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O trote no Colgio Naval: uma viso antropolgica The hazing in the
Brazilian Navys College: an anthropological approach
Celso Castro
RESUMO Este artigo, originalmente escrito em 1985, foi
acrescentado de um prefcio e um posfcio. Ele apresenta uma pesquisa
sobre o trote no Colgio Naval que teve como evento-chave um drama
social (nos termos de Victor Turner): a expulso de vrios veteranos
aps terem sido denunciados por um calouro. Os dados emp-ricos provm
de um conjunto de entrevistas com cinco antigos alunos da mesma
turma. A hiptese principal de que o trote um rito de passagem que
focaliza o aprendizado da hierarquia para a vida militar.
PALAVRAS-CHAVE: militares; hierarquia; trote; Colgio Naval;
Brasil.
ABSTRACT This article, originally written in 1985, was added by
a new preface and a post face. It presents a research on the hazing
in Brazilian Navys College that had a social drama (in Victor
Turners terms) as a key-event: the expulsion of several veterans
after being denounced by a freshman. The empirical data come from a
set of interviews with five former students of the same class. The
main hypothesis is that the hazing is a rite of passage that focus
on the learning of the importance of hierarchy for military
life.
KEYWORDS: military; hierarchy; hazing; Bra-zilian Navys College;
Brazil.
Diretor do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria
Contempornea do Brasil (CPDOC) da Fundao Getulio Vargas (FGV) e
pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e
Tecnolgico (CNPq) / Brasil.
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Logo que a gente entra l, eu lembro bem, que na poca dos trotes
e tudo, eles [os
veteranos] fazem questo de conversar com a gente e de avisar
todo mundo, e ameaar,
e falar, e colocar dentro do cdigo de valores isso: que mesmo
que voc saia do Colgio, voc no conte a ningum, no
divulgue o que acontecia l dentro. Inclusive eles usavam
artifcios para que
isso ficasse na tua cabea mesmo. Por exemplo: eles diziam que,
se voc dissesse,
ningum ia te entender, todo mundo ia pensar que voc era babaca,
achar que era absurdo. Eles queriam colocar o trote como
uma coisa normal, todos aqueles valores como uma coisa normal,
como uma coisa
que assim porque deve ser assim. Como se tivesse uma razo de
ser, como se isso tudo
fosse, positivo pra formao pessoal de cada um, pr formao do
militar.
Prefcio
O texto que se segue foi originalmente concebido como relatrio
final de
uma pesquisa que desenvolvi para a disciplina de Mtodos
Antropolgicos,
ministrado por Mrcia Bandeira de Mello Leite, no curso de
graduao em
Cincias Sociais do Instituto de Filosofia e Cincias Sociais
(IFCS) da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), durante o
primeiro semestre de
1985. Mrcia pediu aos alunos que fizessem, individualmente e ao
longo do
curso, alguma pesquisa emprica com a utilizao de mtodos
antropolgicos,
sobre o tema que quisssemos. Um dia, por acaso, ouvi um amigo,
Arnaldo
Adnet, contar, numa festa, os trotes que havia sofrido quando
era aluno do
Colgio Naval. Imediatamente percebi que achara meu tema. Filho
de oficial do
Exrcito, como Arnaldo, eu tambm havia estudado dois anos em
colgios
militares durante o ensino fundamental e vivido um pouco o
cotidiano de um
estabelecimento militar de ensino felizmente, sem sofrer tantos
trotes quanto
ele. Arnaldo concedeu-me uma entrevista e ps-me em contato com
quatro
colegas de sua turma, que entrevistei para fazer o trabalho.
Em maro de 1986, Aurlio Vianna, ento aluno de mestrado em
Antropologia no Museu Nacional e pesquisador do CPDOC da Fundao
Getulio
Vargas, instituio na qual eu estagiava, leu o texto e fez vrias
sugestes.
Elaborei ento uma segunda verso, que ele passou para o professor
Gilberto
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Velho, com quem posteriormente conversei, e que me estimulou a
tentar a
seleo para o mestrado no Museu, em meados daquele ano. Aprovado,
em
maro de 1987 comecei o curso e, em julho, iniciei uma pesquisa
de campo na
Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), j sob a orientao de
Gilberto.
Esta pesquisa resultou em minha dissertao de mestrado, defendida
em 1989 e
publicada, no ano seguinte, em livro, com o ttulo de O esprito
militar
(CASTRO, 1990).
O texto sobre o trote no Colgio Naval, que acaba de completar 25
anos
sem nunca ter sido publicado, foi o incio de uma longa trajetria
de pesquisa
sobre os militares numa perspectiva antropolgica, cujo resultado
mais recente
o livro Antropologia dos militares (CASTRO e LEIRNER, 2009). Foi
muito
importante ter feito essa pesquisa sobre o trote antes de
iniciar, dois anos mais
tarde, a pesquisa na AMAN. Embora tivesse sido criado no meio
militar, a
experincia de estranhar o que me era familiar, nos termos de
Gilberto Velho
(1978) e refletir sobre isso na condio de pesquisador foi um
ensaio
fundamental.
No fiz pesquisa de campo no Colgio Naval, como posteriormente
faria na
AMAN. Trabalhei apenas com o resultado de entrevistas com
ex-alunos, a
respeito de eventos ocorridos em 1978 sete anos antes, portanto.
Vrios
temas, no entanto, foram recorrentes nas duas pesquisas: o mesmo
violento
ritual de passagem que marca o ingresso dos novos alunos; a
internalizao
coletiva de um ethos militar especfico; e a importncia do trote
como um
aprendizado prtico do significado da hierarquia, tanto para os
novatos quanto
para os veteranos. Um prmio para a pesquisa foi o fato de que
meus
entrevistados foram de uma turma que viveu um drama social
inesperado, a
partir de uma denncia que ps em xeque o trote e que culminou
no
desligamento de vrios alunos. Sem dvida, esse acontecimento, por
dramatizar
aspectos que de outra forma seriam menos perceptveis de um ponto
de vista
externo, facilitou meu trabalho como pesquisador.
No , entretanto, pelo mero interesse de ter sido a origem de uma
linha
de pesquisa que resolvi publicar o texto tantos anos depois de
escrito. Deixado
de lado por muito tempo, quando o reli h poucos anos, me
surpreendi com a
vitalidade com que busca reconstituir e compreender um fenmeno
social
importante da vida militar, e com o carter ainda original das
informaes nele
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contidas. Infelizmente ainda pequeno o conjunto de pesquisadores
e a
bibliografia produzida por antroplogos sobre a instituio
militar, e creio que
este trabalho sobre o trote pode ser uma contribuio bem-vinda.
Espero que o
leitor no julgue que eu tenha sido por demais condescendente
comigo mesmo,
e que aprecie o texto de um jovem pesquisador iniciante, ento
com 21 anos.
Segue o texto, no qual fiz pouqussimas modificaes, em sua
maioria de
forma. Ao final falo, num pequeno posfcio, sobre a recepo que
teve,
recentemente, ao ser lido por alguns ex-alunos da mesma turma do
Colgio
Naval, que viveram os acontecimentos aqui descritos.
Introduo
O objetivo deste artigo compreender o fenmeno do trote num
estabelecimento de ensino militar, o Colgio Naval. Localizado em
Angra dos
Reis, no Estado do Rio de Janeiro, o Colgio Naval foi fundado em
1951 e est
subordinado ao Ministrio da Marinha. Ministra o ensino mdio,
orientando o
aluno para o curso superior de ensino naval, ministrado na
Escola Naval, na
cidade do Rio de Janeiro.
O ingresso no Colgio feito atravs de um concurso de admisso. A
idade
mdia dos aprovados 15-16 anos. Eles seguem ento para Angra dos
Reis, onde
permanecem em regime de internato durante os trs anos seguintes.
Os alunos
podem visitar suas famlias apenas nos finais de semana (embora
no todos) e
durante as frias escolares. Da turma inicial de cerca de
duzentos calouros
(primeiranistas), no mais de cento e quarenta normalmente chegam
at o
terceiro ano, durante o qual se tornam veteranos.
entre um veterano e um calouro que se estabelece o trote. As
categorias
calouro, veterano e trote so interdependentes e sero
progressivamente
construdas no decorrer deste trabalho, tendo como base um
conjunto de
entrevistas que realizei separadamente com cinco ex-alunos de
uma mesma
turma do Colgio Naval, quatro dos quais permaneceram at o final
do curso.
Nenhum deles, entretanto, seguiu para a Escola Naval, ao fim do
que se
tornariam oficiais da Marinha. Logo, estas pessoas de certo modo
fracassaram
quanto ao objetivo da instituio. A especificidade deste grupo de
informantes
ser esclarecida no decorrer do texto.
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Realizei um total de sete entrevistas gravadas, cada qual com a
durao
mdia de uma hora. Durante todo este perodo, os informantes
mantiveram
uma postura de colaborao e entusiasmo com a pesquisa. No
entanto, me
fizeram a restrio de no fornecer seus nomes ou o ano em que
ingressaram no
Colgio Naval. O fato que os entrevistados estavam convencidos de
que
falavam de coisas proibidas e, deste modo, preferiam o
anonimato
possibilidade de serem de alguma forma prejudicados por suas
declaraes.
Diversas suspeitas foram, a princpio, por eles levantadas: por
exemplo, que eu
pertencesse ao Centro de Informaes da Marinha (Cenimar) ou fosse
um
jornalista preparando um artigo-denncia. Estas suspeitas s
desapareceram
quando passei a utilizar um dos informantes como intermedirio
nos contatos
iniciais para a realizao das entrevistas.
Na primeira parte do artigo, procuro oferecer uma descrio da
experincia vivida por essas pessoas na condio de calouros, tal
como ela
subjetivamente percebida por eles. Na segunda parte, analiso o
material
apresentado, centrando o foco na questo do trote.
I
Durante a viagem do Rio a Angra dos Reis, o ambiente de euforia
e
expectativa entre os novos alunos. Seguem todos juntos, num
nibus
especialmente fretado para a ocasio. O clima geral de descontrao
e
otimismo, e a primeira imagem do Colgio Naval parece confirmar o
esperado:
ns chegamos l por volta de meio-dia, foi no vero, fevereiro...
um dia muito
bonito. O Colgio um lugar muito bonito, alucinante [...] Eu
olhei e falei assim:
P, que beleza! Vamos pegar um almoo agora, deixar a roupa no
alojamento,
pegar um barquinho desses, dar um mergulho... Os calouros so
recepcionados pela banda de msica do Colgio, que toca Cidade
Maravilhosa, e
por um grupo de alunos.
Olha l, o cara tocando msica... P, ns tamos importantes. Na hora
em que cheguei, eu vi aquele pessoal todo bonitinho, de cabelinho
cortado, de branco, banda de msica... Eu imaginei: Eu vou ficar
igual a eles. Legal!
Para entrar no Colgio, os novos alunos precisam passar pela
tolda, um
pequeno corredor que leva ao ptio interno. Dessa forma, eles
cruzam a
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fronteira entre duas regies morais distintas:
Ns entramos, passamos pela tolda... A comeou aquele negcio de
colocar a camisa para dentro, barriga pra dentro, (...) espalmar a
mo... [Os veteranos] comearam: Todo mundo formado, fila por trs, no
pode falar, no pode usar pulseira... Comearam a tirar pulseira que
algum tivesse, ou ento cordo cheio de palhaada. E com a maior
energia. Aquilo j chocou o pessoal [os calouros].
Os novatos seguem para o auditrio, onde tem lugar uma palestra
geral,
com a presena de diversas autoridades militares. O comandante do
Colgio faz
um discurso de saudao, no qual o principal assunto tratado o
valor da vida
militar, e o esprito de entrega que ela exige. Alm disso, pede
para que os novos
alunos encarem o Colgio como uma famlia, e seus colegas de
outras sries
como se fossem irmos mais velhos.
Em seguida, os calouros so encaminhados para o ptio interno,
onde se
realiza uma formatura. Os novatos so ento chamados um a um,
recebem a
plaqueta de identificao, da qual constam o nmero e o
nome-de-guerra e
entram em forma, fazendo tudo rpido, em posio de sentido, mo
espalmada, sem se mexer. Os novos alunos s seguem para o
rancho
(refeitrio) depois que todos so chamados. Este processo demorado
e, alm
disso, a toda hora vinha um [veterano] pra perturbar, falar: -
Espalma a mo!
Olha pr frente: Militar tem que olhar pro horizonte, no pode
baixar a cabea!
A chegada ao Colgio Naval ocorre, para os novatos, duas semanas
antes
do incio das aulas. Neste intervalo, eles vivem o que conhecido
no Colgio
como perodo de adaptao. H muito o que aprender: os calouros
recebem
seus uniformes e aprendem a us-los; recebem treinamento de
ordem-unida,
onde aprendem a marchar, as posturas e os cumprimentos
militares; decoram o
nome de todos os oficiais do Colgio, assim como aprendem os
hinos da
Marinha e do Colgio Naval:
O Colgio Naval a esperana da Armada brasileira. O nosso ideal no
alto manter sua bandeira.
Chamarei a este ensino de frio, em contraposio ao ensino quente
o
trote, objeto central da anlise. O ensino frio caracterizado por
sua
formalidade (est calcado nos regulamentos da instituio e na
etiqueta militar)
e por seguir apenas uma direo (da instituio ao novato). Por
outro lado, o
ensino quente informal e age em duas direes, possuindo um carter
de
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reciprocidade. Este ensino ser descrito e analisado no decorrer
do trabalho.
Durante o perodo de adaptao, a maior parte dos terceiranistas
e
segundanistas ainda no regressou das frias. Os veteranos que
esto no Colgio
neste perodo formam um grupo de cerca de trinta pessoas, e so
estes alunos os
principais responsveis pelo treinamento dos calouros. De
direito, esta seria
uma tarefa exclusiva dos oficiais superiores do Colgio, mas de
fato eles, em
grande medida, delegam a tarefa aos veteranos. Estes so bastante
rgidos em
suas novas atribuies qualquer erro cometido pelos novatos
imediatamente
punido: Um dia cantaram fraco o hino da Marinha, a a gente teve
que escrever
cem vezes o hino.
tambm durante o perodo de adaptao que os novatos comeam a
ter
contato com os trotes: eles devem obedecer a todas as ordens
dadas pelos
veteranos, que precisam ser tratados com o mximo respeito e
humildade.
Qualquer relaxamento destes preceitos acarreta humilhao para o
calouro.
Diversas situaes so forjadas para testar a obedincia a estas
normas, como
ilustra o exemplo seguinte:
[Os veteranos] faziam uma sacanagem que o seguinte: eles pegavam
um dos meus colegas e mandavam ele fazer gracinha... imitar a
Gretchen, por exemplo [danando e rebolando]. [O calouro
perguntava:] P, Gretchen, cara? A o veterano [gritando]: - O qu!?
Cara!? Voc t louco, cara? T pensando,que t na sua casa? Voc tem que
falar: - Senhor, ser que o Senhor no se equivocou? - E alis, voc
nunca nem pondere uma ordem minha! A o cara imitava a Gretchen. O
pessoal j tava avisado que no podia rir, s que eu ria. Um dia que
eu ri, por causa dessas gracinhas, o cara falou: - Paga dez
[flexes]. A eu paguei. O cara falava: - Beije o solo da Ptria
amada.
Trotes deste tipo so chamados de prefixos, e as variaes so
mltiplas:
os calouros so obrigados a dramatizar anncios de televiso,
artistas, diversos
tipos de dana: Eles tambm escolhem os caras mais metidos a macho
para
imitar [o conjunto feminino] As Frenticas. Fica um bando de
sem-jeito
danando e cantando: - Eu sei que eu sou/ Bonita e
gostosa....
Alm disso, os veteranos iniciam as carteaes. O significado de
cartear
requisitar. O calouro carteado pelo veterano para limpar seu
cinto, engraxar os
sapatos, arrumar seu armrio ou realizar qualquer outro servio
semelhante.
importante observar que apenas os veteranos os alunos do
terceiro ano
podem cartear um calouro. Esta prtica, como veremos adiante,
interditada
aos alunos do segundo ano. Durante todo o perodo de adaptao, o
novato
vive em permanente regime de abrolhos. O significado desta
palavra alerta.
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O abrolhos definido pelos calouros como um clima, durante o qual
so
permanentemente vigiados pelos veteranos. Durante o abrolhos, os
calouros
no podem andar, s podem correr. S pode andar, quando entra no
alojamento
ou no rancho. Nos corredores, no ptio, em todos os outros
lugares voc tem
que correr, voc no pode andar.
Alm disso, durante este perodo de abrolhos os calouros no tm
acesso
a qualquer forma de diverso, no podem conversar entre si e esto
expostos
aos mais variados testes. Podem ser inquiridos, por exemplo,
sobre o horrio
exato do pr-do-sol em um determinado dia ou sobre o nome de
todos os
oficiais que trabalham no Colgio Naval. Se um calouro no souber
responder,
geralmente ter de pagar flexes como punio, ou ento fazer
cpias
interminveis de hinos e regulamentos.
A vigncia do abrolhos mantida e controlada pelos veteranos.
Os
oficiais do Colgio, segundo o depoimento dos calouros, fazem
vista grossa e
delegam grande parte de suas funes aos veteranos. Estes so
onipresentes em
todas as atividades dirias dos calouros. O nico horrio livre aps
o jantar e
dura pouco mais de uma hora, porm justamente neste horrio
que
geralmente ocorrem as carteaes. Em seguida,
[...] chegava a hora de ir pra sala de aula, para os veteranos
darem uma aulinha de regulamentos, deveres militares... Eram os
veteranos que ensinavam tudo. [...] Ento eles davam duas horas pra
voc aprender, por exemplo, o hino do Colgio Naval. Se voc at o
final no tivesse aprendido esse hino, ento a turma toda [...] ia
pagar flexo [...] Eles ficavam mais era de sacanagem, gostavam de
brincar, [...] mandavam fazer prenda, danar l na frente, mandavam
contar a primeira experincia sexual de cada um [...]
Alguns calouros, em atividade ininterrupta e sem momentos de
privacidade, chegam a perder importantes referenciais temporais,
inclusive
biolgicos: Na primeira semana eu me esqueci de fazer coc!
incrvel... Voc
no tem tempo pra nada e se esquece at de fazer coc! [...] voc no
tem nem
tempo de pensar o que voc est fazendo.
Alm dessa alterao brusca do ritmo dirio de suas vidas, os
calouros tm
seus contatos com o mundo de fora rigorosamente controlados. Os
novatos, pelo
regulamento interno do Colgio, no podem ir cidade passear ou
mesmo sair
do permetro do Colgio. Por sua vez, os veteranos se encarregam
da proibio
de ler jornais ou assistir televiso. S resta ao calouro escrever
cartas ou
telefonar para a famlia. Entretanto, mesmo aqui o controle se
faz presente:
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Eu tive que me inscrever na telefnica do Colgio pra falar com
meus pais [...] Quando chegasse a sua vez, voc era chamado. No
primeiro e no segundo dia eu no consegui linha, s no terceiro dia
de noite [...]. Entro numa cabine acarpetada de preto, fechada com
vidro, sem uma abertura. Era pra voc suar e no demorar. Eu estava
ali h trs dias, que pareciam trs anos, sem ter nenhuma notcia do
mundo de fora [...], s tinha noo do que se passava ali dentro.
Vrios calouros desistem antes do final do perodo de adaptao e
saem
do Colgio Naval. Mas esse fato no chega a alterar a rotina:
Eu me lembro que um cara [...] ficou uns dois dias, a no dia
seguinte j chamou a me dele, a a me foi l e j assinou a baixa dele.
[O calouro] tava chorando, passando mal... E ningum dava a mnima,
no. Ningum dava descanso. Era aquilo mesmo, tinha que sair, era pra
isso mesmo, sabe? Era mais uma seleo, uma garimpagem. [Os
veteranos] dizem assim: - Se voc for fraco, voc no agenta essa
semana. Se voc no agentar porque no era pra voc ser militar, porque
voc fraco.
No primeiro fim-de-semana aps a chegada ao Colgio Naval no h
licenciamento, o que significa que os calouros no podem viajar
para suas
casas e devem permanecer no Colgio. No entanto, suas famlias so
convidadas
pela instituio para um passeio de barco no domingo. Vale
ressaltar que, para
todos os entrevistados, o grupo familiar desempenhou um papel
importante no
estmulo e apoio deciso de ingressar no Colgio. Geralmente os
novatos tm
algum na famlia, ou dentre os conhecidos mais prximos, que
possui ou
possuiu algum vnculo com a vida militar. Para o novato, o
caminho escolhido
permitir alcanar prestgio social, estabilidade, segurana e um
bom nvel
econmico. A curto prazo, ele deseja obter o respeito da famlia,
sair de casa,
tornar-se independente: Quando voc entra, voc o orgulho da
famlia, um
homem ntegro, de valor, respeitado na sociedade [...] voc
consagrado pela
famlia, tem mais direitos, j comea a ser mais respeitado.
O final do perodo de adaptao coincide com o incio das aulas e
a
chegada do restante dos alunos do segundo e terceiro anos. At
ento, os
calouros estiveram em contato apenas com os veteranos
oficiais-alunos
(veremos a seguir o que isto significa) e com alguns poucos
segundanistas que
anteciparam sua volta das frias.
Os alunos do Colgio Naval so formalmente divididos pelo
regulamento
da instituio e pelos oficiais em trs grupos: primeiranistas,
segundanistas e
terceiranistas, conforme o ano escolar que estiverem cursando.
Esta diviso
visvel no prprio uniforme dos alunos: os primeiranistas usam uma
estrela
como distintivo, os segundanistas duas e os terceiranistas trs.
Mas os alunos,
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informalmente, recorrem a outra diviso, fundada em critrios que
no o da
escolaridade. Aqui, o ponto fundamental a ser compreendido que
na
caracterizao destes trs grupos, os alunos recorrem ao trote
como
denominador comum. Desta forma, os veteranos so aqueles que
podem dar
trotes mas nunca podem receber; os segundanistas so aqueles que
nunca do
nem recebem trotes; e os calouros, aqueles que recebem mas nunca
podem dar
trotes. O quadro seguinte resume esses atributos:
CALOURO SEGUNDANISTA VETERANO
DAR TROTE
- - +
RECEBER TROTE
+ - -
O status do calouro pode ser percebido atravs de duas citaes que
os
veteranos os obrigam a decorar: Calouro s tem dois direitos: o
direito de ser
calouro e o direito de no ter direitos e a definio de calouro:
subnutrido de
subnitrato de p de pulga, que navega sobre um mar de merda,
impulsionado
pelo peido de uma minhoca desidratada, em direo puta que o
pariu.
Os segundanistas, apesar de no darem trote, devem ser
respeitados pelos
calouros, que devem trat-los por senhor. Os segundanistas no
sofrem
quaisquer restries por parte dos veteranos, exceto a interdio do
poder de
dar trotes.
A posio mais alta na hierarquia interna do corpo de alunos
ocupada
pelos veteranos. A estes, os calouros devem apresentar o mximo
de respeito e
subservincia possveis. As ordens recebidas no devem ser
ponderadas, muito
menos recusadas. Os veteranos so tambm responsveis, em grande
parte, pelo
que chamei de ensino frio e pelo controle oficioso das
atividades dos
calouros: tudo que veterano mandar lei... Ento eles s chegavam e
falavam:
- Psiu, vem c. Tinha de ir, j ficava em sentido, muita gente j
tremia de
medo.
Cerca de vinte veteranos so oficialmente nomeados pela instituio
como
oficiais-alunos. So aqueles alunos que, ao passarem para o
terceiro ano,
obtiveram as melhores notas durante o segundo ano e receberam os
melhores
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conceitos: No conceito j entra o [conceito de] comportamento
militar: boa
aparncia, boa apresentao, a pessoa que se destaca nos esportes,
pessoas que
eles [os oficiais] olham que tem assim uma postura de lder, que
se afirma.
Ser promovido a oficial-aluno no incio do terceiro ano
representa, na
verso oficial da instituio, um prmio concedido aos melhores
alunos.
Formalmente, os oficiais-alunos so os intermedirios entre os
alunos e os
oficiais do Colgio. Alm disto, desempenham funes como elaborar
horrios
de planto e servio nos alojamentos ou comandar os alunos nos
desfiles e
paradas. Tambm so os oficiais-alunos que, na maioria das vezes,
ministram o
ensino dos regulamentos e da etiqueta (o ensino frio) aos
calouros. Eles so
identificados por insgnias que usam no uniforme, marcando o
posto que
possuem: comandante-aluno, imediato-aluno etc. No plano informal
isto ,
entre os prprios alunos , o fato de um veterano ser ou no
oficial-aluno parece
no ter maior importncia. Os oficiais-alunos, por exemplo, no
possuem
autoridade para dar ordens aos seus colegas do terceiro ano.
Entre eles
predominam as relaes horizontais de camaradagem e
companheirismo. No
relacionamento cotidiano com os calouros, os oficiais-alunos
distinguem-se dos
outros veteranos em apenas um ponto: Acho que eles se
preocupavam mais em
fazer as coisas conforme o regulamento militar. Eles davam
trote, mas o trote
deles era mais leve, era coisa que no fugisse muito do
regulamento, porque eu
acho que eles se preocupavam muito com conceito.
Para os calouros, o momento da chegada do restante dos veteranos
das
frias, para o incio das aulas, particularmente dramtico:
Quando eles chegam, um corre-corre no Colgio. Os caras chegando
com mala pesada... - Calouro, venha c, leve esta mala l pro
alojamento, pegue minha roupa de cama na lavanderia e j faz a cama.
calouro correndo pra tudo quanto lado, os veteranos chegando, todo
mundo morrendo de medo. Eles chegaram com a corda toda [...].
Naquele dia, eu acho que fiz umas quinze, vinte camas. Se no
estivesse esticadinho, eles amassavam tudo, tiravam, mandavam fazer
de novo. [...] Foi violento. A gente j saa do alojamento cheio de
cinto, sapato [...].
Com o incio das aulas, duas semanas aps a chegada dos calouros
ao
Colgio, encerra-se o perodo de adaptao. O regime de abrolhos
suspenso, embora posteriormente ele possa, como veremos adiante,
ser
novamente decretado.
As atividades dirias executadas pelos calouros obedecem a uma
rotina
bem definida. Durante todo o ano, eles so despertados s 6:00h.
Tm vinte e
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cinco minutos para o asseio e a faxina (limpar os cintos,
engraxar os sapatos
etc.), e s 6:25h devem entrar em forma. Nesta formatura eles
recebem alguns
informes sobre as atividades do dia, seguindo logo aps para o
refeitrio, para o
desjejum. As aulas comeam s 7:00h e seguem por toda a manh. H
um
intervalo, porm, para a formatura-geral dos alunos, onde so
dadas
informaes e instrues mais detalhadas sobre os acontecimentos no
Colgio.
s quartas-feiras esta formatura mais complexa, envolvendo o
desfile dos
alunos e a participao da banda de msica.
s 11:55h h uma nova formatura para o rancho. mesa do almoo,
os
veteranos se servem primeiro, seguidos pelos segundanistas e, em
ltimo lugar,
pelos calouros. Aps a refeio, os calouros tm um horrio livre at
s 14:30h,
quando comea a aula de educao fsica. Esta dura em mdia duas
horas,
podendo ocasionalmente ser substituda por uma palestra ou por
instruo
militar. Aps a educao fsica, h mais duas formaturas: uma para
hastear a
bandeira e outra para o jantar, que servido s 18:00h. s 19:30h
tem incio o
estudo obrigatrio: os calouros devem permanecer em sala de aula,
vigiados
por um veterano, at s 21:30h, quando ceiam. O toque de silncio
dado s
22:00h. Quem quiser continuar estudando precisa inscrever-se na
lista do
estudo facultativo.
O pouco tempo livre que sobra neste horrio dirio no pode ser
preenchido, pelo calouro, com os entretenimentos e diverses
habituais dos
outros alunos. O calouro proibido, pelo veterano, de freqentar a
sala de TV, o
salo de jogos ou o bar dos alunos. Alm disso, no pode
participar
integralmente dos diversos grmios, grupos de alunos que se renem
em
torno de uma determinada atividade (som, vela, religio,
capoeira,
radioamadorismo, etc.). O calouro s pode participar de um grmio
realizando o
trabalho sujo: se for do grmio de vela, por exemplo, seu
trabalho ser o de
limpar, montar e carregar os barcos: no ir, porm, velejar.
O calouro no tem nenhum horrio realmente livre em sua rotina
diria.
Quando no est executando alguma das atividades acima descritas,
est sendo
carteado (isto , fazendo pequenos servios para um veterano) ou
recebendo
trotes. O trote acontece desde a entrada do novato no Colgio
Naval, mas
intensifica-se aps o perodo de adaptao. H diversos exemplos de
trotes,
dentre os quais:
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- Submarino: acontece no banheiro; o calouro, vestido, tem de
afundar
repetidamente na pia coletiva, que foi previamente enchida.
- Pingim: o calouro deve permanecer na ponta dos ps sob o
chuveiro.
Este trote acontece pela madrugada, com muito frio, e no deve
cair do
chuveiro mais que um pequeno filete de gua gelada.
- Regata: acontece durante o jantar. H duas modalidades
principais: na
regata a remo, os calouros devem disputar quem toma mais
depressa a sopa.
Na regata a vela, no podem usar a colher, devem levar a boca
diretamente ao
prato, s vezes sem poderem segurar com as mos.
- C-bol: uma espcie de jogo de futebol. O campo o piso do
banheiro,
no qual so marcadas as traves de gol. O piso molhado, e a bola
um sabonete.
Os calouros ficam nus e so divididos em equipes de trs
jogadores. Podem
empurrar o sabonete apenas com as ndegas. Vence a partida quem
primeiro
marcar dois gols. O jogo sempre muito disputado, pois os
participantes sabem
de antemo que quem perder levar uma suga.
- Suga: uma espcie de surra, mas de exerccios. O calouro
obrigado a
executar diversos exerccios fsicos at o completo esgotamento. A
suga ocorre
geralmente de madrugada, e pode durar horas. um dos trotes mais
comuns:
eu chegava a ter pesadelo, de tanta cimbra. As primeiras sugas
que eu tomei
eu passava mal, as pernas pareciam que iam explodir.
- Lavagem cerebral: o trote mais temido, embora raramente
seja
aplicado: voc ter um vaso sanitrio cheio de fezes, voc coloca a
cabea da
pessoa l, bem perto das fezes, e d a descarga. Uns dias depois,
ele [um colega
que recebeu o trote] ficou com o ouvido entupido. A ele foi na
unidade mdica
que tinha no Colgio, pra fazer uma lavagem. Quando o mdico fez a
lavagem,
saram fezes de dentro do ouvido dele.
- Peitmetro: o calouro enche o peito de ar e tem de agentar os
socos
que seguidamente lhe desfere um veterano. Este trote considerado
primitivo
por muitos veteranos, j que se aproxima muito da simples
agresso.
Alm destes trotes, haveria muitos outros a serem citados. O
repertrio
potencialmente ilimitado: tudo depende da imaginao dos
veteranos. Embora
o trote seja oficialmente proibido no Colgio Naval, a opinio
unnime dos
entrevistados a de que os oficiais tem conhecimento de que ele
existe:
O trote era proibido no Colgio, mas os oficiais viam isso
acontecer e compactuavam, deixavam nas mos dos veteranos tudo
isso.
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[...] os oficiais estavam cagando, eles no estavam interessados
em reprimir o trote. Os oficiais cagavam e andavam, eles queriam
mais ver o pessoal tomando trote, eles achavam uma delcia. [Os
oficiais] chamavam de brincadeirinha ver o calouro pagando uma suga
[...] o oficial s vezes chegava e via o veterano enfiar uma ma
inteira na boca do calouro, passava rindo, achando engraado.
Por esse motivo, a maioria dos calouros encara o trote como um
fato
normal na vida do Colgio, como algo que recebe o apoio tcito dos
oficiais. Este
um dos motivos que justificam a obedincia aos veteranos. Alm
disso, os
calouros tm uma percepo clara de que esto iniciando uma
trajetria que os
levar, passado algum tempo, a urna posio estruturalmente inversa
que
ocupam na hierarquia interna do corpo de alunos:
Eu encarava os trotes como normas, era o jeito que eu via. Os
militares queriam voc para seguir a rotina deles l, comear a
obedecer para saber mandar. Voc aceita ser inferior sem falar nada,
porque voc sabe que no ano-que-vem vai ser superior. Essa e a ltima
vez que voc vai ser um militar inferior. Os calouros pensavam
assim: - Eles [os veteranos] levaram no primeiro ano. Ento, tudo
bem. Eu vou at levar, porque, quando eu for veterano, eu vou fuder.
Tinha calouro que j falava isso na hora de levar um trote, ele j
pensava no que ele iria fazer quando fosse veterano. [Os calouros]
j sabiam que ia ser assim, que eles iam passar um ano levando
trote, mas que depois eles iam passar o resto da vida dando
trote.
importante observar que o poder que um veterano tem de ordenar
no
encontra fundamento ou respaldo em alguma ordem formal ou
regulamentar da
instituio. Isso pertence a uma ordem informal, mantida pelos
prprios alunos
entre si. De toda forma, fica claro que a obedincia do calouro a
qualquer ordem
recebida de um veterano deve ser incondicional. Como j foi dito,
um calouro
no deve nem ponderar uma ordem. Deste modo, fica bem claro: at
que
ponto voc obedece um superior. [...] Voc obedece quase s cegas.
[...] Mandou,
tem que fazer [...] nem perguntar porque [...] no tem que achar
que t errado
ou certo [...] Voc t ali pra obedecer. Alm de obedecer, o
calouro deve
controlar seus sentimentos diante de todas as provaes. Chorar ou
rir durante
um trote visto como sintoma de uma falta de vocao para a
carreira militar:
Voc tem que sofrer os trotes calado, [...] no pode chorar, no
pode ser fraco.
Isso uma coisa que faz parte da vida do militar. O bom militar
aquele que
sofreu os trotes e enfrentou de peito aberto, e pagou o que
tinha de pagar, no
reclamou, no foi denunciar quem deu os trotes aos oficiais.
Somente
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portando-se desta forma que o calouro ter, no futuro, autoridade
para poder,
por sua vez, dar trotes. Um informante conta que, quando foi
veterano,
Tinha um cara [tambm veterano], que eu no deixava dar trote
nenhum. [...] Eu no deixava, porque eu achava errado. O cara nunca
pagou, nunca tomou suga com a turma. [Porque, quando foi calouro,
um irmo veterano o protegia.] Ento, chegou na poca de veterano, as
estrelas subiram cabea. Porque o pessoal que sofreu, tinha o
direito, pela vida que a gente tinha no Colgio, de fazer isso.
A opinio dos informantes a de que, atravs do sofrimento em
comum, os
calouros tornam-se unidos: Existe um companheirismo que nasce
nos
primeiros momentos, quando voc calouro. Quando voc est sofrendo,
voc
aprende a valorizar o companheiro que est sofrendo com voc.
[...] E isso tudo
eu acho que explica em muito como funciona o companheirismo
durante o resto
da vida de militar.
Os trotes ocorrem durante todo o ano, embora geralmente
diminuam
medida que ele se encaminha para o final. Durante todo o perodo,
as posies
ocupadas por calouros e veteranos continuam inalteradas: a
diverso do
veterano era dar trote, e a do calouro tomar trote. Pode
ocorrer, no entanto, o
caso de um grupo de calouros se recusar (cagar, na gria escolar)
a cumprir
determinada ordem. Por exemplo, no comparecer a uma suga marcada
com
antecedncia. Se isto ocorre, a turma de calouros corre o perigo
de amolecer,
na viso dos veteranos. Ameaados em sua autoridade, eles sentem
a
necessidade de reverter a situao, de dar uma dura.
Os veteranos, ento, pedem permisso aos oficiais, por intermdio
dos
oficiais-alunos, para ministrar ordem-unida aos calouros. Esta
ordem-unida, na
verdade, no seno o mesmo regime de abrolhos que esteve em
vigor
durante o perodo de adaptao. pelo fato de a aplicao do
abrolhos
implicar uma alterao significativa da rotina diria dos calouros
que se torna
necessrio pedir permisso aos oficiais do Colgio. Embora estes
autorizem uma
ordem-unida, sabem perfeitamente o que de fato acontecer, e mais
uma vez
fazem vista grossa: Os veteranos entravam nas salas de aula, na
hora em que
estavam todos reunidos. Iam entrando nos alojamentos, iam
entrando aqueles
trs ou quatro mais filhos-da-puta, pisando forte. A entravam,
faziam todo
mundo se levantar e comunicavam que estava decretado o regime de
abrolhos.
O abrolhos geralmente dura, nestes casos, dois dias. Durante
este tempo,
os calouros no podem sair de sala de aula nos intervalos; no
podem
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conversar; no podem andar, apenas correr. Os calouros, assim,
voltam
novamente a estar na marca, isto , obedecer a todas as ordens
recebidas com
presteza e incondicionalidade. O abrolhos se torna, portanto,
uma reao
coletiva dos veteranos contra um afrouxamento de sua autoridade
sobre os
calouros, que se expressa atravs de alguma recusa (tambm
coletiva) dos
calouros a alguma ordem recebida. A um caso individual de
recusa
corresponderia um tratamento tambm individual (uma suga, por
exemplo).
Todos os calouros recebem trotes. Alguns, entretanto, recebem
mais que
os outros: Tinha calouro que, durante todo o perodo que eu
passei l [seis
meses], tomou duas, trs sugas. Eu tinha sugas dirias. Estes
calouros mais
visados so conhecidos como lanceiros (aquele que d lances,
destoa,
aparece). Todos os meus informantes, enquanto calouros,
pertenceram a esse
grupo; eles participavam freqentemente da suga dos dez mais, dos
dez mais
lanceiros, que acontecia duas vezes por semana. Seleciono, a
seguir, alguns
trechos das entrevistas destes lanceiros:
Voc no pode rir, no pode chorar. Ento eu ria de tudo. [...] Eu
chamava [um colega] pelo nome dele, no mximo pelo sobrenome, que o
nome-de-guerra que ele escolheu [e no pelo nmero]. Eu era muito
[...] arrogante, em certas coisas. Era uma forma de me sentir vivo,
de me sustentar l dentro [...] Se eu no fizesse essas coisas eu
tinha a impresso de que eu era um igual, mais um igual a todo
mundo. Ou seja, que eu tava seguindo o mesmo caminho deles, e que
eu era igual a todo mundo [...] Eu achava que tinha que me destacar
em alguma coisa, eu no queria ser mais um na massa, como o objetivo
deles. Ele [um outro lanceiro] destoava pelo fato de ser muito
sincero. Eu o achava brincalho. O mesmo relacionamento que ele
tinha comigo, ele queria ter com um veterano. [Era mais visado]
quem sempre tinha aquela vidinha mais pro lado civil. Muito lance
de no cortar o cabelo, de no se tocar muito com o sapato, com o
cinto, sabe? De procurar fugir s regras pra fugir rotina. Sabe qual
foi o conselho que ele [o veterano comandante-aluno do Colgio] me
deu? Que eu entrasse dentro do armrio! Por que se l [no Colgio] voc
calouro, voc tem que ficar mais um no meio da massa, camuflado,
moita, no pode dar muita bandeira. [...] Ento ele falou pra mim: -
Voc est se destacando muito, voc aparece muito. Voc devia fazer
como eu fazia quando era calouro: eu me trancava dentro do armrio,
passava as tardes escondido dentro do armrio.
A anlise completa da categoria lanceiro ser feita na segunda
parte. Por
enquanto, suficiente constatar que o lanceiro aquele que menos
se adapta
rotina e s regras, que procura de alguma forma sobressair no
meio dos colegas.
Neste sentido, o lanceiro mais civil que militar. De fato, os
lanceiros
foram, pelo menos uma vez, acusados de serem anti-militares,
elementos
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negativos. A categoria oposta a lanceiro moc. Diversos
lanceiros
receberam o conselho de se mocozarem para no receber muitos
trotes.
Os que ficavam mais na deles [dos veteranos], que eles chamam de
mais moc, to l escondidos, ento eles [os veteranos] no pegam muito
no p, eles pegam mais no p dos lanceiros. E tinha gente que se
recolhia... ficar na sua, voc no aparecer, no querer saber o que
est acontecendo, se manter parte.
Um quadro de oposies resume o que foi dito sobre estas duas
categorias:
TIPOS DE CALOUROS
LANCEIRO MOC
d lances, destoa, aparece igual a todo mundo, se esconde
desorganizado organizado
foge rotina adaptado rotina
indisciplinado, rebelde disciplinado, obediente
recebe muitos trotes recebe poucos trotes
negativo positivo
civil ou anti-militar militar
Com o passar do tempo, os veteranos vo concentrando os trotes
sobre os
lanceiros. So estes que recebem os trotes considerados mais
pesados, como o
peitmetro, a lavagem cerebral e as piores sugas. Ao calouro
moc
restam apenas as carteaes e alguns trotes considerados
leves.
Por que os veteranos concentram os trotes sobre os lanceiros? A
resposta
de um lanceiro: porque eles no querem dar um trote num babaca
qualquer,
querem se divertir bastante. interessante, no entanto, saber que
a maior
parte dos lanceiros dessa turma no seguiram a carreira militar:
Eu acho que,
desses dez mais indisciplinados, somente, uns dois ou trs se
formaram na
Escola Naval, e saram tenentes [...] Uns sete eu acho que saram
fora do Colgio
Naval. Esta questo ficar mais clara na segunda parte do
trabalho.
No ano em que os informantes desta pesquisa ingressaram no
Colgio
Naval, diversos veteranos foram expulsos, de uma nica vez, por
causa dos
trotes. Este fato, que parece contradizer muito do que se disse
sobre o
alheamento dos oficiais em relao ao trote, precisa ser
explicado.
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No incio do segundo semestre, um dos lanceiros decidiu sair do
Colgio.
Embora neste mesmo ano vrios calouros j tivessem sado por causa
dos trotes,
este caso particular motivou diversas expulses. Para descrever
todo o processo,
transcrevemos, a seguir, um longo trecho do depoimento deste
lanceiro
protagonista:
Eu sa no primeiro dia de aula depois das frias. [...] Quando voc
entra de frias, voc retoma o contato com o mundo [...] Nisso eu j
estava [...] praticamente certo de sair. [...] Retomar os contatos
com o mundo influenciou. Eu pensava: - Eu t trancado num mundo
parte, eu t vivendo num mundo parte, diferente do mundo real. O
mundo real muito mais amplo, e muito maior, outra coisa. Se eu
continuar aqui dentro eu vou me perder, eu vou deixar de viver uma
srie de coisas. [...] A eu falei com meu pai, [...] contei os
trotes todos que os oficiais viam e no faziam nada. A meu pai [que
era oficial do Exrcito] foi no Diretor de Ensino da Marinha, que
era um almirante que estava recm-assumindo a Diretoria de Ensino
havia dois dias. Se ele estivesse h mais tempo, provavelmente no
teria feito nada, ou pelo menos no teria sido to enrgico. A o cara
se comunicou com o Colgio Naval e mandou que se tomassem
providncias imediatamente. [...] A os oficiais comearam a me
pressionar para eu dar o nome dos veteranos que davam mais trotes
para que eles pudessem tomar alguma atitude. Eu a princpio no
queria dar, porque eu sabia que eles seriam expulsos. Isso seria
espaiar, que dentro do cdigo de honra do Colgio seria uma coisa
muito ruim, e eu ainda estava muito envolvido com aquilo. [...]
Nisso, o oficial tentou induzir alguns nomes. Os principais nomes
que eles tentaram induzir eram pessoas que j teriam que sair do
Colgio [...] no fim do ano porque tinham tido problemas de vista
durante o perodo em que estiveram no Colgio Naval, ento no poderiam
mesmo ingressar na Escola Naval. Isso era uma forma de mostrar
trabalho pro Diretor de Ensino, mas que na prtica eram pessoas que
j iam embora mesmo. Ele tentou induzir essas pessoas e mais as
pessoas que ele tinha um conceito baixo. Ele dirigiu um pouco a
lista. E eu, numa certa ingenuidade, me deixei levar de certa forma
por isso. [...] No final saram onze. [...] Mas, sem dvida, todos os
onze mereciam ter sado.
Howard Becker chama a ateno para o fato de que a existncia de
uma
regra no garante automaticamente que ela ser imposta. H muitas
variaes
na imposio de regras. [...] mais tpico que as regras s sejam
impostas
quando algo provoque a imposio. [...] uma infrao no pode ser
ignorada,
uma vez tornada pblica. (1977: 86-87). O trote era oficialmente
proibido no
Colgio Naval, e entre as penalidades previstas inclua-se a
expulso.
Entretanto, o trote acontecia e seus autores no eram punidos. No
fosse a
interveno de uma pessoa bem situada na hierarquia militar o
Diretor de
Ensino Naval, neste caso o empresrio da imposio da regra
provavelmente
ningum teria sido expulso.
Como reao a este fato, que significava um perigo para a
autoridade de
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Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 569-595
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que dispunham sobre os calouros, os veteranos agiram de forma
coerente,
usando o recurso de que dispunham para esse tipo de situao:
decretaram o
regime de abrolhos. No cdigo de honra informal do Colgio
Naval,
denunciar os trotes (espaiar, na gria) era considerado uma falta
grave: Ento
muitos calouros eram at contra, achavam que ele no devia ter
dedurado, mas
tambm em funo do fato de que eles no passaram por quase
nada.
Se no passaram por quase nada porque, seguramente, no eram
lanceiros.
II
Minha hiptese inicial a de que a trajetria percorrida pelo aluno
no
Colgio Naval pode ser tratada como um ritual de passagem.
Conforme o estudo
clssico de Arnold Van Gennep (1978), os ritos de passagem se
decompem,
quando submetidos anlise, em ritos preliminares (ou de separao),
ritos
liminares (ou de margem) e ritos ps-liminares (ou de
agregao).
Os ritos preliminares so aqueles de separao do mundo anterior.
Esta
fase abrange o comportamento simblico que significa o
afastamento do aluno
de sua anterior situao civil. Ele passa por uma srie de
acontecimentos que
dramatizam sua entrada na instituio: o concurso de admisso; a
viagem
coletiva para Angra dos Reis, um local afastado de sua cidade de
origem; a troca
de seu nome usual por um nome-de-guerra e um nmero de
identificao; o
corte de cabelo e as cerimnias do primeiro dia no Colgio:
recepo, palestra
geral, formatura.
Aps a chegada no Colgio, o novato passa para a fase liminar (ou
de
margem), na qual permanecer durante todo o primeiro ano. Comea
ento o
processo que Erving Goffman chamou de mortificao do eu: uma srie
de
rebaixamentos, degradaes, humilhaes e profanao do eu. (1974: 24)
Faz-
se uma ruptura inicial profunda com os papis anteriormente
desempenhados
pelo indivduo. Isto conseguido atravs de:
1. A colocao de barreiras entre o novato e o mundo externo: ele
no
pode sair quando deseja, nem ler jornais ou assistir
televiso.
2. A perda de diversas propriedades anteriores: nome usual,
roupas civis,
um ritmo dirio pessoal. Estes bens so substitudos por outros sob
forma
padronizada. Os bens substitudos so claramente marcados como
relativos
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instituio: uniforme, identificao, horrios, etc.
3. A imposio de um padro de deferncia obrigatrio. Os calouros
so
muitas vezes obrigados a dar respostas humilhantes (vide a
definio de calou-
ro), devem sempre tratar os alunos de sries mais adiantadas por
senhor e
precisam humildemente pedir coisas pequenas (permisso para
entrar na
cantina, por exemplo). O principal a obedincia total a quaisquer
ordens
recebidas dos veteranos. O resultado de todos esses ataques ao
eu do calouro
um forte abalo em sua concepo anterior do eu. O papel de aluno
(e aluno
inferior) sobrepe-se a outros papis que ele estava habituado a
desempenhar.
Durante a fase de liminaridade, os calouros ficam como que
simbolicamente reduzidos a um nada, a uma matria-prima, um
estado pr-
social. Isto necessrio para que eles sejam novamente modelados
de acordo
com as exigncias da nova situao de vida. Neste sentido, o
desenvolvimento
do companheirismo atua como uma importante influncia
reorganizadora do
eu. Forma-se um grupo unificado (embora no homogneo) de
calouros, e no
uma coleo de pessoas. Em todas as situaes, o calouro deve
apresentar uma
renncia sua vontade individual: deve agir conforme seus colegas,
ser mais
um na massa, no deve dar lances. Dessa forma, os calouros esto
sujeitos a
dois modelos de interao humana: o de obedincia em um sistema
hierarquicamente estruturado e o de comunho em um grupo
relativamente
indiferenciado de indivduos que se submetem em conjunto
autoridade dos
superiores (TURNER, 1974).
O perodo ps liminar (ou de adaptao) compreende duas etapas.
Na
primeira, ao passar para o segundo ano, o indivduo encontra-se
no meio da
trajetria percorrida por todo aluno do Colgio Naval: j no apenas
uma
matria amorfa a ser moldada, mas ainda no completou o processo
ritual.
Falta-lhe o atributo de ordenar, que consegue ao passar para o
terceiro ano e
ingressar na segunda etapa da fase ps-liminar. a obrigatoriedade
de ser
obedecido pelos calouros, enquanto veterano, que marca o
encerramento do
processo ritual. apenas ao atingir este estgio que a trajetria
do aluno no
Colgio Naval se completa. Somente quando o veterano exerce sua
autoridade
sobre o calouro, no ato concreto de dar uma ordem, que ele se
auto-reproduz
enquanto sujeito e se reconhece como tal. Em outras palavras, o
ato de
ordenar que funda a realidade e d a plenitude de sua condio. Ser
veterano
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ter o atributo de ordenar, e isto que determina o papel e ao
mesmo tempo
estabelece a posio do veterano e do calouro no processo ritual.
No existe
veterano sem calouro, e vice-versa. Falando metaforicamente,
calouro e
veterano so os dois lados de uma mesma moeda.
Pelo que j foi dito, fica claro que o trote ocupa um lugar
privilegiado na
compreenso de todo o processo. Como vimos anteriormente, ele que
define e
hierarquiza calouros, segundanistas e veteranos. Logo, impe-se a
questo: o
que significa o trote? Para tentar responder a esta questo,
creio ser eficaz
utilizar a perspectiva defendida por Roberto Da Matta em relao
ao estudo dos
rituais. Para ele, os rituais no devem ser tomados como
momentos
essencialmente diferentes [em forma, qualidade e matria prima]
daqueles que
formam e informam a chamada rotina da vida diria. (1978: 60) No
caso
presente, esta rotina da vida diria significa a rotina da vida
militar, e a
profisso militar (para a qual o Colgio Naval uma preparao, um
ensaio) ,
como salienta Morris Janowitz (1971), mais que uma ocupao: ela
um
completo estilo de vida. O militar ingressa numa carreira na
qual uma s
autoridade regula todas as suas oportunidades de vida. O ciclo
completo de sua
rotina de vida diria ocorre sob o controle desta nica
autoridade.
Se, como defende Da Matta, no h mudanas de qualidade entre
as
categorias e relaes do mundo cotidiano e aquelas utilizadas nos
rituais, estes
so um modo de salientar e tornar manifesto, por meio de um
discurso
especfico, os aspectos da realidade a que se refere considerados
fundamentais.
O que distingue o ritual que ele dramatiza, focaliza (isto ,
ressalta, aumenta,
destaca) alguma relao da vida cotidiana, neste caso a vida
militar. O ponto
focal de todo o processo ritual pelo qual o indivduo passa no
Colgio, de calouro
a veterano, a identidade militar: o aluno aprende o que
significa ser um
militar. Trata-se, portanto, de um processo eminentemente
pedaggico, e a
minha tese principal a de que o trote, como um elemento
especfico do ritual,
fundamental no aprendizado e construo desta identidade. O trote
a
dramatizao daquilo que estrutura e da o estilo da vida militar:
a hierarquia.
Atravs da relao que se estabelece no trote, tanto o veterano
(que
ordena) quanto o calouro (que obedece) aprendem o que significa
e qual a
diferena entre ser hierarquicamente superior ou inferior.
Todavia, no se deve
esquecer que estamos diante daquilo que Turner (1974: 202) chama
de rito de
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Celso Castro O trote no Colgio Naval: uma viso antropolgica
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elevao de status: o calouro ser um dia veterano. Isto sempre est
claro para o
calouro: se hoje ele leva trote, para amanh poder dar; mas,
antes de subir,
preciso descer posio mais baixa. O trote, portanto, humilha
aquele que
aspira a uma posio hierarquicamente superior.
A Marinha (assim como o restante das Foras Armadas) uma
corporao
ordenada segundo um eixo hierrquico, e seus integrantes esto
dispostos numa
rigorosa ordem interna. Para cada posio ocupada por um indivduo
haver
sempre um superior (que manda) e um inferior (que obedece), e a
ordem
recebida de um superior, assim como a ordem que se d a um
inferior, no
admite recusa ou contestao. Isto uma pr-condio para a existncia
e
funcionamento das corporaes militares, e precisa ser muito bem
aprendido
por aqueles que querem tornar-se militares. A lio principal a de
que ordem
ordem, um dito caracterstico desse contexto.
O trote uma dramatizao (sempre, e necessariamente) entre um
calouro
e um veterano sobre eles (ou melhor, sobre aquilo que pretendem
vir-a-ser) e
para eles mesmos: ambos so aprendizes, cada qual de um plo do
mesmo eixo.
Na situao de trote, o calouro sente o que implica sua condio de
inferioridade
hierrquica aprende a obedecer e o veterano testa at onde vai
sua
superioridade hierrquica aprende a mandar.
O processo ritual vivido pelo aluno do Colgio Naval (pelo
aspirante a
militar) focaliza e o trote dramatiza este aspecto fundamental
da vida militar: o
poder hierrquico, a faculdade reconhecida ao superior, mesmo na
ausncia de
toda disposio legal ou regulamentar, de dar ordens a um
subordinado e de
modificar suas decises. No caso presente, aqueles calouros que
aprenderam a
dureza destes ensinamentos foram aqueles que se mocozaram, isto
,
aceitaram integralmente o novo estilo de vida que lhes era
oferecido, mesmo
que custa de perder o eu civil anterior.
Para compreender melhor a aceitao voluntria, por parte dos
calouros
mocs dos trotes, embora estes geralmente assumam a forma de
castigos e
flagelaes corporais, acho interessante seguir uma sugesto
retirada de um
texto de Pierre Clastres (1978). O objetivo do processo ritual,
em seu momento
de trote, imprimir a marca da identidade militar nos iniciados.
Pedagogia da
afirmao, e no do dilogo: por isso que os calouros devem obedecer
sem
contestar, devem silenciar. Quem cala consente. E em que
consentem os
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calouros que se mocozaram? Em aceitar-se no papel que almejam: o
de
militar. Esta lei dura e por isso escrita no corpo para
conservar sempre fresca
a recordao dessa dureza. Quem conhece a escrita no pode
desconhecer a lei.
O corpo aparece, no momento do trote, como a superfcie desta
escrita, como o
espao onde se inscreve a lei. Supe-se que ningum se esquea da
lei que serve
de fundamento vida militar. A lei escrita sobre o corpo uma
lembrana
inesquecvel: o corpo uma biografia e uma memria.
Por outro lado, lanceiros foram os calouros que, de alguma
forma,
procuraram preservar sua identidade civil anterior. Foi sobre
eles que se
concentrou o trote dos veteranos. Dessa maneira, alm de
delimitar e
estigmatizar os desviantes, os veteranos tinham uma boa
oportunidade para
testar e experimentar seu mais importante atributo, aprendizes
ainda que eram
da arte de ordenar. A correlao de foras, neste caso,
francamente
desfavorvel para o lanceiro. Restam-lhe atos de revolta como os
que este
trecho da entrevista de um deles revela:
O que a gente podia fazer? No podia se rebelar, porque os
oficiais estavam ali apoiando o regime. A a gente fazia pequenas
coisas, [...] de raiva, assim. Quando a gente pegava muito sapato
[de veteranos, para engraxar], a gente pegava uma agulhinha e ia
tirando dois pontinhos do sapato, pro sapato rasgar. Tinha gente
que, de dio, mijava dentro do sapato. Ou ento, quando o veterano
mandava comprar [...], por exemplo, um sanduche, nego passava o
sanduche no cho. Mas era dio assim violento. Se descobrissem, o
cara tava lascado at o final, no tinha jeito, ia padecer pra
caramba. Provavelmente a presso ia ser to grande que o cara [...]
at ia ter que sair.
O lanceiro procura, assim, manter-se enquanto pessoa
autnoma.
Comportamentos do tipo acima descrito do a ele uma prova
evidente de que
ainda possui um certo controle de seu ambiente: so formas de
abrigo para o
eu:
Sem algo a que pertenamos, no temos um eu estvel; apesar disso,
o compromisso e a ligao totais com qualquer unidade social supem
uma espcie de ausncia do eu. Nosso sentimento de ser uma pessoa
pode decorrer do fato de estarmos colocados numa unidade social
maior; nosso sentimento de ter um eu pode surgir atravs das
pequenas formas de resistncia a essa atrao. Nosso status se apia
nas construes slidas do mundo, enquanto nosso sentimento de
identidade pessoal reside, freqentemente, em suas fendas.
(Goffmann, 1974: 259).
Espero ter contribudo, mesmo que provisoriamente, para a
compreenso
do fenmeno do trote num estabelecimento militar. Uma continuao
desta
pesquisa levaria a investigaes em duas direes: um
aprofundamento,
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entrevistando os vitoriosos da mesma turma, aquelas pessoas que
seguiram a
carreira militar e hoje so oficiais; e uma extenso, investigando
o mesmo tema
em outros estabelecimentos de ensino militar. Alm disso, o trote
apenas um
dos elementos da formao do militar, embora dramatize um aspecto
bsico da
identidade e do estilo de vida militares: a hierarquia. Uma
investigao maior
levaria, contudo, a outros aspectos igualmente fundamentais,
como a disciplina
e a noo de misso.
A dificuldade principal neste tipo de pesquisa a resistncia que
muitos
militares apresentam em dar um depoimento formal sobre este
tema,
especialmente a um pesquisador civil. Talvez esta dificuldade
explique, em
parte, a deficincia de trabalhos antropolgicos sobre o
assunto.
Posfcio
Em 2008, ano em que se comemorou o 30 aniversrio de ingresso
na
Marinha da turma que viveu esses episdios, muitos ex-alunos,
quer tivessem
ou no seguido carreira, reuniram-se em Angra dos Reis. A
mobilizao se fez
pela internet, onde a turma mantm uma pgina. Antes do encontro,
Arnaldo
Adnet, personagem central do drama, enviou o texto sobre o trote
para os
colegas, disponibilizando o seu e-mail ou o meu para quem
quisesse escrever
fazendo algum comentrio. Arnaldo, quando escreveu para os
colegas,
reconheceu que havia sido parcialmente manipulado pelos oficiais
que
conduziram a investigao sobre os trotes, aps a denncia:
Vocs melhor do que ningum podem imaginar o quanto me custou
chegar at a deciso de ceder presso dos oficiais que ansiavam por
nomes para atender s exigncias superiores e corrigir o desvio que
nossos colegas veteranos haviam passado a trilhar naquele 1978. A
pergunta do Comandante [da Escola]: Voc acha que esses elementos
teriam condies de sair oficiais da Marinha? fez toda a diferena.
Procurei os colegas que a meu lado haviam experimentado os maiores
excessos e fui incentivado a falar. No cdigo interno ao qual eu
ainda estava ligado tratava-se de espaiar. Uma vergonha grande. Por
outro lado, eu sabia que saindo do Colgio no teria nada a perder,
falasse ou no. No se tratava de uma deciso de interesse pessoal
meu. Precisava pesar as consequncias sobre os colegas que seguiriam
a carreira militar, ou ao menos permaneceriam no Colgio mais tempo.
[...] Durante todos esses anos, pouco falei a respeito do assunto,
temendo ser mal compreendido. Da a importncia de ter falado a um
antroplogo que olhava a situao com interesse cientfico. Temi tambm
voltar convivncia de vocs, sem saber se a quebra do cdigo de
comportamento que prevalecia entre ns poderia colocar-me
margem.
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Alguns elogiaram emocionadamente a postura de Arnaldo, dizendo,
por
exemplo, que ele havia sacrificado a prpria carreira para a
nossa salvao
um exemplo supremo de companheirismo. Os veteranos que foram
expulsos,
escreveu a Arnaldo um ex-colega,
[...] deveriam estar entre os muros de uma instituio penal, no
uma instituio militar. Eram todos, ou quase todos, bandidos. Fico
pensando que assim como muitos deles foram responsveis por vrias
carreiras abreviadas (inclusive a sua), voc pode se considerar
responsvel por vrios daqueles capites de mar-e-guerra que
encontramos l terem chegado onde chegaram. Vai saber quantos outros
no teriam desistido, se aqueles deliquentes seguissem at o final do
ano[...]
Outro escreveu que sua atitude representou nada menos do que
o
pensamento de 180 alunos, que naquele momento estavam
completamente
enfraquecidos e acovardados por pessoas que considero
inescrupulosas, e que
Arnaldo fez a denncia motivado apenas por fazer o que julgava
correto fazer.
Contudo, o ato de ter denunciado no parece ter sido ponto
pacfico utros
colegas usaram, ao invs de denunciado as palavras dedurado ou
entregue.
Um ex-aluno, que afirma ter recebido muitos trotes violentos, se
orgulha de que,
[...] mesmo aps muita insistncia do capito, *no* entreguei
ningum!!!! No vou criticar a atitude do Adnet, pois o mesmo agiu de
acordo com sua cabea! Eu particularmente, achava que os oficiais
quem deveriam descobrir por conta prpria. [...] No precisaria de
chamar ningum para entregar!
Dentre os que se manifestaram por ocasio da comemorao dos 30
anos,
a respeito do texto que escrevi, a viso geral era de que a
descrio feita havia
sido bem fiel poca e aos eventos. Alguns destacaram, no entanto,
que aps a
expulso dos onze veteranos, o clima havia se modificado no
Colgio, com uma
sensvel diminuio dos trotes e o desaparecimento das modalidades
mais
violentas. Um dos alunos que entrevistei, no entanto, que havia
sido, em suas
prprias palavras, um dos dez calouros mais perseguidos, conta
que, quando
se tornou veterano, havia sido talvez um dos mais trotistas. A
dinmica do
trote, portanto, parece ter mantido seu sentido estrutural,
mesmo que atenuada
pelas circunstncias.
Bibliografia
BECKER, Howard. Uma teoria da ao coletiva. Rio: Zahar, 1977.
CASTRO, Celso. O esprito militar: um estudo de antropologia
social na
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Academia Militar das Agulhas Negras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1990. (2. ed rev. e atualizada, 2004, como O esprito
militar. Um antroplogo na caserna).
CASTRO, Celso e LEIRNER, Piero (orgs.). Antropologia dos
militares. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 2009.
CLASTRES, Pierre. Da tortura nas sociedades primitivas. IN: A
sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978,
cap. X, pp. 123-131.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heris. Rio, Zahar,
1978.
GOFFMAN, Erving. As caractersticas das instituies totais. IN:
Manicmios, prises e conventos. So Paulo: Perspectiva, 1974, cap.
1.
JANOWITZ, Morris. The Professional Soldier. Nova York, Free
Press; Londres: Coolier-Machilan, 1971.
TURNER, Victor. O processo ritual. Petrpolis: Vozes, 1974.
VAN GENNEP, Arnold. Os ritos de passagem. Petrpolis: Vozes,
1978.
VELHO, Gilberto. Observando o familiar. IN: A aventura
sociolgica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, pp. 36-46.
Colaborao recebida em 29/10/2009.
Em tempo (adicionado em 30/1/2010)
No dia 28/1/2010, o Jornal Hoje, da TV Globo, noticiou que um
calouro
do Colgio Naval, de 15 anos, havia sido internado no hospital de
sade mental
da Marinha, e que sua me afirmava ter sido o filho vtima de
bullying durante
sua primeira semana no Colgio a semana de adaptao. Segundo o
relato da
me, ele sofria perseguio de outros alunos e at de oficiais,
sendo chamado
publicamente de filhinho da mame, mariquinha e recebendo
outras
agresses e humilhaes verbais. Passados alguns dias, ela recebeu
uma ligao
do colgio informando que o filho estava descontrolado e que
seria sedado. A
me procurou ento a defensoria pblica, que pediu esclarecimentos
sobre o
[NdE] A pouco tempo deste artigo ser postado, um episdio
envolvendo um aluno vtima de trote comoveu o Colgio Naval,
motivando a sua consulta de inmeros internautas durante o ms de
janeiro de 2010. Dada a importncia, e demonstrando como o processo
de conhecimento algo vivo e vinculado com o seu entorno, decidimos
incorporar este em tempo, com a ressalva de que foi mantida a
paginao original.
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estado de sade do adolescente. Em nota oficial, a Marinha
afirmou que o jovem
desistiu do Colgio Naval por vontade prpria, que ele estava
internado a pedido
da me e que seu estado de sade evolua satisfatoriamente.
Arnaldo Adnet, aps ouvir a notcia, decidiu escrever algo a
respeito e fez uma
pesquisa na internet que o levou a uma comunidade sobre o Colgio
Naval no
site de relacionamentos Orkut, na qual constava o tpico Tortura
no Colgio
Naval, que contava com cerca de 300 comentrios. O tpico fora
aberto em
2005 com um comentrio a propsito de um texto sobre tortura nas
Foras
Armadas de Ceclia Coimbra, pesquisadora e ativista do grupo
Tortura Nunca
Mais1. Dentre vrios casos relatados, havia o de um ex-aluno, que
sara do
Colgio Naval em janeiro de 1996, segundo a autora, aps ser
submetido a
inmeras torturas:
Vtima de maus tratos, ficou internado no Hospital da Marinha.
Foi
torturado por alunos mais velhos, o que dizem ser praxe no
Colgio Naval.
Sofreu espancamentos, torturas psicolgicas e vrios tipos de
violncia durante
dois anos. Fazia testes fsicos brutais, como passar o dia
inteiro correndo. A
comida, muitas vezes, era estragada, mas os alunos eram
obrigados a comer.
Ficou hipertenso e com alteraes no comportamento, no sendo mais
capaz de
fazer exerccios fsicos.
O recente episdio mencionado na reportagem da TV Globo gerou
a
postagem de dezenas de novos comentrios na comunidade do Orkut
assim
como inmeros acessos a este artigo, o que me motivou a
incorporar este em
tempo. Vrias observaes poderiam ser feitas a respeito do rico
material que o
conjunto de postagens nessa comunidade representa. A prpria
categoria
mencionada na reportagem bullying pode ser comparada e
contrastada com
outras como brincadeira, trote ou tortura, que aparecem nos
comentrios.
Em sua maioria, os que escreveram no Orkut recusavam
veementemente a
acusao de tortura, denunciando a parcialidade ou mesmo o
carter
revanchista dos meios de comunicao em relao aos militares e
insistindo
que o Colgio Naval no colnia de frias e que quem l estuda o
faz
voluntariamente e com o objetivo de se tornar um militar.
Obviamente, a questo mais complexa, especialmente quando se
observa
1 Disponvel em <
http://www.social.org.br/relatorio2001.htm>.
-
Antteses, vol. 2, n. 4, jul.-dez. de 2009, pp. 569-595
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a menoridade dos alunos e o fato de que, portanto, o Colgio est
sujeito ao
cumprimento do Estatuto da Criana e do Adolescente, de 1990, que
dispe, em
seu artigo 18: dever de todos velar pela dignidade da criana e
do
adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano,
violento,
aterrorizante, vexatrio ou constrangedor. O que me interessa
destacar, no
entanto, e que tem ligao direta com o texto sobre o trote, que
h, em meio s
postagens referentes ao episdio que protagonizou em 1978,
algumas
referncias ao episdio que Arnaldo Adnet protagonizou. A primeira
era um
comentrio provocativo de um dos seus colegas calouros que,
segundo Arnaldo,
estavam na lista dos 10 mais lanceiros. Ele dizia que quinze
veteranos saram2
porque no agentaram. Um veterano da poca respondeu com
veemncia:
J li suas ironias por aqui, em outro tpico chamando esses 15 que
saram em 78, da minha turma 76, de marginais. Vc que deve ter sido
um santo na MB [Marinha do Brasil], poderia me responder algumas
perguntas, do alto de sua santidade naval? 1 ) E aqueles que nunca
deram trote e foram includos injustamente por seu pupilo Adnet
-spy, somente pelo fato do mimadinho no ir com a cara? Exemplos,
[...]. Algum destes sem sequer desferir um trote tiveram afetados
por este fato uma vida inteira de frustrao, depresso, impotncia
diante de tal fato sendo o destino de uma carreira militar cortado
pelo bel prazer de seu amigo, que naquele momento se achou um Deus,
para julgar fora quem ele bem quis! isto sim o pior trote que j vi!
2 ) E os trotes recebidos l em 76? muito piores por sinal que o
mariquinha do Adnet recebeu? quem pagou? Na boa, v se fuder, quem
vc pensa que pra chamar algum integrante da minha turma (inclusive
eu) de marginal, seu merda! [...] Adnet (CN 78), o maior spy safado
da historia do CN, ao justificar sua falta de vocao ao titio alte.
de esquadra, deu a desculpa de trote p/pedir baixa, dando um lista
com 15 nomes dos maiores trotistas da poca (turma 76).O problema
foi o safado incluir na rela, nomes de alunos do 3 ano QUE JAMAIS
DERAM UM TROTE SEQUER!, ou seja, pelo simples fato dele no ir com a
cara! Um desses injustiados pelo spy, reencontrei a [sic] uns 2
anos atrs, totalmente desnorteado, com a vida visivelmente
desorientada, profissionalmente e familiar, pela injustia ocorrida
na poca.Esse ex-aluno [...]vibrava com o CN, ao contrario do
covarde e spy Adnet.No vou admitir que estes injustiados em 78,
sejam chamados agora de marginais, por qualquer idiota que no sabe
dos fatos por completo.
Temos, assim, outra verso a respeito dos episdios, centrada na
idia de
que ocorreu uma traio (o estigma de espio claro a respeito) da
parte de
algum que no tinha vocao ou que era covarde, mimadinho ou
mariquinha acusaes que ressurgem no caso citado pela reportagem
da
TV e que, por si s, demonstram a atualidade das questes tratadas
neste
artigo, 25 anos depois.
2 No consegui confirmar o nmero exato de alunos desligados.
Arnaldo me disse que depois ouviu falar em at 16. De qualquer
forma, tratou-se de um evento dramtico.