-
Palaeohispanica 8, (2008), pp. 167-178. I.S.S.N.: 1578-5386.
167
UMA INSCRIO VOTIVA EM LNGUA LUSITANA*
Andr Carneiro Jos dEncarnao
Jorge de Oliveira Cludia Teixeira
Foi recolhida no vale da Ribeira da Venda, a norte da vila de
Arronches (distrito de Portalegre, Alto Alentejo, Portugal), na
propriedade designada Monte do Coelho, uma laje de grauvaque, cuja
superfcie epigrafada ter sido previamente alisada para receber a
epgrafe, mantendo-se, porm, a irregularidade do conjunto. A
retaguarda no foi minimamente afeioada. Dimenses: 88 x 75 x 3,5
(espessura mnima) - 14 cm (esp. mxima). Lemos:
[- - - - - - - -] XX OILAM ERBAM HARASE OILA X BROENEIAE H OILA
X REVE AHARACVI T AV [...] IEATE X BANDI HARACVI AV [....]
5 MVNITIE CARIA CANTIBIDONE APINVS VENDICVS ERIACAINV[S]
OVOVIANI [?] ICCINVI PANDITI ATTEDIA M TR PVMPI CANTI AILATIO
Altura mdia das letras: 2,8. Espaos: 1: 4,5; 2-5: 2; 6: 10; 7:
3; 8 e 9: 2; 10: 36. A paginao cuidada, se atendermos, de modo
especial, regularidade dos espaos interlineares, pontuao e ao
cuidado posto na gravao (por goiva). O texto ocupa o espao
disponvel no sentido da largura e, na altura, houve a preocupao de
o situar na parte superior da laje, o que d a perceber que no seria
para colocar em posio acima do olhar normal mas sim no solo. H um
espao vazio entre as linhas 5 e 6,
* Este estudo enquadra-se, pela parte de J. dEncarnao, no
projecto FERCAN (Fontes Epigraphici Religionis Celticae Antiquae),
do CEAUCP.
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
168 PalHisp 8
certamente como adiante se dir para dar uma ideia de separao de
contedos, o que , para j, de muito realar, uma vez que da se
depreende uma cultura epigrfica no despicienda. Essa segunda parte
do texto d a sensao de seguir um eixo de simetria, impresso
acentuada pela palavra nica que ocupa a l. 7. Os caracteres so
acturios outra coisa no seria de esperar, alis, num suporte
grauvquico e gravados com cuidado: barras horizontais breves;
letras (como o A, o M, o N) bem largas; B assimtrico e grafado em
apenas dois movimentos; P aberto; R feito a partir do P. Se outros
dados no houvera, a paleografia apontava, desde j, para os
primrdios do sc. I da nossa era. LEITURA E HIPTESES DE INTERPRETAO
A principal dificuldade reside no facto de todo o texto apresentar
palavras estranhas ao vocabulrio habitual em inscries romanas.
Contudo, pode, desde logo, garantir-se que a epgrafe se filia, sem
sombra de dvida, na tipologia de monumentos de que o penedo de
Lamas de Moledo (Castro Daire) exemplo paradigmtico para a
Lusitnia. L, como aqui, refere-se a oferta de vtimas a divindades
de carcter indgena, local. O mesmo sucede na epgrafe tambm em lngua
dita lusitana achada em Cabeo das Frguas (Sabugal). Uma terceira
epgrafe, de Arroyo de la Luz (Cceres), de teor idntico s duas
anteriores, s conhecida atravs de uma cpia de finais do sculo
XVIII;1 e a ltima inscrio de Arroyo de la Luz detm, como os seus
editores reconhecem,2 teor completamente diferente dos de Cabeo das
Frguas e Lamas de Moledo. So, pois, com a epgrafe de Arronches,
cinco os textos de que h notcia escritos em lngua dita lusitana.
Vejamos, pois, linha a linha, o que se nos oferece dizer sobre este
novo texto. Linha 1 No parece ter havido uma outra linha para alm
daquela que primeiro se v e de que apenas se tem maior enleio no
que concerne a uma primeira palavra que poder ter umas oito letras.
A seguir, retirando a hiptese AM, afigura-se possvel ver XX.
Depois, OILAM (o L em forma de lambda) perfeitamente definida entre
dois pontos circulares e bem centrados como, alis, acontece em todo
o texto. termo conhecido justamente do penedo de Lamas de Moledo e
tem-se-lhe atribudo o significado de ovelha; ser, mui
provavelmente, uma forma do falar quotidiano para dizer ovicula,
ovelhinha.
1 Cf., sobre estas epgrafes, entre outros, os seguintes estudos
(que indicam bibliografia anterior): UNTERMANN (Jrgen), A epigrafia
em lngua lusitana e a sua vertente religiosa, in RIBEIRO (Jos
Cardim) [coord.], Religies da Lusitnia Loquuntur Saxa, Museu
Nacional de Arqueologia, Lisboa, 2002, p. 67-70; CURADO (Fernando
Patrcio), A ideologia tripartida dos indoeuropeus e as religies de
tradio paleohispnica no Ocidente peninsular, ibidem, p. 71-77; e
tambm, de Joo L. Ins Vaz, Divindades indgenas na inscrio de Lamas
de Moledo (Castro Daire Portugal), Beira Alta 47 (3-4) 1989
345-358. 2 Francisco VILLAR e Rosa PEDRERO, La nueva inscripcin
lusitana: Arroyo de la Luz III, in VILLAR (Francisco) e FERNNDEZ
LVAREZ (M. Pilar), Religin, Lengua y Cultura Prerromanas de
Hispania, Salamanca, 2001, 663-698.
-
Uma inscrio votiva em lngua lusitana
PalHisp 8 169
Segue-se-lhe ERBAM:3 tanto o R como o B sofreram algum desgaste,
mas reconstituem-se sem dificuldade; o M, largo como o de OILAM,
tambm parece no oferecer dvidas de leitura. Na epgrafe de Arroyo de
la Luz existe a palavra ERBA,4 sendo interpretada como ovelha de
erva, j criada. Neste caso, teramos um adjectivo de oilam, ambos no
acusativo; e o numeral XX anterior referia-se palavra em falta.
Linha 2 A l. 2 l-se bem, sendo a nica dvida o final onde, em vez de
H, se poderia tambm ler II, cujo significado, no entanto, nos
escaparia. A hiptese H afigura-se-nos mais plausvel. Harase,
provvel dativo de uma forma em a, Harasa, , seguramente, um tenimo
quer em forma adjectival quer substantiva. Qui vocbulo de raiz
indoeuropeia,5 poder ter algo a ver com formas existentes em grego:
aresis, no sentido de ajuda, splica; e o verbo arso, com o
significado (real e figurado) de ancorar. Poderia, pois, este nmen
ser invocado em casos de quebra da fertilidade agrcola e/ou
pecuria? A possibilidade de ser, porm, uma variante da palavra
Haracui, que vem a seguir, no nos parece despicienda. Se a leitura
XX da l. 1 est correcta, fazendo uma comparao com esta l. 2, em que
se l OILA X verosimilmente para indicar dez ovelhas, a Harasa se
ter oferecido ou sacrificado oilam erbam, tal como em Cabeo das
Frguas se diz oilam Trebopala, uma cordeira para Trebopala.
Note-se, de passagem, que se confirma haver uma flexo em -am para o
acusativo singular, enquanto o plural sugere uma forma neutra, em
-a, ou um acusativo plural apocopado (oila por oilas). Broeneiae,
em dativo, identificaria outra divindade, at agora desconhecida,
que poderia ter o epteto Haracui (em dativo), que aparece adiante
por isso, aqui estaria em sigla. No se encontram, primeira vista,
paralelos na nomenclatura pr-romana peninsular6 e, se considerarmos
que parece conter o radical br-, relacionvel com o que existe em
broa, tal poderia indicar uma conotao de po, fermento, fertilidade
ideias que, convenhamos, no ficariam mal nem no contexto nem em
relao a uma divindade...
3 A princpio, parecera-nos ET BAN, eventual comeo do tenimo
Banda; uma observao mais cuidada da pedra retirou tal
possibilidade. Rejeitmos a hiptese EBRA, ovelha negra, o que em
contexto religioso e eventualmente oracular poderia ter uma carga
acrescida. Tambm colocmos de parte a possibilidade de o M final de
OILAM se interpretar como numeral, no s porque h a bastante
plausvel concordncia com Erbam mas tambm porque temos, antes, o
numeral XX. 4 Cf. Antonio TOVAR, Linscription du Cabeo das Frguas
et la langue des Lusitaniens, Revue des Etudes Celtiques XI
1966-1967 p. 243 (nota 2), que d a verso de Gmez-Moreno. A palavra
erba surge na l. 4. 5 Mara de Lourdes Albertos cita o antropnimo
Haericus, provavelmente indoeuropeu, mas, ao que parece, trata-se
de uma leitura que no foi seguida: cf. ALBERTOS FIRMAT (M Lourdes)
La Onomastica Personal Primitiva de Hispania (=O. Hisp.).
Salamanca, 1966, p. 121. 6 Prximos somente os antropnimos Broccius,
Brocc(h)us, Brocina Cf. VALLEJO RUIZ (Jos Mara), Antroponimia
Indgena de la Lusitania Romana, Vitoria-Gasteiz, 2005, p. 485, que,
no entanto, tem algumas dvidas sobre o carcter pr-romano desses
antropnimos.
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
170 PalHisp 8
Linha 3 Tambm aqui s o final nos causa alguma perplexidade: o T
est claramente entre pontos e segue-se-lhe AV e poderia ainda ter
havido uma letra mais, desaparecida com o esborcelamento. Se
considerarmos que Reve Aharacui, a Reva Aharcuo, se sacrificam
igualmente dez ovelhas e que o mais verosmil estarmos perante um
dativo de tipo chamado pr-cltico, com a terminao em -cui,
identificado noutros tenimos,7 tanto o T como AV devero, de
preferncia, relacionar-se com a palavra da linha seguinte. De
momento, sublinhemos que a divindade Reva surge aqui, mais uma vez,
em contexto de um ritual de sacrifcio e com um epteto que tudo leva
a crer ser de carcter toponmico. Linha 4 Na l. 4, a 1 letra parece
um I e, depois do A bem largo, divisa-se um T bastante tnue; so
claros os pontos a isolar o X, que deve entender-se, por isso, como
numeral, semelhana da l. 2. Se o T da linha anterior fosse uma
sigla a identificar taurum, sugesto que se enquadraria no ritual da
suovetaurilia, teramos o sacrifcio de dez touros au[---]ieate,
adjectivo estranho, sem dvida, na nomenclatura habitual... De
notvel a presena indubitvel de uma divindade conhecida, Banda, aqui
com o dativo em -i e um epteto tpico, precisamente o mesmo de Reva,
o que vem confirmar o que sempre temos defendido de que so
preferentemente tpicos os eptetos desta divindade.8 Qual o possvel
significado do epteto Haracui? A palavra hara poder estar ligada ao
mundo da pecuria: curral, chiqueiro de porcos; por outro lado, se
apontarmos para um topnimo, torna-se aliciante encontrar o termo na
raiz semntica da vila de Arronches, ainda hoje considerada como a
capital... do porco preto! Como se sabe, de acordo com o Itinerrio
de Antonino, teramos nestas zonas uma mansio: Ad Septem Aras...
Estaria, sem dvida, entre Arronches e Campo Maior, talvez por
alturas de Degolados, onde importantes testemunhos da poca tm sido
encontrados.9 E um pouco mais para oeste situa-se Arronches! Tambm
aqui a identificao da(s) letra(s) finais que traz problemas.
Seguindo o ritmo do texto, AV identificaria a oferenda divindade
identificada a seguir. O que possa ser desconhecemos. Linha 5 A
primeira metade da l. 5 sofreu escoriaes, ainda que a leitura
apresentada nos parea no carecer de reviso. O epteto CANTIBIDONE,
por ser conhecido, no ofereceu qualquer dificuldade. Munitie poder
ser,
7 Recordamos Bandei Brialeaicui, de Orjais (HEp 11, 2001, 659 =
AE 1967, 135 = HEp 3, 1993, 470). 8 Cf. ENCARNAO (Jos d), Banda,
uma importante divindade indgena, Conimbriga 12 1973 199-214; e
Divindades indgenas da Lusitnia, Conimbriga 26 1987 5-37 (sobretudo
p. 10). 9 Cf. Jorge de ALARCO, As estradas romanas de Portugal,
Encuentros sobre el Tajo: El Territorio y las Comunicaciones
(Cuadernos de San Benito 3), Madrid, 1992, p. 67-75 (sobretudo p.
72); ou J. ALARCO, O Domnio Romano em Portugal, Mem Martins, 1988,
p. 99.
-
Uma inscrio votiva em lngua lusitana
PalHisp 8 171
verosimilmente, uma variante de Munidi (em dativo), divindade
tutelar igualmente referenciada noutros textos,10 seguida, cremos,
de dois eptetos: Caria e Cantibidone. Caria, que se documenta aqui
pela primeira vez, no soa, porm, a estranho. Em Arcos de Valdevez,
documentou-se uma divindade para que, dubitativamente, se optou
pela designao de Carus.11 Recentemente, Juan Carlos Olivares
Pedreo12 ps a hiptese no muito verosmil, alis de ser essa uma
abreviatura do conhecido epteto de Marte, Cariociecus. Pensamos,
com mais este exemplo de Arronches, que se deve optar, ao invs, por
um nome divino, a aproximar, na verdade, de Cariociecus mas tambm
dos Lares Cairienses, como faz Blanca Prsper (o. c., p. 319), que
alude, inclusive, a uma via Cariensi. Recorde-se que Mara Lourdes
Albertos (o. c., p. 78-79) aproxima o radical Car- da forma
indoeuropeia *karo-, na comum significao de querido. Um adjectivo,
valha a verdade, que quadra bem a uma divindade Quanto a
Cantibidona, tivemos atestado pela primeira vez este nome divino em
dois altares achados em Segura, Idanha-a-Nova (cf. HEp 4 1994
1042-1043). A vem precedida, em dativo, de duas palavras Erbine
Iaedi, tendo-se interpretado Cantibidone na qualidade de adjectivo
formado a partir de um topnimo, pois h testemunho, numa pequena
placa de Niebla, da ocorrncia da palavra Cantibedoniesi, o que
levou a pensar na existncia de uma cidade Cantibidonia ou num
territrio dos Cantibidonenses. Tambm aqui, em jeito de paralelismo,
se poderiam aceitar, ento, como identificando apenas uma divindade
os trs nomes Munidi Caria Cantibidone. Pensamos que a laje de
Arronches pode trazer nova luz sobre o culto divindade e, tambm,
novas consideraes de ndole lingustica, nomeadamente se atendermos
ao mais recente estudo, j citado, de Blanca Prsper (p. 215-220).
Com efeito, esta investigadora prefere considerar como divindade
principal Erbine, sendo Cantibidone um epteto de ndole tpica:
CANTIBIDONE es, com toda probabilidad, una referencia al lugar de
culto de la divinidad ERBINE, tal vez un santuario del pueblo de
los igaeditanos cuya importancia y alcance desconocemos (p. 217).
Por consequncia, mais do que um lugar, poderemos estar em presena
de um povo com vrias divindades tutelares: aqui, Munis; em Segura,
Erbina. Novas e aliciantes pistas, pois, a explorar no s no que
teonmia diz respeito mas tambm etnonmia e investigao sobre
territrios. Linha 6 Como j se referiu, o espao deixado livre em
seguida mostra que a segunda parte do texto no se liga directamente
primeira, tratando de um assunto diverso; por exemplo: a informao
acerca de quem mandou
10 Blanca Mara Prsper (o. c., p. 187-189) refere os testemunhos
documentados na Pennsula Ibrica e, com base na anlise etimolgica,
atribui a este nmen indgena uma caracterstica de divindade da
montanha. 11 Cf. ENCARNAO (Jos d), Divindades Indgenas sob o Domnio
Romano em Portugal (Subsdios para o Seu Estudo), Imprensa Nacional
Casa da Moeda, Lisboa, 1975, p. 156-157. 12 Cf. HEp 12 2006 n 669
(com mais bibliografia).
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
172 PalHisp 8
executar o monumento, as circunstncias em que foi erigido ou,
ainda, informaes de teor jurdico-administrativo ou de ritual...
Afigura-se-nos, todavia, que essa segunda parte comea pela
identificao dos dedicantes, cujos nomes se lem sem dificuldade (s h
dvida na terminao do terceiro nome). Optamos por trs, atendendo a
duas circunstncias: a primeira, porque a morfologia dos vocbulos se
coaduna melhor com o que conhecemos da estrutura onomstica
pr-romana; depois, porque interpretamos no plural a palavra que
surge isolada na linha seguinte, como que a qualificar os indivduos
identificados atrs. Apinus antropnimo com outros testemunhos j,
inclusive na Lusitnia,13 registando-se, por curiosa coincidncia, a
forma Appinnae em Lamas de Moledo (AE 1989 381). Vendicus ainda no
ter surgido atestado sob esta forma, que saibamos; contudo, um
radical vend- reconhecvel em antropnimos como Vendalo, Vendieci,
Vendio, Vendiricus,14 pelo que ser facilmente admissvel, para mais
com a terminao -icus. Eriacainus , por seu turno, o nico nome para
o qual se no encontra, de momento, palavra aproximvel, ainda que
seja aliciante, neste contexto, atribuir-lhe uma relacionao com a
raiz, atestada em quase todas as lnguas indoeuropeias, *er-, a que
os celtistas atribuem a conotao de chibo, cordeiro, vaca, gamo, na
origem, animais com cornos.15 Linha 7 Na l. 7, h um vocbulo em
posio central: ovoviani? Uma aparente relacionao deste estranho
vocbulo com ovis, ovelha, poderia levar-nos a pensar que se trata
de uma referncia profissional, os pastores ou os comerciantes de
ovelhas. Trata-se, naturalmente, de mera hiptese; primeiro, porque
pode haver dvidas na leitura; depois, porque, independentemente de
estarmos perante uma palavra de uso quotidiano e no epigrfico, no
detm quaisquer paralelos conhecidos.16 Sugestiva , porm, essa
perspectiva, se atentarmos a uma eventual ligao com as rotas de
transumncia para a Beira Interior,17 rotas que deixaram marcas
toponmicas na paisagem arronchense, como Canada; ou, ainda, com a
via atrs mencionada, de Emerita para Olisipo. Apesar destas
sugestes, constitui, sem dvida, uma incgnita essa palavra, assim
centrada, a mostrar, seguramente, que detm importncia no contexto
de toda a epgrafe.
13 Cf. o Atlas atrs citado: p. 95, mapa 31; e J. M. VALLEJO, o.
c., p. 159 (et passim). 14 Cf. ABASCAL, o. c., p. 541. 15 Cf. M. L.
ALBERTOS, o. c., p. 116. 16 Francisco VILLAR (in Indoeuropeos y no
Indoeuropeos en la Hispania Prerromana, Salamanca, 2000, p. 165)
cita Ovianus, antropnimo. Foi o que encontrmos de mais semelhante.
17 Cf. Joaqun GMEZ-PANTOJA [coord.], Los Rebaos de Gerion: Pastores
y Trashumancia en Iberia Antigua y Medieval, Madrid, Casa de
Velzquez, 2001.
-
Uma inscrio votiva em lngua lusitana
PalHisp 8 173
Linha 8 Na l. 8, Iccinui poder relacionar-se com o antropnimo
Iccius ou, ainda, com Icconius.18 Panditi (se, de facto, a primeira
letra um P aberto, como hbito na epigrafia dos primrdios da ocupao
romana) j oferece mais problemas no que concerne a paralelos, ainda
que exista, em Latim, o verbo pandere, com o significado de
revelar, abrir (donde a nossa frase velas pandas). Dada a relativa
frequncia com que ocorrem antropnimos comeados por att- na
onomstica indgena (e no s), um feminino pessoal Attedia no parece
de todo insustentvel.19 O M que vem a seguir se viesse depois um F
e no o que nos parece claramente TR deveramos interpret-lo como a
sigla de um patronmico, de preferncia a ver a o numeral mil.
Baseando-nos, por outro lado, em semelhanas morfolgicas e fonticas,
alicia-nos outra hiptese: relacionar-se Iccius com cone, imagem;
manter para a segunda palavra o significado de abrir, revelar-se,
e, para a terceira, o de atender. Ou seja, veramos a uma splica do
gnero de: Revelai-nos um sinal da vossa vontade, Atendei s nossas
splicas atravs de um sinal. Linha 9 Na ltima linha, o segredo
estar, verosimilmente, no sentido da palavra ailatio, que, a uma
primeira abordagem, nos sugere, de preferncia, um substantivo do
tipo de ratio. Acontece, porm, que temos bem documentado o
antropnimo Aelatius: ser que, por conseguinte, devemos inclinar-nos
mais para um nome em dativo ou mesmo em ablativo (a indicar, neste
caso, um agente da aco)? H, contudo, outra hiptese: poder tratar-se
de uma frmula de fecho, terminando este contexto de uma splica em
desespero. Se Pumpi se referir a algo como gravao e Canti forem
cantos, oraes, Ailatio tem, por seu turno, em latim, um termo
semelhante, a palavra adlatio, com o significado de canto;
foneticamente, o gravador da pedra poderia ter procedido a uma
ligeira modificao no momento da escrita, como no inusual: grava-se
tendo em conta no tanto as questes gramaticais, mas a forma como os
sons seriam emitidos. Sendo assim, adlatio poderia ter-se
transformado em ailatio e teramos se no fantasiar de mais um
significado genrico de passamos para a pedra este canto de alegria,
gravamos esta orao de jbilo, encerrando assim a splica s
divindades. Tambm poderamos ver a uma deformao de adulatio,
venerao, o que ainda seria mais sugestivo, pois haveria um primeiro
momento de formulrio, padronizado, oferecendo s divindades um
conjunto de animais, em contexto agrcola ou pecurio de crise,
eventualmente originada por uma epidemia; a identificao dos
dedicantes, pessoas ligadas ao mundo rural; e, hipoteticamente, uma
frmula final em que os dedicantes manifestam a sua dependncia e
vinculao vontade das divindades, esperando um sinal de melhoria da
sua situao, mas dedicando os seus sacrifcios com jbilo e
alegria.
18 Cf. J. M. VALLEJO, o. c., p. 492 (de um radical icc-). 19 So
diversos os nomes de radical Att-: ver ABASCAL, o. c., p.
289-290.
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
174 PalHisp 8
Confessamos que se trata de sugesto aliciante a requerer
aprofundamento, mormente do ponto de vista lingustico, pois estamos
(insiste-se) perante uma lngua no padronizada. Subsistem, na
verdade, muitas dvidas, que s o tempo e uma acurada anlise podero
ir esclarecendo. H, contudo, alguns dados que j se podem adiantar,
para alm da certeza de estarmos perante o testemunho da oferta
pblica, mediante certamente um ritual de sacrifcio, de animais a
divindades indgenas. EM JEITO DE CONCLUSES Esmiuado, quanto nos foi
possvel, o texto, importa sintetiz-lo em leitura interpretada e
dele apresentar uma proposta de traduo: [] XX (viginti) OILAM ERBAM
/ HARASE OILA X (decem) BROENEIAE H / OILA X (decem) REVE AHARACVI
T AV [...?] / IEATE X (decem) BANDI HARACVI AV [...?] / 5 MVNITIE
CARIA CANTIBIDONE // APINVS VENDICVS ERIACAINV[S] / OVOVIANI [?] /
ICCINVI PANDITI ATTEDIA M TR / PVMPI CANTI AILATIO Para () vinte
(). Um cordeiro de erva para Harase. Dez cordeiros para Broineia
H(arcua). Dez cordeiros para Reva Aharcuo. Dez T(?) AV(?)IEATE para
Banda Harcuo. AV(?) para Municia Caria Cantibidone. Os ovelheiros
Apino, Vendico, Eriacaino. Revelai-nos a vossa vontade por um
sinal. Gravamos esta orao de jbilo. Mais as perplexidades,
portanto, que as certezas. Mas destas h algumas que podemos
garantir, como dados verdadeiramente inovadores. No que concerne
religiosidade pr-romana, dir-se-ia que a epgrafe figuraria num
local aonde a populao se ajuntava para honrar os seus deuses em
determinadas pocas do ano, hiptese que tambm se coloca para Lamas
de Moledo, Cabeo das Frguas e para o altar identificado em Marecos
(Penafiel), testemunho de um solene ritual agrrio, ligado ao ciclo
da vegetao e da reproduo animal.20 Atesta-se aqui um ritual muito
semelhante ao da suovetaurilia, sendo vrias as divindades
invocadas: Banda, Reva e Munis, quanto s j conhecidas; Broeneia,
jamais registada at ao momento. Divindades invocadas sob um epteto
seguramente tpico, Haracui ou Aharacui ou mesmo Harase (numa
diferena de grafia que outras vezes se documenta em relao s
divindades indgenas, fruto do contgio da oralidade) ou, ainda, sob
a forma de sigla H. De realar a novidade de nos parecer que o
tenimo Munis vem grafado como Munitia e qualificado com dois
eptetos, um (Caria) relacionvel com outros tenimos indgenas, o
segundo (Cantibidone) j documentado em relao a divindade conhecida,
Erbina.
20 Cf. Hispania Epigraphica (=HEp) 6 1996 n 1069, citando
Patrick LE ROUX, Cultes indignes et religion romaine en Hispanie
sous lEmpire, LAfrique, la Gaule, la Religion lpoque Romaine.
Mlanges la mmoire de Marcel Le Glay Bruxelas, 1994, p. 560-567.
Pode ver-se a respectiva ficha in RIBEIRO (Jos Cardim) [coord.],
Religies da Lusitnia Loquuntur Saxa, Museu Nacional de Arqueologia,
Lisboa, 2002, p. 371, foto na p. 372.
-
Uma inscrio votiva em lngua lusitana
PalHisp 8 175
Podero ser referidas na epgrafe outras vtimas, mas a que no
parece oferecer dvida o cordeiro, em nmero de dez (o que tambm
constitui uma novidade) e, expressamente, indicado como erbam, ou
seja, se a nossa interpretao est correcta, como j estando em idade
de pastar (no apenas de leite). No domnio da Lingustica, escusado
ser sublinhar quanto esta epgrafe, por estar redigida em lngua
considerada lusitana e por, na verdade, se ler sem grandes dvidas,
vai contribuir para esclarecer questes em aberto. Como fonte para
os estudos histricos propriamente ditos, o facto de, desta sorte,
como que se fechar, pelo Sul, a zona atribuda aos Lusitanos, na
sequncia do que temos vindo a afirmar sobre a presena de onomstica
lusitana no Nordeste alentejano21 Lamas de Moledo a ocidente, Cabeo
das Frguas a norte, Arroyo de la Luz a oriente e Arronches a sul ,
reveste-se, doravante, de importncia relevante, a matizar o que
Jorge Alarco tem vindo a considerar o territrio deste povo.22 Alis,
nesse mbito, a ligao com rituais afectos transumncia afigura-se-nos
assaz plausvel, aproximando-nos, pois, claramente dessa hiptese
sugerida por Pedro Carvalho: A ancestralidade de movimentos e de
prticas poderia inclusivamente justificar a sobrevivncia em poca
romana de lugares de culto indgenas na proximidade desses trajectos
(junto a mananciais ou em pontos dominantes na paisagem), como
forma de propiciar a celebrao dos indispensveis rituais com
sacrifcio de animais que assegurariam a proteco de pessoas e
gado.23 Em suma: um texto de teor religioso, ritual, datvel pela
paleografia dos primrdios dos tempos romanos na Lusitnia. Pelas
dvidas que suscita, pelas novidades que traz em termos de designao
de divindades e, at, de outra terminologia ainda por decifrar
constituir, seguramente, um dos achados epigrficos mais importantes
dos ltimos anos na epigrafia da Lusitnia romana. Andr Carneiro
e-mail: [email protected] CIDEHUS Centro Interdisciplinar
de Histria, Culturas e Sociedades da Universidade de vora Jorge de
Oliveira e-mail: [email protected] CIDEHUS Centro Interdisciplinar de
Histria, Culturas e Sociedades da Universidade de vora
Jos dEncarnao e-mail: [email protected]
CEAUCP Centro de Estudos Arqueolgicos das Universidades
de Coimbra e Porto
Cludia Teixeira e-mail: [email protected]
CECHUC Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da
Universidade de Coimbra
21 Cf. Jos dENCARNAO, A populao romana do Nordeste alentejano,
1as Jornadas de Arqueologia do Nordeste Alentejano 85 Actas,
Castelo de Vide, 1987, 167-170. 22 Cf., entre outros, Jorge de
ALARCO, Novas perspectivas sobre os Lusitanos (e outros mundos),
Revista Portuguesa de Arqueologia, 4 (2), 2001, p. 293-349. 23
Pedro C. CARVALHO, Cova da Beira Ocupao e Explorao do Territrio na
poca Romana, Cmara Municipal do Fundo e Instituto de Arqueologia da
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2007, p. 504.
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
176 PalHisp 8
-
Uma inscrio votiva em lngua lusitana
PalHisp 8 177
-
Andr Carneiro - Jos dEncarnao - Jorge de Oliveira - Cludia
Teixeira
178 PalHisp 8