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Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274,
jul./dez. 2003.
As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos
Dutra (1946-1950) e
Cardoso (1994-2002) Pedro Paulo Zahluth Bastos1
Resumo
O artigo analisa a experincia de liberalizao comercial dos
governos Dutra (1946-1950) e Cardoso (1995-2002), avaliando o
processo decisrio da poltica econmica para mostrar que crises
cambiais levaram os governos, de uma forma ou outra, a substituir
prioridades definidas inicialmente e revalorizar a substituio de
importaes, ao contrrio de narrativas liberais que enfatizam
restries no-econmicas (polticas e ideolgicas) consolidao de
estratgias liberais na Amrica Latina. Estas narrativas
desconsideram, de um lado, assimetrias internacionais e, em
particular, o impacto da fragilidade financeira externa para
reduzir graus de liberdade na gesto da poltica de importaes de
maneira contrria quela desejada pelos governos liberais em questo;
de outro, que restries interveno estatal limitaram a resposta local
crise cambial em um sentido diferente daquele verificado nas
estratgias de desenvolvimento do sudeste asitico.
Palavras-chave: Estratgias de desenvolvimento; Crises cambiais;
Regimes de comrcio exterior; Substituio de importaes; Consenso de
Washington.
Abstract
The paper studies the experience of commercial liberalization
during governments Dutra (1946) and Cardoso (1995-2002) in Brazil,
analyzing the evolution of its economic policy decision-making to
show how exchange crisis induced these governments, in a way or
another, to revert from initial priorities in order to revaluate
import substitution, quite contrary to neo-liberal explanations
which emphasize non-economic restrictions (political and
ideological ones) that presumably hindered market-friendly and
outward economic strategies in Latin America. These neo-liberal
explanations tend to disregard 1) international hierarchies and, in
particular, the impact of external financial fragility to reduce
degrees of autonomy in import policy, again quite contrary to
aspirations of the governments in question; and 2) restrictions to
state policy that limited local reactions to exchange crisis in a
different way here than at some development strategies in Southeast
Asia.
Key words: Development strategies; Exchange crisis; Foreign
trade regimes; Import substitution; Washington Consensus.
JEL F43, N16, O24.
Vrios tericos liberais alegam que experincias de interveno
estatal na Amrica Latina, visando o desenvolvimento industrial de
economias agrrias exportadoras a partir da dcada de 1930,
resultaram de projetos artificiais liderados por polticos
populistas, elites predadoras de renda e idelogos (sobretudo
economistas) movidos, no fundo, por interesses particulares.
(1) Professor Doutor do Instituto de Economia da UNICAMP.
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Pedro Paulo Zahluth Bastos
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Para polticos, o interesse da popularidade rpida e sobretudo
irresponsvel; para empresrios, lucratividade fcil, protegendo-se da
competio estrangeira e predando recursos pblicos; para economistas,
reputao, influncia e cargos bem remunerados no Leviathan em expanso
veloz, descontrolada e ineficiente.
Interveno estatal, ideologia antiliberal, projeto artificial de
desenvolvimento. A suposio implcita dos crticos liberais desta
trade que eles, sim, conheceriam o curso natural de desenvolvimento
distorcido por essa conjuno de interesses escusos; pois por
referncia a um curso presumidamente natural de desenvolvimento que
a estratgia artificial criticada.
A defesa do liberalismo nestes pases perifricos, porm, enfrenta
algumas aporias. Como saber qual o curso natural que deveria ter
sido seguido, caso interesses inconfessveis no tivessem desviado
regies inteiras do rumo correto?
Como este reino da natureza no foi experimentado historicamente,
sua existncia (metafsica) no poderia ser, ela sim, o produto
artificial da imaginao de tericos liberais? Tericos estes que,
ento, poderiam estar interessados menos em cincia (a partir da
investigao emprica) e mais em critrios normativos para criticar a
realidade objetiva em defesa de reformas liberais? O recurso
retrico metafsica do estado de natureza, alis, no teve sempre
intuito poltico (s vezes revolucionrio) atravs dos tempos?
Da a indagar pelos interesses dos reformistas liberais vai um
passo: lutam por ideais metafsicos ou interesses menores? Da a
sugerir que economistas proponentes de reformas liberais possam ser
movidos pela busca (inconfessvel) de reputao, influncia e cargos
bem remunerados no mesmo Leviathan, agora em crise e redefinio, vai
outro passo. Sem absorver o nus da prova desta possibilidade (nem
absolv-la), este artigo tem por objetivo:
(1) apresentar a crtica de economistas liberais ao
artificialismo desenvolvimentista, e a maneira como buscam dar
densidade emprica ao presumido curso natural de desenvolvimento que
poderia ter sido seguido na Amrica Latina, comparando-o com o caso
asitico;
(2) discutir as experincias mais aproximadas e recentes de uma
estratgia liberal (pelo menos no que tange abertura externa) no
caso brasileiro (governos Dutra e Cardoso); mostrando que a crise
da abertura pretendida de incio no foi produto de uma reviravolta
desenvolvimentista, mas de uma crise cambial incontrolvel e
indesejada, particularmente porque a oferta de financiamento
externo ficou aqum do esperado;
(3) apresentar os efeitos naturais da crise cambial sobre a
dinmica de produo e investimento privado, induzindo processo de
substituio de importaes no sentido de um desenvolvimento econmico
mais autrquico do que planejado pelos reformistas liberais; neste
sentido, o elogio da substituio de importaes que se seguiu crise da
estratgia de abertura no resultou de
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uma preferncia apriorstica pelo nacional contra o importado, mas
do fato de reagir a um problema inescapvel: a necessidade urgente
de superar ou atenuar a crise cambial;
(4) constatar e discutir por que o processo de substituio de
importaes, que limitou a abertura externa no plano comercial, no
foi acompanhado de redefinio antiliberalizante semelhante no plano
financeiro, depois da crise cambial, uma vez que os governos
insistiram em obter os fluxos financeiros que acreditavam
corresponder sua adeso crvel a um ambiente regulatrio atraente ao
capital estrangeiro.
Assim, o artigo pretende realar outra aporia do liberalismo
perifrico latino-americano: o fato de que, ao contrrio do que
alegam vrios economistas liberais, um curso de desenvolvimento
econmico menos autrquico e mais natural (aberto de diferentes
maneiras economia mundial) foi testado no Brasil em pelo menos duas
circunstncias. E que, a despeito de sua pretenso de corresponder ao
estado natural das coisas, ele no se sustentou historicamente.
Sua crise, por sua vez, induziu naturalmente um estado de coisas
mais autrquico do que inicialmente pretendido pela opo liberal, por
meio de alterao abrupta e indesejada da taxa de cmbio ou da proteo
comercial efetiva. Sobretudo depois que a crise cambial pressionou
o sistema de preos relativos e induziu a substituio de importaes,
os governos procuraram colaborar retirando gargalos que limitavam o
livre curso da expanso induzida pela crise cambial. Sem, porm,
reverterem a abertura financeira inicial, embora enfrentassem
crises econmicas e oposio poltica a esta opo liberal.
No difcil sugerir, a partir da, que o projeto liberal era
artificial e que a substituio de importaes correspondeu a um curso
de desenvolvimento induzido naturalmente por crises histricas do
prprio projeto liberal. Este artigo, porm, no pretende assumir o
nus deste argumento em geral, embora admita, com as qualificaes
necessrias, que este pode ser o caso para as conjunturas histricas
analisadas.
O primeiro item, a seguir, resenha os argumentos liberais sobre
o desenvolvimento econmico latino-americano. O segundo item discute
o governo Dutra e o terceiro, o governo Cardoso. O ltimo item faz
consideraes finais.
1 O padro natural de desenvolvimento econmico
As crises monetrias e cambiais latino-americanas nos anos 1970 e
1980 foram explicadas por economistas liberais de um modo
inequvoco: resultariam da interferncia estatal, exagerada,
duradoura e ineficiente, no mecanismo alocativo presumidamente
eficiente representado pelos sinais de preos de mercado. Em
novembro de 1989, um amplo seminrio promovido pelo Instituto de
Economia Internacional de Washington sistematizou crticas ao modelo
de desenvolvimento autrquico e artificial latino-americano,
elaborou propostas consensuais
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para superar o modelo e comparou casos nacionais para avaliar o
que vinha sendo feito para corrigir os erros atravs de reformas
liberais (J. Williamson, 1990).
As principais concluses foram batizadas de Consenso de
Washington e forneciam um conjunto de propostas de reforma liberal
(comerciais, financeiras, patrimoniais, fiscais, cambiais e
monetrias) para superar erros identificados. Estas propostas
originavam-se de diagnsticos liberais anteriores de que
(1) as crises monetrias e cambiais (incluindo a crise da dvida)
que marcaram o esgotamento do modelo autrquico de industrializao
resultaram do acmulo de erros de poltica econmica, motivados por
dogmas doutrinrios ultrapassados e/ou atividades polticas
predadoras de renda;
(2) as crises seriam superadas por reformas e polticas corretas
que liberassem o sistema de preos para alocar recursos sem
interferncias errneas.2
O argumento tpico alega que o modelo de desenvolvimento
autrquico por substituio de importaes industriais teria sido
idealizado previamente e perseguido politicamente. A interveno
injustificada na eficincia alocativa do sistema de preos seria
motivada tanto por atividades polticas predadoras de renda quanto
por idealizaes artificiais, arbitrrias, antinaturais a respeito do
desenvolvimento latino-americano. O objetivo alegado desta
interveno seria desenvolver a indstria substitutiva de importaes,
mas seu efeito prtico era favorecer empresrios ineficientes e
prejudicar consumidores de bens nacionais piores e mais caros do
que os similares importados. Os instrumentos desta interveno
fracassada eram vrios (incentivos fiscais e creditcios,
sobrevalorizao da moeda local, altos nveis de proteo comercial),
mas seu pior efeito no era a transferncia de rendas pblicas, a
curto prazo, para empresrios ineficientes e polticos corruptos.
Seu prejuzo mais duradouro seria a m alocao de recursos privados
gerada pela distoro artificial do sistema de preos. A proteo
estatal reduziria o escopo de produo/consumo afetado pelo comrcio
exterior e pela disciplina de eficincia alocativa exigida,
induzindo realocaes artificiais de recursos domsticos da produo de
bens exportveis para produo de bens importveis. Assim, tal proteo
afastaria a alocao de recursos da direo naturalmente eficiente
representada pelas vantagens locais, ou seja, iria desvi-la da
especializao correta na diviso internacional do trabalho por
proteger especializaes incorretas e insustentveis.
Embora a opo intervencionista pudesse provocar expanses a curto
prazo, ela teria flego curto. Ao invs da opo natural de take the
right prices as they are, a tentativa artificial de make prices as
whished, alm do limite do
(2) Argumentos apresentados de maneira mais ou menos integrada
por autores como Balassa (1982; 1983); Bhagwati (1985); Ranis &
Orrock (1985) e Balassa & Williamson (1987). Exemplos
brasileiros do argumento so fornecidos por Roberto Campos (1994) e
Gustavo Franco (1999).
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possvel, seria contraproducente a mdio prazo. Dficit pblico
(induzido por populismo macroeconmico e incentivos/desperdcios
fiscais), ineficincia produtiva (por proteo comercial) e manuteno
de taxas de cmbio anti-exportaes (pela fixao nominal ou
condescendncia com inflao) gerariam tendncia de dficit comercial e
endividamento externo cumulativo, agravando eventuais restries de
divisas que se pretenderam superar.
Uma hiptese central implcita ao argumento a existncia de um
caminho natural de desenvolvimento latino-americano que s no foi
seguido em razo da arbitrariedade dos grupos polticos e tcnicos que
o rejeitaram. O argumento enfrenta uma aporia: definir o que seria
(ou teria sido) o desenvolvimento natural destas economias no
trivial e, luz do que efetivamente ocorreu (um desenvolvimento
presumidamente antinatural), defini-lo no pode deixar de constituir
um exerccio contrafactual, recurso prximo do artificialismo de que
se quer afastar. Afinal, como o desenvolvimento natural no foi
experimentado historicamente, sua existncia no poderia ser o
produto artificial da imaginao liberal (ou seja, ter apenas uma
existncia terica)?
Frente dificuldade de superar esta aporia sem uma referncia
externa prpria experincia latino-americana, os exerccios voltam-se
para a histria comparativa: a experincia de desenvolvimento
latino-americana posta defronte experincia (estilizada) do sudeste
asitico. Os casos nacionais do sudeste asitico ilustrariam o
caminho natural que poderia ter sido percorrido pelos pases
latino-americanos. Aqui, arbitrariedade; l, natureza: os pares so e
podem ser os mais diversos (dficit pblico/equilbrio fiscal;
sobrevalorizao cambial/cmbio justo; inflao/responsabilidade
monetria; proteo redundante/ proteo temporria etc.), mas todos
servindo ao dualismo artificialismo/ naturalidade.
A comparao complicada pelo fato de que a experincia de
desenvolvimento dos pases asiticos marcada pelo reconhecimento de
que o papel do Estado no desenvolvimento da regio pelo menos maior
ou diferente de algum padro de desenvolvimento dito clssico. A
presena do Estado no desenvolvimento de Coria do Sul e Formosa,
para no falar do Japo, no parece constituir exceo em relao a outros
processos de industrializao tardia, no apenas na interferncia
indireta por meio de incentivos alocativos ao investimento privado
direcionado, como tambm na interveno direta de empreendimentos
estatais em atividades essenciais e estratgicas.3
Esta dificuldade contornada apontando-se a nfase da interveno
estatal e sua convivncia com polticas de comrcio exterior corretas.
Embora
(3) Para ilustrar com a experincia de pases comumente tomados
como exemplos de virtude liberal a ser imitada pelos governos
latino-americanos, em Formosa (Taiwan) as seis maiores firmas
estatais industriais tinham um faturamento igual ao dos cinqenta
maiores grupos industriais privados em 1980. Das dez maiores firmas
industriais, sete eram empresas estatais; das maiores cinqenta,
dezenove eram estatais. A estrutura de propriedade na Coria do Sul
similar: doze das dezesseis maiores firmas industriais eram
estatais em 1972, assim como vinte das cinqenta maiores (Wade,
1990, p. 178).
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reconheam a interveno estatal na sia, os relatos liberais
argumentam que a interveno teria se voltado a reafirmar sinais
alocativos do sistema de preos e apoiar a alocao privada de
recursos na direo natural das vantagens comparativas, preferindo um
regime liberal de importaes.
Nisto, as economias asiticas teriam se diferenciado do curso das
economias latino-americanas depois da primeira etapa, fcil, da
substituio de importaes. Ao final desta etapa inicial, enquanto na
Amrica Latina ter-se-ia optado pela estratgia de aprofundar a
substituio de importaes em direo segunda etapa, difcil porque
exigente de fatores de produo escassos na regio, no sudeste asitico
a escolha recara em um caminho extrovertido: a, a despeito da
interveno estatal, nunca se pretendera eliminar a disciplina e os
sinais alocativos do comrcio exterior e afastar a alocao de
recursos de sua tendncia natural (Balassa, 1981).
Em suma, na comparao com a interveno estatal predominante no
sudeste asitico, a interveno latino-americana perderia por no se
limitar a apoiar o caminho natural indicado pelo sistema de preos
(market friendly), mas por buscar revert-lo de todo, orientando-o
para dentro e no para fora. Ou seja, fechando-o diviso
internacional do trabalho, limitando benefcios da especializao
econmica correta e protegendo decises de especializao erradas
(Krueger, 1985; Ranis & Orrock, 1985).
Ao realizar esta comparao, o argumento liberal no recorre
hiptese de que restries econmicas (no ideolgicas ou corporativas)
tenham impedido ou dificultado a consolidao do padro natural de
desenvolvimento econmico. Ao contrrio, alega-se que restries
econmicas herdadas da disponibilidade relativa de fatores de
produo, particularmente naturais, aconselhariam naturalmente
abertura e especializao correta. Algo que s no se teria realizado
em razo da conjuno de interesses e ideologias de grupos polticos,
econmicos e tcnicos particularistas prejudicados. Assim, as crises
posteriores podem ser explicadas exclusivamente pela equivocada
conduo de polticas econmicas (unsound policies), porque se presume
que no haja nada que as justifique de incio, tirante ideologias
erradas e interesses corporativos daqueles que as executaram.
Em outras palavras, supe-se que (1) os policy-makers operaram em
contexto livre de restries
econmicas internacionais ou locais que implicassem na
insustentabilidade histrica do projeto de abertura; e
(2) eles poderiam/deveriam ter optado por polticas liberais,
diferentes daquelas implementadas e consideradas equivocadas luz
das teorias liberais invocadas para analis-las: se um curso de
desenvolvimento econmico natural foi bloqueado, isto no teria
acontecido porque restries econmicas inviabilizaram-no, mas porque
polticos, economistas e empresrios liberais perderam embates
ideolgicos e polticos para congneres desenvolvimentistas.
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As prximas sees deste trabalho pretendem avaliar o papel que
restries no ideolgicas ou corporativas, mas econmicas, tiveram na
dificuldade de consolidar um curso de desenvolvimento econmico
menos autrquico no Brasil, em duas das circunstncias mais recentes
em que a tentativa foi feita: nos governos Dutra e Cardoso. Por que
avaliar restries econmicas, e no ideolgicas ou corporativas?
Primeiro, porque estes governos foram influenciados por propostas
liberais de abertura externa. Como o argumento liberal para
explicar o desvio para um desenvolvimento mais autrquico e menos
aberto apela para restries ideolgicas e corporativas, tomar
conjunturas em que os embates ideolgicos e polticos favoreceram
propostas de abertura externa relevante para avaliar, ao revs, a
sustentabilidade econmica destas propostas.
Segundo, porque estes governos descreveram, de certo modo, um
movimento pendular de poltica econmica, iniciando com propostas de
abertura externa que explicitamente valorizavam a entrada barata de
produtos importados e terminando com elogios substituio de
importaes industriais protegidas (espontaneamente ou no) da
competio estrangeira.
Terceiro, e mais importante, porque este movimento pendular no
foi produto de uma reviravolta desenvolvimentista que decidisse
embates ideolgicos e polticos em sentido antiliberal. Resultou,
sim, de uma crise cambial incontrolvel e indesejada que tornou
insustentvel a poltica anterior; foram restries econmicas, e no
preferncias apriorsticas pelo nacional contra o importado
(motivadas por interesses corporativos ou ideologias
ultrapassadas), que levaram estes governos a elogiar a substituio
de importaes, depois de tanto elogiarem as importaes. Assim, se
algum exemplo reverso pode ser dado pela experincia brasileira, o
de que um regime liberal de importaes no basta para explicar o
sucesso asitico e que as lies liberais sobre este sucesso esto
desfocadas.
2 O pndulo do governo Dutra (1946-1950)4 2.1 A opo liberal
A opo inicial por uma poltica ortodoxa de combate inflao no
governo Dutra teve o sentido de rejeio ideolgica e tcnica ao
intervencionismo varguista, considerado responsvel pela acelerao
inflacionria durante a Segunda Guerra. Um amplo consenso liberal
formou-se entre elites polticas e econmicas a respeito das causas
da inflao, responsabilizando o par interveno estatal (dficit
pblico) e proteo comercial (lucros extraordinrios). O lder da
campanha liberal foi inegavelmente Eugnio Gudin, j acompanhado do
jovem Octvio Gouva de Bulhes.
(4) Esta seo sintetiza resultados apresentados em outros
trabalhos do autor (Bastos, 2001; 2003), evitando-se recuperar aqui
todo o suporte documental e serial apresentado neles.
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O principal conflito ideolgico deu-se em torno da proposta de
planejamento econmico de Roberto Simonsen (lder da indstria
paulista) junto ao Conselho Nacional de Poltica Industrial e
Comercial (CNPIC), bombardeada por Gudin na chamada controvrsia do
planejamento. Simonsen mostrava-se pessimista diante da
possibilidade de assentar o crescimento econmico em exportaes
agrcolas e considerava essencial preservar a proteo natural
propiciada pela Grande Depresso e pela Segunda Guerra,
substituindo-a pelo protecionismo deliberado da indstria nacional
no ps-guerra. Alm disso, propunha fomentar o desenvolvimento
industrial com crdito subsidiado e investimento estatal
complementar e a criao de uma Cmara de Planificao na qual
participariam industriais para alocar financiamento norte-americano
tomado de governo a governo.5
A posio de Gudin foi editada em livro (Rumos da poltica
econmica) e, indo muito alm de crticas tcnicas s propostas de
Simonsen, associava a orientao econmica do Estado Novo e a proposta
de planejamento ao autoritarismo poltico (citando teses
contemporneas de Hayek), sendo elemento incompatvel ao movimento de
redemocratizao do pas. Propunha modificar o modelo de crescimento
em um sentido liberal: restaurar sinais de mercado por meio de
abertura externa (comercial e financeira) e controle da inflao,
para que recursos privados fossem alocados de maneira eficiente
entre setores urbano e rural. Um ambiente regulatrio atraente ao
capital externo privado deveria ser criado, facilitando remessas de
lucro e evitando a presena de estatais que empurrassem filiais
internacionais de setores onde poderiam atuar (sobretudo
infra-estrutura e extrao mineral), havendo forte crena de que estas
reformas seriam suficientes para atrair fluxos de capital capazes
de financiar importaes crescentes, seja para reaparelhar a
estrutura produtiva, seja para combater os lucros extraordinrios
dos industriais e, portanto, a inflao. As crticas liberais de maior
apelo poltico estavam na questo inflacionria, resultando da proteo
comercial (lucros extraordinrios) e de uma interveno estatal
arbitrria e excessiva que deveria ser abandonada junto com o Estado
Novo:
Como conceber uma ditadura econmica dentro de uma democracia?No
discuto aqui ideologias. Mostro apenas a grave herana de
capitalismo de Estado que nos ficou do regime totalitrio que ora se
extingue H muito quem pense e pense erroneamente que muitos dos
empreendimentos no se poderiam ter realizado porque a economia
privada no dispe de recursos suficientes e porque s o Estado tem
capacidade financeira para tanto. um erro, baseado na idia de que o
Estado pode forjar capital Mas papel pintado s capital na cabea dos
inocentes. O que o papel-moeda faz tirar do povo para as mos do
governo que emite o dinheiro (Gudin, 1945b, p. 68, 81-82).
(5) Sobre ela, ver especialmente Corsi (1991); Doellinger
(1977); Diniz (1978, cap. 6); Sola (1982, cap. 2) e Bielschowsky
(1985, parte II, caps. 1-2).
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A principal reao de Vargas campanha econmica liberal acabou
reforando-a. O decreto da Lei Malaia (n. 7.666, a 22 de junho de
1945) transferia a responsabilidade pela inflao aos trustes e
cartis formados para cometer atos contrrios economia nacional,
explorando a misria e a impotncia do povo.6 Esta reao, que visava
aproximar Vargas do povo (e dos queremistas), acabou empurrando
empresrios para a campanha liberal, envolvendo manifestos da Ordem
dos Advogados, da UDN e uma carta aberta das classes produtoras
publicada na Folha da Manh, unificando a Federao das Associaes
Comerciais, a Confederao Nacional da Indstria e a Unio das
Associaes Agropecurias do Brasil Central, interpelando Vargas:
Crdito e papel moeda mais do que duplicaram em 10 anos. Para que
procurar outra causa para a alta de preos, quando ela est a
evidente aos olhos de todos? (Carone, 1976, p. 369-377).
O prprio Eugnio Gudin enderearia carta a Vargas pedindo demisso
dos rgos de que participava como conselheiro por discordar
frontalmente do DL n. 7.666 (EUG/ 45.07.30cor). O efeito poltico da
CADE foi, de um lado, reforar a impopularidade dos industriais na
questo inflacionria e, de outro, afast-los de Vargas. Embora a
vinculao da poltica cambial proposta de reaparelhamento da indstria
pelo regime de licena prvia (cinco meses antes) favorecesse os
industriais, a legitimidade da defesa da proteo contra o dumping
das importaes era severamente afetada, se os empresrios, j
tributados por um imposto sobre lucros extraordinrios, eram agora
acusados de atos contrrios economia popular. O candidato pessedista
Dutra tambm preferia no se afastar, na questo inflacionria, da
matriz ideolgica que orientava o programa da UDN.7
No surpreende que o governo Dutra recebesse e aprofundasse as
iniciativas de liberalizao herdadas do governo provisrio. Mantendo
iniciativas para contrair a expanso do crdito e investimentos
pblicos, a revogao do regime de licena prvia das importaes (PI-7)
pela Portaria n. 258 (28 de dezembro de 1945) comeou o desmonte dos
mecanismos cambiais institudos no Estado Novo. Taxa de cmbio fixa,
mas desregulamentao sucedendo-se gradualmente, pautando-se na crena
de que receberamos financiamento externo suficiente para sustentar
o programa liberal de importaes.
(6) Para o texto da lei, cf. Franco (1946, p. 288-295) ou Carone
(1976, p. 196-203); ver tambm Corsi (1997, p. 276-277)
(7) Cessadas as operaes de guerra, deveramos restringir as
despesas militares, protrair o incio das obras novas e reduzir o
andamento das j iniciadas, cuja concluso no tenha efeitos imediatos
sobre o barateamento do custo de vida, at que possamos restabelecer
o equilbrio das finanas pblicas e estancar qualquer nova emisso de
papel-moeda: discurso de campanha de Dutra citado pelo Relatrio do
Banco do Brasil de 1945 (p. 123). Nas palavras de Bielschowsky
(1985, p. 365-366): Consensualmente, a grande causa da inflao,
segundo as anlises econmicas de todo o perodo, estariam sendo os
dficits pblicos, que sempre , naturalmente, o argumento tpico do
empresariado, aquele que mais lhe convm pelo menos no que diz
respeito a seus interesses de curto prazo. Ao final da guerra, a
recomendao mais enftica encontrada na literatura econmica era a de
que se deveriam contrair as despesas pblicas.
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2.2 Crise e reverso
Sabe-se que a liberalizao das importaes no durou todo o governo.
Uma crise cambial forou reverso ao regime de licenas prvias e
seletivas de importaes, restaurado em 1948. Mas a crise cambial no
foi provocada, como Vargas gostaria de repetir, pelo boom
importador de bugigangas. Pesquisas acadmicas revisaram esta
interpretao, considerando-se atualmente que a crise cambial de 1947
deveu-se tambm a que:
(1) o saldo comercial tenha cado rapidamente em 1947, contando
tambm com expanso de importaes de bens de capital respectivamente
de 47% e 57% em 1946 e 1947, mais que dobrando no binio;
(2) o surto de importaes tenha-se concentrado particularmente em
moedas conversveis (60% oriundas dos EUA), dada a lentido da
reconverso produtiva das demais economias industriais afetadas pela
guerra, com as quais o pas mantinha acordos de compensao
bilateral;
(3) as exportaes tenham-se concentrado em moedas inconversveis
(apenas 40% destinadas aos Estados Unidos), retidas como crditos
nos acordos bilaterais;
(4) o preo do caf no tenha se recuperado at 1949 como era
esperado, limitando a gerao de crditos bilaterais e sobretudo de
dlares;
(5) a fuga de capitais propiciada pela liberao das remessas de
lucro tenha gerado sadas lquidas de US$ 500 milhes entre 1946-1950,
desfinanciado o balano de pagamento e limitando a acumulao de
reservas mesmo depois dos controles institudos em 1948;
(6) a hiptese de que a condio de aliado especial dos Estados
Unidos compensasse o pas com crditos de governo a governo tenha
fracassado medida que o esforo diplomtico e financeiro
norte-americano se deslocou para regies problemticas no incio da
Guerra Fria (Tavares, 1963; Malan, 1976; 1977;1984; Vianna, 1987;
Bastos, 2001). Em suma, a liberalizao comercial no se mostrou vivel
e desaguou em crise cambial em razo de fragilidades inerentes
condio perifrica do pas nos planos econmico, poltico e cultural do
mundo capitalista ps-Segunda Guerra, em particular da incapacidade
de obter financiamento externo no montante desejado.
Em contexto de crise cambial aguda, a reverso ao regime de
licenas prvias foi provocada pela inviabilidade prtica de preservar
a liberalizao das importaes. verdade que o governo poderia ter
desvalorizado a taxa de cmbio ou liberado-a (e o fez em parte). Mas
mesmo economistas liberais reconheciam que as circunstncias
historicamente especficas do Brasil (exportador de commodities
inelsticas ao preo) no aconselhavam a proposta em geral. Gudin
repetia, em 1945, o recado de seu influente Caf e cmbio (1933),
afirmando em palestra aos cafeicultores que nenhum produto de nosso
comrcio internacional
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As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos
Dutra (1946-1950) e Cardoso (1994-2002)
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pode ser mais beneficiado pela estabilidade cambial que o caf []
as sucessivas desvalorizaes de nossa moeda s tem tido efeito
deprimente sobre os preos-ouro do caf, com grave dano para a
economia nacional, obrigando-nos a dar uma quantidade cada vez
maior de sacas de nosso produto em troca de nossas importaes
(Arquivo EUG/reg. Gudin F-pi45.09.16d). Ao invs de generalizar taxa
de cmbio desvalorizada ou livre, o governo preferiu promover as
exportaes de produtos gravosos com cmbio livre a partir de 1948,
estimulando as exportaes capazes de reagir a estmulos de preo.
Por outro lado, a restaurao do regime seletivo de importaes
permitia contornar a crise cambial sem experimentar o impacto
inflacionrio do encarecimento de importaes essenciais. O efeito
desta poltica conhecido: o bloqueio da importao de bens
no-essenciais e o barateamento relativo das importaes
complementares representou um estmulo considervel implantao interna
de indstrias substitutivas desses bens de consumo, sobretudo os
durveis, que ainda no eram produzidos dentro do pas e que passaram
a contar com uma proteo cambial dupla, tanto do lado da reserva de
mercado quanto do lado dos custos de operao. Esta foi basicamente a
fase de implantao das indstrias de aparelhos eletrodomsticos e
outros artefatos de consumo durvel (Tavares, 1963, p. 71; ver tambm
Malan et al., 1977, cap. 5).
A maioria dos intrpretes desta reverso alega no apenas que o
governo foi forado a realiz-la pela crise cambial (o que inegvel),
mas tambm que era inconsciente dos efeitos da restaurao de
controles cambiais sobre a substituio de importaes, o que no
corroborado por documentos oficiais (cf. Bastos, 2001; 2003). J no
discurso de fim de ano de 1947, Dutra anunciava programa de
investimentos pblicos (o que viria a chamar-se SALTE) como uma reao
diante dos limites da estratgia exportadora e como uma imposio das
circunstncias:
Os recursos da nossa exportao so insuficientes. Ou procuramos
outras fontes de exportao, ou havemos de substituir os nossos
acrscimos de compra com produo nacional, evitando, desse modo, o
aumento crescente da importao. No possvel escolher, com
exclusividade, um ou outro caminho. No h dvida, porm, sobre a
convenincia e urgncia de dotar o pas de meios para incrementar a
produo, atravs do reaparelhamento dos transportes, do aumento da
produo de energia e da explorao de petrleo Sade, alimentao,
transporte, energia e petrleo so as balizas que devem orientar o
nosso esforo de recuperao, uma vez reconhecido, depois do grande
otimismo inicial, que a confiana inicial na estabilidade do setor
externo se frustrara.8
O governo voltaria a reconhecer a necessidade de retirar
gargalos expanso industrial na Mensagem presidencial de 1948, uma
vez que a estratgia liberal fracassara. Agora, nas novas
circunstncias, para [] precaver os prprios
(8) Esta passagem do discurso de final de ano no era mero
acidente lingstico, sendo repetida textualmente na prxima mensagem
presidencial enviada ao congresso para abertura das sees, lida em
15 de maro de 1948 (Dutra, 1948, p. 178-179).
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Pedro Paulo Zahluth Bastos
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interesses do povo, necessrio firmar a noo de que o Brasil
precisa importar, mas com a finalidade de equipar-se
convenientemente, para incrementar a sua indstria e aparelh-la do
que lhe falta. (p. 147). Enquanto o governo favorecia importaes
essenciais, o Banco do Brasil passou a realizar poltica de crdito
mais acomodatcia (lembre-se que 1948 foi o primeiro ano da histria
em que os emprstimos para a indstria superaram os destinados ao
comrcio), de modo que se restaurava a combinao entre plano de
investimentos, poltica cambial seletiva, cmbio fixo e poltica
acomodatcia de crdito visualizada no final do Estado Novo.
No se exagere, porm, a racionalidade desta poltica. O Plano
SALTE foi pouco alm de um somatrio de projetos relativamente
desconexos, reunidos formalmente em projetos de gasto que
ultrapassassem o ano fiscal, sem definir cronogramas de execuo e
articul-los a fluxos de financiamento (cf. Draibe, 1980). No foi
acompanhado de qualquer reforma administrativa, nenhuma agncia
central de coordenao, nenhum esquema novo de financiamento ou
empresa estatal. A nica indstria nova a criar em seu anteprojeto
(material eltrico pesado para gerao e distribuio de energia
hidreltrica) desapareceria da proposta final: a substituio de
importaes ficava restrita aos ramos fceis. Tratou-se de retirar
alguns gargalos de infra-estrutura ao crescimento econmico,
crescimento este que acompanhou a expanso/diversificao industrial
induzida, espontaneamente, pela crise cambial e pela proteo
substituio de importaes: no foi produto de um plano governamental
abrangente.
De todo modo, o governo, forado a uma reverso, no conseguia
agradar nem a gregos nem a troianos. Velhos aliados liberais
exasperavam-se porque a estratgia inicial de incentivo s importaes
comeava a ser substituda pelo elogio do planejamento e da
substituio de importaes; Gudin escreveria uma violenta crtica ao
Plano SALTE, encarando-o como um retrocesso (cf. Bielschowsky,
1985). Vargas continuava torpedeando o governo de crticas (reunidas
em A poltica trabalhista no Brasil) por seu carter liberal,
anacrnico e omisso, embora o elogio do planejamento feito por Dutra
visasse em parte desarmar crticas da oposio ao alegar que o governo
j tomara as iniciativas exigidas pelo momento.
Mas o governo no agiria com a mesma presteza para controlar
outra fonte de desequilbrio externo: as remessas financeiras,
facilitadas pela liberalizao completa empreendida pela Instruo 20
da SUMOC em agosto de 1946 (tendo em vista as condies favorveis do
mercado de cmbio, no texto da lei), no paravam de aumentar sem que
o governo restaurasse os controles originais. Por no criar nem
contar com mecanismos internos de financiamento de projetos
essenciais (e ter abolido at o fundo constitudo com taxa de 5%
sobre transaes cambiais que financiara o programa que antecedera o
SALTE, isto , o Plano de Obras e Equipamentos), o governo
continuava esperando uma promessa liberal
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que tambm no se realizou: que um arcabouo amigvel para remessas
por si s induziria grande surto de financiamento externo. Tal no se
deu, e o governo amargou um saldo negativo de 500 milhes de dlares
de sadas lquidas de capital privado que manteve as reservas
cambiais em nveis pouco confortveis para financiar mesmo importaes
essenciais crescentes.9
Assim, a resposta crise da estratgia liberal foi restringida por
limites: (1) aos esforos de criao de mecanismos de centralizao
financeira
interna que apoiassem investimentos locais (privados e
estatais); (2) articulao planejada de metas de investimento e de
mercados a
criar aos quais talvez pudessem integrar-se filiais
internacionais, complementando investimentos locais (Bastos,
2001).
Em outras palavras, o governo foi obrigado a dar meia-volta no
pndulo em razo de uma crise que no queria experimentar; tomou
conscincia de certas iluses do liberalismo perifrico; mas
permaneceu distante de retirar e buscar implementar todas as
exigncias prticas que pudessem corresponder a esta nova
conscincia.
3 O pndulo do governo Cardoso (1995-2002) 3.1 A opo liberal
Anos 1990, tempos em que a ofensiva poltica neoliberal prometia
abundncia de financiamento externo aos pases (ditos emergentes) que
aderissem ao Consenso de Washington. O sistema monetrio e
financeiro internacional fora virado de ponta-cabea desde a
escassez de financiamento externo experimentada por Dutra ou
Vargas: a poca dos mercados domesticados pelo acordo de Bretton
Woods fora substituda pelo mundo das finanas desreguladas, por
ciclos de entrada e sada de capitais mais curtos, pouco favorveis
ao investimento produtivo e sujeitos a movimentos especulativos e
de contgio em escala global (Helleiner, 1994; Belluzzo, 1995). Em
meados da dcada, Cardoso no inaugurava a abertura comercial e
financeira no Brasil, mas a herdava de bom grado do governo Collor.
As reformas liberalizantes de Collor foram anunciadas na campanha
eleitoral de 1989, em que o candidato brandia slogans contra os
marajs do servio pblico, os elefantinhos do setor produtivo estatal
e as carroas produzidas pelo setor automobilstico protegido. claro
que a opo liberal no era consensual, havendo forte polarizao entre
Collor e candidatos esquerda (Brizola e Lula); mas tampouco
resultava de
(9) Na formulao insuspeita de Pedro Malan (1984, p. 65), [...]
As autoridades monetrias e cambiais do governo Dutra aparentemente
depositaram vasta confiana em uma soluo duradoura para o potencial
desequilbrio do balano de pagamentos nacional atravs da conta de
capital, vale dizer, atravs de uma poltica liberal de cmbio que, em
estimulando as sadas de capital, pudesse estimular tambm ingressos
brutos em proporo ainda mais significativa no futuro.
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idiossincrasia do candidato: suas posies liberais articulavam-se
a um movimento reformista amplo que se gestara durante a agonia
lenta do governo Sarney (cf. Cruz, 1992).
Uma vez no governo, tratou-se de realizar reformas semelhantes
quelas que vinham sendo propostas pelas instituies multilaterais
sediadas em Washington (FMI e Banco Mundial) e pelo Departamento do
Tesouro dos Estados Unidos, visando, em linhas gerais, reduzir e
delimitar o papel do Estado e aumentar o grau de concorrncia
(comercial e financeira) com menor proteo poltica e maior abertura
externa. A abertura comercial iniciou-se ainda no governo Sarney
com a eliminao de controles administrativos, radicalizada no
governo Collor e fazendo-se seguir de cronograma de desgravao que
visava reduo da mdia e da varincia tarifria (cf. Holanda, 1997); a
liberalizao financeira tambm se iniciara com algumas iniciativas em
1988, acelerando-se at 1992 com facilidades abertas de movimentao
via CC-5, dentre outras (cf. Margarido, 1997); o programa de
privatizaes foi inaugurado com o setor siderrgico (Usiminas, 24
out. 1991) estendendo-se depois para petroqumica, fertilizantes e,
j no governo Cardoso, transportes, telecomunicaes, energia e bancos
(cf. Oliveira, 1996).
O programa liberal foi ainda levado adiante no governo Cardoso
com uma srie de mudanas regulatrias que facilitavam o programa de
privatizao (EC-5 a EC-9/1995) e aprofundavam a abertura financeira,
facilitando fluxos de capitais de diferentes prazos e perfis sob
justificativa de adaptar o marco regulatrio domstico s novas
oportunidades da globalizao financeira (cf. Freitas & Prates,
2001). A justificativa da abertura comercial continuava, em parte,
a mesma de 50 anos antes: deixar para trs os lucros extraordinrios,
a diversificao excessiva e o descaso com ganhos de produtividade
que seriam inerentes ao modelo protegido de substituio de
importaes. A novidade que se passava a argumentar que a abertura
comercial era uma necessidade imposta pela globalizao, vale dizer,
pela nova forma de internacionalizao das corporaes, operando em
redes produtivas globais recorrendo ao outsourcing com nveis de
integrao vertical local menores do que, se alegava, na poca dos
mercados nacionais protegidos. Como a proteo substituio de
importaes seria inadequada atrao de investimentos destas
empresas-rede, a reduo da proteo (acompanhada de privatizaes e
outras reformas do marco regulatrio) atrairia investimentos que,
por sua vez, financiariam o aumento das importaes e eventuais
dficits correntes resultantes, ao mesmo tempo em que aumentariam a
produtividade geral do sistema (cf. Franco, 1996).
Com argumentos velhos e novos, liberar importaes foi considerado
um dever de casa para melhorar a qualidade dos produtos oferecidos
no mercado brasileiro, criando presso competitiva para que
produtores internos (nacionais ou no) melhorassem suas plantas e/ou
focalizassem suas atividades em produtos em
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que efetivamente fossem competitivos. Esta presso competitiva
tornou-se mais premente com o Plano Real, pois se tratava de usar a
liberao de importaes tambm para chancelar a estabilidade de preos:
o cronograma de abertura foi acelerado no segundo semestre de 1994,
durante a implementao do plano no final do governo Itamar, como
meio de evitar a transmisso para os preos das presses de custo e de
demanda que se manifestavam (Bacha, 1997, p. 43).
A presso competitiva no resultava, porm, apenas da acelerao da
abertura comercial, e era fortemente articulada prpria liberalizao
financeira, pois era acompanhada por uma poltica cambial que Edmar
Bacha, talvez o principal formulador do Plano, chamou de banda
cambial assimtrica, ou seja, o compromisso do BC de manter a taxa
entre um limite superior de R$ 1,00 e um limite inferior
indefinido, que na prtica provou estar em torno a US$ 0,83 por Real
(Bacha, 1997, p. 21), j que o real se apreciou rapidamente em julho
de 1994, sob presso da abundncia de capital externo destinada ento
aos mercados emergentes. Gustavo Franco, ento diretor do Banco
Central responsvel pela poltica cambial, admitia que:
[] ao abster-se de intervir no mercado de cmbio, o BC permitiu,
como se esperava, e como no poderia deixar de acontecer, uma
apreciao nominal da taxa de cmbio. Tratava-se de ir alm de uma
ncora cambial na medida em que se criava uma presso deflacionria no
universo de mercadorias e servios com seus preos associados ao
dlarA deflao no cmbio, bem como em diversos outros preos
determinados em mercados competitivos, produziu um choque de
expectativas que se revelou fundamental, nas primeiras semanas do
Plano Real (Franco, 1995, p. 59).
A taxa de cmbio apreciada continuou a ser usada como recurso de
controle dos preos domsticos durante todo o primeiro mandato de
Cardoso. verdade que, depois da crise do Mxico, transitou-se para
um regime de bandas cambiais, em que o Banco Central corrigia a
taxa de cmbio com depreciaes nominais que pouco compensavam a
apreciao do incio do Plano Real (seguindo ritmo claramente maior
que a inflao corrente apenas em 1997). O BC esforava-se para manter
controle sobre um ritmo de depreciao que no reduzisse a presso
competitiva das importaes, recorrendo a elevaes bruscas da taxa
Selic, aumento de depsitos compulsrios e incentivos entrada de
capitais sempre que ataques especulativos ameaassem o limite
superior do regime de bandas (cf. Filgueiras, 2000; Prates, 2000).
A deciso do governo Cardoso de no reverter a apreciao inicial do
real foi justificada em vrios textos de Gustavo Franco, executor da
poltica cambial e, a partir de setembro de 1997, presidente do
Banco Central; deixava-se claro que a taxa de cmbio verificada era
necessria para reforar a presso competitiva promovida pela abertura
comercial sobre preos internos, aumentando a produtividade
empresarial e a renda real dos consumidores:
[] a induo ( produtividade) tem vis deflacionista, pois o
repasse pode beneficiar o consumidor se a maior eficincia repassada
aos preos e se a
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manuteno da competio estrangeira impede o uso de margens de
lucro para a gerao de lucros extraordinrios retidos para fins de
investimentoA abertura a base para a construo de um novo modelo de
crescimento [] a abertura se tornou um causa progressista em oposio
ao protecionismo que busca suas justificativas em idias
nacionalistas e em grupos de presso comprometidos com os velhos
processos da substituio de importaes e a explorao de maiorias por
minorias organizadas e politicamente influentes (Franco, 1996, p.
42-44).
Franco e outros seguiam alegando que a nova taxa de cmbio
deveria reforar a disciplina alocativa de recursos de maneira
natural (sem proteo artificialista) e, em si mesma, a nova taxa no
produzia nem manifestava qualquer desequilbrio cambial; era uma
taxa de equilbrio determinada pela abundncia de capital externo
disponvel para os pases em desenvolvimento e, sobretudo, por um
novo modelo de crescimento econmico sustentado em aumentos de
produtividade. Estes aumentos eram, a um tempo, conseqncia e causa
da nova taxa de cmbio: a apreciao cambial reforara o poder
purificador da abertura comercial e da atrao de investimentos no
sentido de induzir ganhos de produtividade; os ganhos de
produtividade e a atrao de investimentos sustentariam a nova taxa
de cmbio apreciada e, com ela, a estabilidade de preos e a presso
competitiva inerente liberalizao de importaes (Franco, 1996;
Resende, 1996).
Muito se discutiu sobre a concordncia ou no do presidente
Cardoso com as teses defendidas pelo diretor do Banco Central (cf.
Safatle, 1996; Pinto, 1996). Na prtica, o diretor no apenas
continuou conduzindo a poltica cambial depois da crise do Mxico
como passou Presidncia do Banco Central em setembro de 1997,
dirigindo o BC com tamanha garantia de autonomia (coerente com sua
viso da poltica cambial e monetria) que, ao perd-la (em suas
palavras), decidiu demitir-se, em janeiro de 1999 (Franco, 1999).
Antes disto, a convergncia, seno terica, pelo menos prtica, era
ampla: o presidente Cardoso no somente conferia autonomia gesto do
Banco Central, mesmo diante de elevaes da Selic politicamente
amargas; ele freqentemente se referia verdadeira ncora que
sustentava o real como sendo o aumento revolucionrio de
produtividade que a abertura comercial e o ajuste das estratgias
empresariais teriam produzido.10
3.2 Crise e reverso
Na prtica, sustentar a apreciao cambial foi mais difcil do que
parecera de incio, uma vez que a fragilidade financeira externa
aumentou muito
(10) Prefaciando o livro de Franco (1995), Cardoso avisava que
para os crticos apressados do Real, a leitura do captulo 5
recomendvel. Na anlise das condies da dolarizao, explicam-se os
pressupostos para o xito dos programas de estabilizao e
conversibilidade fixa. V-se, com clareza, que expedientes como
juros altos e recesso no surtem efeitos positivos de mdio prazo [].
No referido captulo, os pressupostos para o xito ficam claros,
associando-se aos ganhos de produtividade trazidos pela presso
competitiva da abertura com apreciao cambial (Franco, 1995, p.
139-141).
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rapidamente ao longo do primeiro mandato de Cardoso (Belluzzo
& Almeida, 2002; Carneiro, 2002; Paula & Ferrari-Filho,
2003). As entradas de capitais que apreciaram a moeda podiam ser
revertidas abruptamente graas liberalizao financeira empreendida,
havendo desproporo entre o volume de ativos financeiros em moeda
local que podiam ser convertidos em dlar, a curto prazo, e o
limitado colcho de reservas usado para defender a banda cambial. No
obstante isto, o governo perseverou em no perder o vis
deflacionista da taxa de cmbio nas conjunturas de crise
internacional que diminuam a credibilidade no regime cambial
brasileiro (Mxico, 1995; sia, 1997; Rssia, 1998), contando com
polticas monetrias austeras, mas esperando que, no futuro, a
melhoria da competitividade empresarial e a permanente atrao de
filiais criassem bases de sustentao duradouras da posio externa do
pas (cf. Franco, 1995; 1996; Barros & Goldenstein, 1997).
A esperana frustrava-se a cada vez que o dficit comercial
aumentava, acompanhando a retomada do crescimento depois de cada
crise. A abertura comercial forou as empresas a realizar penosas
reestruturaes administrativas e a incorporar ganhos de
produtividade materializados, sobretudo, em bens de capital e
insumos importados, particularmente (mas no apenas) onde a
propriedade estrangeira aumentou por investimentos novos ou fuses e
aquisies (Sarti & Laplane, 2002). Mas a reao das empresas
abertura com apreciao cambial implicou mudanas na estrutura
produtiva e no comrcio exterior que manifestavam um aparente
paradoxo: enquanto as empresas sobreviventes tornavam-se mais
competitivas, a economia ficava mais vulnervel a choques externos e
dependente de alto nvel de importaes, graas perda de densidade das
cadeias produtivas internas vinculada ao outsourcing empreendido
(por empresas nacionais ou filiais) para defender, sobretudo,
parcelas do mercado interno (cf. Bielchowsky, 1993; Miranda,
2001).11
Assim, ao contrrio de trazer um novo modelo de crescimento
sustentado e duradouro, o Plano Real foi sucedido de ciclos curtos
de stop-go induzidos por movimentos de poltica monetria destinados
a defender a apreciao cambial de ataques especulativos; saindo de
cada crise, a expanso ulterior da renda era
(11) As exportaes, de fato, no acompanharam o surto de
importaes, concentrando-se em produtos intensivos em recursos
naturais e mo-de-obra barata e perdendo participao, com algumas
excees, em produtos intensivos em tecnologia e escala, cujos
mercados tendem a crescer mais do que o comrcio mundial e nos quais
valor agregado e produtividade so maiores. Como resultado, todos os
ramos industriais sofreram deteriorao do saldo comercial (exceto
madeira, fumo, couro/peles e alimentos), verificando-se deteriorao
maior em ramos intensivos em tecnologia e escala (forte dficit em
eletroeletrnicos e telecomunicaes, qumica e bens de capital) e
gerando saldo comercial menor nos setores intensivos em recursos
naturais (commodities como siderrgicos, papel e celulose, metais
no-ferrosos), mas preservando o saldo agrcola. Como esperado pelos
proponentes da abertura comercial, ela trouxe maior especializao na
alocao de recursos; mas, ao contrrio do que afirmavam, aparentou-se
mais quilo que analistas chamaram de especializao regressiva em
termos setoriais, macroeconmicos e da insero comercial do pas
(Laplane & Sarti, 1997; Sampaio & Naretto, 2000; Carneiro,
2002).
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limitada pelo vazamento para o exterior dos efeitos
multiplicadores e aceleradores do gasto interno, com aumento mais
que proporcional das importaes; enquanto o dficit de servios
financeiros resultante do crescente passivo externo, aliado ao
dficit com fretes, seguros e viagens internacionais, aumentava o
dficit de transaes correntes financiado em parte com um ciclo
expansivo de IDEs; sujeito, porm, a reverses abruptas do movimento
de capitais que foravam o Banco Central a defender a taxa de cmbio
apreciada, nas palavras de Cardoso ainda em incio de mandato,
atravs de expedientes como juros altos e recesso (que) no surtem
efeitos positivos de mdio prazo (Cardoso, 1995). O governo no foi
capaz de defender-se do ataque especulativo iniciado depois da
moratria russa, embora no hesitasse em recorrer aos juros altos,
preferindo no esperar que as reservas cambiais fossem esgotadas
antes de admitir a derrota e deixar a moeda flutuar em janeiro de
1999, a contragosto do presidente do Banco Central.12
Mas a perda de controle do ritmo de desvalorizao cambial se fez
a contragosto do prprio presidente. No h bases para afirmar que
resultou de uma mudana de orientao ideolgica da poltica econmica,
nem de uma opo que refletisse um novo equilbrio poltico entre
desenvolvimentistas e monetaristas. Tendo em vista o episdio da
demisso, alguns meses depois, do titular do Ministrio do
Desenvolvimento, Clvis Carvalho, e a centralidade conferida pelo
presidente preservao da credibilidade da poltica econmica perante
os mercados financeiros (associada credibilidade do prprio ministro
Malan), a balana continuou pendendo a favor das polticas
consideradas necessrias pela Fazenda. O que se pode afirmar que
mudou foi a crena de que o ajuste cambial poderia ter sido feito
mantendo o controle de seu ritmo. Como o presidente Dutra fizera
muitos anos antes, Cardoso reconheceria uma perda de iluses:
admitiria que a escassez de capitais detonada pela crise da Rssia e
a velocidade da perda de reservas o convencera da impossibilidade
de manter a poltica cambial, apoiada at ento na crena de que ganhos
de produtividade e a
(12) Para Gustavo Franco, a despeito da velocidade e montante da
perda de reservas cambiais que a poltica do BC na prtica no fora
capaz de estancar, a defesa da apreciao cambial no foi vencida pelo
ataque especulativo: ela foi desmontada sem sangue, no plano da
persuaso [] abandonada porque muitas vozes influentes acreditavam
que havia uma maneira de fazer as coisas mais fceis, convencendo o
presidente a reorientar as polticas de cmbio e juros (Franco, 1999,
p. 293). Mas a hiptese de que o BC poderia vencer o ataque
especulativo antes que as reservas fossem esgotadas uma conjectura
contrafactual que se mostrava mais distante medida que a reduo das
reservas aumentava o prprio ritmo do ataque. O principal alvo
poltico (e no tcnico) de Franco era certamente Jos Serra, crtico
interno da poltica cambial que publicara artigo recente denunciando
a armadilha da iluso da oferta de divisas que justifica a tese de
que polticas econmicas voltadas especificamente ao setor externo so
desnecessrias, uma vez que as polticas monetrias ou fiscais podem
dar conta perfeitamente do equilbrio externo desejado (Serra, 1998,
p. 9).
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abundncia de capitais permitiriam a correo lenta do cmbio,
prefervel por evitar os riscos inflacionrios de uma correo
brusca.13
De todo modo, o abandono forado da poltica de depreciaes
controladas trouxe expectativas de relaxamento da poltica monetria
graas retomada do crdito no exterior, depois que o alvo fixo do
ataque especulativo fora eliminado. Mas no levou a governo a
reverter a liberalizao financeira empreendida at ento, como se
estivesse convencido da armadilha da iluso da oferta de divisas de
que falavam membros da ala desenvolvimentistas; pelo contrrio, a
gesto de Armnio Fraga no BC aprofundou reformas liberalizantes do
movimento de capitais visando estimular novos influxos voluntrios,
enquanto contava com o emprstimo de reservas cambiais negociado em
acordos com o FMI (Freitas & Prates, 2001). Assim fazendo, como
no governo Dutra, parecia continuar depositando vasta confiana em
uma soluo duradoura para o potencial desequilbrio do balano de
pagamentos nacional [] atravs de uma poltica liberal de cmbio que,
em estimulando as sadas de capital, pudesse estimular tambm
ingressos brutos em proporo ainda mais significativa no futuro
(Malan, 1984). Com isto, podia-se at supor que a poltica monetria
ganharia amplos graus de liberdade para reduo das taxas de juros:
to cedo quanto no anncio do regime de banda diagonal endgena em 13
de janeiro de 1999, Fazenda e Banco Central alegavam que maior
flutuao cambial permitiria quedas mais rpidas e sustentveis das
taxas de juros (BCB, 1999). Ao contrrio do governo Dutra (protegido
pelo acordo de Bretton Woods por uma definio de liberdade cambial
que no inclua arbitragens de juros a curto prazo), o governo
Cardoso no recuperou amplo grau de autonomia na gesto monetria e
continuou subordinando o crescimento econmico desejado pelos
desenvolvimentistas poltica de juros considerada necessria pelos
monetaristas: elevaes abruptas dos juros continuaram sendo usadas
para conter fugas de capital e depreciaes
(13) Nas palavras do presidente, ainda em fevereiro de 1999, a
depreciao [] no demorou, como se fala. O que ocorreu que havia
abundncia de capitais no mundo e a desvalorizao podia ser feita
lentamente, como vnhamos fazendo. A fonte, entretanto, secou com a
crise de setembro (de 1998) na Rssia. Depois disso, tivemos que
fazer o acordo com o FMI, buscar fundos, tomar as cautelas possveis
para fazer a desvalorizao (Cardoso, 1999). Em final de mandato, o
presidente afirmaria que a depreciao no foi acompanhada de qualquer
mudana no equilbrio poltico do governo, uma vez que a maioria
daqueles que sempre a defenderam j estavam fora do governo, e que
perder a credibilidade do ministro Malan junto aos mercados estava
absolutamente fora de questo: Como todo mundo sabe, tenho um enorme
respeito pelo Gustavo, gosto do Gustavo. Pedi inmeras vezes ao
Gustavo que me apresentasse propostas de uma acelerao maior no
ajuste do cmbio. Mas ele tinha uma viso diferente. Achava que era
questo de persistir e que os fluxos de capital voltariam. A eu
decidi mudar. Sozinho, praticamente, porque os que podiam me ajudar
na mudana estavam longe [] O ministro Malan pediu demisso. Por
escrito. Eu no concordei [] uma coisa que custa a gente admitir,
uma inverso de uma das frases do Auguste Comte [os homens so cada
vez mais dirigidos pelo passado]. Agora, o contrrio, somos
dirigidos pelo futuro Pelas expectativas. Tem que haver
credibilidade. E o Malan tem muita credibilidade dentro e fora do
Brasil. As pessoas me diziam, fora do Brasil, apesar de tudo o que
aconteceu: Esse homem srio. Vocs imaginam o que vale isso no mundo
de hoje? Malan tinha credibilidade e a manteve (Cardoso, 2002).
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cambiais excessivas, buscando limitar seu impacto sobre o regime
de metas de inflao e o custo da dvida pblica e privada indexada ao
dlar. E nem o recurso a juros elevados nem as reformas
liberalizantes detiveram uma tendncia de piora dos termos do
financiamento externo que afetaria, nos ltimos anos do governo,
tanto desembolsos de crdito quanto influxos de IDE (BCB, 2003, cap.
5).
A depreciao cambial tambm trouxe expectativas de reverso rpida
do saldo comercial, cujo saldo estimado na reviso do acordo com o
FMI (5 mar. 1999) foi de US$ 11 bilhes, caindo para US$ 8 bilhes,
segundo clculos da Fazenda divulgados duas semanas depois. O
processo no foi nem to rpido nem to fcil quanto esperava o governo,
de maneira que o primeiro supervit foi experimentado apenas em
2001, chegando a US$2,6b.; em 2002, porm, o saldo atingiu
inesperados US$ 13,1b., continuando a crescer em 2003. A lentido do
ajuste foi usada como argumento de que o regime cambial de
depreciaes lentas no deveria ter sido abandonado (Franco, 1999),
embora a necessidade de um ajuste imposto pela crise dificilmente
pudesse ser questionada, assim como o impacto da depreciao cambial
no ajuste realizado. Comparado a 1998 (dficit de US$ 6,6b.), a
reverso em 2002 alcanara quase US$ 20b., com ganhos ligeiramente
maiores com reduo de importaes (US$ 10,5b.) do que aumento de
exportaes (US$ 9,2b.). O aumento das exportaes concentrou-se no
agronegcio e, na indstria, em ramos intensivos em mo-de-obra e
recursos naturais (txtil e vesturio, madeira, mveis, calados,
couro/peles etc.), exceto onde filiais exportam produtos intensivos
em tecnologia com pouca agregao local de valor (material
eltrico/comunicaes, farmacutica, material de transporte),
freqentemente em ramos com fortes dficits (particularmente qumica,
material eltrico/comunicaes, farmacutica, exceo de material de
transporte). A reduo de importaes, porm, no pode ser explicada
apenas como efeito da depreciao, contando tambm a retrao da demanda
interna, particularmente no ltimo binio; deste modo, a economia de
divisas escassas pode ser revertida se a economia voltar a crescer,
particularmente em ramos onde a criao de capacidade depende de
longos prazos de maturao e/ou do controle de patentes e domnio da
tecnologia por oligoplios globais (IEDI, 2002, vrios).14
(14) Substituies efetivas verificaram-se em alguns ramos da
mecnica, material de transporte e, sobretudo, em bens de consumo e
insumos semimanufaturados aproveitando capacidade ociosa, como
txtil e vesturio, madeira, mveis, calados, couro/peles, alimentos,
brinquedos, minerais no-metlicos, papel e papelo/grficos, etc. At
2001, ramos de material eltrico/comunicaes, qumica, farmacutica,
plsticos apresentaram at mesmo aumento de importaes, a despeito da
depreciao cambial, indicando que a substituio de importaes nestes
ramos mais difcil em razo da ampla necessidade de investimentos
para criar capacidade e do controle de patentes e domnio da
tecnologia por oligoplios globais. Em 2002, a queda nas importaes
em ramos deficitrios tampouco pode ser de todo explicada por
substituies: material eletroeletrnico e de comunicaes explicam algo
em torno de 50% da queda total das importaes, caindo desde o
racionamento de energia (como bens de informtica e eletrnica de
consumo) e da inflexo do ciclo de investimentos nas redes de
telecomunicaes privatizadas; importaes qumicas, porm, caram de
valor, mas no de volume; farmacuticos e perfumes continuaram
aumentando de volume e valor (IEDI, 2002, vrios nmeros).
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As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos
Dutra (1946-1950) e Cardoso (1994-2002)
Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274,
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A lentido do ajuste no foi tomada pelo governo como evidncia de
que o velho regime cambial no deveria ter sido abandonado mas, de
incio timidamente, como um alerta de que o ajuste devia ser
acompanhado por polticas de fomento ao investimento. O esforo
concentrou-se no ramo eletroeletrnico e de telecomunicaes, de incio
por meio do BNDES, cujos Programa de Apoio Implantao da Telefonia
Celular e Programa de Apoio a Investimentos de Telecomunicaes
(telefonia fixa) condicionaram financiamento a exigncias de
nacionalizao de equipamentos e insumos, tentando limitar (com pouco
sucesso) o outsourcing praticado pelos novos grupos controladores
do setor (cf. Prates, Cintra & Freitas, 2000; Sarti &
Laplane, 2002). Em paralelo, linhas destinadas ao financiamento das
exportaes foram criadas ou reforadas, como o Programa de Crdito ao
Comrcio Exterior (BNDES-exim), o Fundo de Garantia para a Promoo da
Competitividade, o Fundo de Garantia de Exportaes (seguro de
crdito), ou o Fundo de Aval para Exportao de Micro e Pequenas
Empresas (SEBRAE), dentre outros, acompanhados da instalao de oito
Fruns de Competitividade e, mais tarde, do Comit de Gesto da Cmara
de Comrcio Exterior no MDIC (Prates, Cintra & Freitas, 2000;
BCB, 2002; MDIC, 2002). No documento do MDIC apresentando os avanos
do comrcio exterior nos oito anos do Real, os programas de apoio
exportao so apresentados com a informao (duvidosa, mas
significativa) de que a poltica comercial brasileira, nos ltimos
oito anos, passou por duas fases distintas. A primeira foi a de
abertura comercial, de abertura do mercado interno s importaes. A
segunda marcada pela prioridade dada s exportaes (MDIC, 2002, p.
1).
Ainda que a persistncia da vulnerabilidade externa levasse o
governo a reforar polticas de fomento do investimento, nada ilustra
melhor a mudana lenta e hesitante de enfoque a respeito da
substituio de importaes do que o destino da Lei de Informtica no
segundo mandato de Cardoso. Em 1999, expirariam as isenes fiscais
previstas na Lei de 1992 (IPI e IRPJ), sob exigncia de que as
empresas destinassem 5% do faturamento para P&D, havendo forte
presso do MICT
e MDIC para estender os prazos at 2013. A renovao dos subsdios
experimentou resistncia do ministro Malan e envolveu conflitos que
acabariam levando queda do ministro do Desenvolvimento, Clvis
Carvalho, depois de discurso em que questionou a falta de coragem
da Fazenda em estimular o desenvolvimento do pas. O presidente
arbitrou a disputa, mandando ao Congresso projeto-lei que eliminava
a iseno integral e diminua anualmente seu valor at o mximo de 58%
do imposto devido em 2013 (reduzido pelo Congresso at 2009). O
processo decisrio indica que o presidente no era avesso demanda da
chamada ala desenvolvimentista, mas que a Fazenda retinha poder
incomparvel e parecia continuar acreditando na tese de que polticas
econmicas voltadas especificamente ao setor externo so
desnecessrias, uma vez que as polticas monetrias ou fiscais podem
dar conta perfeitamente do equilbrio externo desejado (Serra,
1998).
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A seguir, o estado do Amazonas perpetrou ao judicial que,
provida de liminar pelo STF no final de 2000, obrigou o governo a
renovar a tramitao da lei negociando mais concesses Zona Franca de
Manaus. A lei foi finalmente regulamentada em maro de 2001,
sancionada pelo presidente em dezembro ao definirem-se os
percentuais de IPI dos produtos sujeitos iseno (ento sujeitos
alquota de 2% desde que a liminar judicial fora concedida, um ano
antes). provvel que a ocasio tenha sido usada pela Secretaria da
Receita para atrasar o processo decisrio de definio das novas
alquotas, visando maximizar a arrecadao antes da iseno parcial. De
todo modo, a ocasio tambm foi oportuna para que a lei fosse
ajustada percepo de que era necessrio induzir substituio de
importaes para deter o crescimento do dficit do complexo eletrnico
(a lei aplica-se a produtos de informtica, telecomunicao, eletrnica
de consumo e componentes, ou seja, micros, celulares, televisores,
rdios, DVDs etc.), uma vez que as iluses quanto rapidez do ajuste
que seria propiciado pela depreciao cambial tinham-se perdido. A
lei passou a exigir que as empresas no apenas destinassem recursos
para P&D como tambm internalizem o Processo Produtivo Bsico, ou
seja, respeitassem percentuais de nacionalizao para cada produto
final. Em declarao surpreendente, feita 15 dias antes da sano
presidencial da lei, o ministro Pedro Malan defendeu a substituio
eficiente de importaes como forma de reduzir o dficit em conta
corrente, sendo necessrio ampliar tanto a produo exportvel como a
substituvel de importaes [] [pois] sempre pensei nas duas coisas
juntas (apud Soares, 2001). Implicitamente, o ministro parecia
admitir que anos de construo da credibilidade perante o mercado no
tinham sido suficientes para assegurar o equilbrio externo
desejado.
No nterim entre a regulamentao e a sano da lei, Srgio Amaral
tomava posse no MDIC (23 ago. 2001), em cerimnia na qual Cardoso
proclamou o novo lema de seu governo (Exportar ou Morrer), enquanto
o novo ministro prometia apoiar tambm a substituio de importaes em
setores deficitrios como petrleo, qumico e farmacutico,
eletroeletrnicos e bens de capital. Em entrevista concedida a
seguir, a resposta pergunta sobre qual seria sua relao com Malan e
Everardo Maciel, pois seus antecessores haviam cado depois de
desentendimento com eles, foi a seguinte:
Depois do real, a preocupao no era exportar, mas importar para
pressionar os preos e aumentar a competitividade. Agora a realidade
mundial diferente. Nesse momento, o peso da exportao no processo de
deciso de governo muito maior. Eu vejo o ministro da Fazenda to
interessado quanto eu em aumentar as exportaes [] Eu combinei com o
Malan que ns dois vamos juntos Fiesp. importante que ele oua o que
eu ouo na Fiesp e que a Fiesp oua o que eu ouo dele [] O cmbio
tornou mais caras as importaes e mais atraente a produo de insumos
internamente. Ento, h um esforo a ser feito para que certas
empresas possam substituir importaes, aproveitando a induo que o
mercado j est fazendo, dizendo que melhor comprar aqui do que
importar. Acho que alguns setores tm um campo muito grande. Por
exemplo, o setor eletroeletrnico, que nos ltimos cinco anos teve um
dficit comercial de US$ 35 bilhes (Amaral, 2001).
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As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos
Dutra (1946-1950) e Cardoso (1994-2002)
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No se exagere, porm, a racionalidade da poltica de fomento. As
iniciativas continuaram dispersas, sem que se pudesse desvelar um
plano que as integrasse, sobretudo na promoo do investimento em
nova capacidade. As crticas falta de planejamento chegaram ao auge
durante a crise da gerao de energia, mas, ao contrrio do governo
Dutra e fiel s restries ideolgicas do primeiro mandato, o governo
nem sequer se esforou em conferir aparncia de organicidade s
iniciativas dispersas. No Ministrio do Planejamento, o PPA
anunciado em 1999 (Avana Brasil) no pode ser confundido com um
plano de investimentos voltado superao da vulnerabilidade externa
do pas. No MDIC, apesar da preocupao com o dficit no complexo
eletrnico expressa na aprovao da Lei de Informtica e na constituio
de um Frum de Competitividade para o setor, no foi instalado
qualquer Frum ou qualquer poltica de fomento ( exceo do ramo de
transformados plsticos) mais geral para o setor qumico, em que o
dficit comercial era e maior do que no setor eletroeletrnico e de
telecomunicaes. Por outro lado, os esforos de promoo exportao
limitaram-se ao financiamento do comrcio exterior (pr e
ps-embarque) e promoo comercial, sem qualquer poltica seletiva
voltada ampliao de capacidade em ramos sujeitos a gargalos de
oferta.15
Seja como for, o governo Cardoso, forado a uma reverso, como o
de Dutra, tambm no conseguia agradar nem a gregos nem a troianos.
Velhos aliados liberais exasperavam-se porque a estratgia inicial
de incentivo s importaes comeava a ser substituda pelo elogio do
planejamento e da substituio de importaes, e a valorizao do dficit
pelo supervit de transaes correntes. Gustavo Franco escreveu artigo
feroz ao primeiro sinal de preocupao governamental com o dficit do
complexo eletrnico (Franco, 2000), continuando a criticar o
presidente pelo erro de ter acreditado na tese de que faziam
populismo cambial (Franco, 2001).
Os candidatos de oposio eleio presidencial de 2002, acompanhados
pelo prprio candidato da situao, continuavam criticando o
presidente pelo erro simtrico: a lentido com que o governo passava
a fomentar exportaes e apoiar a substituio de importaes.
Acompanhando tambm as polticas do prprio governo, a substituio de
importaes incorporava-se como tema central das plataformas de
campanha dos candidatos eleio presidencial, exceo do PFL (Zanini,
2002). Velhos aliados do governo exasperavam-se com a evoluo dos
tempos, temendo o sebastianismo Juscelinista (Abreu, 2002; Franco,
2002).
Consideraes finais As sees anteriores mostraram o papel que
constrangimentos no
ideolgicos ou corporativos, mas econmicos, jogaram para
restringir um curso de
(15) Estudo recente indica que estrangulamentos de oferta
envolvem em particular ramos exportadores da indstria, como
siderurgia e papel-celulose, que podem experimentar esgotamento de
excedentes exportveis caso as encomendas internas aumentem no
futuro prximo sem novas expanses de capacidade (cf. IEDI,
2003).
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Pedro Paulo Zahluth Bastos
Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274,
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desenvolvimento econmico menos autrquico no Brasil; nestas
circunstncias, muito ao contrrio de relatos liberais, foram crises
cambiais e no embates ideolgicos e polticos que levaram governos
influenciados por propostas de abertura comercial externa (que
explicitamente valorizavam a entrada barata de produtos importados)
a terminar com elogios substituio de importaes industriais
protegidas (espontaneamente ou no) da competio estrangeira, e a
valorizar exportaes capazes de gerar aquilo que a abertura
financeira no foi capaz de garantir: um fluxo estvel de reservas
cambiais e, assim, a capacidade de realizar importaes
essenciais.
Em ambos os governos, a tentativa de sustentar um regime liberal
de importaes contando com um ciclo harmonioso e estvel de influxos
de capital acentuou a fragilidade financeira externa e produziu seu
contrrio (independentemente da vontade liberal dos governantes): a
necessidade de reduzir importaes para arcar servios financeiros.
Compelidos por uma oferta de financiamento externo que ficou aqum
do necessrio, os governos Dutra e Cardoso precisaram contar com a
reverso do dficit comercial para pagar passivos externos, embora
continuassem contando com um ambiente favorvel sada de capitais
para induzir entradas.
Nas duas circunstncias, embora os governos alegassem j estar
realizando os ajustes que a oposio dizia ser necessrio fazer, um
consenso poltico favorvel ao fomento estatal ao desenvolvimento
industrial era construdo depois que uma alterao abrupta e
indesejada da taxa de cmbio ou da proteo comercial efetiva
pressionou o sistema de preos relativos, exigindo dos governos que
colaborassem para retirar gargalos que limitavam o livre curso da
expanso induzida pela crise cambial. Mas restries polticas,
ideolgicas e materiais interveno estatal limitaram o sucesso da
poltica de fomento industrial, e, embora a dinmica de produo e
investimento privado reagisse modificao de preos relativos, a
melhoria resultante do saldo comercial foi insuficiente para que os
governos pudessem insistir menos em obter os fluxos financeiros que
acreditavam corresponder sua adeso crvel a um ambiente regulatrio
atraente ao capital estrangeiro. Restries polticas, ideolgicas e
materiais internas que tambm limitaram a profundidade e escopo da
interveno estatal no Brasil em outras circunstncias histricas,
como, por exemplo, no segundo governo Vargas e durante o II PND do
governo Geisel, quando no se valorizou um regime liberal de comrcio
exterior (cf. Lessa, 1978; Bastos, 2001).
Diante disto, o artigo conclui refutando que a distino entre a
experincia brasileira e a experincia bem-sucedida de crescimento
exportador de manufaturas de alguns pases asiticos possa ser
encontrada, ao contrrio das narrativas comparativas liberais, na
menor ou maior adeso a um regime liberal de importaes. Pois, nas
duas circunstncias recentes em que a liberao das importaes foi
defendida como prioridade de governo no Brasil, foram
constrangimentos econmicos que a inviabilizaram. Se o
desenvolvimento
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As aporias do liberalismo perifrico: comentrios luz dos governos
Dutra (1946-1950) e Cardoso (1994-2002)
Economia e Sociedade, Campinas, v. 12, n. 2 (21), p. 245-274,
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brasileiro pode servir de espelho ao asitico, por apontar
precisamente que no bastam polticas liberais de importaes para
levar um pas a galgar posies na diviso internacional do trabalho e
contornar a fragilidade financeira externa. Inversamente, como
apontado por relatos que no se limitam a apontar a existncia de um
regime liberal de comrcio exterior (cf. Amsden, 1989; Wade, 1990;
Weiss, 1998), se a presena do Estado no desenvolvimento econmico de
Coria do Sul e Formosa pode servir de exemplo ao Brasil, por
demonstrar as vantagens de menores restries polticas, ideolgicas e
materiais participao do Estado no apenas em empreendimentos
estatais em atividades essenciais, mas tambm na orientao estratgica
de empreendimentos privados e em sua especializao setorial.
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