você se sentia depois das brigas?

Eu me sentia em depressão. Quando ele saia de casa eu ficava no sofá cheirando o

meu pano. Eu não tinha vontade de fazer as coisas. As únicas coisas que eu nunca

deixei de fazer foi fazer a comida e lavar a roupa.

Você tinha medo dele?

Tinha. Ele me xingava muito.

Ele tinha outras mulheres, amante?

Não. Essa foi a primeira. Faz mais ou menos cinco anos. Ele é mais velha do que

ele, tem 50 anos parece, assim disse a minha filha.

E hoje como vocês estão?

Ele tem essa amante, uma noite sim outra não vem aqui pra casa, mas a gente não se

fala mais, ele dorme no quarto das meninas, tranca a porta porque eu acho que ele

pensa que eu vou matar ele. Agora nem minha comida ele come mais, deve pensar

que está envenenada. Ele faz a comida. Antes ele chegava lá em casa e só ficava

mandando, pedindo as coisas, e quando não era do jeito que ele queria brigava.

Page 87: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Agora não, ele quando vê que eu to na cozinha, manda as meninas ir enxugar os

prato, manda ir me ajudar.

Por que ele dorme no quarto com as meninas?

Sabe, porque, elas estão como eu era com ele, elas estão sabe, eu era debaixo da saia

dele e elas estão indo no mesmo caminho, ele dorme no chão...

E se você propusesse para as meninas e pra ele, que ele fosse dormir na sala ou

as meninas ir dormir com você.

Qualquer conversa que eu falar assim mesmo... por isso eu falei com a senhora e

Deus e falei pra Deus que eu não estou intrigada com ele, mas Deus sabe, um dia

antes da minha viagem para a Paraíba, a minha menininha ficou mocinha e agente

sempre tinha essas conversas, e na mesa ele falou meu neném com ela, e eu disse

meu neném não Paulo César é nossa mocinha, eu só falei isso, aí ele disse eu lhe

perguntei alguma coisa, depois pegou o prato e saiu.

E quanto às meninas, você não se sente de tocar no assunto e dizer a elas: vocês

querem dormir no meu quarto?

Não, porque elas acham isso normal, muita gente diz que eu sou uma vitoriosa

porque elas acham normal, porque elas foram criadas num ambiente de briga, então

hoje pra elas... Eu não sei o que Deus quer de mim, eu só quero que seja feita a

vontade dele... Só que eu durmo bem.

Mesmo quando ele está em casa?

Mesmo quando ele está em casa, agora é uma coisa que eu não posso confiar,

porque ele fecha a porta do quarto porque ele pensa que eu quero matar ele... Eu

queria voltar o meu casamento, mas se é para levar a aquela mesma vida, eu não

quero não.

Você comentou comigo, no sábado, que uma vez teu irmão disse que te apoiaria

se você se separasse do seu marido?

O Paulo César e eu tivemos uma briga muito feia, quando a gente ainda morava na

Paraíba, os vizinhos escutaram e contaram para meu irmão, e ele veio conversar

comigo e queria saber se eu queria me separar, pois ele me apoiava. Eu disse não.

Page 88: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Eu nunca tinha esse pensamento de me separar. Eu acho que tava tão cega. Eu só

enxergava só ele, que a senhora sabe, agente não sabe falar não. Ele já não falava

“você vai sentir o peso da minha mão’, mas ele já falava ‘você já sabe o peeeso da

minha mão’. Quer dizer eu tava tão sem enxergar que num momento houve mesmo,

houve sim agressão... não que eu esteja escondendo ou que eu esteja mentindo, é

que eu era tão... eu tão... como se diz eu queria passar a mão na cabeça dele, como

se nada aconteceu, né?

Eu gostaria que você me dissesse novamente como é que você se sentia depois

que ele te ofendia e te xingava?

Eu me sentia amuada... aí sim, aí era quando ao invés de fazer os meu afazeres, eu

ficava quieta num canto, ali eu chorava, eu passava tudo... Eu também saía muito,

as minhas vendas me ajudaram muito porque eu saia pra casa de um e de outro...

Mesmo que eu tivesse com dificuldade em casa, eu ficava alegre, eu sempre tive

isso, mesmo no sofrimento eu sempre tive essa alegria...

Depois que agente conversou eu lembrei de muitas histórias, tem muita história pra

contar. Quando agente morava na favela, uma vez ele me disse pra ir buscar um

comprimido pra ele no quarto, porque ele era assim só mandava, e eu disse que não

ia, ele disse vai, eu disse eu não vou, e ele dizia vai- vai - vai, e eu num vou - num

vou - num vou, quando eu percebi que ele tava quase batendo mesmo em mim, eu

fui.

Do jeito que você fala é como se tivesse culpa do relacionamento de vocês ter

sido do jeito que foi?

Tenho. Tenho sim. Porque se eu percebi desde o inicio e continuei com uma vida

dessas é porque eu tenho... a minha família me avisava, mas eu tava aceitando, né?

Você diz: “eu percebi desde o inicio”, percebeu o quê?

Quando eu falo assim, assim... eu percebi que foi um namoro assim com um ciúme

dele exagerado que juntou com o meu, então, e ele tudo é eu, aí pronto...

Parece que um dos problemas entre vocês era o ciúme?

É sim, ciúme exagerado, tanto dele como meu.

Page 89: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Existia outro problema entre vocês?

No inicio do namoro, no inicio mesmo do namoro, como já falei pra senhora as

palavras que ele me xingava não era aquelas mesmas palavras que ele começou a

me xingar depois do casamento, mas ele já xingava. Para ele tudo era dele,meu

carro, minha televisão minhas filhas, , minha casa. Eu sempre quis estudar mais,

mas ele sempre me ponhava pra baixo.

Ele era um homem agressivo antes do casamento ou foi adquirindo essa

característica aos poucos e com o tempo?

Como eu já falei pra senhora, eu acho que é uma coisa que já vem dele, dele, sabe...

Ele sempre foi... tá bom.

E hoje, como vocês vivendo?

Ele dorme uns dias aqui e outros com a outra mulher, mas ele diz essa casa é dele.

Quando eu voltei da Paraíba foi uma cipoada ele com uma aliança, de casado, na

mão de casado, e eu não sei se aquilo é verídico, olha o tamanho da aliançona na

mão de casado, se ele ta com ela ta casado com ela, não é? Não tá pra Deus, mas tá

pra o mundo, não é?Aquilo é uma dor pra mim hoje, no outro dia já vai passando...

em outros tempo tomava conta, eu xingava, era a maior confusão, como se diz está

adormecido.

Por que você ainda luta por este relacionamento?

Não sei. Eu sempre pensei comigo: na alegria, na tristeza e na dor... Eu sei Deus não

quer que agente sofra.

Entrevista realizada pelas alunas Gisele Santos, Vania Andrade e Vania Maria de

Souza.

Page 90: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

MARIA

Identidade

Idade: 43 anos

evangélica

Como foi o inicio do relacionamento?

Na primeira fase do namoro ele sempre me tratou bem, mas eu e minha família já

víamos que ele exigia submissão. Eventualmente, algumas brigas aconteciam devido ao

ciúme do meu namorado. Depois de alguns anos eu percebi que na família dele também

havia um histórico de brigas, a relação do meu namorado com o pai era difícil. Seu pai

era uma pessoa controladora, porque ele trabalhava em sua empresa, a relação também

se caracterizava através da dependência.

Reconheço que perce esse histórico e aceitava me submeter às vontades do meu

namorado, porque tinha dó.

No decorrer do namoro houve melhorias no comportamento dele?

A segunda fase do namoro foi mais turbulenta, o ciúme dele era o propulsor das brigas,

o meu namorado já dava tapas em minha cabeça, falava muitos palavrões, puxava meus

cabelos. Eu era um pouco corcunda e meu namorado me desferia socos nas costas para

“consertar” minha coluna. Nós frequentávamos uma igreja evangélica bem rígida e, por

isso, eu aceitava ser submissa por causa da doutrina da igreja. Antes de oficializar nosso

noivado, a minha família já me aconselhava a não casar, mas eu era muito jovem não

ouviu. Hoje percebo que devia ter seguido os conselhos da minha mãe,

Mesmo sabendo que ele era violento você aceitou se noivar?

Antes do noivado eu e o meu namorado ficamos separados por três meses, mas cedi

reatando o namoro porque ele ficou doente. Ficamos noivos por dois anos,

permanecendo com as mesmas brigas da fase do namoro. Reconheço que até me

acostumei com os conflitos, inclusive, os dele com minha família. No dia do noivado o

meu namorado não quis que eu chamasse minha família, no final só minha mãe pôde

presenciar o acontecimento. Não me lembro de mais nenhum episódio marcante de

violência que sofri.

Page 91: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Com tudo o que aconteceu durante o namoro, você estava feliz por se casar com

ele?

Eu me casei com vinte anos, numa igreja evangélica, foi linda a cerimônia, e eu estava

muito feliz. Toda minha família estava presente.

E na Lua de Mel teve briga?

Minha “Lua de Mel” foi em Campos do Jordão. Um dia estava dirigindo e subi sem

querer na guia da calçada, foi o suficiente para que meu marido me insultasse com

palavrões de baixo calão. Fiquei muito triste, me arrependi de não ter tomado atitude

naquela época.

Como foi sua vida de casada com ele?

Eu e o meu marido fomos morar de aluguel, ele saiu da empresa do pai e foi trabalhar

com informática, logo depois, terminou o curso de Direito. Na primeira semana de

casamento, em plena “lua de mel” discutimos. Disse que eu não sabia passar roupas

sociais. Reagi na presença dele, pisotiei na camisa e Meu marido ficou irritado por

causa da comida, alegando que eu não sabia cozinhar e que também esbravejei que não

iria mais lavar e passar, mas ele não fez nada. Após dois meses de casamento fiquei

gravida do primeiro filho. No aniversário de meu marido, saí do serviço e peguei uma

carona de carro com um colega do trabalho para chegar mais rápido em casa. No

caminho parei para comprar um presente, devido a isso cheguei alguns minutos mais

tarde em casa. O que foi suficiente para meu marido ter uma crise de ciúmes,

principalmente, porque eu na ingenuidade contei que peguei carona para não me atrasar

tanto. Ele então rasgou o presente na frente de seus familiares. Triste e chorando fui

para o banho, meu marido subiu depois, e começou a discutir, afirmando que eu o tinha

traído. Os ânimos se exaltaram e ele me empurrou pela escada, eu estava grávida de

cinco meses, a mãe dele presenciou, mas não fez nada. Doeu mais o gesto do que a

agressão física, não fui ao médico, mas rezei a noite toda pra não acontecer nada com o

bebê, e realmente ficou tudo bem.

A vida social era normal?

Para os outros nós éramos o “casal 20”. O meu marido queria tudo na mão, sempre

falando muitos palavrões. O pior de tudo foi à omissão de pessoas próximas, como a

Page 92: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

família dele e membros da igreja. Eu me sentia mal e humilhada. A agressão

psicológica sempre foi pior do que a física, o temor era presente em todos os momentos.

Quando meu marido chegava em casa eu ficava mais temerosa. Devido ao ciúme não

trabalhei por sete anos. Um dia meu marido me agrediu na frente do nosso filho que na

época estava com mais ou menos quatro anos, não me recordo do motivo exato, na

realidade tudo era motivo para brigas, tapas e humilhações. Dessa vez fiquei com medo

de morrer. Meu marido pegou um “peso de papel” para bater em minha cabeça, na hora

meu sogro interveio. Eu até hoje falo que foi um milagre meu sogro aparecer de repente.

Nesse momento já não sentia mais nada por meu marido, mas não tinha coragem de me

separar, com uma criança pequena e sem lugar para ir. Eu falava sutilmente sobre meu

sofrimento para uma amiga, que me incentivava a denunciá-lo, mas minha estratégia era

ficar calada, e assim, evitar conflitos.

Hoje percebo o quanto minha identidade foi perdida, não era mais eu mesma, e sim, um

“robô” submisso. Minha única alegria era meu filho.Com o passar dos anos eu comecei

a reconquistar a minha autonomia (dentro dos limites estabelecidos por meu marido),

voltei a trabalhar e iniciei um curso de graduação. No ambiente de trabalho eu podia

reascender a chama de ser quem eu era. Isso despertou a atenção de um colega de

trabalho, com o qual eu tive um envolvimento rápido, mas não extrapolei limites,

porque eu tinha medo. Aos poucos deixei de ir à igreja para evitar crises de ciúme do

meu marido, o que fez me anular por completo, pois, lá também era um local onde eu

podia ser mais livre. Confesso que ainda tinha um fio de esperança que o casamento

viesse a melhorar, como já frequentava a igreja conversei com o pastor. O mesmo nos

chamou para conversar, meu marido ficou transtornado quando percebeu que sua

imagem perante o pastor estava “manchada”, quase que apanho do marido na frente do

pastor, que teve que intervir para eu não apanhasse. Desde então, percebi que não tinha

mais jeito, meu marido sempre pedia perdão, mas após alguns minutos tudo voltava

tudo ao normal.

Após nove anos de casamento fiquei gravida do segundo filho (uma menina),

novamente parei de trabalhar, o que evitou muitos conflitos e agressões físicas. Porém,

as agressões psicológicas sempre permaneceram, meu marido sempre me acusava de ser

prostituta. Em minha bolsa não podia ter batom, senão era motivo de mais brigas. Com

o tempo descobri várias falcatruas que meu marido cometeu. Depois do parto de minha

filha, sofri de depressão pós-parto, desmaiava direto. Acredito que, era devido a tanta

pressão e tensão que eu vivia.

Page 93: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Você procurou ajuda?

Um dia estava muito triste, quando recebi a visita de algumas irmãs da igreja, pois,

eram muito queridas, passaram o dia comigo. Eu disse que a partir desse dia tomaria um

posicionamento de voltar a viver, não sei explicar o que aconteceu, mas uma força

entrou no seu coração que me deu coragem de enfrentar as consequências em confrontar

meu marido. Eu estava entrando numa fase difícil. Estava cursando minha segunda

graduação e trabalhando. As perseguições e palavrões eram práticas constantes do meu

marido, o que me envergonhava muito. Ele rasgava meus trabalhos e livros. Só que

minha reação já não era mais cautelosa, passei a enfrentá-lo e provocá-lo, deixando a

casa bagunçada, seus pertences fora do lugar, ironizava seus palavrões e já ameaçava

me separar. Quando ele me chamava de prostituta, eu respondia que era mesmo, o

deixando mais irritado. Uma amiga minha que era assistente social começou a perceber

a situação que eu vivia, quando cheguei ao trabalho com o dedo quebrado, eu respondi

que tinha caído, mas ela não acreditou e me incentivou a procurar uma delegacia, mas

fiquei com medo. Então, minha amiga me indicou uma psicóloga que fazia terapia em

grupos e individual com mulheres que também sofriam de violência doméstica. Fiquei

um pouco resistente no começo, mas logo percebi que era a chance da minha vida. A

psicóloga me fez perceber que não precisava passar por tudo aquilo, aos poucos minha

autoestima foi aumentando e se fortalecendo. Meu marido reparou as mudanças e não

gostou, ele me hostilizava mais.

O que levou você a pedir a separação?

Decidi trancar a faculdade no penúltimo ano, não conseguia conciliar o casamento

turbulento com os estudos. Esse foi o grande passo para que eu pedisse a separação. No

dia em que pedi a separação levei meus filhos e meu marido no McDonalds, porque

tinha medo de comunicar minha decisão estando em casa. Ele não acreditou, mas

quando chegamos em casa quebrou tudo e me deu uns tapas. Numa noite eu estava

deitada na cama com minha filha e uma amiguinha dela, que tinha ido dormir lá.

Quando meu marido chegou, estava muito bravo, porque não aceitava a separação,

então tirou o cinto da calça e começou a me bater. Eu mandei as crianças correrem e ele

continuou a agredi-me, mas falei que era a última vez que ele faria aquilo. Meu filho

mais velho, já com quinze anos, enfrentou o pai, eu saí correndo para pegar o elevador,

mas meu marido foi atrás e me deu um chute, a vizinha presenciou porque estava na

porta do apartamento. Eu fui à delegacia mais próxima, mas o delegado não queria fazer

Page 94: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

o boletim de ocorrência porque conhecia meu marido. Depois de muita insistência

consegui fazer o boletim, saiu de casa só com a roupa do corpo.

Como você esta se sentindo em sua nova vida?

Depois que eu saí de casa aluguei um apartamento sem mobília para morar, pois, todos

os móveis ficaram na casa. Por muitos dias dormi no chão e aos poucos refiz minha

vida. Hoje moro com um novo companheiro. Meus filhos decidiram ficar com o pai, por

causa do conforto. Eu até hoje respeito à decisão dos meus filhos, porque não tenho

condições de lhes dar uma vida confortável. Sou e me considero uma mulher vitoriosa,

pois hoje vivo com um companheiro mais novo, que me respeita muito e me permiti

amar e ser amada.

Entrevista realizada pelas alunas Dulce Rodrigues e Erika Vovchenco

Page 95: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

HELENICE

Identidade

Idade: 51 anos

ocupação profissional: empregada doméstica.

Nice, nos vamos conversar um pouquinho sobre algumas coisas, para começar,

gostaria de saber o seu nome e a sua idade.

Helenice, 51 anos. Bom, como a gente tava conversando, eu já fui casada duas vezes. O

Luiz, meu primeiro marido, não era violento, ele só quis pegar a minha filha depois que

a gente se separou, porque ele tinha problema na cabeça, né. Depois de um tempo

separada do pai da Michele, eu comecei a namorar com o Severino, ele me conhece

desde mocinha, mas a gente nunca teve nada antes. Quando a gente casou, ele não era

violento, tipo agressivo. Com o passar do tempo a coisa foi aparecendo. Ele nunca

deixou eu trabalhar, eu fazia uns bicos. Aí eu engravidei do meu 1º filho com ele, o

Wellington, o único problema dele é que ele be. Quando eu comecei a ter as dores pra

ter o bebê, eu pedi dinheiro pra ir pro hospital e ele não quis dá. Aí ele pegou, não quis

me levar pro hospital e... Fui com a minha irmã pro hospital tudo, e correu tudo bem.

No voltar pra casa, ele se mostrou mais agressivo ainda. Então, ele não queria que

ninguém se aproximasse do menino, então começou aquela tortura, você faz a criança

chorar. Ele falava assim pra mim assim: “Vai lá trocar”, que a criança passava um

pouquinho, “tem que dar mamadeira, tem que trocar a fralda.” (Sempre em tom

agressivo) Começou a dar ordem. Até então, tudo bem. Tinha a minha mãe que morava

comigo, minha mãe foi morar com a gente. Então ele chegava tarde, ele não tinha

paciência com choro de criança. Aí eu comecei a conversar com ele, que ele tinha que

ter paciência e... na... na nossa relação de casal, na relação sexual... e na hora que a

gente estava ali e a criança chorava ou então eu tinha que dar atenção pra criança ele

não tinha um pingo de paciência. Ele xingava, ele falava que chegou o tormento para

invadir a nossa privacidade, tudo. Quando o Wellington estava com 3 pra 4 meses, ele

pegou e teve um... começou a frequentar um bordel. Então, hum... Então ele chegava

em casa e culpava eu, que eu era isso, por exemplo que eu era cachorra, eu era sem

vergonha, eu era tudo de mal que tinha eu era. Ele era o bom, até então eu não sa. Aí

quando foi um dia, uma colega, uma vizinha minha, que é a colega muito íntima de

mim. E chegou e falou: “Olha Nice, eu queria te contar uma coisa, não sei como. O

Severino tá te traindo.” Aí eu falei: “Mas como?” “Ela chama Lúcia, essa menina.”

Page 96: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

“Mas como assim me traindo?” “Ele tá frequentando o bordel aí da rua de trás, e tá

saindo com essa menina e como (...) eu escuto muito vocês discutir.” Aí eu peguei e

falei com ele, na hora tudo. Eu falei com ele, ele desmentiu. Daquele dia em diante

então começou a tragédia, quando ele não queria, quando ele não saía com essa menina,

ele me queria a força. Não se importava com que eu tava fazendo, a situação que tava,

ele me pegava. E tem mais, ele me tratava como ela, ele acaba de ter relação, ele nunca

me dava atenção, ele virava pras costas e dormia. E quando eu falava que eu não queria,

aí ele começava a me chutar com os pés, a me cutucar, a me empurrar da cama. Tudo

ali, eu quieta, com criança pequena passando e minha mãe também junto com a gente.

Eu fui aguentando. Até que um dia, essa mesma amiga minha, falou assim: “Olha Nice,

eles não separam, eles ainda estão juntos e hoje eles vão pro Motel. Eles vão pro Motel

hoje”. Ainda falou assim: “Nice, se eu fosse você, eu ia pegar no flagra. Dez horas da

noite você pode ir na rua de trás, que você vê os dois chegando. Porque todo dia ele vai

pegar ela, não sei no que ela trabalha, mas vem trazer ela aí no bordel”. Falei não, deixa

pra lá, deixa pra lá. Aí eu comentei com a Nina. Nina é uma colega minha que eu olhava

a filha dela. Até então eu não tava trabalhando fora, eu tava olhando criança em casa.

Porque quando eu pedia dinheiro pra ele, ele nunca tinha. Ele male mal punha as coisas,

arroz e feijão dentro de casa.

Nessa época ele trabalhava?

Ele sempre trabalhou.

Registrado?

Registrado. Aí eu contei tudo para a Nina, a Nina falou: “Nice eu vou verificar pra ver o

que eu posso te ajudar” Que eu ficava com as duas filhas dela, né. Aí ela pegou os dois

no flagra, aí ela chegou e me contou. Aí né, aí ele pegou e continuou se desmentindo. É

mentira, é isso e aquilo. Aí eu peguei, juntei tudo as coisas dele e pus pra fora. Só que a

minha mãe não deixou, minha mãe foi a favor dele.

Sua mãe alegou o que para ser a favor dele?

Minha mãe alegou que eu tava com a criança pequena, já tinha a Michele que tava com

quatro anos, tinha o Wellington que tava com alguns meses. Então ela alegou como que

eu ia manter essas duas crianças. Porque nem eu, nem ela trabalhava. Minha mãe nunca

teve pensão nem nada, então, ia sim, ia ficar uma situação difícil, né. Mas daí em diante,

Page 97: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

minha filha, a situação começou a piorar. Porque? Porque eles foram pro motel, ele

chegou todo marcado em casa, todo chupado, todo marcado peito, pescoço. (Fala com

raiva) Ela fez questão de deixar ele marcado, para saber ela tava sabendo e não fez nada

para impedir. Aí quando ele chegou e tirou a camisa, eu perguntei pra ele que história

era essa? Que marcas são essas? Que eu em si você nem deixa chegar perto de você,

quem foi a fulana que fez isso? Não porque, não é isso que você está pensando, não foi

nada disso que aconteceu não. Aí eu passei a perder a confiança.

Deixa eu te fazer uma pergunta Nice, como era a relação dele com a Michele, ele a

aceitava?

Aceitava.

Lidava com ela da mesma maneira que ele lidava com o Wellington.

Isso, teve um certo tempo, logo que a criança nasceu sim. Aí quando o Wellington

completou um ano, ele começou a fazer diferença. Por exemplo, ele comprava um

brinquedo pro menino e não comprava pra ela. Mas não assim que não tinha condição

de comprar, ele queria me ofender, que sabendo que não trazia o brinquedo pra ela eu ia

ficar magoada. Aí eu ia pegar no pé dele pra comprar o brinquedo pra menina. Porque

nas coisas do menino, ele começou a não deixar ela mexer. Então o menino chorava, a

gente não via o que tava acontecendo, entre eles brincando. Mas ele culpava ela. “Não

porque a Michele só anda batendo nele”. “Não, porque a Michele tira o brinquedo dele”.

É assim que ele fazia, sem saber a causa do porque o menino tava chorando, né. E tudo

isso foi me deixando irritada. Sabendo que eu tinha sido traída. Sabendo que a menina

adorava, como adora até hoje os irmãos, né. E ele começou a fazer isso, então que eu

fazia? Quando chegava, ele comprava os brinquedos e com os biquinhos que eu fazia,

eu lavava roupa pra fora, olhava essas duas crianças, eu consertava roupa, então sempre

eu tinha um dinheirinho guardado pra quando acontecesse uma dessa. Eu ia lá, pra

menina não sentir rejeitada, eu ia lá e comprava uma coisinha pra ela. Aí o que

acontecia? Ele se doía. Aí ele falava que eu saía com macho, que os machos que tinha

me dado dinheiro, que onde que eu tinha arrumado dinheiro. Porque ele trabalhava e

não via eu olhava as duas crianças, ainda consertava roupa, eu lavava roupa, eu passava

roupa. Tudo porque ele não me deixava ir trabalhar fora, né.

Ele não deixava você trabalhar fora porque? Por ciúmes?

Page 98: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Por ciúmes. Porque ele achava, tudo que ele fazia na rua ele achava que eu ia fazer

também, que eu ia pagar com a mesma moeda. Porque ele já tinha tido um caso, tava

sempre saindo por aí. Ele tinha um tal, de uma vidração por cinema que saía do serviço

e tinha que ir pro cinema. Chegava em casa altas horas da noite. E quando eu ia ver, é

porque eu fui, fiquei até tarde fui ver um filme. Aí tudo isso foi corroendo, aí eu

chegava em casa, começava a ficar nervosa e às vezes as crianças tinha algum problema

durante o dia e eu precisava dele em casa mais cedo, ele não vinha. Podia ligar pro

serviço dele, o Wellington tá doente, eu preciso sair, preciso de dinheiro. Ele não se

incomodava com nada. Mal e mal ele punha o arroz e o feijão dentro de casa, ele não

comprava medicamento, ele não comprava uma roupa, não comprava um calçado. Ele

achava que o essencial era o arroz e feijão, né. Porque, mistura, minha filha, se eu não

fizesse uns biquinhos a gente não comia nenhuma mistura, não tinha carne, uma

verdura, não fazia feira. (Risos) Era tudo isso, tinha dia que ele saía, me deixava com as

duas crianças e com R$ 1,00 dentro de casa e o arroz e o feijão, mais nada, que era o

real do pão. Aí sempre tinha aquela coisa uma mistura, às vezes tinha algum problema

que eu tinha que sair, levar em posto, dinheiro de condução, dinheiro de remédio, essas

coisas pra ele não existia, nada disso. Nisso passou o que, minha mãe viveu com a gente

dez anos. Dez anos eu passei por isso empurrando com a barriga. A gente discutia,

minha mãe entrava no meio e punha pano quente. Então na hora de discutir ele falava,

falava, falava e minha mãe falava: “Você fica respondendo, cala a tua boca. Você tem

que ficar quieta”. E nisso foi passando, até que a minha mãe veio a falecer, aí então ele

mostrou a garra... dele.

Piorou a situação.

Piorou a situação.

Nesses dez anos você já tinha tido Wagner?

Já. O Guilherme veio depois.

E como foi à chegada do Wagner?

A chegada do Wagner, foi um, foi um... A gestação do Wagner foi assim: nós fizemos o

planejamento, tudo direitinho, nois queria pra ver se vinha uma menina. Mas não veio,

veio o Wagner né. Quando eu descobri que era menino, até então ele estava se

preocupando com roupinha, se preocupando como um pai deve ser com as coisas do

Page 99: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

menino. Mas quando ele descobriu que era outro menino, ele começou a se modificar

também.

Como?

Por exemplo ele falava assim: “É, agora o Wellington vai ter um irmãozinho pra brincar

e você vai ter que fazer e me dar uma filha mulher. Você vai ter que se virar e me dar

uma filha mulher. Logo depois que o Wagner, que essa criança nascer, nós já vamos

fazer uma menina. Você querendo ou não querendo né.” Um fato engraçado também

que aconteceu foi o dia do nascimento do Wagner. Ele saiu para trabalhar, como

sempre, 05h30 da manhã e eu já estava sentindo as dores. Aí eu peguei e falei assim;

“Eu não to me sentindo bem, vou precisar ir no médico.” Ele pegou e falou assim pra

mim: “Eu não posso faltar no serviço, vê se uma das suas irmãs vai com você.” Aí eu

peguei e chamei a minha irmã, passamos no Santa Marcelina e viemos embora pra casa

porque ele disse que não estava na hora e era pra mim retornar depois de três dias. Aí eu

vim pra casa, era assim um bairro que estava começando, não tinha asfalto, era barro e

estava chovendo.

Que bairro que era?

Era o bairro Branco Dois no início.

É próximo a Cidade Tiradentes?

É próximo da Cidade Tiradentes, divisa Guaianazes. Era no início, nóis não tinha

asfalto, não tinha água, não tinha luz, tava chovendo. Não entrava carro no local, não

entrava nada. Aí eu passei o dia inteiro com aquela dorzinha vai e volta, vai e volta.

Quando foi sete horas da noite, as dores pioraram e ele nada de chegar, nisso então a

minha vizinha já estava no hospital ganhando neném. Porque a filha dela nasceu dia 28

e o Wagner nasceu dia 31 né. A menina chama Ketyle. E eu fui pro mesmo hospital que

essa minha vizinha (...) Aí ele sabendo que eu não estava sentindo bem, invés de ele vir

pra casa para saber como é que eu estava, me trazer dinheiro que até então eu não tinha

dinheiro, que precisasse sair eu não tinha, que foi a minha irmã que pagou ônibus para

eu ir pro hospital. (risos) Ele chegou, disse que no caminho encontrou um vizinho, pai

dessa criança que tava nascendo e foram pro bar comemorar o nascimento da menina. E

eu, lá em casa, precisando dele pra me levar pro hospital novamente. Aí quando foi

onze e meia da noite, ele chegou. Aí chegou e falei pra ele assim: “Bem, eu não estou

Page 100: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

bem, to precisando ir para o hospital.” Aí simplesmente ele pegou, jogou a carteira do

bolso e falou: “Toma, se vire, aí tem dinheiro.” Aí tava tão bêbado, tão bêbado, tão

bêbado, caiu, não chegou nem na cama, caiu no chão. Aí eu peguei, mandei a Michele

que era pequenininha descer a minha rua assim, que a minha irmã mora cinco casas pra

baixo da minha e chamar minha irmã. Porque ele não tinha condição. Aí quando a

Michele ia saindo pra chamar a tia, ela encontrou com o meu vizinho que tava

comemorando o nascimento da filha. E aí ele perguntou: “Michele, onde você vai?” Aí

a Michele simplesmente falou: “Minha mãe vai ganhar neném e ela precisa ir pro

hospital e eu vou chamar minha tia, porque o pai chegou bêbado.” Ela sempre chamou

ele de pai, o pai chegou bêbado. Aí ele pegou e falou pra ela assim: “Vai lá chamar a tia

que eu vou procurar um carro pra levar a tua mãe”. Aí voltou lá no bar, viu um colega

dele que tava com uma caminhonete, acho que tinha cerca de uns cinco ou seis homens

que tava tudo lá, foram tudo em cima dessa caminhonete (risos) porque se ela atolasse

no barro né, eles empurrava. Foi o que aconteceu, a caminhonete, a caminhonete atolou

e aquele bando de homem meio bêbado, todo mundo empurrando essa caminhonete

para que nois chegasse no posto vinte e quatro horas. (risos) Quando nois chegamo no

posto, a médica disse assim: “Quem é o pai?” O meu vizinho dizia assim: “Aqui não

tem pai não, socorre ela que ela ta precisando, não tem pai, socorre ela”. Aí a minha

irmã falou assim: “O pai não pode vir né.” Ela falou o nenê está nascendo, aqui nós não

podemos fazer parto e não tinha uma ambulância na hora para ir para o hospital. Aí

começou a correria dentro deste posto vinte e quatro horas, que é o Posto do Glória né.

E pra vê se montava uma sala, detetizar uma sala, pra arrumar tudo pra fazer o meu

parto ali né. Aí quando viram aquela correria dentro do hospital e iam me lavar pra fazer

o meu parto, aí apareceu uma ambulância. Ela me pois do jeito que eu tava dentro de

uma ambulância e correu pro hospital né. O Wagner nasceu na porta do elevador.

Quando chegou no hospital, no meio do caminho ele queria nascer, ela mandou eu virar

de bruço e fechar as pernas (risos) Aí quando chegou na porta do hospital, assim, ela

falou assim: “Agora se o neném quiser nascer, pode deixar nascer.” A médica falou pra

mim né. Aí quando o elevador chegou, o Wagner pegou e nasceu. Aí aconteceu que,

dela mandar eu virar pra segurar o neném, a placenta subiu, subiu e colou na boca do

estômago. Aí o neném nasceu sem oxigênio, porque o cordão tinha parado de circular e

tinha perigo de morrer eu e ele né. Aí com muito custo, ela subiu em cima de mim, tudo

na maca. Não tinha cama, não tinha nada, na maca mesmo na porta do elevador ali. Aí

ela subiu em cima de mim, tirou, fez massagem, até a placenta descolar da boca do

Page 101: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

estômago, que já tinha colado até em cima. Aí no dia seguinte, que correu tudo bem,

tudo, a vizinha foi lá vê a neném, tudo, correu tudo bem. A hora que ele foi visitar o

neném ele falou que o filho não era dele, que o filho era do vizinho: “É por isso que o

vizinho te socorreu, o filho não é meu, o filho é dele”. Desse jeito, dentro do hospital. E

a esposa do vizinho tava no quarto da frente e nois no nosso quarto. Aí quando ele tava

visitando o filho dele que tinha nascido e falou isso, a vizinha escutou. Aí ela falou

assim: “O que você disse Severino?” Aí ele pegou e deu um de Zé mane: “O que você

tá fazendo aqui?” Aí ela falou assim: “Que eu saiba eu fui a primeira pessoa a pegar o

teu filho que nasceu no colo e eu quero saber o que foi que você disse.” Ai ele falou:

“Não, eu não disse nada não!”(...) trouxe a Nice pro hospital e eu tava fazendo uma

brincadeira com ela.” Desse jeito, vê se pode! Ela tinha acabado de ter a menina. Aí ele

alegou que era simplesmente uma brincadeira e de fato não tinha nada há ver né. Aí eu

virei pra ele e falei assim, passou aquele episódio e tudo né. Aí depois que passou tudo,

no dia que eu cheguei em casa, aí eu falei: “Agora nois vamos sentar e nois vamo

conversar. Qual foi o dia que eu te dei um ar de desconfiança pra você ficar com aquelas

brincadeiras lá? Se você acha que o filho não é seu, é muito fácil, porque agora tem

como provar que o filho é seu.” Ele começou a falar que isso e que aquilo e que todo

mundo tava comentando lá na rua, porque você foi com um bando de homem pro

hospital e eu não tava presente e me contaram lá no posto de saúde que a médica queria

o pai e o pai não tava presente. Que aí não sei quem comentou que não tinha pai não, já

que a criança não tinha pai ali, o pai era ele que tava tomando as dores por você. Isso

que ele me disse. Mais uma vez também teve uma bate boca. Aí como eu cheguei em

casa e não tinha as coisa dentro de casa, eu disse: “Você vai ter que comprar isso,

porque eu preciso comer, se alimentar. Eu preciso se alimentar, então você vai na feira e

compra legume e coisa pra eu fazer uma sopa.” Aí sabe pra onde ele foi? Pra casa da

minha irmã, era uma hora da tarde e ele não tinha aparecido com nada. Eu peguei e fui

atrás, eu cheguei lá e ele tava todo belo e folgado jogando baralho com o meu cunhado.

Aí eu falei pra ele: “Poxa eu to em casa, esperando as coisa que você ia trazer, eu

preciso comer.” Aí ele: “É mesmo, eu esqueci.“A minha irmã falou: “Poxa Nice, eu

nem sa que você tinha chegado no hospital, ele não falou nada. Você ta Bem? Porque

você ta andando desse jeito?”Aí eu: “O que que eu vou fazer?” Aí quando chegou em

casa, ele comprou as coisas, levou pra casa e começou a me criticar de novo. E foi me

criticar porque eu fui atrás dele. Daquele dia em diante, ele nunca mais, eu pedia pra ele

comprar as coisa e ele não comprava, ele não comprava na hora que eu precisava, mas

Page 102: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

na hora que dava na telha. E ele chegava bêbado e xingando. No dia da morte da minha

mãe, ele não teve coragem de chegar e me da um ombro pra mim chorar, mas nem no

cemitério... ele ficou metros e metros longe de mim. Ele não me deu uma palavra de

consolo, ele não se aproximou de mim e nem dos meu familiar. Todo mundo ficou

abismado com a atitude dele, porque ele por seu meu companheiro tinha que dar todo o

apoio possível. Aí passou, minha irmã queria que eu fosse pra casa dele. Eu não quis e

voltei pra casa e enfrentei toda a barra. Aí não tinha a minha mãe, aí que começou. Aí

ele começou, aí ele perdeu o serviço. Na época ele perdeu o serviço. Mas nessa época

também, o Wagner sempre foi uma criança boa de saúde, mas começou a dar problema

no Wellington, um problema no estômago dele. Ele nunca se incomodou de pegar um

dinheiro emprestado pra eu correr com o menino, eu tava sozinha. Fez um monte de

exame e nunca descobriram o problema que se tratava e ele tem esse problema até hoje.

Be, chegava em casa e me xingava. As criança iam crescendo e isso ia atingindo,

atingindo, atingindo. Quando a Michele tava com quatorze anos, é quatorze anos, até

hoje eu não sei o que aconteceu. Ela parou de conversar com ele, porque ele começou a

ficar implicante. Se ela abria a porta da geladeira ele achava ruim, se comia ele achava

ruim, se pegava uma fruta ele achava ruim. E eu sempre trabalhando e fazendo os meus

biquinho e comprava as coisa que as criança necessitavam e geralmente as coisinha pra

mim. Nessa época a nossa vida sexual foi se transformando, porque ele começou a me

tratar como uma prostituta. Então ele me pegava, ele não preparava o clima, nois tinha

relação de qualquer jeito e ele nunca procurou saber se eu tava bem, se eu tava satisfeita

nem nada. Ele gozava, virava as costa e tava bom. No dia seguinte ele me xingava, nem

as menina que vive na vida assim merece isso. Depois xingava de tudo o que era nome,

que eu não prestava, que eu era isso e aquilo. Eu to falando que é isso e é aquilo, pra

não falar o nome do que ele me xingava.

Fica a vontade, conta o que você quiser.

(risos) Então, porque era uma coisa assim... olha, da vergonha. Me tinha como mulher e

quando abria o olho me chamava de safada, sem vergonha, puta. Era assim que eu era

tratada. Satisfazia ele, e depois no dia seguinte quando ele abria os olhos ele me tratava

desse jeito.

Como você se sentia?

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Eu me sentia um lixo, porque eu tomei tantos nome na cara que eu não merecia, que

teve uma época que quando eu comecei a entrar em depressão, eu passei a julgar tudo

aquilo que ele era, que ele me falava (choro). Então eu passei a me julgar, poxa mais eu

não faço isso. Então eu me julgava que eu era, de tanto que ele me xingava (aumenta o

choro). Eu sempre fui uma pessoa que cuidou da casa, eu nuca deixei as criança suja, as

coisa dele tudo em ordem e eu tomava tanto nome na cara. E as criança tudo ali

presenciando aquilo. Chegava bêbado, quebrava as minhas coisa de dentro de casa,

xingava, xingava, bária as porta dos armário. No dia seguinte eu tentava conversar,

porque ele chegava bêbado. Eu falava pra ele: “Vamo sentar, vamo conversar sobre o

que você fez ontem. Que é isso?” Ele me falava que não tinha feito nada. “Eu não fiz

nada, você inventa as coisa.” Sem conta que... quando ele chegava bêbado além de me

chamar de tudo isso, ainda me pegava a força na cama e com agressão, chute pontapé e

eu aguentava com medo de acorda as criança.

As agressões eram só na hora das relações sexuais ou aconteciam em outros

momentos?

Não, era só na hora das relação sexual, depois. Depois da relação porque ele fazia tudo

virava pro canto e dormia e eu passava a noite inteira chorando. Até que eu comecei a

não dá mais pra ele. Não, eu não posso mais continuar com essa briga. Mesmo achando

que tudo que ele passava a fala eu passava a condenar a mim mesma. Que ele falava que

eu saía no corredor de casa, que não tinha o portão que a gente via direto na rua. Ele

falava que eu tava no corredor pra vê os homem que passava na rua e que quando ele

saía a casa enchia de macho. Que eu era safada, que eu era sem vergonha. Falava que o

fulano era o meu amante. Se eu conversava com alguém, ele já achava que era um caso

meu, que chegava alguém em casa, ele achava que vinha trazer recadinho de fulano pra

mim. E não era nada disso, nunca, jamais eu pensei em ter um outro homem na minha

vida. Nunca, nunca, nunca, me passou pela cabeça de mim trair ele. Mesmo sabendo

que eu já tinha sido traída e que muitas outras vezes ele já tinha saído com outras

mulheres. Até que um dia, ele chegou bêbado e o Wellington tava com os seu doze,

treze anos e ele começou a me xingar. Foi aonde que o Wellington começou a interferir,

que ele já tava entendendo. Ele via que eu passava o dia inteiro dentro de casa, lavando

roupa pra fora, passando, costurando. Ele já entendia né. Então ele ia e tomava as

minhas dores: “Minha mãe não é isso, não fala assim com a minha mãe.” Ele falava. O

Wagner nunca abriu a boca pra nada, nem pra tomar as dores de um, nem pra tomar as

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dores do outro. Mas o Wellington, quando ele começou a entender, ele tomou as minhas

dores. Até que nois fizemos uma separação, eu mandei ele embora. Ele não queria ir,

não queria ir. Eu juntei tudo as coisa dele ele foi pra casa da irmã dele. O Guilherme

ainda não tinha nascido e essa separação foi justamente porque eu tinha começado com

um problema de saúde. Eu comecei a pegar uma infecção atrás da outra, então eu tava

sempre no médico e o médico me recomendou você tem que usar camisinha, porque

essa infecção que você ta tendo, pela vida que você ta levando, pela relação que ele ta te

maltratando né. E eu conversava com ele e ele nada. Não queria nem saber, eu tinha que

tomar medicamento e usar preservativo. E ele não aceitava que usasse, ele não aceitava

de jeito nenhum. Aí como ele queria ter relação comigo e eu não queria, ele começou a

me chutar e tal. Até que um dia quando ele chegou querendo ter relação comigo, eu

peguei e saí da cama. Aí ele pegou e veio e nois começamo a bater boca e ele queria me

coisar. Eu catei e passei a mão numa faca, ele pegou e tirou a faca da minha mão, aí

nisso eu saí pra fora e ele ficou no corredor esperando eu entrar e eu não entrei. Aí eu

peguei e fui dar uma volta no quarteirão, nisso a minha irmã ficou sabendo o que tava

acontecendo e chamou a polícia. As policiais sabe o que fizeram? Vieram as polícias

femininas e disseram que era pra nois senta e conversa. Não perguntou pra mim se eu

queria abri ocorrência, não levou nois pra delegacia. Ele foi e quebrou a faca na beirada

do tanque de nervoso do que tinha ocorrido.

Você ficou com medo nesse dia de acontecer alguma coisa mais séria com você?

Fiquei, fiquei.

Nesse dia ele não chegou a te agredir fisicamente?

Não, não fisicamente. Porque nesse foi toda essa bagunça, foi praticamente a noite

inteira que os policiais tiveram lá e passaram a mão na cabeça dele. Eles foram a favor

dele, não foram a favor de mim. E eu ainda mostrei a faca pros policiais, que ele

quebrou a faca porque eu não quis entrar pra dentro. Eu tinha certeza que se eu entrasse

ele ia pegar em mim com a faca.

Vocês estavam sozinhos nesse dia?

Só tava o Wellington, Michele e o Wagner não estavam. Chegou uma época que o

Wellington não saía do meu lado pra me proteger. Nessa época a Michele tava

namorando e tava com o namorado. Quando ela chegou ela foi contra e quis fazer e

Page 105: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

acontecer. Onde a gente mora, se a gente for atrás dos bandidos eles da um jeito, mas

jamais eu vou mexer com bandido pra pegar ele. O Wellington mesmo, muitas vezes

falou que ia atrás dos bandido para pegar o pai, porque o pai me tratava daquela forma.

Aí houve a separação, ele foi pra casa da irmã dele e eu continuei em casa. Aí ele queria

porque queria a casa, dizia que a casa era dele e isso e aquilo. Tava todo dia na porta de

casa ameaçando. Eu sei que eu peguei, juntei tudo as minhas coisa e fui pra casa da

minha irmã. O galpão onde eu fiquei era muito úmido e as criança começaram a passar

mal. Eu voltei pra casa e nois ficamos três meses separados, aí ele começou a ir no final

de semana, mais calmo, diz que tinha parado de beber, que as coisa ia mudar, pedindo

pra voltar.

Você acreditou?

Eu acreditava.

Você via mudança nele?

Quando ele voltou pra casa eu via mudança, não tava mais bêbado, tava mais calmo. Eu

realmente achei que ele tinha mudado.

Ele estava mais carinhoso com você e com as crianças?

Tava, tratava todo mundo bem. Aí teve um porém, quando eu falei pros meninos que o

pai deles ia voltar, a Michele não aceitou. Ela falou que eu tava me enganado e que ele

não tinha modificado nada. Então, já que é assim, você vai ter que escolher, ou eu ou

ele, porque nois dois junto não vai da mais. A hora que ele abri a boca aqui eu vou pra

cima dele. Até agora eu não si meti nem nada, mais de agora em diante se ele voltar a

ser agressivo como ele tava, eu vou ter que fazer uma besteira. Mesmo assim eu ainda

aceitei ficar com ele.

Você aceitando ficar com o Severino, como ficou a sua relação com a Michele?

A Michele saiu de casa, nessa época eu já tinha o Guilherme e a Michele saiu de casa.

Ela não aceitou que o padrasto voltasse, porque ela sa que ele ia volta a ser agressivo de

novo. Aí ela pegou e foi morar na casa da tia, Aí ele pegou e ficou dois meses calmo,

sossegado, aí depois começou tudo novamente. Aí nós ficamos uns dois ou três meses

até bem, ele não tinha muito (...), mas começou a beber de novo. Aí ele começou a

beber novamente e comecei a voltar com a vida que eu tinha antigamente, toda aquela

Page 106: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

confusão novamente. Ele be, chegava em casa bêbado e me maltratava, me xingava de

tudo quanto era nome e agora o Wellington no meio. O Wellington já estava no meio e

aí ficava, eu, ele e o Wellington. Aí eu resolvi trabalhar fora. Aí eu chegava do serviço e

ele dizia que eu não tinha ido trabalhar, que eu tinha ido atrás dos macho, que eu

passava o dia inteiro na zona, falava que eu tinha ido pra zona, que eu ia trás dos macho.

Aí ele chegava a noite em casa e era aquela tortura, aquela briga e eu tinha que levantar

no dia seguinte cedo pra ir trabalhar. Nessa época foi a Nega que arrumou serviço, aí eu

não consegui ficar nessa casa. Aí eu peguei e saí novamente e fui trabalhar no Tatuapé.

No Tatuapé eu não peguei uma patroa, foi uma escrava, foi tipo porque era branca e eu

era preto, parecia que era o tempo de escravidão né. Ela me fazia eu limpa, a casa dela

tinha oito cômodo, ela combino que eu limparia um cômodo por dia e no fim da semana

eu limparia só a sala de estar, a cozinha e a lavanderia. Quando chegava no sábado, ela

fazia eu faze o serviço dos oito cômodo tudo novamente, então eu parecia uma escrava.

Nunca fui de comer, essas coisas, mas nesse dia, teve uma vez que ela pegou e fez uns

meio quilo de macarrão e pois lá na mesa, eles almoçaram e ficou uns três grauzinhos

de macarrão. Eu não sou de comer, eu peguei aqueles três grauzinhos de macarrão e

simplesmente joguei fora. Aí ela veio falar pra mim que eu tava dando muita despesa na

casa dela, onde já se viu eu comer um quilo de macarrão. Aí eu peguei e falei pra ela

assim, Dona Lourdes eu vi quando a senhora fez, a senhora fez menos de meio quilo de

macarrão e sobrou menos de três fiapinhos e senhora pode ver, eu não comi não, eu

joguei no lixo. Por que eu vou guardar três fiapinhos? É você, anda dando muita

despesa na minha casa. Ah! Eu passei tanta coisa, eu já passava tanta coisa. Eu passava

a noite inteira sem dormir aguentando o homem, tinha o problema de escola com as

crianças, de preocupação né, minha filha fora de casa e essa mulher vem falar isso pra

mim e fazer eu trabalhar sábado até sete, oito horas da noite limpando tudo o que já

tinha limpado. E essa mulher fazia eu fazer tudo de novo. Aí quando foi num dia, a

Michele chegou pra mim e falou pra mim que... que tava desconfiada que tava grávida.

Eu peguei e falei assim: “Olha Michele, eu nem sei como vai ser, você já falou para o

pai da criança?” Ela falou que não. Olha eu vou conversar com o Severino e conforme

for você volta pra casa e a gente vai ver como vai criar essa criança. Só que eu não

cheguei a falar com ele não, eu não cheguei porque ela foi de tarde e falou pro rapaz.

Nossa ele ficou feliz da vida, a sogra então, nossa jogou ela lá no céu, né. Então eu não

cheguei nem a falar, que ela voltou lá e falou: “Mãe, nois já decidimos, vamos ficar

junto, nois vamos montar a nossa casinha na lavanderia da mãe dele. Então, não precisa

Page 107: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

se preocupar.” Até então eu não conversava com esse rapaz, nem nada. Mas a vida

continuava. Quando foi no nascimento do meu neto, se passaram nove meses, no dia

que a menina foi para o hospital, ela mandou me avisar, ele não quis deixar eu ir lá

visitar ela no hospital.

Porque, o que ele dizia?

O de sempre. Que eu ia atrás de homem, que era desculpa pra eu sair de casa. Mesmo

assim eu virei as costas e fui (risos), eu virei as costas e fui. Sabe o que ele aprontou?

Ficou ele e as crianças em casa né. Ele pegou e quebrou um cano de água, estourou um

cano de água que passa no corredor. O Wellington me contou que ele tacou uma pedra

pra quebrar um cano né. Porque a visita foi quatro horas da tarde, foi coisa rápida.

Porque eu fui lá, visitei e voltei pra casa. Não teve coisa nem nada, mais a lonjura, foi

no Paraíso, eu moro lá na Cidade Tiradentes. Ela foi lá no Amparo Maternal, fica lá no

Paraíso, praticamente no Paraíso, não sei se você conhece. Então, ela teve nenê lá. E

quando eu cheguei em casa, tava uma aguaceira, ele simplesmente pegou uma sacolinha

plástica colocou em cima do cano e jogou uma pedra. Eu não tinha água pra, eu não

tinha água pra cozinhar, não tinha água pra nada dentro de casa né. O resto que tinha

água da caixa, ele ficou, diz que ficou três horas lá debaixo do chuveiro, acabando com

a água da caixa. Nem água na caixa não tinha. Aí eu cheguei e casa e perguntei pro

Wellington: “Wellington, o que foi que aconteceu?” “A mãe, o pai quebrou o cano. Ele

tacou uma pedra e foi.” Eu disse: “Ele pegou essa pedra pra que?” “Ele disse que ia

acertar na cabeça minha e do Wagner.” Eu disse: “Mas o que vocês estavam fazendo?”

“nada mãe, nois só tava jogando bola.” Ele não admitia que as crianças brincava, jogava

bola, correr, essas coisas, ele nunca admitiu. Então nois discutia muito também neste

detalhe, que eu acho que criança deve brincar, e ele acha que não. Criança tem que

sentar, ficar quieta e olhar para as paredes né. E assistir televisão, aquilo que ele quer,

que convém a ele. Então nois discutia também, batia bastante boca nessa matéria.

Porque as crianças começavam a brincar, começavam a correr, jogar bola e essas coisas.

Ele gritava, ele não queria e eu ia a favor das crianças: “Deixa as crianças brincar, para

de encher o saco das crianças.” Aí começava o bate boca entre eu e ele né. Aí quando

foi um dia que ele chegou e me deu um empurrão e começou a xingar, xinga, xinga. Eu

peguei e falei assim, comecei a xinga quando ele chamou a minha mãe de filha da puta.

“Você é uma filha da puta.” “Oh, você não xinga a minha mãe porque ela não tem nada

a ver com isso.” E fui pra cima dele. Ele pegou e meu um empurrão. Aí peguei e passei

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a mão numa barra de ferro, não queria mais chamar polícia não. Polícia não faz nada. Aí

eu peguei, passei a mão numa barra de ferro, ele pegou e se escondeu no banheiro. Aí

eu taquei, cheguei a dar com a barra de ferro na porta do banheiro, pra ver o que ele ia

fazer. Até hoje tem a marca lá. (...) Eu dei com a barra de ferro pra pegar na cabeça

dele, ele foi e fechou a porta.

Foi a primeira vez que você reagiu?

Foi, foi a primeira vez que eu reagi. Olha, eu já estava bem estressada. Contando bem a

data, eu tenho tudo marcado num papel, porque no dia seguinte eu fui na delegacia das

mulheres. O Guilherme tinha uns dois aninhos, o Guilherme tinha uns dois aninhos. Aí

no dia seguinte, eu fui na delegacia das mulheres, fui muito mal tratada. Fui eu e o

Wellington. Primeiro nois fomo no fórum, aí do fórum, eu expus toda a situação, tudo o

que estava passando. Aí ele pegou, queria que ele saísse fora de casa, ele sempre alegou

que não ia sair fora de casa porque a casa era dele. Aí no fórum eles me disse que eu

tinha que ir na delegacia das mulheres, prestar queixa, que eles que vão tomar uma

providência. Quanto a pensão das crianças, depois você volta aqui com os seus papel

tudo, que ele sair fora de casa, aí nois abre o inquérito pra pensão das crianças. Aí eu saí

dali e nem sa onde tinha essas coisas, aí conversou com o guarda da porta, pegou e me

falou assim, eu tava com os papel, tudo que o homem tinha me dado, o endereço. Então

ele me indicou uma delegacia que foi em São Miguel Paulista. Chegando lá , foi umas

menininhas, a fisionomia delas parecia que ela tinha 16, 17 anos né. Aí eu cheguei lá e

elas veio me atender, o que foi que aconteceu? Aí que comecei a contar o que foi que

aconteceu. Aí uma delas pegou e falou assim; “Também marido chega dentro de casa,

vocês já vão falando, já vão pedindo dinheiro.” Eu peguei, olhei assim e não respondi

nada. Aí a moça pegou, essa que estava escrevendo lá, contei tudo pra ela que estava

acontecendo. Ela falou: “Olha, é melhor mesmo a senhora sair de casa, deixa ele lá,

pega seus filhos e sai de casa.” Aí eu peguei e falei assim: “Mas eu não tenho pra onde

ir com as crianças. Ele tem pai, ele tem a mãe e os irmãos, tem os irmãos solteiros e o

pai também, tem casa, tem tudo. Não dá pra mim sair com três criança e deixar ele

dentro de casa.” “É, a senhora vai ter que dar um jeito.” Aí eu peguei e saí dali, ia

saindo quando uma senhora pegou, uma senhora veio falou que era a assistência social

da delegacia conversar comigo né. Eu tava já, chorando por ver a atitude daquelas duas

mocinhas que tinha me atendido. Aí essa senhora me explicou, me acalmou, era uma

pessoa vivida que sa realmente o que pode um casal passar dentro de casa, entre quatro

Page 109: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

paredes, entre dois, a vida a dois. Porque aquelas meninas ali, não sa nada. Aí ela pegou

e me orientou, fez um B.O. com tudo o que estava se passando. Aí eu peguei e abri um

processo sobre ele, aí teve a audiência, eles não tiraram ele de dentro de casa né. Aí

quando teve a primeira audiência, simplesmente deram um conselho pra ele né, dizendo

que isso não podia se repetir e que da próxima vez ele ia ficar preso, aquela ladainha

toda, mas não é a atitude que a gente espera ter. Aquela repressão que deveria dar. Você

está sendo ameaça, já ter que se defender porque a partir daí já houve a primeira

agressão física, o empurrão, apesar que eu reagi, ma são ia ficar de braço cruzado.

Quando ele me empurrou e veio pra cima, eu corri e peguei a barra de ferro pra mi

defender. Porque, ele tem 110 kg e eu tenho que? 45 kg. E ele é aquela massa bruta

mesmo, tanto alto como aquela massa bruta mesma. Não é baixinho e gordo de gordura

não. Aí nisso tudo também as irmãs dele foram a favor dele, jogaram na minha cara que

ele nunca deixou faltar o arroz e o feijão dentro de casa. Aí ainda falei pra ela assim:

“Nem uma calcinha, fazia mais de cinco anos que ele não comprava pra mim, ele nunca

me deu um nada. Que eu não comprasse eu andava sem calcinha, porque ele não

comprava.” Não dizia que ele não ia lá e comprava, ele não me dava o dinheiro pra

comprar. Então eu fazia esses biquinhos assim pra comprar um chinelo, pra comprar

uma mistura pra dentro de casa como eu já falei, pra fazer a feira das criança né,

comprar os meu uso particular, porque eu precisava dos meus modes, precisava das

minhas coisas também né e ele não dava dinheiro na minha mão. E a irmã dele vem

joga na minha cara que ele nunca deixou faltar o arroz e o feijão, quer dizer que a gente

vive só com o arroz e com o feijão?

É muito mais do que isso.

Então, aí tudo isso também foi indo, foi indo, aí eu entrei em depressão. Porque

começou as coisas a, porque as coisa não se acalmou, não se ajeitou. Aí além de ser

xingada, ele começou a dar menos dinheiro e aí começou a faltar o arroz e o feijão né.

Eu comecei a trabalhar fora, comecei a trabalhar nessa casa que essa mulher me

explorava mais do que nunca. Saí de lá fui para a casa da Dona Eliete que era uma

santa. A Dona Eliete eu ponho ela lá no céu, igual a tua mãe (risos) né. Eu chegava lá

com os olhos vermelhos de tanto chorar e ela sentava, ela conversava comigo. Ela me

dava o maior apoio, ela me dava o que eu precisava. Trabalhei com ela quatro anos, aí

ela foi embora de São Paulo, foi morar em São Carlos e eu fui trabalhar com o filho

dela, que casou também, aí depois eles foram para os Estados Unidos. Aí eu fui

Page 110: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

trabalhar com a irmã dela, com a Vilma. Até então que eu fui trabalhar na Ellen, com

tudo isso que eu tava passando. Que você sabe que quando eu vim aqui trabalhar com

vocês eu ainda estava em crise né. Vocês lembra que eu chegava aqui transtornada e que

eu tava aqui trabalhando, de repente o telefone tocava e era aquela discussão em casa e

o Wellington já estava adolescente, começou a ter problema na escola, começou a ser

agressivo na escola. Aí além de responder para os professores, não tinha mais nota boa

nem nada. Aí depois ele arrumou esse serviço de noite, chegava em casa e era aquele

tormento todo, aquele nervosismo. O menino começou a sair e não querer ficar mais

dentro de casa, começou a se envolver em mal companhia e eu chegava em casa e era

briga, era coisa sempre. Quando eu vim trabalhar aqui com vocês, eu chegava mais

tarde ainda, como eu chego mais tarde ainda. Ele continuava achando que eu tava nos

motéis, eu tava com os meus machos na rua, que eu era uma prostituta, uma safada, que

eu era uma sem vergonha, tudo aquilo. Eu trabalhava o dia inteiro, para ganhar o pão de

cada dia para os meus filhos, porque nem isso ele dava mais. Quando chegava de manhã

e eu falava: “Bem, dá o dinheiro do pão das criança.” “Ué, você não foi trabalhar

ontem? Teus machos não te deu? Compra os pão pros teus filhos.” Sempre que eu

trabalhava por dia eu tinha, como eu tenho sempre, nunca deixei faltar. Aí eu pegava e

comprava tudo o que necessitava dentro de casa. Na hora do almoço, ele ia, como ele

tava em casa e as crianças não, ele ia e comia tudo, não queria saber que as criança

tinham comido ou que as criança não tinham comido. Então o que tinha ele comia, não

queria saber. E quando eu ia falar, eu era a errada, eu era errada. Então quer dizer, eu

tinha que trabalhar, sustentar ele e as criança ficava sem. Que eu comprava cinco

pãozinho, ele dividia meio para cada um e o resto ele comia. Até que aconteceu tudo

isso e eu entrei em depressão e fiquei dois anos em depressão, aí eu tinha uma

tremedeira que não parava. Chegava de noite, o dia que eu estava em casa, chegava a

hora de se aproximar, se aproximava o horário dele chegar, eu começava a se tremer, se

tremer, se tremer. Que eu tava em pé não conseguia sentar, que eu tava sentada não

conseguia levantar.

Medo dele?

Medo que ia tudo começar novamente.

Você já estava trabalhando aqui Nice?

Page 111: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Já. Muita coisa quando eu já estava trabalhando com vocês, eu não comentava com

vocês. Eu só ficava quieta. Você sabe, toda vida sempre fui só eu e você. Você é jovem,

não tem que carregar os meus problemas né. Eu fazia a minha parte, vinha aqui e fazia o

que eu tinha que fazer e não ia realmente entrar em detalhes com você né. Até hoje

quando eu me abro mais, é quando a sua mãe está aí e a gente conversa mais

profundamente. Depois que eu peguei amizade com você, que a gente começou a

conversar mais (risos). Até que eu entrei em depressão e comecei a frequentar a igreja.

Eu comecei na Universal, evangélica. Daí eu ia acompanhada da minha irmã. Aí a

guerra no fim de semana aumentava porque eu ia para a igreja e ele dizia que eu tava

com causo com o pastor.

Até você frequentar a Igreja Universal, você não seguia nenhuma religião?

Não, eu não seguia nenhuma religião. Aí eu ia para a igreja e ele dizia que eu tinha um

causo com o pastor. Que eu falava que não tinha dinheiro, ele dizia que eu tava dando

dinheiro tudo pra igreja. Porque às vezes eu sa que ele tinha alguns trocadinhos, era

obrigação dele comprar, não era eu. Então eu falava que eu não tinha né. Eu pisava e

deixava até o último momento pra ver se ele ia tirar o dinheiro dele e comprar. Então ele

dizia que o meu dinheiro ia tudo pra igreja e era aquela confusão. Eu saía pra ir pra

igreja e quando eu voltava, nois discutia, nois batia boca, ele me xingava. Então eu ia

aprendendo a me calar, me calar e aquilo ia me corroendo por dentro, me corroendo.

Quando chegava a hora dele chegar e eu tava em casa, me dava essa tremedeira, essa

tremedeira e eu não tinha mais vontade de se arrumar, eu não tinha mais vontade de

pentear cabelo, eu não ligava mais pra mim.

Você procurou ajuda?

Assim, pra conversar não. Não tinha como conversar. Uma pessoa que está passando

por isso não tem coragem de contar, que a gente não tem . Quando a gente ta passando

por uma dificuldade dessa dentro de casa, sendo maltratada, sendo humilhada, sendo

pisada. Pode ser quem for, a gente não tem coragem de se abrir com aquela

pessoa.Ajuda que você fala, procurar uma pessoa pra conversar, porque no causo eu

precisava de uma psicóloga. Mas com que dinheiro que eu ia arrumar uma psicóloga?

No posto de saúde? Você não consegue. Eu ia conversar com quem, se abrir com quem?

Com as minhas irmãs? Que já tinha se afastado todo mundo de casa, na minha casa não

ia mais ninguém. Só ia essa minha irmão pra mim ir pra igreja com ela. Nem com o

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pastor eu num me abria, nem com ele. Então eu passada tudo aquilo ali dentro de casa,

minha família não sa. Quem sa era eu, Wellington, Wagner e Guilherme que se passava

dentro de casa. Que eu não tinha mais nem a Michele. Acontecia as coisas e quando a

minha família ia saber, minhas irmãs ia saber. Nossa, mas a gente não ta sabendo de

nada, a gente nunca ouviu falar de nada. Mas nem pra eles eu me abria. Olha, eu te

garanto, mulher nenhuma que ta passando por essa vida dentro de casa, debaixo de

quatro paredes com o companheiro, como o marido, seja lá o que for, não se abre.

Quando ta pra se abrir, talvez já é tarde demais, às vezes uma tragédia já aconteceu. É o

causo que a gente vê filho matando pai e mulher que mata marido e marido que mata

mulher ou então se envolve na bebida, que tem muitas mulheres que enche a cara pra

não ver os problema passar ou então larga mão de tudo, vira as costas e sai. Então foi o

que aconteceu até o ponto que você já sabe de o filho chegar em casa, pegar o pai com a

amante. Eu trabalhando o dia inteiro e o filho pega o pai com outra mulher na porta de

um bar. O Wellington pegou o pai na porta do bar e fez aquele escarcéu. Chegou em

casa, porque ele tava vindo da escola, jogou as coisas do pai tudo pro olho da rua e não

queria deixar o pai entrar dentro de casa. E a mulher que ele tava de gracinha lá na porta

do bar, ainda foi na porta da minha casa querendo falar com o Severino. Que o menino

saísse de lá, que o Wellington saísse de lá, uma tragédia ia ser formada. Quando eu

cheguei que fiquei sabendo de tido que tava se passando, eu falei: “Agora vou ter que

por um ponto final nisso, chega!.” Se agarrei na mão de Deus e falei de agora em diante

será assim, assim, assim e assado. Assim, assim assado quer dizer: você vai cuidar da

sua vida, que eu vou cuidar da minha e da dos meus filhos. Eu tava aqui com vocês,

trabalhando aqui com vocês e vocês sabem o que aconteceu. Ele foi embora num

domingo, eu disse você vai juntar tudo as suas coisas e vai embora. “É eu não vou

porque a casa é minha.” Você vai, você vai. Ele saiu num sábado à noite, pra um bar, eu

juntei tudo as coisas dele. Só que ele não voltou pra casa. Num domingo de manhã as

coisas dele já tavam tudo ajuntada, eu puis pra fora, passei a mão nas três criança e saí e

fui pra igreja. Quando eu voltei da igreja às onze horas da manhã, ele não tinha

retornado ainda pra casa. Isso aconteceu numa sexta feira, nós sábado ele não voltou

porque eu tinha expulsado ele de casa, ele não retornou pra casa e passou o dia inteiro

fora. No domingo ele também não retornou. Na segunda eu tinha que vir trabalhar e eu

vim trabalhar. Eu vim trabalhar deixei as criança com o coração partido, amassado,

porque eu chorava, esperneava e dizia: “Meu Deus e agora? E agora como vai ser?

Como vai ser?” Aí me agarrei a Deus e Deus me deu força. Quando foi na terça feira, na

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terça não, na quarta feira, ele apareceu lá com o primo dele pra pegar as coisa dele. Foi

aonde ele saiu de casa. Saiu de casa e até então, eu não fui na justiça eu num fui na

justiça ainda não pra adquirir a pensão das criança. Mas falei, de agora em diante não

quero te ver mais, de jeito nenhum. Ele alega que a casa era dele, eu fui lá na COAHB e

passei a casa pro meu nome. Eu pago tudo que ele não pagava, eu pago a água, eu pago

a luz, a prestação da casa, eu mantenho os meus filhos. Ta certo, eu passo dificuldade,

não assim em matéria de comida, porque graças seja Deus isso não falta. É difícil? É.

Ele me dá cem reais quando ele quer dar, mas também na porta da minha casa ele não

vai. Não proíbo ele de ver o filhos, porque a hora que ele quer ver os filhos ele liga e os

meninos encontra com ele aonde ele estiver. Mas na porta da minha casa ele não vai

não. E assim eu to me reerguindo, to me reerguindo, eu continuo a viver. Homem do

meu lado, eu não quero mais. Eu falo assim: “Jamais vou lavar cueca de homem e dizer

assim: meu homem. Eu vou lavar a cueca dos meus filhos que é três homens.” Agora

eles tão idade de trabalhar, o Wellington com a revolta que ele teve do pai, ele não para

em serviço nenhum. É um rapaz meio assim, como eu posso te dizer? Revoltado. Então

ele arruma serviço, mais sai, terminou os estudos com muita força de vontade. Eu

briguei, eu lutei pra ele terminar os estudos, terceiro colegial. O Wagner ta fazendo o

segundo colegial, começou a trabalhar também, não sei se vai dar certo ou não. E o

Guilherme é uma criança que só por Deus. Eu acho que Deus proverá na vida dele pra

ver como ele vai reagir de agora em diante, é uma criança meia difícil.

Porque você acha ele difícil?

NEu não sei se ele sente muita falta do pai, ele é uma criança que quer muito imitar os

irmãos, mas os irmãos estão na fase adulta e ele é uma criança. Então passou a ser uma

criança chorona, gosta de arruma uma encrenca, gosta muito de falar da vida dos outros.

Na escola já arrumou duas confusão que eu tive que ir lá, ele até recebeu uma

convocação por a criança chegar, falar e ele vai pra cima. Ele é um pouquinho

revoltado. Mimado? É. Mas os irmão também não tem um pouco de paciência, ele diz

que agora eu sou com o Guilherme, eu tenho coração mole. Que com eles, eu era mais

dura, mais severa. Mas na fase deles serem criança, eu estava passando por este

problema. Então talvez, eu peço desculpa pra eles por eu ser agressiva, autoritária

demais com eles. Porque eles vê que eu fui muito autoritária com eles, eles sente isso. Já

com o Guilherme não, eu to numa fase mais calma, mais sossegada, tenho mais tempo,

gosto de ouvir pra verificar quem ta certo e quem ta errado e eles acham que eu tenho o

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coração mole. Porque quando eles eram da idade do Guilherme, eu não falava duas

vezes (risos), era uma vez só e não tinha isso de espera um pouquinho. Tinha que fazer

na hora exata. A gente pensa que criança não marca, mas eles marca e cobra pela atitude

que eu tenho hoje com o Guilherme, que eu tenho paciência. Que eu falo uma, duas, três

vezes. E com o tempo deles eu não era assim. Praticamente desde o nascimento deles eu

já estava passando por turbulência, uma turbulência muito grande na infância deles. No

entanto não deixei as coisas chega ao ponto de coisa. Cheguei muitas vezes a pensar em

si matar, tentei si matar, mas não tive coragem. Tentei abandonar tudo, largar eles com o

pai, mas eu pensei duas vezes. Pensei em dar fim em todos eles e na minha vida

também.

Inclusive na do Severino?

Não, na do Severino eu nunca pensei.

Você queria aliviar toda essa dor e tirar seus filhos também dessa dor.

É. Muitas vezes eu pensei vou dar um jeito de acabar com a vida de todo mundo, menos

dele. Eu cheguei até a ameaçar: “Eu vou por veneno.” (risos) Mas nunca tive coragem.

Eu nunca falei assim: “Vou te matar, vou fazer acontecer.” Não, eu acho que ele era um

homem doente, agora que ta tudo calmo eu acho que ele é doente. Porque ele... como eu

posso te explicar? Ele era uma pessoa carente, eu acho que ele ficou tudo isso porque

ele perdeu a mãe com dezesseis anos e não teve apoio de ninguém. Porque quando ele

perdeu a mãe, depois de quatro anos ele foi pro Rio. Pro Rio de Janeiro morar com uma

prima. Ele disse que sofreu muito também na casa da prima. E a prima o que me contou

quando ele teve morando lá com ela, diz que ele sempre foi agressivo. Que ele nunca

gostou do barulho, nunca gostou nada. Tanto é que ela tinha um menino pequeno, ela

expulso ele da casa dela por causa do filho dela. Porque ele passou a ser agressivo com

o menino, empurrava o menino quando ele entrava no quarto dele, ele não queria que o

menino mexesse nas coisa né. Então ela falou pra ele, procura outro canto porque a casa

é do meu filho. E toda vida ele foi assim. Ele quebrava as coisas e culpava as crianças,

ele batia, amassava, tudo, não tem mais em casa, as tampas das panela e falava que não

era ele.

Ele falava que eram os filhos?

Falava que eram os menino. E estragava toda a televisão e o dvd, o coisa e dizia que não

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era ele.

Ele tentava achar uma forma de você...

Agredir os meninos. Ele achava que... No início o , até eu brigava com as criança. Igual

o dia que eu comprei o dvd né e ele tinha o dele, só que no dele ninguém podia por a

mão. Só que eu comprei um pras criança, inclusive foi o primeiro ordenado que a sua

mãe deu aqui, que eu juntei duas semanas e comprei o dvd, custou cem reais. Eu

comprei o dvd pros menino e ele foi e quebrou o dvd dele e falou que tinha sido as

criança. Eu acabei dando, eu tava tão angustiada, tão cheia, tão cheia que eu trabalhava

neste estresse de ônibus e coisa, que eu chegava em casa eu queria deitar, descansar, eu

queria ficar num canto sossegadinha, sem bagunça. Então peguei e o: “Meu dvd é novo,

toma. Toma que quando eu puder eu mando arrumar o seu pros menino.” E aí dei, tirei

dos menino e dei pra ele. E os menino falava: “Mãe, o pai chegou e deu um soco em

cima do dvd.” E eu não acreditei nos menino, mesmo assim dei. Quando eu fui levar pra

arrumar o rapaz disse assim: “O dvd caiu no chão?” Quando o rapaz disse isso, eu falei:

“Não.” Aí veio na cabeça, o Wellington disse que ele deu um soco no dvd. Aí eu

cheguei em casa e não teve mais concerto o dvd dele. Aí eu cheguei em casa e falei pra

ele: “Você me dá o meu dvd de volta...” (risos) Ele não assumiu, continuou negando.

Foi aonde que eu tava começando a me libertar. Aí catei o dvd, instalei na televisão das

criança, que até então nessa época eu já tinha comprado uma televisão de quatorze

polegadas, que era das criança, eu tinha dado pras criança. A dele não, a dele era a

grande lá de vinte e quatro polegadas né, que ninguém podia por a mão. Que eu estava

assistindo alguma, que ele visse que eu tava interessada naquilo que tava passando na

televisão dele, ele podia ta interessado também, mas ia lá e mudava de canal. Só pra

mim não assistir. Na hora de deitar, ele desligava a televisão, eu virava pro canto, todo

mundo dormindo, a televisão desligada. Ele perce, desconfiava que eu tava dormindo,

ele ia lá e ligava a televisão. E tem mais, se ele perceber que eu tava acordada, olhando

na televisão, ele ia lá e desligava de novo. Desse jeito que ele era. Quer dizer, quando eu

ia pra cama, eu tinha a televisão e não podia assistir porque ele não deixava.

Você estava falando que você estava começando a se libertar de tudo isso que

aconteceu com você. E como foi esse processo de libertação? Que hoje você não

vive mais com ele. Eu queria que você contasse um pouquinho, como foi todo esse

Page 116: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

processo até você conseguir essa vida que você está tendo hoje.

Então, aí foi o seguinte. Quando nois se separamo, no início foi difícil porque eu

gostava dele.

Você amava?

Olha , eu não sei que, já se julgava-se amor. Porque a gente sente falta de uma

segurança, que apesar de tudo isso, eu sabendo que eu tinha um homem dentro de casa,

eu me sentia segura. Porque eu moro num bairro que é meio perigoso. Então a partir que

ele foi embora, só ficou eu e os três menino, eu me sentia insegura. E o que foi que

aconteceu? Eu chego em casa e eu sentia preocupação com os menino, com a escola,

responsabilidade da casa. Eu passei muitos dias sem dormir. Apesar de quando eu vim

pra cá sua mãe me dá cesta, não se preocupo com alimentação. Com a alimentação eu

nunca me preocupei, mas com o bem estar das criança, a segurança, a noite, do

falatório. Que a gente com o companheiro é uma coisa, sozinha é outra. A pessoa vê a

gente de outro modo.

Você se sentia mais respeitada quando...

Quando tinha ele. Ninguém nem sa o que se passava. Na rua todo mundo adora ele , até

hoje todo mundo adora. Ele só era ruim pra mim dentro de casa. Então todo mundo

respeitava ele, até hoje é: “Cadê o Severo?” E eu responde que não deu certo e a gente

se separou. Até a minha vizinha parede e meia não sabe realmente o porque a gente se

separou. Vinte ano de convivência né. Então eu me senti muito insegura. Mais aí o que

aconteceu? Os amigo foi voltando, a família foi voltando. A família é muito importante.

Minhas irmã foram se aproximando novamente de casa, nesse processo da separação

que ele foi embora. Então começaram a voltar, as que mora longe começaram a vir

visitar, já ligam procurando saber. Eu já começo a me abrir mais né. Graças a Deus eu

não precisei, mais os meus dois irmão que estavam bem afastado, que não iam em casa

de jeito nenhum já voltaram a frequentar a minha casa. Então agora eu posso contar

com as minhas duas irmãs que mora lá na minha rua. Tem umas amiga também muito

legais, que ta nessa hora. Que me deram muito apoio nessa hora, nessa situação da

separação, que elas que controlaram o Wellington quando ele pegou o pai com outra

mulher. Então essas duas amigas minha são muito legais. Então tudo isso, ta dando

força né. Então eu comecei, continuo indo na igreja né, então tem passeio e eu continuo,

vou nos passeio quando tem na igreja, show gospel que tem na igreja eu costumo ir e

Page 117: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

tudo isso me liberta. Não sou de sair, ficar na casa de vizinho, não freqüento casa de

vizinho né. A minha filha também voltou, se aproximou de mim, de agora, de dia de

hoje, dia sim, dia não ela ta em casa. O meu genro que eu não ia com a cara dele, é um

excelente rapaz né. E eu to conseguindo levar a vida.

O Severino aceitou a separação?

Eu acho que agora aceitou. Ele aceitou porque não vai em casa. Quando ele liga,

quando ele quer ver as criança, ele liga. Ele liga e coisa, e nois já consegue conversar

pelo telefone. Igual quando eu teve problema com o Guilherme na escola e calhou dele

ligar, eu falei pra ele, eu contei tudo pra ele que o Guilherme tava aprontando e pedi pra

ele ir em casa pra conversar com o Guilherme. Ele foi e passou a mão lá em cima na

testinha do Guilherme, como quem dizia assim: “A sua mãe não resolvia e nem eu.”

(risos)

Você sente falta dele?

Não, não sinto, Não sinto porque o que eu tava vivendo com ele não era mais amor e

não era mais coisa. Eu peguei trauma, eu tenho trauma. Não sinto nem um pouquinho a

falta dele. Nem no bem estar, nem nada. Lembrar? Lembro, de algumas coisas eu

lembro. Até mesmo de vez em quando eu falo com as criança: “Poxa, ta parecendo o

seu pai.” (risos) “Poxa, Severino foi embora e ficou outro aqui?” Mas não sinto falta

não, nem um pouquinho.

Deixa eu pegar algumas informações, então hoje na sua casa mora você...

O Wellington, o Wagner e o Guilherme. O Wellington ta com 20, o Wagner completou

18 e o Guilherme ta com 9.

Você trabalha só aqui?

Eu trabalho só aqui.

E o Wellington ta trabalhando?

Não está mais trabalhando, ele não para em serviço nenhum. Não sei o que acontece.

Ainda ontem, foi ontem? Isso. Chegou um amigo dele e chamou ele e ele falou pra

mim: “Mãe eu vou ali embaixo comprar um geladinho.” Eu fui atrás, eu quero saber que

tal desse amigo que chega e chama e vai comprar geladinho. De fato ele foi até a casa

Page 118: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

da moça que vende geladinho, não tinha geladinho, ele comprou chiclete e veio pra

casa. Aí eu xinguei um monte, xinguei porque, lá na rua tem um monte de ruinha que é

assim tudo ponto de tráfico e eu falei pra ele: “você fica andando nessas viela, você sabe

que aqui é tudo ponto de tráfico. Eu não to te criando pra isso.” Que ele não para, hoje

ele foi ver outro serviço, até já liguei lá pra casa e a menina mandou ele voltar segunda

feira. E o Guilherme eu to vendo uma pessoa pra fica com ele quando o Wellington

iniciar a trabalhar, pedi pra (...) tomar conta dele pra ficar mais tranqüila. Vou pagar R$

100,00 pra moça ficar com ele. Mas enquanto o Wellington não arruma. Que nem o

Wellington saiu hoje de manhã e eu vim pra cá, eu deixei ele na casa da minha irmã né.

Não posso deixar direto na casa da minha irmã, porque a minha irmã já toma conta do

menino, do neto dela de cinco anos, minha irmã costura pra fora e ela faz curso também,

então ela realmente não tem tempo. A minha irmã tem o Nelson que dá muita dor de

cabeça pra ela, que ele é um usuário de droga, ta, 18 anos. Tem o Igor que tem 12 anos e

tem o neto que a mãe abandonou que tem 5 aninhos. O pai mora em Suzano e o menino

fica com a avó. E ajuda, tudo o que o menino precisa o pai ajuda, mas vive na casa da

avó porque o pai vive sozinho e não tem quem toma conta do menino.

É... Na região onde você mora é normal que outras mulheres também passem por

esse tipo de violência? É uma situação presente na comunidade?

É.

Muito presente?

Muito presente.

E vocês conversam, vocês se ajudam?

Olha, inclusive essa minha vizinha, ela passou pela mesma forma, ela passou pela

mesma situação só que o marido, o problema do marido dela não era de álcool. O

problema dele era a droga. Parede e meia com a minha, então ela também passou por

um sistema muito doloroso, inclusive ela veio, se abriu pra mim. Muita ameaças. Só que

agora ele saiu de casa, e ela virou a cabeça, ela ta pagando com a mesma moeda o que

ele fazia com ela. Então a situação ta difícil. Eu vejo a situação da minha vizinha, ela

também tem um menino da idade do Wellington, uma menina da idade do Wagner e um

outro menininho da idade do Guilherme. Só que ela ainda tem mais dois, eles são em

cinco na casa dela. E no exaro momento, ela arranjou um namorado e aí já viu. (nesse

Page 119: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

trecho ela não permite que eu transcreva a informação dada)

Tirando o caso da sua vizinha, existem outras mulheres que sofrem violência?

Existem.

E como vocês convivem, é algo escondido que todo mundo sabe e ninguém comenta

ou vocês se ajudam?

Olha tem a Maria, que passou pelo mesmo caso também e ela chamou os bandido e os

bandido pois o marido dela pra corre, agora é ela e o filho dela.

Posso colocar isso?

Pode. A Maria foi e chamou a polícia umas três vezes e ninguém toma atitude de nada.

Ela pegou e foi chamar os bandido, no mesmo dia os bandido puseram ele pra corre.

Isso você pode por, que os policiais não tomaram conta de nada, os bandido que pois ele

pra corre. Depois de um ano que na rua ele não entrava, por causa dos rapazes que

tomam conta do pedaço, que saiu a liminar pra ele sair de dentro de casa. Já faz um ano

que ela tinha posto ele pra corre e ela apanhava, ele quebrava tudo dentro de casa. Em

frente a minha casa, eu moro aqui, atravessando a rua era a casa dela. A gente muita vez

eu presenciei o quebra pau dos dois. Ele chegou um dia a pegar a bacia de comida assim

e jogar pelo vitrô que foi parar lá na rua.

E quando você chama o tráfico ou como você falou os bandidos para interferirem,

como eles agem? Como é isso? Qual é o preço de ter que pedir ajuda pra eles?

Olha , quanto a isso, eu nunca necessitei. Eu nunca necessitei. Eu não sei se eles cobra

pra fazer alguma coisa. Porque o que eles não quer é ver a polícia, então como na casa

dela ela já tinha chamado a polícia umas três vezes pelo menos pra ele, só que ninguém

tomou providencia nenhuma, providencia de nada. Os policiais virara as costas e ele

continuava a fazer a mesma coisa. A situação dela tava pior ainda. Porque a polícia ia,

conversava, não levava e não tomava atitude nenhuma. Só que isso tava sujando o lado

dos bandido, toda hora o bandido na rua, toda hora a polícia na rua. Não dá. Aí ela foi e

falou com eles, eles foram falar com ela.

Os bandidos foram procurá-la oferecendo ajuda?

É. “Olha a situação não dá, você tá sujando o pedaço.” Diz que ela que tá sujando o

Page 120: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

pedaço. (risos) “Olha, você tá sujando o pedaço, todo dia a polícia aqui na rua e isso

tem de parar”. Falou pra ela numa boa. Aí ela falou: “Mas o que vocês acham que eu

devo fazer? Porque o meu marido não sai e pra eu me defender eu tenho que chamar a

polícia, que eu não agüento ir pra cima dele.” Aí eles perguntou: “Quer que a gente

ponha ele pra correr?” Aí ela disse assim: “Mas como colocar ele pra correr?” “A gente

na vai fazer nada, a gente não vai matar, simplesmente ele não vai mais entrar no

pedaço. Até uma certa distância ele vem, passando daquela distância ele não passa mais.

Porque na hora que ele chegar no limite dele: daqui você não passa.”

E o cara está respeitando?

O cara tá respeitando. Isso já vai fazer uns dois anos, agora que o cara começou a

chegar no portão da casa dela. Ele já refez a vida dele, já tem um neném. Agora nesse

feriado ele foi ver o filho e levou a mulher e levou o neném, na porta dela. Tem a... Ele

foi pra casa dele e ela pois na justiça, ele manda a pensão pra criança, se separo. Mas foi

os bandido que pois ele pra correr, porque os policiais não puseram não.

E tem outros casos iguais na comunidade?

Tem. E muitos. Muitos casos. É cheio, é cheio, é cheio e isso é só na rua onde eu moro.

Se for ver a comunidade você vai ver muitos casos. Inclusive ta fazendo quase dois

meses que mataram um rapaz, que ele abusou de uma menina de 14 anos. A menina era

deficiente, era muda e surda. E ela andava pegando garrafa, e essa menina desapareceu.

Ficaram sabendo que o pai da Fana tava com ela, não na região onde nois mora, mas um

pouco mais distante. E ele pegou essa menina, a polícia procurando tudo e abusou dessa

menina. Aí o que fez? Os policiais não acharam, policia e nada lá é a mesma coisa. Aí a

mãe e a família pediram para os rapazes né. Eu falo assim bandido, não pe bandido, é os

rapazes. Eles respeita a gente muito bem, só tem os pedaço deles, o que eles faz não se

julga pra gente. Eles respeita a gente, e não mexe com a gente. Não tira as coisas da

comunidade, quando eles tem que fazer, eles vão fazer bem longe. Eles tem os ponto de

tráfico? Tem. Os ponto fica ali na praça, vem um carro eles vende, passa lá eles vende.

Quem quer, passa lá e compra.

Mas não interfere na vida da comunidade?

Não, não interfere na vida da comunidade não. E precisando deles, eles estão a postos,

tanto dia quanto a qualquer hora da noite. Se precisar de um socorro, de um carro,

Page 121: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

alguma coisa, pode contar com eles. Nois chama eles de menino.

E eles não cobram nada pra ajudar?

Não, não cobram nada. Que eu saiba não. Nunca precisei, mas nunca ninguém falou:

“Tenho que pagar porque ele fez isso pra mim.” Nunca fiquei sabendo. Já são vinte ano

que eu moro no pedaço, e eu nunca fiquei sabendo que precisaram deles e depois teve

que pagar. Também nunca fiquei sabendo que eles foram na casa de alguém cobrar por

ter feito alguma coisa pra pessoa.

Deixa eu te perguntar Nice, na sua família outras mulheres sofreram algum tipo de

violência? Sua mãe chegou a sofrer algum tipo de violência?

Olha, a minha mãe, eu acho que não. Minha mãe perdeu o marido muito nova, tanto é

que eu tinha seis meses, e... minha mãe não teve outra vida conjugal, tinhas os

namorinhos dela assim, saía com os caras e logo tava em casa junto com os filhos. Ela

viveu mesmo a vida dela com os dez filhos dela. Nois sempre fomos muito felizes, uma

infância ótima. Posso dizer de boca cheia que era o orgulho dela. E ela enchia a boca e

dizia assim: “Eu criei os meus dez filhos sozinha e não tem nenhum margina, nenhum

ladrão, nenhum preso e nem nenhum maloqueiro.” Meu pai morreu por falta de socorro

médico, naquela época era muito difícil, então quando ele chegou no hospital, já não

tinha mais jeito, falta de respiração. Minha mãe ficou desnorteada? Ficou. Minha mãe

começou a beber, ela be muito. Depois que ela veio morar comigo, é que eu consegui

tirar a bebida dela, porque eu sou uma pessoa enérgica, se eu falo não, é não. Então eu

sou uma pessoa enérgica e eu consegui tirar o vício do álcool dela, mas não consegui

tirar dói Severino (risos). Talvez se eu tivesse conseguido tirar o vício dele, seria bem

melhor né. Eu não teria sofrido tanto. A minha irmã também se separou, mas não foi por

esses motivo não. Foi por causa de bebida, o marido dela bebe demais, mas se separam

numa boa, o marido dela refez a vida dele. É como se diz né, eu sei o que se vive por

fora, mas o que acontece dentro de quarto paredes... se ela não se abriu... As outras

minhas irmã também não.

E hoje você olhando pra tudo isso eu você viveu, o que você pensa? O que você

sente?

Olha, eu chego em casa, eu tomo um banho, eu janto, eu deito e eu durmo. Eu não me

preocupo mais, em ter uma roupa pra lavar, que não tem ninguém que manda em mim.

Page 122: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Eu não me preocupo mais de ter uma comida pra fazer. Eu se preocupo muito com o

Guilherminho, porque o Guilherme é pequeno, mis confio muito nos irmão dele né. E

eu sinto bem.

Você se sente mais feliz?

Bem mais feliz. Porque eu não tenho aquela... aquela angústia que eu tinha no peito,

aquela coisa que me apertava, que me machucava, que me corroia. Eu não era mais eu,

dia de hoje eu canto (risos). Dia de hoje eu canto, eu danço. A minha filha vive se

reunindo com as primas em casa e passa a tarde inteira conversando, brincando né. Eu

hoje gosto de comprar uma roupa pra mim, um sapato.

Você voltou a ser vaidosa...

Isso. Me arrumo, pinto um cabelo, uso brinco né. Então eu voltei a viver né. Agora eu

tiro barato da cara das pessoa, eu faço piadinha, coisa que eu não fazia mais. Eu era

aquela pessoa que se tornou amarga, que quando alguém queria conversar só saía aquela

coisa amarga, estressante. Ninguém queria mais ficar perto de mim. Ninguém é santo,

no dia de hoje eu tenho o estress do dia a dia. É essas condução, que me estressa muito,

porque a lonjura que eu trabalho. Sair da zona leste, pra trabalhar na zona oeste não é

fácil (risos). Os meus filhos não são de sair pra noite, pra noitada. Então no fim de

semana quando eles ficam conversando com os amigo, o máximo que eles chega em

casa é meia noite. Hoje eu sou muito mais feliz.

E pra fechar, quais são os seus sonhos? Você sonha com o que hoje?

Hoje? Olha, o meu sonho é construir a minha casa, montar ela do meu jeito.

A casa que você mora hoje é sua?

É minha.

Mas é ocupada? Você tem a escritura? Já tem tudo direitinho?

É ocupada, é da COHAB, ta no meu nome.

Que foi uma vitória sua, você conseguiu

Foi uma vitória minha e de Deus (risos). Ele não pagava água, ele não pagava luz. Eu to

conseguindo por tudo em ordem. Regularizei minha luz, agora vou começar a ver o

Page 123: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

negócio da água. O telefone que sempre andava cortando com ele, desde que ele saiu

não tem nenhuma conta atrasada. E eu sozinha, a minha vitória é essa. Não tenho

ninguém. Pra dizes assim, ele ta mandando pensão, não está. Porque os cem reais que

ele manda, na hora eu pego e divido entre os três. Que graças seja Deus, eu ponho Deus

no meio, não ta fazendo falta.

Então vamos lá, o seu sonho é construir a sua casa do jeitinho que você quer.

Até dezembro eu vou comprar a minha máquina de lavar. Eu vou construir um corredor

e vou por a minha máquina lá e quero construir mais três cômodo lá. Aí depois de

construído eu vou mobilhar (risos). Se Deus quiser eu vou mobilhar. Os meninos

também vai trabalhar, o Wagner começou e Deus vai amparar e o Wellington vai por

juízo na cabeça e conseguir um trabalho fixo. Eu moro num quarto e cozinha, meu

sonho é cada um ter o quarto deles. E eu o meu quarto, que a hora que eu sai eu vou

fechar a porta (risos). Agora eu sou feliz.

É bom voltar a sonhar Nice?

É bom sonhar, é bom a gente fazer dívida pra depois pagar. Ontem mesmo eu fiz dívida,

comprei perfume, comprei hidratante, um lençol de cama, comprei um cobertor que eu

sempre quis. Hoje eu posso cuidar da minha cama, porque se você tem uma cama e

chega aquele homem cheirando a pinga, xingando, babando e se joga em cima da cama.

Aí nem Cristo agüenta ver aquilo. Hoje eu não tenho nada disso, eu ponho perfume na

minha cama e sinto o cheiro do perfume. Hoje eu tenho o meu neguinho que é o

Guilherme que dorme comigo, porque eu acho que só depois que virar homem barbado

vai sair do meu lado (risos). Os meus filhos são a minha vida, sinceramente eu amo

todos eles. Eu não atirei pedra na cruz e eu vou ser feliz. O meu primeiro casamento não

deu certo, o meu segundo casamento também não. Teve momentos felizes? Teve, não

vamo negar não. A primeira vez a gente errar é humano, a segunda é falta de atenção, a

terceira é burrice. Então, homem na minha vida eu não quero mais não. Jamais eu vou

querer. Não vou cuspir pro céu e dizer que é isso e aquilo. Não. Mas pra morar debaixo

do teto comigo, eu não quero. Que surgir a possibilidade de um namoro, de um

conhecimento, tudo bem, mas pra morar debaixo do meu teto, não. Eu já passei por

muita coisa na vida, eu fui uma criança perdi uma vista com dez anos, eu fui operada

quatro vezes. Eu perdi a vista, mas aprendi corte e costura, crochê. Não existe máquina

que eu não pegue e enfie a agulha, que eu não costure nelas. Então tem aquele ditado:

Page 124: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

“Não há nada que a Nice não possa fazer, eu faço.” Pelo Severino eu já enfrentei dois

bandido com arma na mão e nem isso ele dava valor. Quando eu tava de cinco meses do

Wagner, eu enfrentei o bandido, porque ele tinha acabado de matar três e eu achei que

um era o Severino. O filho da mãe do Severino nunca reconheceu isso.

Tem mais alguma coisa que você queria dizer pra gente finalizar?

Eu quero que Deus ilumine os passos do Severino, que ele refaça a sua vida. Não to

dizendo pra ele encontrar uma nova companheira, porque eu tenho medo dele fazer ela

sofrer também, mas que viva a vidinha dele, que tenha as coisinhas dele certa, o

cantinho dele. Que ponha a cabeça no lugar e pensa que ele tem três filhos lindo e

maravilhoso, quem sabe no futuro eles não possam ser grandes amigo. Que ele ganhe o

coração desse filho, do Wellington. Que mais tarde no futuro eu possa descansar e que

os meus filho possam me ajudar e apoiar, que eles pegue a responsabilidade. E eu falo

pra quem ta passando por essa situação, eu sei que não tem coragem de desabafar,

quando chega a desabafar, é porque não ta aguentando mais. Porque chegou no limite. E

tome muito cuidado, por mais calmo que seja, quando tem traição, pode ter a vingança.

Eu nunca pensei em me vingar, mas a gente ta vendo por aí por parte dos homem e das

mulheres e até mesmo por parte dos filho. As mulheres que tiverem passando por uma

situação dessa, que tão quieta, os filhos ta presenciando tudo aquilo dentro de casa e os

filho tão aguentando. Procura ajuda, eu procurei. E falo pra essas mulheres também:

“Vocês que estão passando por isso, pensem muito bem antes de arrumar uma pessoa.

Não ponham outra pessoa imediato no lugar. Porque o companheiro não estiver

preparado, aí as coisa fica muito séria. Deixem as coisas se acalmarem, deixem as

coisas se estabelecerem, ponham tudo no seu devido lugar, dá um tempo pra substituir

aquela pessoa que estejam morando com vocês.” Foram vinte anos de relacionamento,

fazendo uma conta assim, tirando na balança, acho que dois foi de felicidade, dois

tiveram momentos feliz.

Eu queria te agradecer muito por você ter dividido a sua história comigo, ter

confiado em mim pra contar a sua história.

De nada.

Entrevista realizada pela aluna Beatriz Guimarães

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MARIA ALICE WADA

Identidade

Idade: 31 anos

2 filhas

religião evangélica

Cresci em uma igreja evangélica,e aprendi que a mulher teria que casar, ter

filhos e ser obediente ao marido ou seja submissa a todas as vontades dele.

Cresci em uma igreja evangélica e aprendi que Deus instituiu o casamento, isto

foi citado em Gn 2:24: “Por isso, deixa o homem pai e mãe e se une a sua mulher,

tornando-se os dois uma só carne”. Para somar, para acrescentar, para unir, transformar-se

em uma só carne, uma só vida, um só ideal. O casamento não é um campo de batalha

como muitos vivem, mas sim uma instituição formada por Deus para que os dois

desfrutem das bençãos do Senhor. nos podendo nos esquecer que viveríamos na alegria,

na tristeza, na saúde, na doença, na pobreza e na riqueza, até o final de nossos dias.

Casei me e bem casada, fui feliz por 10 anos, parecia que realmente ele era o

meu príncipe encantado, tudo estava dando certo, desta união nasceram duas meninas,

maravilhosas a qual me apeguei muito e elas foram a ponte da minha salvação. Sempre

fui conservada, vaidosa, amorosa, sempre frenquentei academias, depois que casei não

relaxei com o corpo.

Mas algo em meu casamento estava errado, sentia me muito só, mesmo tendo as

meninas e ao meu marido. Percebi que minha vida era muito monótona, levantar,

colocar filhas na escola, academia, limpar casa, fazer comida. E a vida de meu esposo

era bem dinâmica, trabalho, igreja e reuniões da igreja após os cultos, a qual eu não

podia ir pois tinha as meninas pequenas e elas tinham que ir no outro dia para escola,

então não freqüentava estas reuniões. Comecei achar estranho desde que percebi que

quase não tínhamos contado físico, nem troca de carinho, ele não me maltratava mas

também não me olhava como mulher, uma eterna namorada. Tinha algo mudado.

Depois de muitas estratégias descobri que ele estava tendo um caso com ,há

cerca de 4 anos e a idiota (EU) nunca tinha percebido, pois cria piamente o que Deus

uniu o homem jamais poderá separar.

Page 126: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

De momento não sabia o que fazer por conta de minhas filhas e por conta ds

irmãos da igreja, pois meu marido tinha um cargo elevado na igreja, todos acreditavam

nele, acreditavam em sua lealdade, fidelidade para comigo.

Fiquei por 6 meses sofrendo calada sozinha sem contar ninguém por amor a

minhas filhas e a igreja, em nosso meio evangélico a gente se expressa “Para não

escandalizar o nome de Jesus”. Então eu levei a serio por seis meses, orava dizendo

Senhor se assim que tem que ser, então eu quero obedecer. Mas eu estava ficando

doente, emagrecendo muito, as pessoas perguntando o porque estava emagrecendo

tanto, e ele dentro da igreja com a cara de santo como nada tivesse ou seja estava

acontecendo.

Dentro de casa o santinho brincava com as filhas como um pai e a noite queria

somente sexo comigo, foi quando uma manhã eu estava lendo a bíblia e deparei me com

este versículo Mulher virtuosa quem a achará? O seu valor muito excede ao de rubis.

Provérbios 31:10 .

Não sou muito boa em interpretações mais naquela hora eu disse para mim, eu tenho

valor que excede a ao de rubis, o que estou fazendo com minha vida? Nesta hora

comecei a chorar, olhei no espelho e vi minhas rugas de preocupações minhas olheiras e

o quanto tinha envelhecida,

Dei conta que eu estava me escondendo atrás da religião e que Deus não tinha

nada a ver com os erros de um homem que queria manter duas familias e viver de

aparencia, naquele instante parece que minha mente se abriu e vi o quanto eu estava

errada, em me esconder por trás de uma religião não estava pensando em mim e sim em

que as pessoas iriam pensar o que o Pastor da igreja iria pensar.

Naquela tarde marquei com o conselho da igreja e coloquei toda a situação, o

conselho da igreja ainda tentou me convencer a dar uma nova chance para ele, já que ele

era uma membro assíduo da igreja,

Disse chance? Fazem 4 anos e 8 meses que esta pouca vergonha existe e o

senhor me diz em chance............

Se o senhor quiser saio eu e minha filhas desta igreja e o senhor e o seu conselho

fique com o meu eis marido pois a partir de agora não tenho mais marido.

Estou contando para você resumidamente mais depois daquela reunião teve

muito choro por parte dos pais amigos e das minhas filhas, algumas pessoas até diziam

que eu era a culpada, mas não mas importava ,estava livre eu era virtuosa e o meu valor

excedia a do rubis.

Page 127: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Hoje estou livre e cada um seguindo sua vida

Quero deixar bem claro que a violência pessoal contra a mulher é um problema

mundial e não somente dos evangélicos e a culpa não esta em Deus, homens violentos

não se encaixam em nenhuma religião ou categoria cultural. Hoje penso muito

diferente, que existe mulheres no mundo todo que de alguma forma já foi violentada,

coagida a fazer sexo ou abusada de alguma forma durante sua vida. A violência contra a

mulher transcende religião, riqueza, classe, cor de pele e cultura. O pior da violência é a

agressão emocional, que ela provoca, faz a pessoa se sentir suja, desprezível,

amargurada, cheia de desejo de vingança, revoltada e ainda por cima, se sente culpada.

Só uma mulher que já foi abusada, sabe a intensidade da dor, depois do abuso,

vai por água abaixo, os sonhos da moça, os projetos, até mesmo sua auto estima,

identidade, tudo é afetado, condenando–as ao isolamento, a condenação, a aversão de si

mesma, só Jesus pode mudar essa história.

Eu estava sendo violentada em meus sentimentos. Através o que se vê e que se

ouve, o que é de mais sagrado no ser humano é violentado, estuprado: a alma, os

sentimentos! Os reflexos o acompanharão por toda a existência na terra dos viventes. Se

não passar por um tratamento

Eu estava sendo violentada sexualmente. A agressão sexual cuja lembrança

sempre deixa a pessoa triste, amarga, complexada, revoltada (inclusive com Deus),

cheia de ira, raiva e carregando consigo esse desejo de vingança, de “fazer alguma

coisa” contra quem praticou tal constrangimento que você carrega por tanto tempo! Foi

estuprado, forçado, coagido e violado em sua intimidade tão sagrada.

Eu estava sendo depósito..........

Hoje eu posso te dizer que não estou 100 por cento ótima mas que tenho

certeza de que a gente como evangélicos podemos gritar, colocar para fora o que

nos oprime, Quando se falamos da violência nestes dias, quero alertar aos

evangélicos(a) que a Lei Maria da Penha existe para ser usada por sobre aqueles

que estão infringindo a mesma. Pois a Palavra do Senhor nos diz que:

O amor não pratica o mal contra o próximo; de sorte que o cumprimento da lei é o

amor. Romanos 13:10

Maridos, amai vossa esposa e não a trateis com amargura. Colossenses 3:19

A mulher sábia edifica a sua casa, mas a insensata, com as próprias mãos, a derriba.

Provérbios 14:1

Page 128: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Entrevista realizada pela aluna Lucindalva Maria do Nascimento

CARLA MARIA DE JESUS

Identidade

Idade: 31 anos

Graduação

religião evangélica

dona de casa

A primeira ocorrência foi após pouco tempo de casados, onde pedi para ele

procurar emprego, iniciou-se uma discussão, e eu saí, e entrei na casa da minha mãe,

sendo que morávamos no quintal dela.

Após um tempo ele foi atrás de mim, e começamos a discutir referente a uma

questão religiosa, onde o mesmo queria que eu fizesse uma ligação e me recusei, após

insistência liguei e pedi a solicitação que ele queria, explicando que ele estava

requerendo o documento, após a ligação, o mesmo começou a reclamar e me insultar

que deveria ter feito o pedido, como se eu quisesse o documento e não ele.

Ele começou a dizer: “Vamos para casa”, e começou a me puxar, pegou o fio do

telefone e enrolou no meu pescoço, depois foi até a cozinha, pegou um garfo e começou

a enfiar em mim, me focando a sair da casa da minha mãe e entrar na minha casa,

quando sai, comecei a gritar e meus familiares entraram e separaram a briga.

Após algumas horas disse que iria à delegacia, mas até mesmo minha mãe disse

que era melhor não, pois tínhamos acabado de casar, e ele disse que não iria fazer mais

isso.

A relação era difícil, tivemos outra briga onde ele me agrediu e então foi a

delegacia, lá a escrivã não abriu a ocorrência, alegando que como era pouco tem pode

casada, iríamos nos acertar, mas chamou ele para conversar, nessa conversa ele colocou

sua explicação passando que eu muito nervosa, resumindo acabei saindo como errada

nessa situação, e ele saiu de lá, se sentido forte, porém após isso as agressões cessaram,

durante o período do casamento desde do inicio tivemos sempre brigar e quebraria

dentro de casa, até que um dia eu disse:

-Você quer quebrar?

Page 129: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Quebrei a casa inteira literalmente, vidros das portas, janelas, copos, pratos rádios

basicamente quase tudo.

Após esse ocorrido ele nunca mais quebrou nada, e quando dava indício, eu

quebrava primeiro, até que, todas as brigas que aconteciam, ele não pegava mais nada

para jogar no chão.

Ocorreram outros problemas, e fomos morar no quintal da mãe dele, lá

discutimos feio, e ele me expulsou me jogou para fora da casa, sai e voltei para casa da

minha mãe, depois de uma semana ele veio atrás de mim pedindo para voltar, disse que

para lá não voltava mais, e ele voltou para casa da minha mãe.

Após um tempo, entramos em crise, eu não estava trabalhando, nem ele, e toda

vez de discutíamos ele dava uma pancada em um dos meus braços, até que um dia a

percebi que a agressão estava demais, pois até o momento não via como uma agressão,

pois era leve e eu sempre fazia algo que ele sentia também.

Nessa última briga, fiquei com marcas, fui na delegacia, entrei com processo de

divorcio, representei , compareci na audiência, estou separada a quase 7 meses, e estou

aguardando o divórcio.

Na audiência referente as agressões, o promotor perguntou se eu queria retirar a

queixa, como eu não quis, ele assinou um documento, se comprometendo a não

freqüentar bares noturnos, não ter outro processo, terá que comparecer na fórum uma

vez por mês e assinar um relatório de comparecimento durante dois anos.

Com o tempo fui percebendo que ele era um homem machista, mas existe uma

questão religiosa em qual vivia onde se predominava que “tudo iria melhorar”, e se eu

me separasse iria sofrer conseqüências, pois separação só pelo adultério.

Além do que me casei para não separar, e quando isso ocorreu, o sentimento de

perda é no sentido “Poxa meu casamento acabou”

O sentimento de fracasso não é pelo homem em si, mas porque o casamento não

deu certo.

Entrevista realizada pelas alunas Ana Luiza Ferrufino Vallejos, Diana Claudia

Barbosa dos Anjos e Noemi dos Santos.

Page 130: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

LAIR RAIMUNDO

Identidade

Idade: 55 anos

religião evangélica

dona de casa

Quanto tempo é casada?

35 anos.

A senhora trabalha fora de casa?

Não.

Quantos filhos a senhora tem?

Três filhos: Roberto, Robson e Amanda.

Foi mãe com quantos anos

20 anos.

Como foi ser casada muito tempo?

Uma vida de muitas tristezas.

Por que tantas tristezas?

Lembrar é sofrer duas vezes mais.

Terezinha: Por que tanto sofrimento?

Por causa de bebida, mulheres e drogas

Por que viveu tanto tempo neste sofrimento?

Porque o amava.

Como era sua relação sexual com seu marido?

Page 131: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Muito boa, tinha tesão e muito prazer. 20 anos de casamento feliz porque tinha

tesão e era feliz. Depois de 20 anos para cá deixei de gostar dele. Mesmo sofrendo e

sabendo que tinha outras mulheres o amava.

Ele te agredia?

Demais, batia e punha para rua, não deixava entrar.

A senhora nunca pensou em separação?

Pensei.

Por que a senhora não pediu a separação antes?

Por medo.

Ela relata que pediu a separação em juiz e seu marido assinou um termo dizendo

que não iria mais agredi-la. Lair diz que a tortura foi ainda maior após o pedido de

separação e que durou mais cinco anos. Ela conta que seu marido ajoelhou a seus pés e

jurou para ela que não iria agredi-la mais, sendo assim ela resolveu voltar com ele.

Que tipo de tortura seu marido usava?

Por para fora, ameaça de morte, humilhava e chamava de bagabunda.

Terezinha: Como a senhora sobrevive?

De aluguel, ele ficou parado e só dependia do aluguel que é herança dos pais.

Ela diz que o marido trabalhava e não dava dinheiro, mas comprava comida.

Como se sentia como mulher?

Sofrida, pedia socorro para as amigas para dormir com os filhos.

Lair fala dos filhos, diz que o filho Robson foi a mãe dela quem criou. Seus

filhos Roberto e Amanda foram criados com ela, num ambiente de sofrimento, diz que

seus momentos felizes eram nas festas de Natal e aniversários, mas depois sempre

acabava em brigas, nunca teve uma festa feliz.

Lair diz que sua vida vai mudar porque se separou novamente, devido ao

sofrimento e as torturas, relembra que uma das diversões prediletas de seu marido era a

televisão e que agora o lugar está vazio, onde preenche com quadros.

Page 132: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Como a senhora está se sentindo agora que separou novamente?

Muito feliz, mas tive um pouco de insegurança. Paguei R$ 127,00 para separar”.

Por que estava insegura?

Com medo, não acreditava que ele ia embora. Foi um milagre de Deus.

Por que diz que foi um milagre?

Vinha buscando este milagre e nem precisou de testemunha. Hoje estou livre

começando a felicidade depois de 50 anos, casei com 18 anos.

A senhora recebe algum tipo de pensão de seu ex marido?

Ele trabalha junto com motorista, médica e delegado, eu queria R$ 400,00, mas

abri mão da pensão dele para ficar livre. Ele usa cocaína.

Percebo que a senhora não esta totalmente feliz com a separação, é

verdade?

Meu olhar está triste pela ferida, não por causa da separação e sim pelo filho que

foi a quatro anos. Roberto foi para as drogas com 24 anos e não sei se está vivo ou

morto, falta um pedaço.

Robson, seu segundo filho de 32 anos, foi criado pela mãe e é viciado em

drogas. Lair diz que ele odeia o pai e mesmo assim tem atitudes idênticas a do pai. Lair

diz que sua nora Vanessa, 26 anos, também sofre agressões pelo marido e que cresceu

presenciando pessoas sendo agredidas. Vanessa não desejava se relacionar com pessoas

violentas mas mesmo assim, ela tem contato com pessoas que a agridem desde a

infância, o tio que a espancava e hoje seu marido.

Page 133: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

LENILDA AMALIA SIQUEIRA

Identidade

57 anos

dona de casa / costureira

Jardim Miriam

Esse negócio da muié, quando briga lá, vai na delegacia. E a maioria das mulher

nem vão porque não é resolvido nada, né? A lei da Penha. Aí começa a pensar “Olha

ta botando chifre” . Tá pensando o que? ------------- porque tem pessoas que às

vezes acontece isso. Tem medo. Eu tinha medo. Eu, logo no começo, né? Eu tinha

medo de te contar, por que? Porque envolvia meus irmão. Enquanto meu eu pai

era vivo eu não queria que eu pai soubesse, por que? Meu pai tinha um gênio forte

igual ao meu marido. Então dois bicudo não se beija. Eu achava que podia

acontecer uma tragédia, e como meu pai na hora que dei, descobriu que eu não era

mais moça, falou assim que eu podia sofrer, o tanto que fosse que ele não ía fazer

mais nada porque eu desobedeci ele. Então, se eu contasse, ele não falava comigo,

mas perguntava pros meus irmão “Como é que ta Leo” “ Como é que ele e ------

vevi?” Porque ele não ía na minha casa, e no começo ele ------ e meus irmãos ------.

Mas eu não contava. Então eles chagava na minha casa e tava tudo bem. Se via todo

mundo. Então não via eu com cara de triste, né? Porque eu podia acabar de brigar

com ele agora, se meus irmãos chegasse na minha porte e tratava ele como se nada

tivesse acontecido, nem briga nem nada. Então não dava, eu não mostrava pra

ninguém que eu sofria. O que eu pensava comigo “Não vai adiantar nada, ninguém

vai resolver meu pobrema. Vai minha família ficar sem conversar com ele. As vezes

fazer o aniversário de um fio, meu irmão num í, minha irmã e meu pai não poder

vir. Por que? Porque ta brigado com o meu marido. Porque brigo e depois faço as

pazes com ele e minha família aqui. Então eu nunca quis envolver ninguém. Como

eu sabia que tudo isso meu pai, minha mãe avisou antes e eu quis, né lutei pra mim

casar com ele. Então eu achava que não tinha que se envolver nos meus problema

com ele.

Como vc conheceu seu esposo, Leo?

Page 134: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Eu conheci assim, porque, ele era amigo da minha mãe. Então quando a minha mãe

veio pra São Paulo, eu fiquei, ca mãe Zezé e a minha vó. Então eu fiquei com eles lá.

Porque eu, de pequena, eu tinha medo de passar no rio São Francisco, então

aquele medo eu tinha. Aí minha mãe trouxe só a minha irmã. Quando minha mãe

foi pra lá visitar a gente, aí minha vó encrencou, as coisas tava mais difícil e aqui

num tavam bem, mas era melhor do que lá. Aí minha vó, minha mãe mandou

dinheiro pra minha vó vim. Aí minha vó veio, só que quando a gente veio embora

com a minha mãe, nós moramos no aeroporto, onde é agora que tem, tinha um

Jumbo, né? Um Jumbo ali, num sei. Antes num era, antes era uma favela, que agora

dá um nome mais bonito, é...é chama de prefeitura. E antes falava favela. Então isso

no norte, favela era um nome assim feio e aquele preconceito, morando em favela,

é muito pobre, mas nós viemos pra favela que na época era Buraco Quente. Quando

minha mãe veio morar ali, tinha ele. Ele fazia assim, num deixava a mulher fazer

muita coisa, ele prendia, judiava da mulher. Então tinha todo esse movimento que

eles via, só que eu no norte pequena. Quando eu vim pra São Paulo, eu acho que eu

divia ter uns 5 anos no norte, é, que ele era bem mais velho. Quando eu cheguei ali

ela já não morava mais com essa mulher. Ele já tava morando sozinho. E morava

minha mãe e minha tia. Aí ele, eu fui crescendo e ele morava lá. Aí teve uma época

que ele mudou, ele foi morar com o irmão dele que tinha comprado um terreno,

então ele foi morar com esse irmão. Nos fundos fizeram um quarto e cozinha. E ele,

mas ele ía sempre visitar a aminha mãe.

Sempre ele ía visitar?

E eu via ele, entendeu? E eu crescendo. E eu não gostava de preto. Quando que,

porque no Norte não tem muito preto. Tem aqui. No norte tem assim caboclo.

Queimado do sol, meio avermelhado. Preto, preto que nem o meu marido, não tem.

É muito difícil a gente ver. E eu não gostava de preto. Só que ele mexia comigo,

brincava com todos meus irmãos, e eu fui ficando mocinha. Como ele trabalhava,

ele era bem empregado. Ele era torneiro mecânico e outro negocio que é mecânico

também. As duas coisa, então, a minha mãe com aquele monte de filho, ela viu um

partido bom pra mim e ele começou a se interessar por mim, eu assanhadinha

sempre colocava peito de fora pra ir trabalhar em uma firma. Aí o chefe quando

olhava assim pra mim tinha o meus peito, né? Aí pensava que eu era aquelas

Page 135: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

meninas baixinha, sabe? A minha mãe, pra ajudar a minha mãe, que minha mãe

tinha muito irmão, muito filho, é que nem eu falei. Todo sábado minha mãe

ganhava filho, então não tinha condições, quando comprava o sapato pra um, o

sapato do outro já tava rasgado, então minha mãe não tinha uma madrinha. Então

era uma vida mesmo ali, de pobreza, sabe? Aí meu pai tinha a minha madrasta,

então meu pai tinha duas família, ganhava bem, que naquela época, os pedreiro,

que agora chama consultor, né? Ganhava muito bem! Meu pai comprou muito

terreno. Meu irmão, a maioria, mora tudo em terreno que meu pai deixou. Porque

ele tinha condições, mas tinha duas muher. Tanto é que quando minha mãe

ganhava nenê, minha madrastra ganhava. Comprava água, sangria que chamava,

levava pra uma e pra outra. Meu irmão_________ era gêmeo de pai, não de mãe.

E vc e seu esposo? Vc tinha que idade e ele tinha quantos quando vcs

começarama a namorar?

Eu sei que eu tinha.... quando eu fiquei noiva. A primeira vez que eu fiquei noiva eu

tinha 13 anos. Aí eu acabei o noivado, aí a Zezé casou. Que eu fiquei noiva eu e ela

num sitio que o meu pai, né? Aí depois, eu era tão criança que eu não entendia, eu

não gostava de beijo, era aquela coisa, sabe? Que eu acabei o noivado. Só que eu já

tava de olho nele, que era vizinho, que era amigo da minha mãe. Tá? Aí nesse

tempo, eu fiz aniversário, eu fiz quatorze anos. Aí ía ter uma aniversario, uma

festinha que minha mãe ía fazer pra mim e convidou ele pra vir. E ele num veio. No

outro dia do aniversário, foi um sábado, no domingo ele veio, pra almoçar. E nesse

almoço eu já percebi o olhar dele diferente comigo. E eu com ele. Pronto nós

começamo a namorar dali.

Ele tinha que idade?

Olha, eu sei que eu tinha quatorze anos, ele...eu não sei, mas ele era mais velho do

que eu.

Qual a diferença de idade de vcs?

22, não, 20...é...

Ele tinha mais ou menos 35 anos...

Page 136: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Isso! Aí quando eu comecei a namorar, aí a minha mãe não percebeu. Minha vó que

percebeu. Que como eu tinha sido mais criada com a minha vó, minha vó sabia que

eu era danada, porque do norte eu vim de lá com 8 ano. Num era namoro, é o jeito

de minina pequena gostar de namorar, ne? Não que era homem feito nem nada.

Aqui sim, quei eu namorei com homem feito, que foi, primeira de noiva, aí desisti e

comecei a namorar com ele. Eu namorei pouco, não namorei muito, ne? Aí come...aí

nisso meu pai, minha vó descobriu e contou pra minha mãe. Como ele já era um

homem mais velho do que eu, que já, que ele era violento com a mulher, como que

minha mãe tava ficando louca de deixar eu namorar, uma criança, como um

homem desses, que já tem esses passado, ne? Aí pronto. Aí veio falar comigo, aí eu

_______chorei, chorei, que eu amava ele. Olha eu nem sabia o que era amor direito.

Mas foi o amor, na época, que eu amava ele, que eu ía me casar com ele, que eu

queria ter um quartinho pra mim, porque ele falava, ne? Que vamo ter a nossa casa.

Então ele falava as coisas bonita, que era o que eu queria ouvir. E eu queria sair

dali. Minha mãe com aquele monte de filho, eu queria ter o meu canto também. E

minha mãe por outro lado, achava que ele era um bom partido pra mim. Ela não

era de manguaça, nem nada, então achava que era uma pessoa boa. E eu também

gostava dele. E ficou aquela luta não deixa, não deixa, não deixa, aí por fim. (9:00

mins) Meu pai falava assim que preto quando não fazia na entrada, fazia na saída,

né? Então já que vc quer, vc sabe tudo isso que aconteceu na vida dela, vc quer? Aí

a responsabilidade___ seis meses pra ficar noivo e um ano pra casar. Ele marcou

tudo direitinho, noivo. Só que entre o noivado, minha mãe foi ficando doente. Ai eu

fiquei noiva, eu tava com quinze anos, né. Não tinha quinze anos compreto. Ainda

tinha quatorze anos e ia fazer quinze anos. A minha mae foi ficando doente, minha

mae foi ficando doente. O medico falou pro meu pai que minha mae tava com

leucemia, e ela... E ele já tinha viajado quando minha mae morreu. Ai ele já tinha

comprado, minha mae chegou ver a casa que ele comprou. No... no dia... outro mês

seguida, ele falou pra minha... o que compre o terreno. Então minha mae já tinha

dado. Os moveis, A gente casa com os moveis que você tem. Depois compra uns

novos. Ai ele foi e comprou esse terreno que eu moro hoje. Ai ele comprou

terreno... Ai meu pai, como era construtor, logo ele levou os pedreiro pra fazer. Ai

fez. Ate a gente casa, é um ano. Ai ele fez quarto e cozinha e banheiro. Ai deixou no

piso grosso. Ai minha mae morreu, o que meu pai faz. Eu na época deixou, meu

Page 137: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

irmão que tinha quatro meses, depois que ela ganhou nenê, ela morreu. E meu

irmão ficou e ele chorava muito, gritava, gritava, e eu ficava desesperada, eu tinha

medo da minha mae aparecer, olhava via a porta da minha mae. Eu achava que

minha mae ia sair, porque eu tinha medo de fantasma, essas coisa toda. Ai um dia

deixei meu irmão chorando lá... ta chorando demais, deixei na cama e sai. Quando

eu sai, a madrinha do meu irmãozinho morava perto da gente. Ai ela veio pegar o

neném, tava chorando muito. Ela veio. Quando ela viu, não tinha ninguém. Tava só

ele sozinho. Os outros meus irmão tavam na escola. Ai minha mae veio com meu...

A madrinha dele pegou, né. Levou pra casa dela e chamou minha vó, entregou pra

minha vó e eu, na hora assim que eu fiquei atordoada, eu peguei o ônibus e fui pra...

ali onde é a... como é que chama... o hospital defeito da face... que é Cruz Vermelha

chamava antigamente. A minha madrinha morava ali, ai eu fui pra casa da minha

madrinha. Desci assim atordoada e fiquei lá. Aí ela perguntou, falei que tava

nervosa, minino tava chorando muito deixei ele, ai... ai eu falei pra ela não chamar

ninguém... ai ela ficou com medo de eu ta atordoada e não chamou. Ai meu pai

quando chegou, meu pai ficou que nem doido atrás de mim, sem saber onde eu

tava. Ai... ai a minha madrinha ligou, né. Num falou pra mim, mas avisou pro meu

pai. Ai meu pai vai atrás de mim. Ai me leva pra casa. Ai eu num queria voltar pra

onde, a casa onde era minha vó, que era no aeroporto, onde morava minha mae. Ai

ele falou: “Então, você vai lá pra casa da minha casa... que era... ai eu chorava,

chorava, porque eu não queria ir. Porque eu, no fundo, eu achava que minha

madrasta, era culpada da minha mãe... e eu não queria vim, mas por um outro lado,

meu pai obrigava porque eu tinha que vir. Eu eu já tava noiva. Ai eu vim. Nesse

meio período que eu fiquei na minha madrasta, é onde ele deixava a chave e eu ia

pra casa e levava minha irmã. Ai um dia minha irmã pegou e... antes do meu pai

chegar do serviço. Quando a gente chegou, meu pai já tinha chegado, nos tava na

casa do Gibi ai meu pai pegou... ai eu falei a Sandra, que era minha irma. Ai ele

perguntou, o que quer nós fizemos. Ai ela falou “choveu, pai e nós dormiu”. Ai meu

pai “que história de dormir, como choveu e dormiu, cê dormiu?” Ah, agora tudo

deitou na cama, ai eu, a Leo e o Gibi e nós dormiu. Ai meu pai que não era besta de

jeito nenhum, nem com Sandra, nem com ninguém disse “ Cê num vai lá”. Ai ele

proibiu. Como ele proibiu, como eu já sabia que já tinha rolado alguma coisa entre

eles, só que não era, eu não tinha me perdido ainda com ele. Era brincadeira aquilo.

Page 138: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Hoje em dia ninguém brinca mais assim. Então, ele falava pra mim que era

brincadeira e eu acreditava. Só que num era, num tinha acontecido mesmo. Era só

tipo brincadeira, mas brincadeira que num era da gente tá fazendo. Ai eu... um dia

fui sozinha, deixei a minha irma, porque eu pensei de ir sozinha, mas voltar cedo,

né. Só que eu não voltei cedo, ai nesse dia foi que aconteceu.

Na primeira vez que vocês transaram ele te bateu?

Ele me bateu, me derrubou na cama.

Por que que ele te bateu?

Ele me bateu... num sei o que que ele falou, eu num lembro isso, que isso ai é um

bloqueio na minha mente. Eu lembro de tudo, coisas que aconteceu quando eu era

pequena eu lembro, mas desse detalhe, eu num lembro. Eu não lembro desse

detalhe. Mas ele deu um chute que eu cai da cama. Duas vezes. Uma vez, eu vim...

um monte de mulher já... eu vim aqui na Zeze... e nós estava no único lugar que eu

vinha. Ai nós tava conversando e tinha uma conhecida da Zeze que ela tinha sido

mulher e casou. Passou a ser uma mulher direita. Ela vinha na Zeze aqui. E ela

conversando, conversando, ai falou de uma parte de sexo, né, que eu fiquei curiosa,

né, pra fazer “anaus”, que até hoje eu nem sei o nome. Ai ela falou que ela era boa

em tudo. E eu criança, porque eu era criança de tudo. Eu cheguei em casa... tomei

banho e vou dormir. Ai eu peço pra ele fazer isso. Na hora que eu falei pra ele, ele

“Leo, isso não é conversa”. Ai falei “ah, mas eu queria fazer”. Ele me deu um chute,

sempre me dava chute, que eu cai da cama. Ai ficou esse trauma na minha cabeça.

Então, tudo bem. Que até hoje, ele morreu sem querer, porque depois eu me

separei dele, que eu voltei, ele queria. Ai eu falei pra ele “aqui você não faz. Lembra

que eu falava procê? Lembra que você me chutou da cama quando eu pedi pra faze

isso?” Por que eu pedi? Porque eu não entendia nada. Eu achava que... E eu não

falei pra ele que tinha sido que eu tinha escutado. Olha a minha cabeça. Eu falei que

eu vi o cachorro e me deu vontade. Isso é ideia, mas por que? Porque se eu falasse

que aqui na Zeze, nunca mais ia deixar eu vim. Mas não, eu falei isso. Isso ficou um

trauma na minha cabeça. Agora é da outra vez, eu não me lembro o que foi, é um

broqueio que eu não lembro. Então duas vezes ele me chutou da cama e eu cai. E

nessa dai eu falei pra ele, falei: “quando vc quis, quando eu quis vc não quis. Agora

Page 139: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

vc quer eu não quero”. Porque depois passou ser liberal né? Todo mundo fazendo.

Que todo mundo fazia. Falei “não”, morreu na vontade.

Então, na primeira noite, que vocês tiveram juntos a relação sexual, ele já te

deu um chute.

Isso.

Mas, foi a única vez que ele te violentou, te maltratou.

Não, isso foi sempre, porque ali dessa vez em diante começou a fazer normal,

porque ai quando eu olhei que eu vi o horário, não dava pra não descer, que meu

pai já tava me esperando. Como eu sabia o pai que eu tinha, não fui. Ai eu fiquei.

“Agora você não vai mais embora, cê vai fica aqui”. Então eu fiquei, né? Então

quando ele... a minha irmã foi na minha casa, porque se eu casasse, se não casasse,

pra ele, ele tinha lavado as mãos. Tanto é que meu pai ficou sem falar comigo, até

quando eu tive meu ultimo, o meu filho, o segundo filho. Ele veio falar no noivado

da minha irmã. Que quando eu via ele... nem ia lá. Ai quando foi, perto... já tinha

dois filhos. (inaudível) Cê vê, eu falei cum meu pai, dois, dois meses mais ou menos

que eu tinha voltado a falar com meu pai, meu pai morreu, entendeu? Deu no meu

irmão, na hora que ele bateu no meu irmão, ele caiu, meu irmão caiu com tudo.

Você poderia contar para mim como foi a tua vida com teu marido desde o

começo? Como se dava as violências? Por que que dava?

Ai era assim, meu marido ele era como se ele... tivesse dois pensamentos, não sei.

Ele às vezes chegava do serviço e vinha, ai eu tinha que fazer tudo correndo, pra

mim não deixar ele brigar . Então, meus filhos pequenos, eles tinham que ficar que

nem uns robozinhos tudo sentado no sofá. Sem nada, porque ele não gostava de

bagunça, pedaço de pau, papel... Entao as crianças escrevia pra fazer a lição, tudo

direitinho e guardava tudo, porque não poderia ter nada bagunçado, né? Se ele

chegasse... é... do serviço, ele ia nos móvel, se tivesse pó ele me batia, assim normal,

me batia. “Por que eu não limpei e não tirei os pó das coisa”. Que eu já não

trabalhava pra fica dentro de casa pra tira... deixa tudo certinho. Entao eu vivia

assim atordoada. Quando levantava... lava roupa, faze tudo certinho, deixá os

menino brinca, o leva pra escola... Quando dava mais ou menos umas cinco hora...

Page 140: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

varre tudo. Se fosse uma irmã minha, com filho, qualquer coisa, tinha que todo

mundo... Ai ele chegava. Quando ele entrava ai não era pra tê ninguém... amiga

minha mesmo não podeia tê em casa. Ai ele entrava, olhava. Ai ele ia embaixo da

cama, pra ver se eu varri embaixo da cama. (inaudível) ai ele ia procurar fazer as

coisa dele, assim a casa, arruma, .... ele era tudo detalhista. Ele não era pedreiro. Ai

ele arrumava... se alguma coisa tive fora do lugar, ele vinha reclamar. Eu não era

pra fala sim nem não. Eu tinha que fica calada. Se eu reclamasse, ai eu apanhava.

Como as vezes eu ficava com tanto medo que eu só chorava, ficava quieta só

ouvindo ele fala. “Amanha se eu chegar e tiver no mesmo lugar, vc vai vê. Ai eu já

sabia, já acordava e fazia tudo isso, que nem um robô dentro de casa. Eu não sentia

minha casa, eu me sentia... como se eu fosse uma empregada. Ai quando chegava de

noite, cinco, seis hora, ele ia pra escola, que ele voltou... quando ele vinha da

escola... nóis já era pra tá dormindo. Se passasse dois três dias sem ele usa de

violência em casa, chegava no fim de semana, ele ficava... como ele não trabalhava

no sábado, ele ficava o dia inteiro... (inaudível). O calcanhar dele na minha perna,

eu acordava atordoada... levanta pra fazê todo o serviço, mesmo que não tivesse

nada pra fazê, eu tinha que levanta cedo, porque ele achava que levantá cedo vai dá

tempo de fazê tudo. Por isso, que hoje em dia eu acordo onze hora. Tudo aquilo que

eu não fiz com ele, agora eu faço. Agora eu acordo onze hora. Onze hora, onze e

meia, a hora que me dé sono, eu fica deitada, porque não tem ninguém pra fica me

acordando. E eu falo, deixa a porta do meu quarto, e eu falo: “se você acorda os

neto, se vira, não me acorda”. Todo mundo já sabe, ninguém me acorda. Até no

telefone de onze hora por diante pode alguém me liga. Se me liga antes eu não

atendo, que eu não vou atende. Porque isso ai eu já vivi no passado. Agora eu não

quero vive, eu me sinto como se eu fosse um passarinho, que tivesse sair da gaiola.

Então, não podia ficar no portao... todo mundo assim um dia assim de calor, todo

mundo na rua conversando, eu tinha que ficá dentro de casa vendo televisão, e os

meus filho também. Meus filho... brinca na rua, de bicicreta, de nada. A minha irma

mora em Guarulhos, queria leva meus filho pra passea, pq todo mundo ia pra lá nas

feria, meu filho não ia. Meus filhos ia assim, se eu fosse mais ele e voltasse. Mas fica

que nem os outros primo, os outro sobrinho ficava na minha irmã, não ficava, na

casa de ninguém. A única que de vez em quando, ficava na Zezé. Pq ca Zeze ele

tinha um respeito por ela. Ai aqui... Podia ir dormir, mas outro lugar não, lugar

Page 141: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

nenhum. Então tanto era eu como meus filhos. Que vivia tipo prisionado, então

tinha tudo. Na minha rua, a casa mais bonitinha que tinha era a minha, porque ele

caprichava. Fez um muro na frente da minha casa de tijolo de coração. Ele fazia os

coração. Todo dia ele fazia uns coração quando chegava do serviço. Ele era um bom

numa parte. Se ele não tivesse essa dupla personalidade, ele era um ótimo marido,

cê entendeu? Mas quando ele virava assim, tinha época dele me fazia conpra,

quando meus menino ficou grande, ficou melhor, quando ele era pequeno era

assim, ai eu usava, os menino tomava cremogema. Eu ia no mercado e comprava

leite ninho da grande e cremogema e ia fazer. Enquanto ele não resolvesse, eu dá

pra ele...

Dá pra ele o que?

a relação. As vezes eu falava que não queria. Era como se meu corpo tivesse tudo

doendo, como se eu tivesse levado uma surra de cacete, no corpo porque doía, todo

meu corpo doía, eu não conseguia, ele penetrava em mim, parecia que o mundo ia

se acabar. Eu sentiador no corpo todinho... então, eu não sentia prazer. Ele queria,

porque queria. Tinha vezes que eu falava, “se você quer uma carne, toma, mulher

você não vai ter”. Ai ele ficava, ai eu dura assim, eu ficava paralisada em cima da

cama, ai ele fazia o jeito dele. Quando já tava dias, né, ai tinha uma vizinha minha

que mora na minha rua até hoje...ela levava o leite ninho e cremogema... e eu já to

enjoada de comer o também cremogema também, ne? Que eu dava pros menino. Aí

ela falava “ta bom” e ela ía na casa dela. Até hoje eu falo pra ela. E ele morreu de

mal dela. A irmão dele que ainda é viva, ela chegava lá em casa, se eu falava pra

ela... porque ele ganhava bem. Não é uma coisa que ele não tinha, porque se ele não

tivesse eu chorava junto com ele. “não acredito que o Gibi faz isso”. Eu falei “é seu

irmão”. Ela tá bom, deixa ele ver. Eu fazia pra mim, pra ela tomava, eu fiz de

esconder. Eu escondia pra ele não ver, que ela me dava. Então essa amiga minha

até hoje eu falo pra ela, você é uma amiga que eu não vivo na tua casa, ela vive na

minha... E eu chorava comendo aquela comida, não pelo fato que meu marido tá

trabalhando, hoje ele não tem um tostão pra comprar. Vc chora junto com seu

marido e seus filhos. Não você tem o dinheiro, tem condições, era o único da minha

família, o marido da Zezé, ele ganhava mais que o marido da Zezé. Então, as vezes

eu... quanto... vou ter que dar pra ele. Ai de noite parecia uma coisa, de manha cedo

Page 142: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

já levantava cantando. Ai se naquele período, acontecesse de eu num quere, porque

eu falava assim, meu deus isso não é vida.

Ai se naquele período, acontecesse de eu num quere, pq eu falava assim,

meu deus isso não é vida, isso eu num quero. Ai ele fazia a mesma coisa. Ai uma

vez, já tava muito tempo nessa vida, já não aguentava mais. “A pq vc não procura

um médico, vai no medico, mulher. (inaudível) Ai eu fui no médico. Eu era tão

boba, que eu cheguei lá e falei pro médico, tinha convenio, o medico pegou e falou..

eu com vergonha de falar. Não foi uma medica, foi um medico. Ai pronto, ai que...

Dona Leonilda, o que está se passando com a senhora? Ai eu falei, eu to muito fria.

Ai o medico falou assim: “... relaxar. Não sra Leonilda, a senhora compra um

cobertor Paraiba, que até hoje...” E eu adoro o cobertor paraiba. Não doutor, não é

esse frio. É um outro frio. Ai ele viu que eu fiquei vermelha ali. Ai ele foi explicando

que não existe mulher fria, existe homem incapacitado de fazer a mulher sentir

alguma coisa. E foi explicando tudinho. Ai eu vim embora. Cheguei em casa ele

perguntou, “Ce foi no médico?” fui, “o que que o médico falou?” que não existe

mulher fria, existe o homem incapacitado de fazer a mulher sentir alguma coisa.

Ah! O pau comeu. Eu apanhei pq era conversa de historia de medico.

E como é que ele te batia, Leo?

Eu apanhava de cinta, ele tirava a cinta, me batia. Quando era assim de eu falar

alguma coisa, ele metia a mão. Uma vez ele me deu uma surra de cinta, que eu

fiquei com as perna toda marcada. O único lugar no rosto que era difícil dele

atingir, porque eu sempre colocava a mão, quando eu via que ele vinha pra cima de

mim, eu botava a mão. E dessa vez que o óculos entrou aqui, foi porque ele me

pegou distraída, eu sentada no sofá, ai como eu tava com as menina, eu senti força

e respondi pra ele, entendeu? Não tinha de falar, se eu gostasse ou não gostasse era

ficar calada, se eu respondesse, ai ele me batia, entendeu? Num é que...quando vc

foi embora, a zeze, nós ligamos pra minha irma, minha irma falou pra Zezé. A Zezé

não tava acreditando, cê entendeu? Ai eu peguei e falei, dessa vez que bateu e... saiu

sangue, ai não ficou roxo. Porque como cortou o sangue saiu. Então não ficou roxo,

ficou só o lugar do corte. E ficou roxo, que quebrou, que ele dava capoeirada, que

ele lutava capoeira... igual apanhei quando tava grávida. Foi o alho, o alho me dava

Page 143: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

mais enjoou, pra fazer comida pra ele. As vezes ele tava tão bonzinho, que ele ia

comprar comida, ele me levava na minha vó, que eu falava “Geraldo, to com fome,

leva lá”. Minha vó fazia a costela, eu comia em casa, mais no hospital do que em

casa quando eu engravidei. E as vezes, quando eu ganhei os gêmeos, ai ele não

queria mais que eu engravidasse, então ele colocava sonda. Ele colocou na segunda

gravidez, porque a primeira gravidez ele queria, queria de todo jeito, eu perdi o

neném. Quando foi na segunda que eu engravidei logo em seguida, aí onde ele

busca a sonda.

Você pode explicar como é essa sonda?

A sonda é a borrachinha que tem no braço, pra tirar o sangue, então é uma

borrachinha assim. Só que na ponta da borrachinha, é um tipo de um ferrinho,

nesse tem a ponta bem fininha, que é colocada dentro do útero que ai estora aquela

capinha onde ta formando o neném, aquela borrachinha tem que furar, pq se

tentou tem que ir até o fim, porque pode furar os olhos da criança, pode furar num

sei oque da criança, uma coisa contra a criança ou a própria mãe morrer pq ela da

hemorragia interna, se a hemorragia o sangue desce, não tem probrema, agora se o

sangue não descer, a hemorragia pode (inaudível) por causa da sonda.

Como você se sentia fazendo esse aborto?

Olha eu não queria. Mas ele me obrigava, quando eu percebia a mulher já estava

dentro da minha casa. Ai nesse dia que ele colocou essa mulher, era uma conhecida

dele, ai eu falei pra ela, chama Laura, falei “Laura, eu to desconfiada que eu to, não

desce pra mim, é então. (inaudível) Ai eu falei mas como que coloca? É só colocar,

mas isso dai que eu sei, minha sempre fala, porque minha mae nunca fez aborto. “O

que que ela tá falando ai? Tem que fazer já falei que filho agora não dá, não tem

condições de ter filho agora, tem que colocar”, ai vamo colocar. Na hora que ela

pegou a sonda, ela mandou eu ajoelhar, eu fiquei lá em cima da cama, eu tinha

abaixava aqui (parte confusa) abaixa aqui... dá chance dela colocar, porque

ajoelhada, ela vai, disse que já vai no lugar certinho. Coloca, mexe primeiro com o

dedo, ai depois já leva a sonda certinho e encaixa. Só que quando ela começou a

colocar em mim, o sangue começou a descer, começou já a descer e eu senti dor, ai

eu não senti aquela dô, machucando, eu senti uma dor como se eu tivesse assim

Page 144: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

ficando tonta, sabe? Ai ele, o sangue já começando a descer. Ai eu falava Laura

deixa, já saindo sangue, ai ela “não, tem que ficar, desce junto quando a placenta,

né”. Ai ela ficava tentando colocar, ela não acertava o lugar certo, ela devia ta

mexendo em outro lugar, né, e ela não acertava. Nisso, era uma cinco hora, uma

cinco hora da tarde quando ele chegou do serviço. Já era quase oito hora, né, e não

ficava, eu já tava começando a sentir. Ai teve uma hora que eu parei, que ela

mandou.. só sei que entrou, conseguiu. Ai ficou. Ai que que aconteceu? (inaudível)

eu tinha medo daquela borracha entra, minha cabeça era tão abestalhada, que eu

achava que ela ia entra e ia sumi dentro de mim. Ai eu peguei a sonda, fiquei a noite

toda segurando ela debaixo da minha perna, ai segurava pra ela não entra. Ai

quando chego umas hora da madrugada, eu comecei a senti cólica, aquela cólica,

cólica, doendo, aquela dor de barriga, eu falava pra ele que era dor de barriga. Eu

achava que eu ia fazer coco. Eu só... (inaudível) ai a borracha veio junto, cê

entendeu?

Que idade mais ou menos na época?

Eu tinha, deixa eu ver... quando eu engravidei dela, então eu devia ter 15 anos...

Foi o único aborto que ele te obrigou a fazer?

Ai depois, ai eu tive e fiquei gravida. Ai ele quis. Foi a minha filha mais , ai veio a

minha filha mais velha. Foi uma alegria. Só que ai surgiu uma historia que eu tinha

falado, eu não lembro se eu falei ou não, entendeu. Devo ter falado na hora da

raiva. Eu falava que não queria que meu neném nascesse preto. Diz ele que ficou

super... era pra nascer branco, se nascesse (confuso). Ai depois que eu fiquei

sabendo, “mas eu nunca falei isso”, só que eu não lembro se eu falei ou não. Mas ai

eu fiquei com medo. Meu deus do céu, se meu filho, minha filha nascer, qq eu vou

fazer. Por que se ele puxar pra mim, se ele puxar pra minha família (barulho),

porque nós somos mestiços de italiano. Eu falei “se nascer, o que eu faço?”. Mas ai

eu começa a pedir, meu deus! Ai quando ele me batia eu ficava chorando. Ai ele

falava isso “se nascesse branco, o filho era dele”. Então ele vai matar, pq e se

nascer. A minha prima Leo mas que doidisse esse menino nascer branco.

(inaudível) Minha filha nasceu, sabe que filho de preto nasce branco, mas fica

preto, né? Então ela era bem moreninha, assim clarinha, ela não era branca, ela era

Page 145: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

avermelhada, bem vermelhinha, só que as unhas dela era bem roxa. Ai tinha a

esperança de sair preto. Só que ai foi crescendo e nenhum filho meu é branco,

todos meu filho é moreninho, ai quando nasceu, nasceu moreninha, nasceu

clarinha, mas todo mundo ia saber que ela ia ficar morena. E ela é morena, morena,

tá vendo “Deus é pai, não é padrasto”, sempre falava isso. Ai quando eu engravidei,

logo em seguida, ele não esperava passar dieta, sabe, já queria. Então, quando a

minha filha fez um ano, o meu menino nasceu. O meu filho nasceu no dia 16 de

outubro, e meu filho fez um ano e nasceu.. não... minha filha nasceu dia 1º de

outubro, quando foi no outro ano dia 16 de outubro, que minha filha fez um ano,

nasceu meu filho. Minha filha é do dia 1 e meu filho do dia 16, entendeu? Ai ele me

deu remédio para tomar... (inaudível) ele me dava remédio (confuso) ele trazia a

garrafa dagua, ele trazia tudo que era remédio das pessoas que ele conhecia, sabe?

Como ele ia no centro, ele trazia aqueles negócios (inaudível) e eu tinha que beber.

Se eu não bebesse, eu apanhava. Eu tinha que bebe... nossa mae, quando

(inaudível) ai a criança nasceu, só que ele nasceu fraquinho. Na hora de ganhar

neném, que era pra sentir dor, eu comecei a sentir dor antes. ai ele me levava pro

hospital pra ganhar neném. Quando chega no hospital, ai na hora da criança nascer

não tinha dor, ai vamos dar remédio. (confuso) ai o nenem nasce, ai só que ele

nasceu com muita anemia, muito fraquinho. Então é esse meu filho que eu puxo

saco dele, sempre paparico, porque ele é fraquinho, tomou muita injeção, fez muito

exame de sangue, então comecei a paparicar, ai quando eu brigava vai pra casa da

tia... deixa que eu me viro com ele. E a gente brigava, ia ele tava com o amigo dele, e

foi pra dar... (inaudível) nem eu podia levar amigas, que ele não gostava.

(inaudível) ele nunca gostou de muita gente, amigos dentro de casa. Ele fala que

amigo só atrapalha, atrapalha. Não deixa a mulher fazer nada. Ele sempre teve essa

filosofia de vida. Por isso que eu falo, ele era como se fosse uma pessoa, que não

batesse bem da cabeça, porque na mema hora que ele fazia... o sangue meu descia,

era da boca, eu rezava alto, chamando... uma vez eu quebrei...(inaudível) com um

murro que ele deu, perdi a voz. Então, ai depois ele vinha, era como se ele não

tivesse me batido. E no mesmo tempo ele fazia isso. Ai eu pensava, “meu deus, ele é

louco”, como uma pessoa gosta de uma pessoa, e faz isso. Quantas vezes eu passava

a mao nos meus filhos e ia embora, ele ia atrás de mim fazendo alvoraço, que me

amava e ele... sabe o que eu cobrava dele? Ele cobrava macarrão grosso, e eu não

Page 146: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

gostava daquele macarrão, só que eu não podia falar pra ele que eu não gostava,

porque ele não me deixava pra fazer compra, ele comprava tudo que ele achava

que precisava dentro de casa. Só que eu não ia no mercado, então ele não

comprava assim, danone, essas coisinhas supérflua ele não comprava, era tudo

coisas que era necessária, arroz, feijão, café, açúcar, sabão, tudo. A gente já sabia de

cor que ele trazia pra casa. Então, ele comprava esse macarrão, e eu as vezes queria

comer do outro macarrão, sem ser aquele grosso, que fosse fininho. Fosse

(inaudível) aquele grosso que tem o buraco no meio, é tão ruim aquilo ali. Eu falava

pra ele, Geraldo, não compra macarrão. Tudo aquilo que ele trouxesse.

Ai um dia ele pegou que nem eu falei pra XX e forrou a cama todinho.

(inaudível) comendo lingüiça, eu desci na casa da minha irmã, a minha irma tava

com a mesa... que geralmente ia os amigos dela, tudo ia ceia com ela. Ai meu

sobrinho veio com uns brinquedo que tinha ganhado da minha irma separado do

meu cunhado, ai mostrou pro meu filho que chama Eduardo, e os olhos dele

encheu de lagrima, quando ele pegou um carrinho de controle remoto e meus filho

nada. Uma semana antes, ele tinha mostrado até pra minha irmã, forrado a cama.

Aquilo me corto o coração. (inaudível) Eu prometo pra vocês que um dia vocês vão

ter um brinquedo bom e nós vamo comer carne, não vamo comer linguiça, um dia a

gente foi no bar... (inaudível) [até 39:47 é muito confuso o que ela fala]. Só que era

assim, eu costurava, mas em máquina caseira, não industrial, nunca tinha pegado

em uma máquina industrial... a encarregava veio e mandou... Quando eu olhei vi

aquela maquina todo mundo costurando, aquele barulho todo ai eu olhava na

maquina ai a encarregada veio trouxe as pecas que eu ia fazer, e a quantidade e o

tempo que eu ia levar ai eu vi passando a hora passando a hora e eu não podia

dizer que eu não sabia ligar a maquina, como que a mulher ia me empregar ne.?

(inaudível) quando eu abaixei, meu cotovelo bateu no botão no negocinho e

a maquina ligou. Ai eu peguei a peca né? Tava pedindo pro santo né? Porque nessas

hora (inaudível) todas as pecas. Quando encarregada chegou eu estava terminando

a ultima peca. Ai ela falou.. fui, viu, levou... nervosa que nem eu tava, eu achei vai

entortar tudo. Não saiu perfeito. Quatro anos e meio, a quando eu cheguei em casa

que eu falei pra ele assim, que eu tinha que fazer porque la ganhava extra porque

trabalhava com a c&a. E quando chegava na época de fim de ano, tinha de você

fazer extra pra ganhar premio em tudo né? Ai eu cheguei e falei pra ele, eu vô te de

Page 147: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

fala, arrumei um serviço e vou trabalhar numa firma. Ele arregalou os olhos e

falou: você trabalhar em firma? Não eu não tenho mulher pra trabalhar fora. Falei:

Geraldo, eu vou trabalhar fora, vou trabalhar fora sim. Ai ele falou: então você

escolhe ou a casa ou o serviço. Mas foi deus mesmo falei não, não escolho nada.

Vou trabalhar e vou ficar em casa. Porque eu não vou fazer coisa errada. Eu vou

trabalhar. Comecei a trabalhar, na segunda feira arrumei tudinho, tudo certinho,

marmita e fui trabalhar. Fiquei quatro anos e quando ele falava pra mim assim, vou

te levar. As vezes ele me levava do Jabaquara ate o ponto.

Teve uma vez, que ele veio pra me bater, eu cheguei do serviço, quando eu

chegasse nos conversa, ai nisso, minha inquilina subiu, ninguém subia, ai ele

chegou. Ai ele falou, senta aqui numa cadeira, ai eu tava no sofá e falei porque

mandou eu sentar aqui? (inaudível) mas é aqui que eu quero que você senta. Ai eu

sentei na cadeira, ai eu falei porque? Você vai me matar agora? Você levou as

criança pra fora por que vai me matar? Eu falei, se você vai me matar me mata

agora. Na hora que eu falei isso, eu tive uma crise, eu dei um grito, um grito tão

grande que eu comecei a gritar me mata me mata e gritando, gritando, ai minha

inquilina subiu, chegou na escada, no pé da escada ela e o marido dela, mas não

podia fazer nada ai ele ficou olhando, olhando pra mim, ai eu falei me mata, só que

se você me matar você caca um buraco entra dentro porque todo mundo já ta

sabendo, toda a minha família. Eu avisei minha família, então se você quiser me

matar, aproveita e mata agora, ai foi onde começou a me dar mais forca a trabalhar.

Ai quando foi no próximo ano que teve eu fui no Mappin com meus filhos, agora eu

vou pagar eu não compro nada pra mim, mas pra vocês podem ter, ai comprei

boneca, carrinho por meu filho, que meu filho até um tempo desses tinham

carrinho que ele guardou. Ele carrinho é pro meu filho, que eu não tive que a

senhora me deu. Carrinho, comprei boneca, carrinho que anda. Ai na hora que eles

tavam dormindo coloquei tudo na beira da cama e acordei eles. (inaudível) ele

agradeceu e meus filhos tão comigo ate hoje, se viu que meu filho arrumou uma

mulher esses dias e eu falei pra ele que eu não gostava da mulher ai ele me

enfrentou ai eu falei gente eu sinto tristeza não é por ele arrumar uma mulher,

porque ele já tem três filhos, porque ele ta revoltado comigo, ele tava agindo

agressivo comigo quando eu falava que não gostava da mulher, que não merecia

ela. Ele me enfrentava, falava que amava. Ai uma vez falei com a minha filha,

Page 148: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Fabiana o Eduardo morreu pra mim, eu não tenho, o filho que eu tinha antes, ela

me roubou, ela me roubou o meu filho, ela podia ter feito tudo, menos isso, que

meu filho era o único assim, se eu falava pra ele Eduardo isso aqui é um pau, nem

que fosse um cadeira. Ele passou a discordar, a discutir comigo. Eu tava tão

agressiva, que ele entrava boa noite mae, e eu boa noite. O Eduardo (inaudível)

Então, a cabeça dele tava fervendo, porque eu falava ela descia, discutia, Cof cof, ele

descia nervoso ai ficava aquele né?

Ai eu falei: Jesus! Eu não posso isso, sou uma mulher sabia, Senhor eu vou

na sua casa, para orar, agradecer, e agora eu to vendo meu filho se virando contra

mim, meu filho que eu pulei na frente do meu marido com uma faca, meu marido

pegou uma faca pra ir em cima dele, ai eu pulei na frente sabe? Agora, deixe meu

filho por causa de uma mulher que amou, que não sabe da onde essa mulher saiu ta

contra mim? Senhor vou deixar nas suas mãos, faz o que tu achar melhor, não o

que eu quero, mas o que tu achar melhor. Será que eu to preparada pra ganhar isso

de Deus? Não, precisa ver se eu também mereço, então senhor, fica nas tuas mãos,

tu fazer a tua vontade e não a minha, olha irma meu filho ta uma benção. Quando

ele chega que ele me vê assim: Mãe, vai no medico, eu não quero perder você mãe,

eu não quero passar o natal sem você mãe. Esses dias ele falando pra mim: vamos

no medico, eu não quero, não posso ficar sem a senhora, então esse filho que eu

tava perdendo, não, tem que ter sabedoria, a gente não pode usar só com a emoção,

tem que ter sabedoria, e é isso por que, por que? Eu deixava ele fazer tudo, eu

deixei tudo que eu mais gostava na vida, dançar, quando meu pai morreu pra você

vir aqui, não ter sabedoria pra agir na minha casa, se eu não agir na minha casa que

eu vou poder fazer, como vou ajudar uma outra pessoa? Eu vou me ajudar, ora

conseguir ajudar outras pessoas, é uma coisa que e fico feliz e peço a deus, nesse

meio tempo, já tem onze anos que meu marido morreu, eu não sinto saudade dele.

Eu queria ser que nem a Zezé, sentar oh que saudade, mas tem uma saudade

porque tem coisa boa, eu tive mais coisas ruins do que boa, mas as boa superou a

ruim. Agora porque e meus filho, meus filho não usa droga, não rouba, não fica por

ai zuando, são uma benção, todos trabalha, um é evangélico e a esposa dele, o

outro.. é do serviço pra casa, zuava na noite, lotação, fica junto com os motorista,

arranjava uma namorada (inaudível) foi por isso que a esposa separou dele, ai

arrumou essa agora, que nem minha mãe fala tudo tem que ter direção de deus, a

Page 149: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

gente mesmo não resolve, porque quando eu tava agindo com o meu instinto de

mãe, não, tem que ter, eu quero meu filho bem, feliz, não que eu quero meu filho

pra mim, não e pra mim, ta com a esposa, ele foi muito mulherengo que nem o pai

dele, ele não é agressivo que nem o pai dele, ele era mulherengo, então a mulher

dele se cansou, por que a minha nora, ele sempre.. mas era uma mulher dona de

casa, só que meu filho era mulherengo e deixava a desejar porque nenhuma

agüenta, ele viaja, ele tava trabalhando tinha sempre ele ligava, onde voce ta? No

norte, ele ia pro norte, não avisava ninguém, então a mulher uma hora se cansa,

que que ela tem? Tem três meninas. Foi embora, ai foi quando ele arrumou essa daí

entendeu? Ai foi quando deu o choque.

“Aí quando foi no dia deu rachar a cabeça dele, ___ tava brigando e eu tinha

comprado uma roupa, aí eu comprei uma roupa, tinha pintado o olho porque eu

sempre brigava, e ele falava pra mim que não queria que eu fizesse a unha. Aí eu

falei pra ele, falei olha: eu só paro de pintar a unha (e minhas unhas sempre foram

grandonas, e eu pintava de vermelho, nunca gostei de coisas claras), aí quando eu

arrumava o cabelo, fazia escova tudo, ele me via arrumada, aí ele gostava, e eu ia no

shopping mais as meninas. Que eu já tenho as minhas perna, já to criscida. Aí no

que ele me viu arrumada, eu me arrumei, fiquei arrumada, fiquei bonita. “Nossa,

como você ta bonita!”. Aí ele escutou, e perguntou onde eu ia toda bonita, e vô com

os meus filhos, arrumar outro eu não vou porque eu tô com meus filhos, e se eu

arrumasse era bom mesmo.

Na hora que eu falei isso ele veio em cima de mim, me deu um tapa e eu

rodei, sabe? Eu rodei, balancei, e falei pra ele me deu um tapa agora, passei a mão

numa faca, que ele veio em cima de mim, os meus meninos grudou, os meninos

grudaram, todos eles, e ele caiu, quando ele caiu ele conseguiu, e eu já tinha posto a

faca na pia, entendeu? Aí eu peguei e falei: hoje ele não me escapa, parecia que eu

tava “endemoniada”, minha bochecha fervia. Aí ele levantou, ele tava no sofá,

quando ele levantou, quando ele levantou os meninos não conseguiu, porque os

meninos achou que tinha acalmado, aí o outro saiu e o meu filho não tava em casa,

o mais velho. Aí, venho somente a minha filha Fabiana e o Fábio, eles veio

junto_______ quando ela foi chegando perto ele já tinha vindo em cima de mim pra

me dá outro tapa, peguei o banco, quando eu peguei o banco aí os menino começou

a puxar ele, puxar ele, puxar ele, e começou a pegar nas coisas, onde a geladeira

Page 150: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

saiu do lugar, a tampa do fogão ela abaixou com as panelas, quando ela abaixou as

panelas tudo caiu no chão, que a tampa abaixou. Aí a mesa, sabe?, abaixou, aí eu

tinha um banquinho que eu gostava de costurar, banquinho de madeira, aí ele veio

de novo, os meninos não conseguiu, aí ele veio de novo. Aí quando ele veio de novo,

olha, e não pensei duas vezes e peguei o banco, quando eu peguei o banco assim,

que ele veio pra vir em cima de mim, quando eu fiz assim com o banco, o banco

quebrou o vidro da janela bem grande na cozinha, espatifou e fez aquela barulhada,

aí quando voltou só dei na cabeça dele, que quando deu aqui o sangue espirrou,

sabe? Aí ele balançou, os meninos, todo mundo se assustou, porque o

sangue.______________. Ele pôs a mão na cabeça, por um momento ele deve ter tido

um branco mesmo, ele pôs a mão na cabeça, ele balançou assim. Ele gostava de

uma camisa branca e uma calça vermelha, geralmente quando ele ía ______ na época

era calça boca de sino.

Ele balançou, e eu pensei “Num matei, porque senão ele caia logo no chão” e ele

saiu andando pra fora, e onde ele passava a mão, ficava a mão de sangue na parede,

aí ele sumiu. Ele sempre falava que se eu machucasse ele ou qualquer coisa ele me

matava, então ele vai voltar pra me matar, vou esperar ele. A minha filha tava

pelada porque ela brigou a briga toda pelada, sempre na hora de briga ela tava

tomando banho, aí ela tava pelada e saiu no alvoroço, no que ela tava pelada,

correu pôs uma roupa, e aí ficamos lá sentada esperando ele chegar, e se ele fizer

medo? Eu morro mais também deixo ele marcado. Sei que quando foi de manhã,

sete horas da manhã assim, eu ouvi um barulho, ele tava com um curativo na cara,

ele morreu e não me perguntou o que foi aquilo. Ele não perguntou se fui eu que

quebrei se não quebrei, ele não perguntou. Aí ele chegou quietinho na cozinha,

ainda tava tudo revirado, comida no chão, as panelas, vaso que tava em cima da

mesa quebrado, tava tudo do mesmo jeito, a gente tava sentado no sofá esperando

as atitudes dele, ele não perguntou nada, nem pros filhos, nem pra ninguém.

Depois, no passar do dia a gente limpou tudo, arrumou tudo aí de noite pra

dormir? Ele não foi dormir, e o que foi que eu fiz? Peguei uma tesoura coloquei em

baixo do travesseiro, falei se ele fizer qualquer coisa, o inimigo faz isso, porque ali

onde você ta, naquela tribulação naquela bagunça toda só falta fazer coisa ruim, só

pensa em fazer o pior.

Page 151: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

A vida voltou ao normal, ele nunca perguntou nada, aí conforme isso eu fui

tendo mais força, sabe? Não é tudo isso que ele vai fazer, comecei a ter mais voz

ativa, porque eu sempre achei que o homem tem que ter o pulso mais firme em

casa, porque os filhos não obedece a mãe, mas o pai é bom, pra ele por respeito.

Então nunca tirei o direito dele corrigir meus filhos, se querem ir à algum lugar “vá

pedir pro seu pai”, às vezes eu não deixava e o pai deixava, então ele era um tipo de

pessoa que nem ele, porque eu tenho neto, neta pra casar. Pensou pega um homem

que nem esse de marido? Uma pessoa que é louca. Um tipo de uma loucura que

uma pessoa tem.

Você procurou ajuda alguma vez durante todo tempo?

Não porque eu nunca tive, nunca passou isso pela minha cabeça. Porque muita

gente falava depois que eu comecei a ser mulher, porque quando eu era criança eu

tinha medo, medo porque ele ameaçava meus irmãos, e eu achava que não era

justo meus irmãos pagar por uns problemas que era meu, então eu sempre deixei

meus irmãos fora, e minhas irmã, eu tenho uma irmã que ela tem o sangue na veia

mesmo, então eu nunca quis envolver ela nisso daí eu sempre quis a paz da minha

família, de ter uma festinha e ta todo mundo junto, um almoço de natal, um

aniversário e ta todo mundo junto ... eu nunca quis os irmãos afastados, porque eu

não tive nem pai e nem mãe. Então eu queria estar sempre junto com a minha

família. Então eu não envolvia eles por isso, eu achava que eu mesmo resolvia, aí

depois que eu comecei a ter contato com Deus, a conversar com Deus, eu achei que

ele ia me ajudar, se ele não me ajudasse ninguém mais podia me ajudar, aí eu

comecei a ter conversa com Deus. Às vezes eu falo pros meus filho, que é casado,

que numa separação tem que ter uma conversa, sabe? Não pode ser assim, tudo no

alto do nervoso, porque no alto do nervoso você não resolve nada. Eu podia ter

matado seu pai, eu sempre falo pra ele, hoje eu to aqui, sou viúva e tenho uma

pensão. Eu podia não estar aqui, eu podia ta numa grade presa porque a vida que

eu passei era pra acontecer isso. Os meus altos e baixos sempre foi violento, o meu

marido não era uma pessoa de saber conversar. Agora se você fosse conversar com

ele, noooossa, não tinha homem melhor pra conversar. Os irmãos dele não

gostavam de conversar com ele porque ele sabia de tudo, que ele estudou, os

irmãos não estudaram. Então ele achava que como ele estudou, como ele sabia isso,

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como ele sabia aquilo, todo mundo sabia. Eu, se fosse conversar, suponhamos, se

estivesse conversando nós aqui e eu falasse uma palavra errada (ela imita o

marido resmungando), eu não podia falar, eu não podia rir demais, tudo tinha que

ser controlado, a sobrinha dele, quando ele pegou o carro, que a gente andava de

carro, ele de carro preto, morando na rua, ele falava “tanto branco que não tinha

nem onde cair morto’ e ele um preto de carro, então ele falava pra mim _______

Eu falei: Geraldo, quem ta dirigindo é eu ou você? Você que tem que ver, foi

um tapa na minha cara, e eu comecei a ficar caladinha chorar, chorar, chorar, eu

era que nem uma filha pra ele, e eu ainda falava pra ele, porque ele me ensinou a

ver a vida. Aí o meu cabelo, eu penteava, e uma vez eu passei um creme no meu

cabelo que caiu tudo, aí ele reclamava. Eu comecei a tratar fazer hidratação, aí ele

disse que ele que arrumou até meu cabelo, que eu nem o cabelo sabia arrumar,

então ele era uma pessoa assim, que me diminuía, como eu tinha pouca leitura e

ele tinha mais, ele me diminuía na leitura. (ela imita o marido falando) “Que pessoa

que não estuda, não sabe nada! Você tem que ver no tempo que estuda”, então ele

tinha essas teorias dele.

Ele deixava você estudar?

Não! Aí uma vez ele deixou, falei vou voltar a estudar. Por que aí eu vou escrever.

Eu tenho mania de comer letra. Só que ele ia me levar e buscar, e ele ficava parado

no carro até eu sair da escola, e eu na escola, nossa, minha filha, eu pintava,

nooossa sabe uma criança que quando sente sem dó um brinquedo e resolve dá? E

quer bagunçar e destruir tudo ali? Era eu! Na escola eu parecia uma criança de três

anos, entendeu? Todo mundo falava que eu era bagunceira, daí a professora

brincava também. Quando eu saía no portão parecia uma santa, não olhava nem

para os lados, porque ele já tava lá, com os filhos tudo dentro do carro.

Hoje eu dia, que nem eu falo para as minhas netas “Geente, a pior coisa é ser

presa e comer obrigada”, minhas filhas me obrigo a comer em casa. Eu falo “gente

vocês não me obriguem a comer não, porque eu como se eu quiser”, A pior coisa é

comer uma coisa que você não quer comer. Aí esses dias que eu to de castigo com

elas em casa, aí eu falo pra elas “eu vou voltar, vou ficar boa e vou comer o que eu

quero, vocês ficam fazendo essas comidas e eu não quero”, (as filhas falam: e você

tem que comer senão você não melhora). Aí eu falo “mas eu não quero comer!”, é

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horrível comer e ser presa. Então hoje em dia ninguém me prende, sabe?... eu falo

para os meus filhos eu faço o que eu quero, ninguém diga pra mim “não faça isso

não, porque aí eu vou e faço”. Às vezes eu não to querendo fazer, mas se falarem

pra mim “não faz”, aí eu vou e faço! Porque, sabe, isso me deixou um trauma ,

aquele trauma assim que tudo tem que falar, tudo tem que explicar, não posso

fazer isso, Geraldo não quer que faz isso, Geraldo não quer que faça aquilo, não

posso fazer aquilo, não posso ir na casa da minha irmã, porque o Geraldo não quer

que vai, não faça isso porque Geraldo não quer que compre, não faça isso porque

Geraldo não quer, Geraldo quer assim. Então isso foi ficando...sabe? Que hoje em

dia eu não faço não, onde eu fico nervosa, aí a minha filha pra me irritar faz isso,

“não gostei mãe disso, não gostei”, daí eu digo, “coma menos, se você não gostou.”

Eu gostaria agora que você contasse para mim novamente a situação ali

quando ele estava quase morrendo, como é que foi?

Aí quando... Eu tive uma separação, entendeu? Eu tive uma separação fiquei um

ano separada dele, aí nesse tempo que eu fiquei separada, trabalhando, né? Eu

conheci uma pessoa. A minha patroa a dona da firma, quando ela era mais nova, ela

conheceu um rapaz e acabou não casando com ele e casando com outro. E esse

rapaz, que era muito amigo dela, tornou amigo, ele gostou de mim, e ela ficou

incentivando eu namorar com ele, porque na época que eu me separei, eu fui

morar com o meu irmão e ia trabalhar e tinha vez que eu falava ahhh, chefe, não

tinha marido pra chegar cedinho, eu ficava fazendo extra, né? Fazendo o meu pé de

meia mais, porque eu ganhava mais, comissão. Aí às vezes eu dormia lá, e ela falava

“ahh, não vai embora não, vamos pra casa”, e o filho dela era o gerente, a gente ia

embora, eu ia pra casa dela, dormia lá na casa dela e já vinha direto pra firma.

Então eu peguei uma amizade com ela, entendeu? Aí o que que aconteceu, esse que

ia lá se interessou por mim, só que eu não via, assim, um homem na minha frente

pra namorar, porque aí influi esse negócio de macumbeira, e o meu marido foi

numa mulher pra fazer coisa pra mim, pra mim não me interessar por ninguém, e

eu não sentia mais aquilo. Ele tinha casa em Guarujá, tinha casa aqui na... descendo

Interlagos, ele tinha casa ali. Ele era bem de vida. E ela achava que eu podia

namorar com ele, só que eu não via esse homem assim, na minha vista, como um

homem, por que? Porque meu marido tava fazendo os catimbaus dele, ele ia muito

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em centro. E eu não tinha interesse pelo o rapaz lá. Aí quando eu resolvi falar pra

ela que ele pra mim não dá, eu não sinto, eu acho que eu ainda vou voltar pro meu

marido porque a minha filha engravidou, e eu falei que eu acho que eu vou acabar

voltando pra casa então não adianta eu me ______ e ele sabia, tava dando tudo certo.

Aí eu peguei e falei pra ela, aí antes eu saí da firma e fiz acordo na firma eu ia morar

em Guarulhos, eu morava na Catarina, e eu ia pra Guarulhos, que lá tinha a casa dos

meus pais pra mim era melhor e eu ia trabalhar lá, ficava melhor e longe dele,

porque ele ficava me seguindo, meu marido, todo dia de manhã quando eu saía pra

trabalhar ele tava no ponto de ônibus, às vezes eu brigava com ele, eu pulava do

carro, uma vez me machuquei toda, entendeu? Porque eu ficava nervosa e eu abria

a porta do carro e saía uma hora eu podia até morrer. Aí eu falei, então eu vou pra

Guarulhos, aí fiz acordo na firma, e fiquei na casa do meu irmão, só que nesse meio

tempo, ele ficava todo dia indo atrás de mim. Aí quando foi um dia minha filha foi

me buscar com a minha irmã lá em Guarulhos aí minha irmã pegou e falou “Olha, se

você acha que não dá certo, que ele vai ficar atrás de você, dá uma chance pra ele,

quem sabe, você nunca separou dele desse jeito pra ficar tanto tempo, quem sabe

ele mudou agora”. Aí eu comecei pensar e falei “é mesmo, a Cris ta esperando

neném, vai ser uma barra, vai ser uma barra até pra contar pra ele, né?” Aí eu falei

ta bom, aí fui pra firma falei com ele, marquei com ele pra conversar com ele, aí ele

foi e eu fui prevenida, porque de repente ele pode fazer alguma coisa comigo, aí eu

já tinha ido na delegacia, fiz um B.O., que ele me ameaçava, então se acontecer

alguma coisa, então não podia imaginar, aí eu fui. Nós conversamos numa boa, aí

falou pra mim. Falei que a e menina tava grávida. É melhor a gente voltar, vuidar

do nosso netinho. vendo ele falar aquilo me surpreendeu, porque eu tava

esperando outra coisa ele falar. Aí eu falei tudo bem, aí ele fez um churrasco em

casa aí eu fui, aí eu falei pra ele, agora eu sou outra pessoa, tenho outras atitudes.

Falei pra ele que conheci uma pessoa, mas nada do que você pode imaginar

aconteceu, se eu tivesse com cabeça, mas do jeito que você deixou minha cabeça,

não dá pra ter, sair de uma coisa e entrar em outra, porque não tem juízo, né? Aí

ele aceitou, se ele quiser bem, porque eu achei que eu podia sair e não conseguir

viver sem você só que eu sei que eu consigo, qualquer coisa que você fizer comigo

eu largo de novo. Você que sabe porque o ruim é a primeira vez depois, meu filho,

fica mais fácil. Aí ele “não, vamo tratar de cuidar...’, onde a minha filha teve a neta,

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que não é essa é a mais velha que te m dezenove anos. Aí passou uns três meses

numa boa, lá vem ele de novo, aí foi dessa vez que eu rachei a cabeça, entendeu?

Nessa volta eu rachei. Aí depois que eu rachei a cabeça dele, aí ele nunca mais veio,

quando ele vinha e falava umas duas ou três coisas, eu já tava gritando mais do que

ele, eu falei “Agora mudou, meu nego, agora mudou! Não tenho medo de você, não

tenho mais medo de você! Então ó, abaixa sua bola”. Ele falava pro meu filho “tua

mãe ta doida, tua mãe ta doida! Cuida da tua mãe, quando você quer pra cuidar da

tua mãe?” Pegava dinheiro e dava. O filho falou “O pai me deu dinheiro pra cuidar

de você”, aí eu falei “então fala pro seu pai que eu sou mais doida, pode dar mais

dinheiro pra você porque eu to mais doida ainda!”. Aí foi indo, nisso ele já foi

ficando doente, entendeu? O barbeiro começou a dar os sintomas dele, aí eu

comecei a levar no médico, aí o médico falou que o barbeiro tava crescendo, que

ele tava, como é que fala? Que ele põe bichinho, não sei, que tava coisando por isso

que o coração dele tava crescendo, que ele fica por baixo do coração, do lado do

coração fica inchado, aí eu comecei cuidar dele aí ele foi ficando bonzinho aí teve

uma vez que ele tinha ido pro bar, aí de longe eu escutei o barulho do chinelo dele,

sabe, ele vinha, vinha, chegou na garagem ele tava tão bêbado que ele mijou no

pneu do carro, e ele caiu e machucou a cabeça. Aí quando fez aquele barulho correu

eu e meu filho, meu filho chorava que nem criança, sabe? E ele chorava aí eu falei ta

vendo? Como você pode brigar com se marido, você não pode envolver seus filhos,

porque os filhos começa a ter raiva do pai, e não, pai é pai, se fosse um cachorrinho,

mas é pai. Então eu sempre falava “deixa eu com seu pai”, e pegava ele, ele chorava,

aí descia com ele, nós dava banho nele, ele mijava dentro do quarto, o meu quarto,

abria a porta do quarto, uma vez minha irmã chegou na minha casa, que ela tava

pra deixar o marido. Eu falei “Sandra, abre a porta do meu quarto”, ela abriu a

porta do quarto. Ela abriu a porta do quarto, aquele bafo de mijo, de cheiro de

chulé, aquilo tudo no quarto com a porta fechada. Ela disse “Tu dorme aí?”, eu falei

durmo. Eu disse “ Sandra, eu vou fazer o que? Ele é meu marido, eu vou por ele pra

dormir onde? Então deixa ele dormir, eu não durmo eu desmaio’. E ele ainda me

agarrava, e depois quando ele dormia eu tirava o braço dele, ficava na pontinha da

cama, mas deixava ele dormir, porque ele não ia tomar banho, aí depois conforme

ele foi ficando mais inchado ele não queria, aí quando era pra dar banho nele, eu

falava pra ele “Geraldo, vamos tomar banho?”, “Não! Eu não vou tomar banho

Page 156: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

não!”, e eu “Vamos tomar banho, Geraldo, se você não for tomar banho eu vou

chamar a tua filha e aí você vai tomar banho”, aí ele falou “ta bom então, eu vou!” Aí

ele ia bem devargazinho sapateando e ia pro banheiro, porque ele não agüentava

ficar em pé mais, tinha que por uma cadeira pra sentar ele e dar banho nele, ele

parecia criança, aí eu dava banho nele, levava pro quarto enxugava ele, o pé dele

com a toalha, colocava talco nos dedinhos, aí ele queria levantar, pra ir pro bar, aí

eu falava, não, você agora não vai porque se você for, quem vai bater agora vai ser

eu em você. Eu? Eu não bati em você, eu falei “é, meu nego, quem bate esquece,

quem apanha se lembra. Mas tudo bem, a lei da vida é essa, Geraldo!” E deixava ele

dormir aí quando eu acordava ele tava melhor, aí eu dava uma comidinha pra ele,

aí depois ele ia pro bar, mas quando ele tomava banho eu não deixava mais ele sair.

Então eu falava pra minha irmã, meu carma era esse, Deus pôs ele na minha vida,

meu futuro era cuidar dele, porque tudo que ele fez, eu tive chance de ir embora

com outro, ter uma vida ou melhor ou pior, ninguém sabe. Não fui, porque? Por que

a minha vida era com ele, você vê, ele mais velho do que eu, né? Batia em mim

como se eu fosse filha dele. Isso não muda as coisas boa também da vida, que eu

não conhecia nada, porque? Por Deus, a gente só tem aquilo que Deus quer. Deus

não dá mais nem menos pra ninguém, Deus só dá aquilo que a gente agüenta, então

hoje em dia eu tenho vontade de ir pro interior, trabalhar em ____ porque Deus.

Porque como eu falei, assim é uma pessoa ali que ta pra cuidar das pessoas do

mundo porque Deus não veio para os bons, Deus veio para os doentes, então pra

aquelas pessoas que precisam, que necessitam, e Deus ta ali. Então o que a gente

tem que fazer? Ele me ensinou uma coisa que na época tudo bem... (Corta um

pedacinho).

Então ele não soube o que é ter uma mulher, mulher pra ele era só dormir

junto, fazer, obedecer, e não ter direito. E o que eu falo é que tem que ter direito os

dois, os dois tem que ter direito, não o homem só mandar e nem só a mulher,

porque numa casa que só a mulher manda, não vai pra frente, a casa que só o

homem manda não vai, tem que ter os dois. Os dois têm que estar em comunhão.

Então hoje, eu já falo para as minhas noras e para minhas filhas “o casamento não é

mil maravilhas, não é conto de novelas que a gente vê tudo bonitinho, não! É uma

vida, o ser humano é difícil de compreender o ser humano”. Quando uma pessoa

pensa errado, pra outra ta certo, então a minha vida, se eu contar a minha vida

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desde pequena, desde que eu sofri com a minha mãe e meu pai, não é uma vida de

mil maravilhas. Mas hoje eu posso falar, eu sou feliz! Eu com os meus filhos sou

feliz, e peço pra que Deus perdoe os pecados do meu marido e que dê o melhor pra

ele, porque talvez na cabeça dele, ele não tava fazendo mal pra nós. Nós pensa “ele

foi mal, ele foi ruim, ele foi assim, ele foi assado”, mas, e os meus defeitos também,

né? Porque eu não sou perfeita, ele não é. Perfeito só Jesus, e ainda assim mesmo

morreu na cruz. Então imagina a gente que é ser humano. Eu na tenho raiva, eu não

sou de ir na missa pq, lógico, eu não tenho (corta)

Aquele nordeste lá meu pai também, sabe? Serve a Deus isso aí como uma

experiência, como eu falo as vezes lá em casa, gente, hoje que minha filha fala que

eu sou chata, eu sou chata não só, minha filha mesmo tem, meu genro ele é chato,

se meu genro desse um tapa na orelha da minha filha, era bem dado, porque tem

hora que ela extrapola, você entendeu? Então não é o fato que eu sou a favor do

homem. Não! Eu sou contra o homem bater na mulher. Uma conversa, é muito...,

um não, tem hora que precisa dar um “não”. Numa casa tem que ter união. Eu vejo

a minha nora, minha nora não, minha filha, a mãe dessa menina, tem um short,

você viu aquele que tava aqui? Aquele short é da mãe dela, só que a mãe dela não

veste o short sem uma calça assim, mas eu não acho certo.

Ela gosta muito de samba e meu pessoal, meu menino ____ ela deixa o

marido em casa e vai pra samba. Ela é bonitona a minha filha. E meus filhos são

tudo moreno e vc sabe que nego gosta de samba, né? E ele fica vendo televisão e eu

falo pra ela “Vc não ta interessada em ninguém, só que os homens lá não sabe que

você tem marido, você é casada, porque o trouxa vai deixar você vir sozinha?” ____

E ele deixou lá?

Deixou lá, a minha inquilina que veio.

Por que ele não te socorreu?

Porque ela falou que ele tinha morrido, aí ele podia ir preso, aí depois ficou de

longe vendo quem chegava e quem saía da minha casa, aí como ele não viu polícia,

não viu muita gente, só o movimento normal, aí ele voltou. Quando ele voltou a

gente desceu pra chamar a minha irmã, a mulher tava no hospital.

Page 158: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

E ele dizia o que à tua irmã?

Que ela tinha caído da laje, que eu tinha ido pegar roupa, que eu tinha laje, e a

escada era de madeira, e falou que ela caiu da laje. E as vezes quando pegava no

rosto falava que era dor de dente... sempre arrumava uma desculpa. Depois que eu

comecei a ir falando.

Ele lutava capoeira, ele lutava judô. Uma parcela de culpa ele tem. Ele batia

muito na minha cabeça, eu me sentia vazia, eu nunca tinha sentido isso na minha

vida. Então eu sentia, a gente vai ficando mais velha, tudo vai começando a... tudo

aquelas coisas quando era mais novo era uma coisa, agora vai ficando mais velha,

vai mostrando...

Então você acha que tem sequelas da violência dele?

Na cabeça, porque ele deu muita pancada, paulada, porque ele tinha um repente, se

ele tivesse falando alguma coisa, às vezes eu conversando normal com ele assim, se

eu falasse alguma coisa que ofendesse ele, ele me dava paulada na cabeça. E às

vezes acontecia muito isso, por que? Eu ficava nervosa, às vezes a gente tava

conversando numa boa, conversando, brincando, ele falava alguma coisa aí me

ofendia, aí quando eu ia retrucar, ofender ele, aí ele vinha com violência já comigo.

E quando ele morreu, qual foi a tua reação?

Minha reação quando ele morreu? Foi engraçado, porque foi assim: quando

ele...tava um calor, um calor, que ele morreu em novembro, né? Aquele calor, não,

em novembro não, foi dia sete de setembro. Não! Dia primeiro de setembro, aí tava

aquele calorzão, aí ele tava, tinha dois dias que ele num tava dormindo direito, ele

tava muito inchado, ele dormia e me abraçava, ele não agüentava, aí quando ele me

abraçava assim dava aquela risada, eu tinha dó dele, vai ficando velho não presta

pra nada, eu mexia com ele, eu falava que ele ia dormir quase sentado pra vê se

você consegue. Aí eu peguei os travesseiro e pus pra ficar ele praticamente

encostado, sentado, e ele dava uma cochilada e voltada assim, quando ele

respirava, acho que, muito inchado, ele faltava o ar. Aí ele só cochilava e não

dormia, aí ele ficou sentado, e eu costurando, que eu tinha que entregar as bolsas.

Aí ele ficava olhando assim pra mim, aí eu “nossa que você te hoje você ta

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mandando beijo”, e ele falou “nossa, você é tão bonita!”. Aí eu não tinha comido, pq

eu tinha que entregar as bolsas. Aí eu falei “Geraldo, e vou buscar as peças, e você

dá uma olhadinha no Victor”, e ele falou “Ó, você vai mas volta logo, porque eu não

to bom hoje”, eu falei “você não tá bom?”, e ele “não, eu não tô me sentindo bem”, aí

eu ta bom, eu vou na casa da mulher pra buscar as peças na casa da mulher e

terminar de fazer as bolsas pra a noite o homem vir buscar. Aí, cheguei lá ele tinha

feito galinhada, aí eu não quis, e eu sempre ficava pra comer e nesse dia eu não

quis comer, falei “não, vou pra casa que o Geraldo não tá bom ele ta meio cansado

hoje, e eu deixei o Victor com ele, e a Adriana não vem pra almoçar”, “ahh, então tá

bom, eu guardo um pouquinho pra você”, aí eu vim embora rapidinho, quando eu

cheguei em casa ele tava dentro do carro, aí eu olhei, quando eu saí ele ficou no

sofá. Aí quando eu voltei ele tava no carro, falei assim “não vou nem acordar ele,

porque ele não dormiu de noite, vou deixar ele dormir” e desci, quando eu subi eu

falei, vou fazer um bolo, antes de eu sentar na máquina, que as criançada tava

cobrando o bolo. Aí eu falei “vou fazer”. Quando eu peguei as coisas pra fazer o bolo

minha neta e meu genro subiu. Olhou na garagem e chamou ele pra dá um role, aí

meu genro viu que ele não levantou, aí meu genro olhou assim e ele já não tava

mais deitado, ele tava caído. Aí ele começou a gritar “Dona Leo, Dona Leo”! O

Geraldo desmaiou, o Geraldo desmaiou!” Aí ele começou a chacoalhar ele, e eu

achei que também que ele tava desmaiado, aí nisso eu abri o portão e comecei a

gritar minha vizinha “Dona _____ o Geraldo desmaiou”, aí o meu vizinho que era

muito amigo dele, já veio com o carro, aí ele falou, “já vamos levar ele pro hospital”,

aí pos ele dentro do carro, mas eu acho que ele já tava morto, que quando chegou

em Diadema, o médico pegou a maca, aí o medico falou “seu marido ta morto”,

quando ele falou assim, eu olhei ora cara dele assim “morto?”, ele “é, ele já ta

morto”, eu achei tudo muito rápido, falei não, não ta morto não, ele só desmaiou,

ele falou “não, a senhora seja forte mas ele ta morto”, aí tinha uma mesinha assim,

e eu comecei a bater na mesa, e falei “não ta morto, não ta morto!” comecei a bater,

aí foi me dando aquela crise, que ele não tava morto, não tava entendendo que ele

tava morto. Aí eu bati, bati, bati. Aí o médico me pegou por aqui assim, que inchou

de tanto que eu bati na mesa. Aí o médico ficava pegando na minha mãe,

acalmando assim, sabe? Aí eu fiquei assim abestalhada, eu não lembrava do

Page 160: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

número de telefone da Zezé, não lembrava do número de telefone da minha irmã,

de ninguém eu lembrava. Aí ele falou “já liguei e já avisei”.

Foi tão engraçado que ninguém tinha raiva do pai, eu nunca passei isso, eu

sempre falava, seu pai não bate bem da cabeça, porque ele tinha atitude de me

bater, acabava de me bater, sentar no sofá e deitava no meu colo. Uma pessoa que

faz isso não ta normal. E ele fazia isso, dormia no meu colo. Pegava o meu braço

deitava por cima dele, e colocava a mão e colocava a minha mão assim, passando a

mão na cabeça dele, aí eu pensava “meu Deus, será que é normal?”. Sozinha,

chorando, porque tinha acabado de apanhar, e passando a mão na cabeça dele,

alisando e ele lá ele dormia. Então não era uma pessoa normal, só que nunca me

passou pela cabeça levar no hospital. Nunca. Sabe?

Foi assim que o homem partiu. Tinha vez, quando chegava o mês de receber,

tem dinheiro pra ____________, ele não me dava o dinheiro, eu pedia um real pra

comprar o suco ele disse que não tinha, quando ele mostrou a carteira dele, não sei

onde eu pego: cem reais, dentro da carteira. Aí eu sempre falei pros meus filhos, a

gente não leva nada dessa vida, tudo da gente fica, seu pai não levou nada, deixou

tudo, não adiantou. Eu falava pra ele, pegava dinheiro, “Geraldo, vamos pra Minas,

vê seus parentes lá”, que tinha irmã em Mina que ele nem conhecia, porque ele

veio pra cá e não voltou mais, e ele não ia pra não gastar dinheiro. Morreu? Deixou

dinheiro pra mim! Aí, ne? Se eu quiser casar com outro, gastar com outro, eu gasto,

e aí?

Por isso que quando eu arrumei um namorado meu filho começou a falar

“Não mãe, ele é mais novo, mais novo do que eu” e eu falei “melhor ainda, ele é

mais novo do que vcs!” Sabe? Ficar com homem mais novo é melhor, pelo menos

eu tenho vantagem. Melhor do que gastar com velho e o velho e não quere fazer

nada!” Então pra que que eu vou querer velho? Eu falei, eu sempre falei pro meus

filho que eu sou franca com os meus filho:

Então eu falei “meu filho, não adianta querer um velho, um velho pra deitar

e dormir? Eu durmo sozinha. Eu quero um velho que faça alguma coisa: um novo”,

o novo faz então é melhor eu gastar com o novo do que com um velho caindo aos

pedaços.

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Deixa eu só entender, depois que seu marido morreu, você arrumou um

outro namorado?

Arrumei, depois de três anos. Aí um dia eu encontrei uma amiga, fazia muito tempo

que eu não via ela. Aí ela falou pra mim “e aí, como você tá?”, eu falei “ah, chorando

ainda pelo outro que morreu, mas fazer o que?”, ela “mas larga de ser besta, vamos

dançar, vamos passear”. Aí ela combinou comigo pra gente ir num salão que tem na

praça da árvore, aí marquei horário, tudo. Aí cheguei em casa e falei com meus

filhos, “gente, amanhã eu vou sair”, que era no sábado, e eu falei numa sexta feira

“amanhã eu vou sair”, meus filhos disseram “até que enfim a senhora vai sair”,

porque todos meus filhos me apóia. Vai sair com quem? Eu falei com a Edna, num

forró na Praça da Árvore, aí “ai, mãe, lá é legal, eu já fui lá”, meu filho falou. Aí eu

falei é mesmo? Ele é, “é muito bom lá”. Aí quando foi no sábado, fiquei na dúvida se

eu ia, se eu não ia, aí falei pra minha filha “ahh, acho que eu não vou não”, “vai mãe,

vai sim, magina! Vai ficar aí chorando pela morte da bizerra”. Aí eu falei “ah, não sei

se eu vou” aí ela falou “ah, vai sim, vai sim”. Aí foi lá pegar roupa pra mim vestir,

que ela falou que ficava legal. “o, mãe, vou comprar até uma blusa pra senhora ir”,

pois comprou uma blusa bonita, que eu gosto muito de roupa assim. Aí, chegou na

hora, não sei se eu vou, não sei se eu vou, mas me arrumei. Mas me arrumei e fiquei

esperando. Aí a Edna chegou, e falou “vamos”, eu falei “ahh, não sei não, Edna, já to

com vontade de desistir”. E tinha três com ela, era quatro comigo, aí a minha filha,

não mãe, vão sim! E nós fomos. Quando chegamos no salão, tudo pra mim era

novidade, a gente vai pela primeira vez, né?

Só pra entender como você conheceu esse namorado?

Todo mundo _________ eu me senti assim, um peixe fora d’agua. Muita gente ficava

me chamando pra dançar. Aí dançamos forró de antigamente, aí ele “dança,

mulher, dança!”, eu achei aquilo um horror. Aí falei: “não vou dançar com você, e

larguei o homem no meio do salão” Falei “porque vc ta mandando eu rebolar? Eu

não vou rebolar” Aí sentei. É assim mesmo, assim, mesmo...falei ta bom.

Aí nesse dia não gostei muito, vim embora. Na outra semana eu fui de novo,

já gostei. Aí dancei, peguei os passos. Aí um dia, esse rapaz tava lá que tinha

chegado do Rio, e tava ele com o primo dele, tava a família junto, né? Ai ele tava

sentado na cadeira meio dormindo. Aí eu passei, eu tava dançando com a minha

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amiga, que a minha amiga me chamou pra dançar pra me ensinar os passos. To

dançando com ela e falei “Alá, Edna, o cara veio dançar e fica no salão dormindo”, e

aí a gente ficou dançando e falando, aí a moça bateu no meu braço e falou pra mim

assim “ele não ta dormindo, ele ta cansado, porque ele veio do serviço e ta

cansado”, aí eu fiquei sem graça, né? Falei “não, desculpa, eu pensei que ele tava

dormindo” Aí ela pegou no meu braço e foi comigo lá, a prima dele, aí falou “____

você ta dormindo?”, aí ele abriu os olhos assim, aí ele fechou. Aí eu falei “não, ele ta

dormindo, deixa ele dormir” Aí quando eu fui sair ele pegou no meu braço______aí a

gente foi dançar, aí ele pos a mão no meu pescoço e falou “Vou apresentar vc pra

minha família. E foi mostrar. Minha amigo ficou até com raiva. Eu via sempre o

pessoal aí.

Qual a idade dele?

Vinte e sete anos.

E você tinha quanto na época...?

Quarenta e...

E com esse rapaz?

Aí foi engraçado, porque aí ficamos conversando, nisso que a gente ficou

conversando, ia ter um feriado, um feriado aqueles de segunda feira que emenda

tudo. Aí ele falava “aah, você não quer ir na minha casa? Vou fazer um churrasco e

tudo”. Ele sempre me convidava e eu nunca me interessei de ir, só que eu não sabia

que esse cara era parente dele. Aí quando nós ficamos conversando, dançando

tudo.

Aí depois eu pensei “vou, não vou?”, aí fui falar com a minha amiga “você

avisa lá em casa que eu vou”, aí ela não gostou porque o pessoal não convidaram

ela, porque o pessoal me convidou aí eu falei “você avisa em casa que eu vou com

eles”. E fui com eles, a minha amiga ao invés de chegar e avisar pros meus filhos

que eu tinha ido com o pessoal, não avisou. Aí meu filho me liga, não, eu liguei pra

casa. Eu liguei pra casa pra falar com eles. E eu falei com o Binho, invés do Binho

avisar pro pessoal que eu ía voltar, não comentou.

Page 163: AS DETERMINAÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DA SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO

Eu não voltei no sábado de manhã, daí os meus pessoal, preocupado, que

nem uns doidos, o que que tinha acontecido, a minha irmã .

Todo mundo já tinha ido pro IML me procurar e tudo. Eu me senti como se

fosse a coisa do outro mundo, eu vi que dentro de mim eu não tava morta, eu tava

viva, alguma coisa em mim tinha vida. Aí quando foi na terça-feira que eu voltei pra

casa todo mundo...______________________

As minhas irmãs de Guarulhos já ta aqui de quinze anos feliz da vida,

cantando pelo quintal, e todo mundo na sala. Na hora que eu olhei, nora, filho, irmã,

todo mundo...

Ai eu entrei e falei “Bom dia!” bem assim rindo “Porque ta todo mundo aí?”,

aí ele falou “Que que aconteceu? A senhora ainda pergunta?”. Falei “opa!”, aí caiu a

ficha. Falei “opa! Aqui ninguém vem falar alto comigo, eu sou a viúva, a viúva aqui

sou eu, e aqui ninguém vem falar alto comigo, eu sou a viúva! nem filho, nem irmão,

nem nora, nem genro, minhas contas eu pago. Tudo nessa casa eu banco, então

ninguém vem falar alto comigo. Eu sou a mãe de vocês, vocês devem explicação

comigo, não eu com vocês. Qual é o problema? Porque eu to chegando agora? Sou

vacinada! Sou viúva, não to chifrando seu pai. Então fala baixo, me pergunte numa

boa, não vem gritar comigo porque eu não aceito, não admito. Eu avisei quando seu

pai morreu, se eu quisesse casar hoje eu casaria, que ninguém tem que dar palpite,

na minha casa mando eu. Quem for trabalhar pode ir. To viva! To viva! E ria...”. Aí

peguei e deitei no sofá, tinha caixa de leite a gente podia tomar leite a hora que

quisesse.

Então com ele foi um... um...

Foi, foi aonde eu me senti mulher, que aconteceu na primeira noite, né? Mas aí

depois eu voltei a vida normal, só que uma vida assim, uma vida cobrada, uma vida

que não era uma vida deu ligar, era uma vida ser obrigada, eu fazia com ele, e então

ele me deixava ir. A vida que eu tinha com ele, como se fosse um estupro, era uma

violência fria, eu nunca queria, eu sempre sentia meu corpo doendo, meu corpo

ruim, eu sempre chorado....

Entrevista realizada pela aluna Vânia Sofia Gomes Andrade.