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O novo constitucionalismo e a judicializao da poltica pura no
mundo*
Ran Hirschl**
1. Introduo
Nas ltimas dcadas, o mundo testemunhou uma profunda transferncia
de poder de instituies representativas para tribunais, tanto
domsticos, quanto su-pranacionais. O conceito de supremacia
constitucional que h muito tempo um pilar central da ordem poltica
norte-americana1 hoje compartilhado, de uma maneira ou de outra,
por mais de 100 pases ao redor do mundo. Diversos regimes
ps-autoritrios no antigo Bloco Oriental, no sul da Europa, na
Amrica Latina e na sia rapidamente adotaram princpios do
constitucionalismo moder-no durante suas transies para a
democracia. At mesmo pases como o Canad, Israel, Reino Unido e Nova
Zelndia h pouco tempo descritos como os lti-mos basties da
soberania parlamentar no estilo Westminster2 gradualmente
embarcaram na onda global rumo constitucionalizao. A imprensa cobre
quase
* Publicado originalmente como The new constitutionalism and the
judicialization of pure politics worldwide, Fordham Law Review, v.
75, n. 2, 2006. Traduzido por Diego Werneck Arguelhes e Pedro
Jimenez Cantisano.** Professor de cincia poltica e direito,
Universidade de Toronto.1 N. do T. Traduzimos a expresso American
por norte-americana(o).2 N. do T. No original, Westminster-style
parliamentary democracy. O autor est se referindo a um mo-delo de
democracia parlamentarista majoritria, na qual o governo
completamente ocupado pelo partido vencedor das eleies. O exemplo
paradigmtico o Reino Unido, cujo Parlamento se rene no Palcio de
Westminster.
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diariamente questes como processos de constitucionalizao na Unio
Europeia (UE) e no Iraque, julgamentos de ditadores depostos
perante tribunais internacio-nais e a tomada de importantes decises
constitucionais nos Estados Unidos, na Alemanha e na frica do
Sul.
Uma das principais manifestaes dessa tendncia tem sido a
judicializao da poltica o recurso cada vez maior a tribunais e a
meios judiciais para o en-frentamento de importantes dilemas
morais, questes de poltica pblica e con-trovrsias polticas. Com
recm-adquiridos mecanismos de controle de constitu-cionalidade,
tribunais superiores ao redor do mundo tm sido frequentemente
chamados a resolver uma srie de problemas da extenso das liberdades
de culto religioso e de expresso, dos direitos igualdade e
privacidade e da liber-dade de reproduo, a polticas pblicas
relacionadas justia criminal, pro-priedade, ao comrcio, educao,
imigrao, ao trabalho e proteo ambien-tal. Manchetes
sensacionalistas sobre decises judiciais importantes a respeito de
temas controversos casamento entre pessoas do mesmo sexo, limites
para o financiamento de campanhas e aes afirmativas, para dar
apenas alguns exem-plos tornaram-se fenmeno comum. Isso est
evidente nos Estados Unidos, onde o legado do controle de
constitucionalidade acabou de atingir seu bicente-nrio. Aqui, os
tribunais esto h muito tempo exercendo um papel significativo
na elaborao de polticas pblicas. Mas est igualmente evidente em
democra-cias constitucionais mais jovens, que s estabeleceram
mecanismos de controle de constitucionalidade nas ltimas dcadas.
Enquanto isso, tribunais internacionais se tornaram o locus central
de coordenao de polticas pblicas em nveis global e regional, de
assuntos comerciais e monetrios a condies de trabalho e
regula-mentaes ambientais.
Entretanto, a crescente importncia poltica dos tribunais tem no
apenas se tornado mais abrangente, mas tambm se expandido em
escopo, transfor-mando-se assim em um fenmeno diverso,
multifacetado, que vai muito alm do conceito que se tornou corrente
de elaborao de polticas pblicas por juzes, por meio de decises
sobre direitos e da remarcao judicial das fronteiras entre rgos do
Estado. A judicializao da poltica agora inclui a transferncia
massiva, para os tribunais, de algumas das mais centrais e
pol-micas controvrsias polticas em que uma democracia pode se
envolver. Lem-bremo-nos de episdios como o resultado das eleies
presidenciais de 2000 nos Estados Unidos, a nova ordem
constitucional na frica do Sul, o lugar da Alemanha na Unio
Europeia, a guerra na Chechnia, a poltica econmica na Argentina, o
regime de bem-estar social na Hungria, o golpe de Estado militar
liderado por Pervez Musharraf no Paquisto, dilemas de justia
transicional na Amrica Latina ps-autoritria e na Europa
ps-comunista, a natureza secular
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 141
do sistema poltico turco, a definio fundamental de Israel como
um Estado judeu e democrtico, ou o futuro poltico de Quebec e da
federao cana-dense: todos esses e muitos outros problemas polticos
altamente controversos foram articulados como problemas
constitucionais. E isso tem sido acompa-nhado pela suposio de que
os tribunais e no os polticos, nem a prpria populao seriam os fruns
apropriados para a tomada dessas cruciais de-cises. Para resumir, e
parafraseando a observao de Alexis de Tocqueville (1961) sobre os
Estados Unidos, no h no mundo do novo constitucionalismo quase
nenhum dilema de poltica pblica ou desacordo poltico que no se
torne, cedo ou tarde, um problema judicial.
Apesar da crescente prevalncia desse fenmeno, o discurso
acadmico so-bre a judicializao da poltica ao redor do mundo
permanece surpreendente-mente superficial. Com poucas e notveis
excees,3 a judicializao da poltica habitualmente tratada de maneira
muito pouco refinada, como um resultado na-tural da prevalncia do
discurso dos direitos fundamentais. s vezes, a judicia-lizao da
poltica confundida com uma verso genrica do ativismo judicial,
prestando-se pouca ou nenhuma ateno diferena entre atribuir aos
tribunais a definio do escopo do direito a um julgamento justo, por
exemplo, e confiar
a eles a soluo de delicadas questes de identidade coletiva que
se encontram no corao dos processos de construo da nao. Neste
artigo, procuro mapear os contornos do segundo aspecto da
judicializao, que poderamos chamar de judicializao da megapoltica
ou da poltica pura. Comeo distinguindo trs categorias abrangentes
de judicializao: a disseminao de discursos, jarges, regras e
procedimentos jurdicos na esfera poltica e nos fruns e processos de
elaborao de polticas pblicas; a judicializao da elaborao de
polticas p-blicas pelas formas comuns de controle judicial de
constitucionalidade de leis e atos da administrao pblica; e a
judicializao da poltica pura a trans-ferncia, para os tribunais, de
assuntos cuja natureza e significado so claramen-te polticos,
incluindo importantes debates sobre a legitimidade de regimes e
identidades coletivas que definem (e muitas vezes dividem)
comunidades intei-ras. Em seguida, procuro ilustrar as
caractersticas que distinguem o ltimo tipo de judicializao com
exemplos da jurisprudncia poltica de cortes e tribunais ao redor do
mundo. Na ltima parte, procuro mostrar a importncia do apoio da
esfera poltica como condio necessria para a judicializao da poltica
pura. Estes exemplos sugerem que o direito constitucional , de
fato, uma forma de poltica por outros meios.
3 Ver Tate e Vallinder (1995); Hirschl (2004); Sieder et al.
(2005); Shapiro e Sweet (2002); Ferejohn, (2002); Hirschl (2002);
Pildes (2004).
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Revista de Direito Administrativo142
2. As trs faces da poltica judicializada
Judicializao da poltica um termo guarda-chuva, comumente usado
para abranger o que, na verdade, so trs processos
inter-relacionados. De forma mais abstrata, a judicializao da
poltica se refere disseminao de discursos, jarges, regras e
processos jurdicos na esfera poltica e nos fruns e processos de
elaborao de polticas pblicas. A predominncia do discurso jurdico e
a popula-rizao do jargo jurdico so evidentes em praticamente todos
os aspectos da vida moderna. Talvez a melhor ilustrao dessa
predominncia seja a subordinao, em comunidades modernas organizadas
como estados de direito, de quase todo frum decisrio a normas e
procedimentos quase judiciais. Temas que antes eram negociados de
maneira informal ou no judicial, agora so dominados por regras e
procedimentos jurdicos.4
Esse tipo de judicializao inseparvel do fenmeno da captura das
rela-es sociais e da cultura popular e da expropriao dos conflitos
sociais por parte do direito. Origina-se da crescente complexidade
e contingncia das sociedades modernas,5 ou da criao e expanso do
estado de bem-estar social moderno e suas numerosas agncias
reguladoras. Algumas anlises do rpido crescimento da judicializao
no mbito judicial supranacional a descrevem como uma respos-ta
institucional inevitvel aos complexos problemas de coordenao
gerados pela necessidade sistmica, em uma era de mercados econmicos
convergentes, de se adotar normas jurdicas e regulamentaes
administrativas padronizadas entre os estados-membros desses
mercados.6
Outros aspectos deste tipo de juridificao da vida moderna foram
iden-tificados pelos primeiros socilogos do direito por exemplo, a
tese de Henry Maine sobre a passagem do status ao contrato,7 ou a
nfase dada por Max Weber ao surgimento de um sistema jurdico
formal, claro e racional, nas sociedades oci-dentais.8 Os advogados
so os mais importantes agentes desse tipo de judiciali-zao orgnica.
De acordo com Emile Durkheim, por exemplo, o direito reflete a
diviso do trabalho e a solidariedade interpessoal em evoluo em uma
dada so-ciedade.9 Em sociedades primitivas, argumenta Durkheim, a
diviso do trabalho entre as pessoas era menos desenvolvida e os
vnculos sociais eram mais fortes. Assim, o direito formal no era
necessrio. Em sociedades mais desenvolvidas, o grau de especializao
maior e h uma diviso do trabalho mais clara entre as
4 Ver Sieder (2005).5 Ver Luhmann (1985). 6 Ver Sweet e Brunell
(1998) e Sweet (2000).7 Maine (2001).8 Ver Weber (1968). 9 Ver
Durkheim (1964).
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Mundo 143
pessoas, acompanhada de menor coeso social. O contrato, em vez
do status ou do escambo, torna-se a principal forma de troca entre
as pessoas. O aparato esta-tal deve agora assegurar o cumprimento
dos contratos e estabelecer as condies externas para seu uso. Uma
classe especial de pessoas os advogados surge para negociar e
litigar essas relaes contratuais mais complexas e cada vez mais
presentes na sociedade moderna.
O segundo, e mais concreto, aspecto da judicializao da poltica a
expan-so da competncia de tribunais e juzes quanto definio de
polticas pbli-cas, principalmente por meio de decises envolvendo
direitos constitucionais e da remarcao judicial dos limites entre
rgos do estado (separao de poderes, federalismo). A cada semana,
alguma corte suprema em algum lugar do mundo anuncia uma deciso
importante sobre o escopo da proteo a direitos constitu-cionais ou
sobre os limites dos poderes Legislativo e Executivo. Os casos mais
comuns envolvem liberdades civis clssicas. So primordialmente sobre
garantias de devido processo legal na esfera criminal ou sobre
aspectos variados dos direitos privacidade e igualdade formal todos
eles no sentido de expandir e reforar as fronteiras da proteo
constitucional esfera individual, geralmente tida como ameaada pela
longa e invasiva mo da regulao estatal.10
Talvez a face mais evidente da judicializao da elaborao de
polticas p-blicas por meio de decises sobre direitos fundamentais
possa ser encontrada no mbito da justia processual.11 Em muitos
pases alinhados ao novo constituciona-lismo, casos de devido
processo penal representam 2/3 do universo total de casos
envolvendo direitos nos tribunais constitucionais.12 A prevalncia
do direito ao devido processo legal tambm evidente nos casos
envolvendo a adoo de pro-cedimentos legais mais flexibilizados no
combate ao terrorismo. Em 1999, a Su-prema Corte de Israel baniu o
uso da tortura em interrogatrios conduzidos pelo Servio Geral de
Segurana Israelense.13 Em 2002, o Conselho Constitucional do Peru
anulou o julgamento secreto, por um tribunal militar, de lderes do
movimen-to rebelde maosta Sendero Luminoso.14 A Cmara dos Lordes
declarou inconsti-tucional a legislao britnica sobre o estado de
emergncia ps-11 de setembro.15
10 Hirschl, 2004:103-118.11 N. do T. No original, procedural
justice. Hirschl refere-se aqui s decises judiciais que examinam a
correo de procedimentos estatais nos quais o cidado parte, em
qualquer rea do direito. No entan-to, optou-se por evitar o termo
procedimental que, como qualificativo de justia, poderia causar
confuso com a ideia de concepes procedimentais de justia.12
Hirschl, 2004:103-118.13 Ver HCJ 5100/94. Pub. comm. against
torture. Isr. v. State of Isr, IsrSC, v. 53, n. 4, p. 817, 836,
838, 340, 1999.14 Retrial for Peru shining path rebel, BBC News, 21
nov. 2002. Disponvel em: . Acesso em: 15 out. 2006.15 Ver A and
others v. Secy of State for the Home Dept, X and another v. Secy of
State for the Home Dept, (2004) UKHL 56, (2005) 2 W.L.R. 87.
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Revista de Direito Administrativo144
Na recente deciso Hamdan v. Rumsfeld, a Suprema Corte dos EUA
suprimiu os tribunais militares do governo Bush na Baa de
Guantnamo.16
Enquanto o primeiro tipo de judicializao pode ser descrito como
judiciali-zao das relaes sociais, a judicializao do segundo tipo
enfoca principalmen-te a justia processual e a equidade formal em
processos decisrios. Na medida em que muitas vezes iniciada por
pessoas comuns invocando direitos para se opor a polticas, decises
e prticas do Estado, pode tambm ser descrita como judicia-lizao
vinda de baixo. Como sugerido por Charles Epp, o impacto da adoo de
catlogos de direitos fundamentais pode ser limitado pela
impossibilidade de os indivduos invocarem efetivamente esses
direitos por meio de litigncia estratgi-ca.17, 18. Assim, listas de
direitos fundamentais importam na medida em que haja uma estrutura
de suporte mobilizao jurdica um nexo de organizaes da sociedade
civil, advogados, faculdades de direito, agncias governamentais
exe-cutivas e servios de assistncia jurdica que promovam esses
direitos. Em outras palavras, se, por um lado, a positivao no texto
constitucional condio neces-sria para a proteo efetiva de direitos
e liberdades; por outro, certamente no condio suficiente. A
capacidade desses dispositivos de semear mudanas sociais em uma
comunidade depende da existncia de uma estrutura de suporte
mobi-lizao jurdica da sociedade civil e, de forma mais geral, de
condies sociocultu-rais adequadas a essa judicializao vinda de
baixo.
A mobilizao jurdica vinda de baixo favorecida pela frequente
crena de que direitos judicialmente protegidos operam como foras
autoimplementveis de mudana social isto , foras que no dependem das
restries a que todo poder poltico est sujeito. Essa crena tem hoje
um status quase sagrado no debate pblico. O mito dos direitos, como
denominado por Stuart Scheingold, procura chamar a nossa ateno para
o contraste entre o carter aberto dos procedimentos judiciais e as
barganhas secretas dos grupos de interesse na esfera poltica,
refor-ando assim a imagem de integridade e incorruptibilidade do
processo judicial.19 O objetivo, claro, tornar mais atrante o uso
de solues legais e constitucionais para problemas polticos.20 Por
outro lado, isso pode levar expanso de um discurso de direitos
populista e ao correspondente empobrecimento do discurso
poltico.21
16 Hamdan v. Rumsfeld, 126 S. Ct. 2749 (2006).17 Ver Epp (1988).
18 N. do T. No original, strategic litigation. O autor se refere
aqui ao recurso sistemtico e planejado aos tribunais, por parte de
movimentos sociais e organizaes da sociedade civil, no sentido de
obter pela via judicial a proteo de determinados interesses ou a
promoo de certas agendas polticas.19 Ver Scheingold (2004).20 Idem,
p. 34.21 Ver Glendon (1991).
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 145
Outro aspecto da segunda face da judicializao a promoo de justia
pro-cessual por meio do controle judicial de atos administrativos.
A proliferao de agncias administrativas no moderno estado de
bem-estar social expandiu pro-fundamente a extenso do poder dos
juzes de rever atos da administrao p-blica. Na maioria das vezes,
esse envolvimento judicial na elaborao de polticas pblicas fica
restrito a aspectos procedimentais, ou seja, concentra-se no
processo e no na substncia. Partindo de princpios bsicos de direito
contratual, consti-tucional e, principalmente, administrativo, os
tribunais monitoram e promovem a aplicao de garantias do devido
processo legal, igualdade de oportunidades, transparncia,
accountability e razoabilidade na elaborao de polticas pblicas.
Portanto, no surpreende que esse tipo de judicializao domine o
prprio sistema judicial, do processo civil ao criminal e de que
seja particularmente visvel em reas do direito com um grande
componente processual, como imigrao, direito tributrio e contratos
administrativos. Mas esse tipo de judicializao tambm claramente
visvel em incontveis reas, de planejamento urbano e sade pblica a
relaes industriais e proteo ao consumidor. Os tribunais tambm tm
moni-torado aspectos importantes da privatizao de patrimnio estatal
no mundo ps-comunista. Em sntese, seja por meio da jurisprudncia
centrada em direitos fun-damentais, seja por meio da reviso
judicial de atos administrativos, na maioria das democracias
constitucionais de hoje a judicializao da elaborao de polticas
pblicas se aproxima de um verdadeiro governo com juzes.22, 23
Nas ltimas dcadas, a judicializao da elaborao de polticas
pblicas tam-bm se expandiu internacionalmente, com o
estabelecimento de numerosas cor-tes e tribunais, painis e comisses
internacionais quase judiciais, que lidam com direitos humanos,
governana transnacional, comrcio e assuntos monetrios.24 Talvez em
nenhum lugar esse processo seja mais evidente do que na Europa.25
Um processo similar aconteceu no mbito das disputas de comrcio
internacional.26 Decises do mecanismo de soluo de controvrsias da
Organizao Mundial do Comrcio (OMC) tiveram extensas implicaes para
polticas de troca e comrcio no mundo. Esse tambm o caso dos Estados
Unidos, onde defender o cumpri-mento de decises desfavorveis de
tribunais estrangeiros sempre uma rdua tarefa. O Tratado de Livre
Comrcio da Amrica do Norte (Nafta), de 1994, tam-bm estabelece
processos quase judiciais de soluo de controvrsias envolvendo
22 Ver Guarnieri e Pederzoli (2002). 23 N. do T. No original,
government with judges. O uso da preposio with aqui
intencionalmente am-bguo, podendo significar tanto governo com
juzes (isto , ao lado, junto com, convivendo com), quanto governo
por meio de juzes (tendo os juzes como instrumento de governana).24
Ver Goldstein et al. (2001); Romano (1999) e Slaughter (2000). 25
Ver Alter (2001); Sweet (2000) e Weiler (1999). 26 Goldstein et
al., 2001.
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Revista de Direito Administrativo14
investimentos estrangeiros, servios financeiros e instncias
antidumping e com-pensao. Arranjos similares foram estabelecidos
pelo Mercado Comum do Sul (Mercosul), na Amrica do Sul, e pela
Associao das Naes do Sudeste Asitico (Asean) na regio da
sia-Pacfico. Em resumo, nas ltimas dcadas, estabeleceu-se
rapidamente uma transferncia, em larga escala, de prerrogativas
centrais de elaborao de polticas de arenas decisrias majoritrias em
nvel nacional para entidades e tribunais transnacionais
relativamente insulados.
Uma terceira classe emergente de judicializao da poltica o
emprego de tribunais e juzes para lidar com o que podemos chamar de
megapoltica: con-trovrsias polticas centrais que definem (e muitas
vezes dividem) comunidades inteiras. A judicializao da megapoltica
inclui algumas subcategorias: judiciali-zao de processos
eleitorais; superviso judicial de prerrogativas do Poder Exe-cutivo
em reas de planejamento macroeconmico ou segurana nacional (o fim
daquilo que conhecido na teoria constitucional como a doutrina da
questo poltica;27 dilemas fundamentais de justia restautativa;28
corroborao judicial de transformaes de regime poltico; e, acima de
tudo, a judicializao da formao de identidades coletivas, processos
de construo de naes e disputas a respeito da prpria definio ou
raison dtre da comunidade, talvez o tipo mais pro-blemtico de
judicializao do ponto de vista da teoria constitucional. Essas reas
emergentes de poltica judicializada expandem as fronteiras do
envolvimento de tribunais superiores nacionais na esfera poltica
para alm do mbito dos direitos constitucionais ou do federalismo,
levando a judicializao da poltica a um ponto que excede de longe
qualquer limite previamente estabelecido. Na maioria das vezes,
essa tendncia apoiada, tcita ou explicitamente, por poderosos
agentes polticos. O resultado tem sido a transformao de cortes
supremas no mundo inteiro em parte central dos aparatos nacionais
para a elaborao de polticas p-
27 N. do T. No original, political question doctrine. A
referncia aqui a um conjunto de standards ado-tados por tribunais
em certos perodos da histria constitucional dos EUA para demarcar
os limites de sua competncia para apreciar questes que, por sua
natureza poltica, por expressa determinao legal/constitucional ou
por questes prudenciais, devem ser resolvidas exclusivamente pelos
poderes eleitos. Em um sentido mais geral, essa expresso muitas
vezes utilizada em textos de lngua inglesa para designar qualquer
posicionamento jurisprudencial adotado por tribunais para isolar
certas ques-tes como polticas e, portanto, insuscetveis de apreciao
judicial.28 N. do T. Ao longo do texto, Hirschl parece utilizar os
termos reparative justice e restorative justice de forma
intercambivel, referindo-se a questes envolvendo medidas a serem
adotadas no sentido de compensar certos grupos ou indivduos
perseguidos ou que tiveram direitos sistematicamente viola-dos em
perodos anteriores (e geralmente sob outro regime poltico) da
histria do pas, e/ou no sentido de reconciliar divises internas
dentro da comunidade aps transies de regime. No texto, essas ideias
tambm vm associadas categoria mais geral da justia transicional
(traduzido aqui como justia tran-sicional), que abrange o conjunto
maior das medidas tomadas para se passar de forma justa de um
regime poltico a outro. A categoria da justia transicional mais
ampla por incluir tambm medidas no compensatrias, de carter
retributivo, como a punio de responsveis por violaes de direitos
humanos durante o regime anterior.
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 14
blicas. Em outra oportunidade, descrevi esse processo como uma
transio para a juristocracia.29
No se pode enfatizar demais a profundidade dessa transio.
Enquanto a superviso judicial dos aspectos procedimentais do
processo democrtico mo-nitoramento de procedimentos e regulamentaes
eleitorais, por exemplo se enquadra na competncia da maioria das
cortes constitucionais, questes como a legitimidade de um regime
poltico, a identidade coletiva de uma nao, ou o enfrentamento de um
passado do qual a comunidade no se orgulha refletem di-lemas que so
primordialmente morais e polticos e no jurdicos. Como tais, eles
devem ao menos por questo de princpio ser contemplados e decididos
pela prpria populao, por meio de seus representantes eleitos e
politicamente responsabilizveis. Julgar tais questes um exerccio
inerente e substancialmente poltico, muito alm da aplicao de
dispositivos sobre direitos fundamentais e devido processo legal a
questes de polticas pblicas. Judicializao desse tipo coloca os
tribunais na posio de decidir sobre alguma das mais centrais
ques-tes polticas que uma nao pode enfrentar, mesmo que a
Constituio no faa nenhuma referncia a esses problemas, e apesar de
se reconhecer os bvios riscos polticos envolvidos em decises desse
tipo. So precisamente essas situaes de judicializao de questes que
combinam altssimos riscos polticos com instru-es constitucionais
escassas ou impertinentes que tornam mais questionveis as
credenciais democrticas do controle judicial de
constitucionalidade. Isso ocorre porque no est nada claro o que
tornaria os tribunais o frum mais apropriado para resolver esses
dilemas puramente polticos.
A diferena entre a segunda e a terceira face da judicializao
sutil, mas importante. Encontra-se, em parte, na distino
qualitativa entre questes prima-riamente de justia processual, de
um lado, e dilemas morais substantivos ou con-trovrsias polticas
essenciais enfrentadas por toda a nao, de outro. Em outras
palavras, parece haver uma diferena entre a importncia poltica da
judicializa-o da elaborao de polticas pblicas e a importncia
poltica da judicializao da megapoltica. A garantia de justia
processual em contrataes feitas com o Estado um elemento importante
se queremos ter uma administrao pblica livre de corrupo. Do mesmo
modo, o alcance do direito a um julgamento rpido uma questo
importante para pessoas que estejam enfrentando acusaes crimi-nais.
Mas sua relevncia poltica no to significativa quanto a de questes
como o lugar da Alemanha na Unio Europeia, o futuro de Quebec e da
federao cana-dense, a constitucionalidade do acordo poltico
ps-Apartheid na frica do Sul, ou das aes afirmativas nos Estados
Unidos.
29 Hirschl, 2004:222-223.
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Entretanto, a diferena entre o segundo e o terceiro nveis de
poltica judiciali-zada vai alm da relevncia poltica das questes de
que tratam. Depende da nossa prpria conceituao do que poltico. O
que conta como deciso poltica no uma pergunta fcil de ser
respondida. Uma deciso poltica afeta a vida de muitas pessoas.
Porm, muitos casos que no so puramente polticos (grandes aes
coletivas) tambm afetam as vidas de muitas pessoas. Mais ainda, j
que no existe uma resposta simples e completa para a pergunta o que
poltico? para muitos tericos sociais, a resposta seria tudo poltico
, tambm no pode haver uma definio simples e completa da
judicializao da poltica. Em outras palavras, o que Larry King
consideraria poltico bem diferente do que Michel Foucault
consideraria poltico. Do mesmo modo, o que pode ser considera-do
questo poltica controversa em uma comunidade (digamos, o direito de
fazer um aborto nos Estados Unidos) pode no ser um problema em
outra comunidade. Contudo, mesmo levando em conta essas
consideraes, parece haver uma dife-rena qualitativa entre a
relevncia poltica de, por exemplo, uma deciso judicial
especificando os limites do direito a uma audincia justa perante o
tribunal ou discutindo a validade de cotas federais para exportaes
agrcolas e a de um jul-gamento determinando a legitimidade de um
regime ou a identidade coletiva de uma nao. De fato, poucas decises
podem ser consideradas mais polticas que a definio autoritativa da
raison dtre de uma comunidade. Essa distino nebu-losa, ainda que
intuitiva, o que diferencia a judicializao da megapoltica dos dois
primeiros nveis de judicializao. Consideremos os exemplos a seguir
to-dos so raramente abordados pela teoria constitucional em sua
forma cannica, normalmente preocupada apenas com problemas
norte-americanos.
3. A judicializao da poltica pura: alguns casos ilustrativos
O cenrio de Bush v. Gore
Uma rea politicamente sensvel que passou por uma dramtica
judicializao nas ltimas duas dcadas o processo eleitoral ou o que
pode ser chamado de o direito da democracia.30 No mundo do novo
constitucionalismo, tribunais so frequentemente chamados a decidir
questes como remarcao de distritos elei-torais, financiamento de
campanha de partidos polticos e propaganda eleitoral na televiso.
Tribunais aprovam ou desqualificam partidos polticos e candidatos
com cada vez mais frequncia. Nos ltimos anos, tribunais em diversas
democra-
30 Ver Issacharoff et al. (1998) e Miller (2004).
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 149
cias constitucionais especialmente na Blgica, Israel, ndia,
Espanha e Turquia baniram (ou chegaram muito perto de banir)
partidos polticos populares de eleies nacionais.31 Recentemente, a
Suprema Corte de Bangladesh considerou invlidas as listas de
eleitores que haviam sido feitas para as eleies seguintes.32 Apenas
na ltima dcada, tribunais constitucionais em mais de 25 pases foram
chamados para determinar o futuro poltico de lderes polticos
importantes por meio de processos de impeachment ou de
desqualificao. Enquanto a Corte Cons-titucional Russa, por exemplo,
imps um limite constitucional tentativa de ter-ceiro mandato do
presidente Boris Yeltsin, a Suprema Corte colombiana aprovou
recentemente a constitucionalidade de uma emenda que removeu da
Constituio a proibio de reeleio de oficiais governamentais,
permitindo assim ao presiden-te lvaro Uribe se candidatar e ser
reeleito para um segundo mandato.33
Tribunais tambm se tornaram as ltimas instncias decisrias em
disputas sobre resultados eleitorais nacionais por exemplo, no
Zimbbue (2002),34 em Taiwan (2004),35 na Ucrnia (2004)36 e na Itlia
(2006), onde a Suprema Corte ita-liana aprovou uma vitria por menos
de 25 mil votos do lder de centro-esquerda Romano Prodi sobre o
direitista Silvio Berlusconi em uma das eleies mais dispu-tadas
daquele pas.37 Mais recentemente, uma srie de recursos e
contrarrecursos eleitorais culminou na rejeio, pelo Tribunal
Federal Eleitoral do Mxico, da acu-sao de fraude nas eleies
presidenciais de julho de 2006, feita pelo candidato esquerdista
Andes Manuel Lopez Obrador.38 A deciso garantiu formalmente a
presidncia de 2006 a 2012 ao candidato de direita Felipe Caldern,
aps uma vi-tria eleitoral por uma margem de menos de 0,6%. At mesmo
as exticas naes insulares de Madagascar e Trinidad e Tobago tiveram
o destino de suas eleies
31 Pildes (2004:33). A Corte Suprema da Blgica baniu o partido
separatista conservador neerlands Vlaams Blok em novembro de 2004.
O partido ressurgiu como Vlaams Belang poucos meses depois.32
Courting danger: democracy in the lap of the judges. Economist, p.
40, June 2006. 33 Uribe wins Colombia Court ruling, allowing him to
seek second term. Bloomberg News Online, 19 Oct. 2005. Disponvel
em: .34 Ver Legal resources found. Justice in Zimbabwe (report).
Disponvel em: . Acesso em: 20 set. 2006.35 Ver Hogg (2004). 36 Ver
a deciso da Corte Constitucional ucraniana de dezembro de 2004
(invalidando os resultados da eleio presidencial de novembro de
2004 e ordenando uma nova eleio). Para a traduo para o ingls, ver:
; ver tambm a deciso da Corte Constitucional ucraniana de 24 de
dezembro de 2004. Disponvel em: (sobre a constitucionalidade do Ato
das Eleies Pre-sidenciais). A deciso da mesma Corte de 26 de
dezembro de 2004. Disponvel em: (respondendo alegao de Victor
Yanukoyvich sobre a violao dos direitos de eleitores deficientes
durante as eleies de 2004).37 Ver Italian Court rules prodi
election winner, Guardian Unlimited, 19 abr. 2006. Disponvel em:
.38 A deciso foi publicada no dia 4 de setembro de 2006. Ver Mexico
Court rejects fraud claim, BBC News Online, 29 Aug. 2006. Disponvel
em: . Para discus-ses mais profundas sobre a Corte Eleitoral
Federal do Mxico, ver Zamora (2004).
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Revista de Direito Administrativo150
determinado por tribunais.39 Claramente, a disputa judicial pela
presidncia norte-americana em Bush v. Gore no foi apenas um momento
idiossincrtico na histria recente da poltica constitucional
comparada.40
Prerrogativas centrais do Executivo
Outra rea poltica que vem sendo crescentemente judicializada
envolve as prerrogativas centrais de legislaturas e executivos no
que se refere a relaes ex-teriores, segurana nacional e poltica
fiscal. A Suprema Corte do Canad (SCC) no hesitou em rejeitar a
doutrina da questo poltica (isto , a no apreciao judicial de
questes explicitamente polticas) aps a adoo da Carta Canadense de
Direitos e Liberdades, em 1982.41 No histrico julgamento Operation
Dismantle v. A Rainha, por exemplo, a Corte decidiu por unanimidade
que
quando um caso levanta a questo de se aes executivas ou
legislativas vio-lam a Constituio, a questo deve ser respondida
pela Corte, no impor-tando o carter poltico da controvrsia (...)
Disputas de natureza poltica ou de poltica exterior podem ser
apropriadamente analisadas pelas cortes.42
No surpreendentemente, a SCC se tornou um rgo decisrio central
para questes que vo do futuro de Quebec ao futuro da poltica de
sade pblica no Canad.43
A recm-criada Corte Constitucional russa seguiu a mesma direo no
caso Chechnia, quando concordou em apreciar peties de vrios membros
da opo-sio na Duma, questionando a constitucionalidade de decretos
presidenciais que ordenaram a invaso militar russa na Chechnia.44
Rejeitando a reivindicao chechena de independncia e sustentando a
constitucionalidade dos decretos do
39 Ver Bobb e Anor. UKPC 22 (Trin. & Tobago), 2006.
Disponvel em: ; Madagascar Court annuals election, BBC News Online,
17 mar. 2002. Disponvel em: .40 Ver Hasen (2004).41 Sobre a rejeio
da doutrina da questo poltica nos EUA, ver Tushnet (2002).42
Operation Dismantle v. The Queen, 1985, 1 S.C.R. 441.43 Ver
Chaoulli v. Que. (Atty Gen.), 2005, 1 S.C.R. 791 (sustentando que
os limites no fornecimento de sade privada no Quebec violam a Carta
de Direitos Humanos e Liberdades do Quebec). Trs dos ju-zes tambm
decidiram que os limites do fornecimento de sade privada violam a
seo 7 da Carta de Direitos e Liberdades. A deciso pode ter
ramificaes significantes na poltica de sade do Canad, e pode ser
interpretada como uma abertura de caminho para o chamado sistema de
sade 2/3.44 Ver Russian Federation Constitutional Courts ruling
regarding the legality of president Boris Yelt-sins degree to send
troops to Chechnya, Official Kremlin International News Broadcast ,
31 July 1995. Para uma anlise em ingls, ver Pomeranz (1997).
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 151
presidente Boris Yeltsin como intra vires, a maioria dos juzes
da Corte declarou que a manuteno da integridade e unidade
territorial da Rssia seria uma re-gra inabalvel que exclui a
possibilidade de uma secesso unilateral armada em qualquer estado
federativo.45 Em 2004, a Suprema Corte israelense decidiu sobre a
constitucionalidade e a compatibilidade com o direito internacional
da barreira da Cisjordnia uma polmica rede de cercas e muros que
separam Israel do territrio palestino.46
Uma manifestao ligeiramente diferente, mas igualmente
significativa, de
interveno judicial na esfera poltica desta vez, no contexto de
polticas fiscais
e de bem-estar social pode ser encontrada nas Decises do Pacote
Econmico de Austeridade (os chamados Casos Bokros), da Corte
Constitucional hngara.47 Neste caso, a Corte se apoiou nos
conceitos de proteo de expectativas e certeza jurdica para anular
cerca de 26 regras de um abrangente plano econmico de emergncia
adotado pelo governo. O plano tinha como medida principal um corte
substancial nos gastos pblicos com benefcios sociais, pagamento de
aposentado-rias, educao e sade, com a finalidade de reduzir o
enorme dficit orament-rio e a dvida externa da Hungria.48 Outra
manifestao igualmente significativa da judicializao de problemas
macroeconmicos controvertidos a deciso da Suprema Corte da
Argentina, de outubro de 2004 (o chamado Caso Corralito), sobre a
constitucionalidade do plano de pesificao proposto pelo governo
(con-verso total da economia argentina em pesos, com taxa de cmbio
fixa em relao
ao dlar norte-americano), e a correspondente desvalorizao e
congelamento de poupanas atreladas ao dlar uma consequncia da
grande crise econmica argentina de 2001.49
Entretanto, se por um lado tem havido uma crescente penetrao
judicial nas prerrogativas de legislaturas e executivos a respeito
de relaes exteriores, segu-rana nacional e poltica fiscal, os
tribunais tm no geral permanecido passivos
no que se refere a polticas sociais e de redistribuio de riqueza
e recursos. Com pouqussimas excees (principalmente na frica do Sul
e na ndia), os tribunais tm sido tmidos quando se trata de promover
noes progressistas de justia dis-tributiva em reas como distribuio
de renda, erradicao da pobreza e direitos
45 Russian Court: Chechen War Legal, United Press Intl, 31 jul.
1995. Disponvel em: Lexis UPI database; ver tambm Gaeta, Paola. The
armed conflict in Chechnya before the Russian Constitutional Court,
7 Eur. J. Intl L. 563, 1996.46 HCJ 2056/04 Beit Sourik Vill.
Council v. Govt of Isr. 2005. IsrSC, v. 58, n. 5, p. 807. Isr. L.
Rev., n. 83, 2005.47 Uma traduo para o ingls desse caso est
disponvel em Slyom, Lszl e Brunner, Georg (2000).48 Idem.49 Corte
Suprema de Justicia (CSJN), 26 out. 2004. Bustos, Alberto Roque et
al. v. Estado Nacional et al. Disponvel em: .
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Revista de Direito Administrativo152
relacionados subsistncia (educao bsica, sade e moradia), cuja
implementa-o requer maior interveno estatal e mudanas nas
prioridades dos gastos pbli-cos.50 Assim, pode-se dizer que a
judicializao de questes envolvendo poderes fundamentais do
Executivo no tem sido exatamente uma bno para keynesia-nos e
progressistas.
Corroborao de mudanas de regime
Outra rea de crescente envolvimento judicial em megapoltica a
(in)validao de mudanas de regime. O exemplo mais bvio a saga da
certificao cons-titucional na frica do Sul: foi a primeira vez que
uma corte constitucional se recusou a aceitar um texto
constitucional elaborado por um rgo constituinte re-presentativo.51
Outras manifestaes recentes desse tipo de judicializao incluem a
raramente mencionada, mas impressionante, restaurao da Constituio
de Fiji de 1997 pela Corte de Apelaes de Fiji em Fiji v. Prasad, em
2001 a primeira vez na histria do constitucionalismo moderno em que
um tribunal restaurou uma constituio e o sistema de governo
democrtico que o criou;52 a deciso histrica da Suprema Corte do
Nepal, de fevereiro de 2006, que declarou inconstitucional a
controversa Comisso Real para o Controle da Corrupo (CRCC),
estabelecida aps o golpe de Estado de 2005, abrindo caminho para a
libertao do primei-ro-ministro deposto, Bahadur Deuba, detido desde
julho de 2005 por ordem da CRCC;53 e a rejeio, pela Corte
Constitucional da Coreia do Sul, do impeachment do presidente Roh
Moo-hyun realizado pela Assembleia Nacional do pas, em 2004 a
primeira vez na histria do constitucionalismo moderno em que um
pre-sidente foi reconduzido ao cargo por um rgo judicial aps um rgo
legislativo ter determinado o seu impeachment.54
Vale destacar tambm o endosso, pela Suprema Corte do Paquisto,
da le-gitimidade do golpe de Estado militar de 1999. Alegando
corrupo generaliza-da e grave m administrao econmica por parte do
governo, o general Pervez Musharraf tomou o poder do
primeiro-ministro Nawaz Sharif em um golpe de Estado militar, em 12
de outubro de 1999. Musharraf se autodeclarou o novo che-
50 Hirschl, 2005. 51 Ver Certification of the amended text of
the Constitution of the Republic of S. Afr. 1997 (2) SA 97 (CC);
Certi-fication of the Constitution of the Republic of S. Afr. 1996
(4) SA 744 (CC).52 Ver Republic of Fiji Islands v. Prasad,2001, 1
LRC 665 (HC), 20022 LRC 743 (CA).53 Ver Nepal corruption panel
outlawed, BBC News, 13 Feb. 2006. Disponvel em: .54 Lee, Youngjae.
Law, politics, and impeachment: the impeachment of Roh Moohyun from
a comparative constitutional perspective, 2005.
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 153
fe do Executivo, deteve o primeiro ministro Sharif e diversos
aliados polticos e promulgou uma Proclamao de Emergncia,
suspendendo todas as operaes do governo Sharif, da Assembleia
Nacional e do Senado. Em resposta, ativistas pol-ticos contrrios ao
golpe militar encaminharam uma petio Suprema Corte em meados de
novembro de 1999, contestando a legalidade da derrubada do governo
Sharif e da Proclamao de Emergncia e exigindo a libertao de Nawaz
Sha-rif e a restaurao de seu governo eleito. Em uma deciso
largamente divulgada, anunciada em maio de 2000, a Suprema Corte do
Paquisto se baseou na doutrina do estado de necessidade para
validar, por unanimidade, o golpe de outubro de 1999, considerando
ter sido o mesmo necessrio para livrar o pas do caos e da
falncia.55 A Corte sustentou que:
(em) 12 de outubro de 1999, surgiu uma situao para a qual a
Constituio no fornecia soluo e a interveno das Foras Armadas atravs
de uma medida extraconstitucional se tornou inevitvel, o que aqui
validado com base na doutrina do estado de necessidade e no
princpio do salus populi su-prema lex (...) Material suficiente foi
produzido para corroborar (...) e apoiar a interveno das Foras
Armadas atravs de medida extraconstitucional.56
Entretanto, o presidente da Corte, Irshad Hasan Khan,
complementou que um prolongado envolvimento do Exrcito em assuntos
civis corre o grave risco de politiz-lo, o que no seria do
interesse nacional e, portanto, o governo civil deve ser restaurado
o mais breve possvel no pas.57 Nesse sentido, a Corte deu ao
general Musharraf trs anos para implementar reformas econmicas e
polticas e restaurar a democracia.58 A Corte anunciou que o general
Musharraf (presidente Musharraf, a partir de junho de 2001) deveria
escolher uma data at 90 dias antes do final do perodo de trs anos
para a realizao de eleies para a Assembleia Nacional, para as
assembleias provinciais e para o Senado.59 O Paquisto um pas em um
limbo poltico quase constante. Mas uma coisa clara: a batalha
judicial sobre a legitimidade poltica do regime de Musharraf realou
o papel poltico cen-tral da Suprema Corte no Paquisto nos dias de
hoje.60
55 Zafar Ali Shah v. Pervez Musharraf, Chief Executive of Pak.,
P.L.D. 2000 S.C. 869.56 Idem, p. 1219.57 Idem.58 Idem, p.
1219-1223.59 Idem, p. 1223.60 Desde 1990, o Paquisto passou por
cinco mudanas de regime e a Corte Suprema do Paquisto exerceu um
papel fundamental em cada uma dessas transies radicais. Ver Zafar
Ali Shah v. Pervez Musharraf, Chief Executive of Pak., P.L.D. 2000
S.C. 869; Benazir Bhutto v. President of Pak., P.L.D. 1998 S.C.
388; Muhammad Nawaz Sharif v. President of Pak., P.L.D. 1993 S.C.
473; Begum Nusrat Bhutto v. Chief of Army Staff, P.L.D. 1977 S.C.
657.
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Revista de Direito Administrativo154
Justia transicional
Uma quarta rea emergente da megapoltica que, nas ltimas dcadas,
tem sido judicializada de forma rpida e em grau talvez excessivo a
da justia tran-sicional ou restaurativa. A transferncia cada vez
mais comum, da esfera poltica para os tribunais, de dilemas morais
e polticos fundamentais ligados a injustias extremas e atrocidades
em massa cometidas contra grupos e indivduos histori-camente
desfavorecidos apresenta algumas subcategorias, cada uma refletindo
diferentes noes de justia restaurativa. Existem muitos exemplos
recentes de ju-dicializao da justia restaurativa. Lembremos da era
ps-Apartheid na frica do Sul: a frmula anistia-em-troca-de-confisso
obteve luz verde por parte da Corte Constitucional sul-africana no
caso Azanian Peoples Organization (Azapo) v. Presidente da Repblica
da frica do Sul (1996), sustentando o estabelecimento da Comisso de
Verdade e Reconciliao, de carter quase judicial.61 Ou conside-remos
o importante papel cumprido pelas recm-criadas cortes
constitucionais na Europa ps-comunista no confronto com o passado
por meio de julgamentos de ex-funcionrios pblicos acusados de atos
que, hoje, so considerados violaes de direitos humanos da era
comunista.62 Da mesma forma, ocorreu uma judiciali-zao generalizada
da justia restaurativa em pases latino-americanos ps-autori-trios
(consideremos, por exemplo, a batalha judicial sobre o destino de
Augusto Pinochet, ex-ditador do Chile). Outro exemplo seria a
grande judicializao das disputas sobre o status de povos indgenas
nas chamadas colnias de povoamen-to, como Austrlia, Canad e Nova
Zelndia.
A judicializao da justia restaurativa tambm evidente no nvel
transna-cional. Mais uma vez, os exemplos so muitos. O Tribunal
Penal Internacional (TPI) (ratificado por 90 pases at 2006) foi
estabelecido em 1998 como um rgo judicial internacional permanente
com jurisdio potencialmente universal sobre genocdio, crimes contra
a humanidade, crimes de guerra etc.63 O Tribunal Penal
Internacional para a ex-Iugoslvia na Haia foi estabelecido em
1993.64 Nele, Slo-bodan Milosevic foi levado a julgamento.65 Outro
exemplo o Tribunal Penal In-ternacional para Ruanda em Arusha, na
Tanznia, estabelecido em 1995. Tambm esto includas nessa categoria
as cortes hbridas recm-criadas no Camboja, Timor Leste, Iraque,
Kosovo e Serra Leoa. Todas elas so tribunais internacionais
61 Azanian Peoples Organization (Azapo) v. President of the
Republic of S. Afr. 1996 (4) SA 672 (CC). 62 Ver Schwartz (2000) e
Quint (1999). 63 Ver Schabas (2004).64 Ver Kerr (2004). 65
Idem.
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 155
de justia restaurativa que trabalham sob as regras dos sistemas
legais domsti-cos e aplicam uma combinao de direito internacional e
domstico, substantivo e processual.
Definindo a nao atravs dos tribunais
Todas essas reas de megapoltica judicializada, porm, so mera
introduo para o que pode ser considerado a mais clara manifestao da
judicializao gene-ralizada de controvrsias polticas fundamentais: o
crescente recurso aos tribunais para contemplarem a prpria definio,
ou raison dtre, da comunidade. Conside-remos, por exemplo, o
envolvimento sem precedentes do Judicirio canadense na questo do
status bilngue do pas e do futuro poltico de Quebec e da federao
canadense, incluindo a histrica deciso da Suprema Corte canadense
na Consulta sobre a Secesso de Quebec a primeira vez em que um pas
democrtico testou antecipadamente os termos jurdicos de sua prpria
dissoluo. Da mesma forma, a Corte Constitucional Federal alem
exerceu papel-chave na criao da Alemanha unificada, como ficou
claro, por exemplo, no caso Maastricht, no qual a Corte se ba-seou
em provises da Lei Fundamental alem para determinar o status da
Alemanha ps-unificao vis--vis a emergente comunidade supranacional
europia. Existem muitos exemplos desse fenmeno: o papel central que
a Corte Constitucional turca exerceu na preservao da natureza
estritamente secular do sistema poltico turco, reprimindo
continuamente foras e partidos polticos antissecularistas; a
importante jurisprudncia da Suprema Corte da ndia sobre o status
das leis pessoais religiosas mulumana e hindu;66 o papel crucial
dos tribunais em diversas teocracias constitu-cionais, como Egito e
Malsia, na determinao da natureza da vida pblica nesses estados
modernos formalmente governados por princpios da Sharia islmica;67
a transferncia generalizada da profunda diviso entre o religioso e
o secular, na so-ciedade israelense, para o Judicirio, atravs da
judicializao da questo quem judeu? e o correspondente envolvimento
da Suprema Corte de Israel na interpre-tao da definio fundamental
de Israel como um Estado democrtico e judaico. No nvel
supranacional, podemos pensar no papel-chave da Corte Europeia de
Jus-tia na implementao e acelerao do processo de integrao europeu
papel que est destinado a crescer com a expanso da fronteira leste
da UE, em 2004, e com a possibilidade de uma Constituio
europeia.
66 Ver Mohammed Ahmed Khan v. Shah Bano Begum, A.I.R. 1985 S.C.
945 (ndia).67 Para uma discusso sobre o papel das cortes no Egito,
ver Hirschl, Ran. Constitutional courts vs. Re-ligious
fundamentalism: three middle eastern tales. Tex. L. Rev. p. 1819,
1829-1833, 2004. Para Malsia, ver Peletz, Michael G. Islamic
modern: religious courts and cultural politics in Malaysia,
2002.
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Revista de Direito Administrativo15
Para melhor apreender a natureza puramente poltica desses
julgamentos, necessria uma discusso mais detalhada de alguns casos
ilustrativos. Comece-mos pela Europa. No histrico caso Maastricht,
a Corte Constitucional Federal alem foi provocada a definir, com
base na Lei Fundamental alem, o status da Alemanha ps-unificao
vis--vis a comunidade supranacional europeia emer-gente.68 O art.
38 da Lei Fundamental d aos cidados alemes o direito de votar nos
seus representantes parlamentares.69 O art. 20 (2) da Lei
Fundamental d aos cidados-eleitores o direito de participar no
exerccio da autoridade estatal por meio de seus deputados.70 Os
peticionrios argumentaram que a criao da Unio Europeia, atravs do
Tratado de Maastricht de 1992, implicava uma transferncia de
autoridade para tomada de decises polticas do mbito nacional para o
supra-nacional, colocando parte considervel dessa autoridade alm do
mbito de ao dos legisladores nacionais. Mais especificamente, a
transferncia de autoridade para a Unio Europeia constituiria uma
renncia de poder por parte do Bundes-tag, infringindo, assim, o
direito dos cidados alemes de influenciar o exerccio do poder
estatal atravs do voto. E, assim, mais uma vez, um tribunal
nacional foi chamado para clarificar e resolver uma controvrsia
poltica fundamental dessa vez, as inter-relaes entre o eleitor
alemo, o Bundestag e a comunidade suprana-cional europeia
emergente.
Em sua deciso, o Tribunal Constitucional Federal alemo analisou
em de-talhes as razes por trs da criao da comunidade supranacional
europeia e estipulou as condies necessrias para a obteno de
legitimidade demo-crtica no mbito supranacional. O tribunal seguiu
definindo a competncia legislativa dos Estados-membros e
parlamentos nacionais em relao UE, e declarou que o Bundestag
deveria reter para si funes e poderes de importn-cia substancial.
Mais ainda, o tribunal declarou que o art. 38 da Constituio violado
quando um ato abre o sistema jurdico alemo para a aplicao do
direito das comunidades supranacionais europeias (se este ato) no
estabelece com certeza suficiente quais poderes so transferidos e
como eles sero inte-grados.71 O tribunal tambm sustentou que os
princpios fundamentais de participao e representao poltica no
impediriam a participao alem na UE, desde que a transferncia de
poder para esses rgos permanecesse enrai-zada no direito dos
cidados alemes de votar e, assim, participar no processo nacional
de elaborao legislativa. Em outras palavras, o tribunal no
hesitou
68 Uma verso resumida da deciso aparece em Kommers (1997:182-186
e 187-193). 69 Grundgesetz (Constituio) art. 38 (F.R.G.). Disponvel
em: .70 Idem, art. 20.71 Ver Kommers (1997).
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 15
em lidar com uma questo poltica explcita. Ao contrrio, sustentou
a consti-tucionalidade do Tratado de Maastricht o documento
constitutivo da noo de unio cada vez mais prxima , colocando o
tratado sob o escrutnio da Lei Fundamental e seus princpios.
Outro revelador exemplo de articulao judicial dos valores
centrais da na-o pode ser encontrado no papel exercido pela Suprema
Corte Constitucional do Egito quando lidou com a crucial questo do
status das regras da Sharia pro-vavelmente o problema de identidade
coletiva mais controverso e fundamental da comunidade egpcia. Desde
o estabelecimento, em 1979, do controle de consti-tucionalidade no
Egito, e da emenda constitucional de 1980, que tornou a Sharia
islmica a principal fonte legislativa do pas,72 a Corte vem sendo
cada vez mais chamada a determinar a constitucionalidade de atos
legislativos e administrativos com base em sua compatibilidade com
os princpios da Sharia.73 A questo diante da Corte em todos esses
casos tem sido a de quais princpios da Sharia possuem autoridade
determinante e absoluta.74
Para abordar essa questo de forma moderada, a Corte desenvolveu
uma complexa matriz interpretativa de diretivas religiosas a
primeira desenvolvi-da por um tribunal no religioso. Afastou-se de
tradies antigas das escolas fiqh (jurisprudncia islmica ou o
conhecimento/cincia acumulados sobre a Sharia) e desenvolveu um
novo quadro para interpretar a Sharia.75 Mais especificamente, a
Corte desenvolveu uma abordagem flexvel e modernista para a
interpretao da
Sharia, distinguindo entre princpios inalterveis e
universalmente vinculantes e aplicaes maleveis dos princpios.76 Uma
legislao que contrarie um prin-cpio estrito, inaltervel, declarada
inconstitucional e nula mas, por outro lado, a ijtihad (interpretao
externa) permitida em casos de lacuna, ou quando as re-gras
pertinentes so vagas ou tm finalidades abertas.77 Mais ainda, foi
concedida ao governo uma grande margem de discricionariedade em
questes de polticas pblicas nas quais a Sharia no fornece respostas
claras ou unvocas, desde que o resultado da elaborao normativa no
contrarie o esprito geral da Sharia.78 Essa abordagem
interpretativa marcou uma verdadeira mudana de paradigma na
legitimao de polticas de governo baseadas em uma interpretao
(ijtihad) moderada e razoavelmente liberal da Sharia.
72 Constituio do Egito, cap. I, art. 2. Disponvel em: . 73 Ver
Gabr (1996). 74 Hirschl (2004:1.823).75 Ver Brown (1999:491). 76
Idem, p. 496.77 Idem.78 Idem, p. 497.
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Revista de Direito Administrativo158
A Corte aplicou tal abordagem no caso Riba,79 no histrico caso
Niqab80 e no pioneiro caso Khul, em que a Corte sustentou a
constitucionalidade da Lei de Status Pessoal, de 2000, mantendo os
dispositivos que estabelecem o direito de uma mulher mulumana
invocar o khul divrcio sob qualquer justificativa e sem o
consentimento do marido desde que os presentes de joias (shabka) e
pagamentos de dote (mahr) do noivo sejam devolvidos e que se
renuncie a certos direitos patrimoniais.81 Ao anunciar a deciso da
Corte, o ministro Maher El-Bahri confirmou que a incorporao do khul
na lei egpcia sobre status pessoal no viola a Sharia ou o art. 2o
da Constituio, j que existem versos claros no Alcoro e fiqh
correspondentes sustentando o procedimento do khul.
Neste e em outros julgamentos fundamentais a respeito do escopo
da Sharia na vida pblica do Egito, a Corte realizou uma interpretao
substantiva autno-ma do Alcoro e de evidncias disponveis na Suna.
De fato, a Corte estabeleceu sua prpria interpretao da ijtihad,
apesar da existncia de opinies contradit-rias na jurisprudncia
islmica, a fiqh, e seus mtodos tradicionais. Dessa forma, a Suprema
Corte Constitucional do Egito se posicionou como intrprete de fato
de normas religiosas e como um frum central para lidar com o dilema
da teocra-cia constitucional do Egito.
Talvez em nenhum outro lugar do mundo a judicializao da
megapoltica esteja mais evidente do que na vizinha Israel
provavelmente, o pas mais pr-ximo de uma completa juristocracia em
todo o planeta. Toda semana, a Suprema Corte de Israel (SCI)
anuncia uma deciso significativa, amplamente divulgada pela mdia e
assistida de perto pelo sistema poltico. Os exemplos mais claros do
envolvimento profundo da SCI em questes formativas de identidade
coletiva so os recentes julgamentos sobre a questo quem judeu
possivelmente a ques-to mais carregada de implicaes sobre
identidade coletiva na Israel de hoje. A corrente ortodoxa do
judasmo a nica formalmente reconhecida pelo Estado. Este status
exclusivo permitiu que a comunidade ortodoxa estabelecesse um
quase
79 O caso Presidente da al-Azhar Univ. v. Presidente da Repblica
(o caso Riba), no 20 do primeiro ano judicial (4 de maio de 1985),
discutido em Vogel, Frank E. Conformity with Islamic Sharia and
constitu-tionality under article 2: some issues of theory, practice
and comparison. In: Brown (1999:525-534).80 Wassel v. Ministro da
Educao (o caso Niqab), no 8 do ano judicial 17 (18 de maio de
1996). Traduzido em Cotran e Mallat (1996:178-180). Sustenta a
constitucionalidade de um decreto governamental que permitia que as
pessoas responsveis por alunas abaixo do nvel universitrio
requisitassem que elas cobrissem seus cabelos, desde que no fosse
exigido encobrir os rostos (que elas usassem uma hijab cobertura de
cabea e no uma nigab mscara ou cobertura total de cabea).81 A nova
lei permitiu esse divrcio por ordem judicial (sem o consentimento
do marido) depois que um processo de mediao e reconciliao
obrigatrias falhasse. Essas novas provises efetivamente torna-ram
ilegais prticas abusivas de homens que se divorciavam de suas
esposas apenas dizendo Eu me divorcio de voc (talaq al-bida) trs
vezes, contornando qualquer esforo para mediar ou reconciliar os
cnjuges (talaq al-ghyabi). Ver Khul law passes major test, Al-Ahram
Weekly Online, 19-25 dez. 2002. Disponvel em: .
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 159
monoplio na prestao de servios religiosos pblicos e que
impusesse critrios rgidos no processo de determinao de quem judeu.
Essa pergunta tem im-plicaes simblicas e prticas cruciais, na
medida em que, de acordo com a Lei do Retorno, judeus que imigram
para Israel recebem uma variedade de benefcios, in-cluindo o
direito imediato cidadania plena.82 Imigrantes no judeus no recebem
tais benefcios. J que ser judeu suficiente para obter cidadania, a
autodefinio do Estado como um Estado judaico inseparvel da definio
de quem judeu. No surpreendentemente, a batalha sobre a converso ao
judasmo tem sido assis-tida de perto por judeus dentro e fora de
Israel.
Assim como em outros assuntos polticos polmicos em Israel, a
incompetn-cia ou a falta de vontade do sistema poltico em lidar com
o problema (somadas s incrivelmente generosas regras de acesso SCI)
levaram a questo quem judeu SCI. Em 1989, quando a iniciativa da
revoluo constitucional estava em seus estgios iniciais, a SCI
decidiu que, para fins de imigrao, qualquer pessoa convertida ao
judasmo fora de Israel, independentemente de a converso ter sido
feita por instituio religiosa ortodoxa, conservadora ou reformista,
teria acesso automtico a todos os direitos de um oleh (imigrante
judeu), nos termos da Lei do Retorno e da Lei de Cidadania.83 Em
1995, a SCI foi mais uma vez arrastada para as turvas guas da
poltica de identidades. Dessa vez, o problema era se uma pessoa no
judia que se submetera a uma converso no ortodoxa em Israel teria
direito automtico cidadania, com base no direito de retorno. A SCI
evitou dar uma resposta clara ao mesmo tempo que reafirmou
explicitamente seu julgamento anterior, que validara converses no
ortodoxas feitas fora do pas.84
Aps tal deciso, um nmero crescente de no judeus residindo em
Israel (sobretudo trabalhadores estrangeiros e imigrantes no judeus
da antiga Unio Sovitica) foi ao exterior para obter converso no
ortodoxa com o intuito de rei-vindicar os benefcios concedidos pelo
Estado aos recm-chegados reconhecidos como judeus. Em resposta, o
ministro do Interior (ento controlado pelo partido ultraortodoxo
Shas) renovou sua recusa em reconhecer converses reformistas e
conservadoras feitas no exterior. Em novembro de 1999, a SCI
revisitou o assunto, declarando que, se as partes envolvidas
falhassem em chegar a um acordo at abril de 2000, um painel
expandido de 11 juzes abordaria o problema da conver-so. Nenhum
compromisso foi obtido no prazo e a SCI concluiu sua deliberao no
final daquele ano. A judicializao da questo sobre a converso
culminou no
82 A Lei do Retorno, 1970, S.H. 586 (Isr.). Disponvel em: .
Concede a judeus o direito de retorno a Israel para adquirir
cidadania, mesmo que no tenham tido qualquer contato prvio com o
Estado.83 HCJ 264/87 Sepharadi Torah Guardians-Shas Movement v.
Population Registrar. IsrS, v. 43, n. 2, p. 723-731, 1989.84 HCJ
1031/93. Pessaro (Goldstein) et al. v. Minister of the Interior.
IsrSC, v. 49, n. 4, p. 661, 1995.
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Revista de Direito Administrativo10
incio de 2002 com a histrica deciso da SCI (por nove votos a
dois) de reconhecer converses no ortodoxas realizadas no
exterior.85 A SCI ordenou que o ministro do Interior registrasse
como judeus os cidados israelenses que haviam sido con-vertidos
pelos movimentos conservador e reformista no exterior.86 Na
justificativa, a SCI se baseou em uma antiga conveno segundo a qual
o censo populacional do ministrio deve se abster de questionar
cidados israelenses acerca dos detalhes de suas crenas.87
Em maro de 2005, a SCI proferiu outro julgamento histrico sobre
uma ques-to que perpassa o corao da identidade coletiva do Estado
judeu.88 Um grupo de trabalhadores estrangeiros residentes em
Israel havia estudado para converses reformistas e conservadoras no
pas, mas teve as cerimnias realizadas no exterior, em uma tentativa
de driblar o reconhecimento exclusivo para converses orto-doxas em
Israel. O ministro do Interior objetou contra essas converses
bypass (co-nhecidas em Israel como converses saltadoras, j que
requerem um pequeno pulo em uma jurisdio estrangeira), argumentando
que a Lei do Retorno no se aplica a estrangeiros j residentes em
Israel, e que converses bypass no contam validamente como converses
no exterior. Em uma deciso por sete votos a qua-tro, a SCI
concordou com os peticionrios e reconheceu converses no ortodoxas
do tipo bypass feitas de jure no exterior, mas de facto em Israel.
A SCI sustentou que uma pessoa que foi para Israel como no judeu e,
durante um perodo de residn-cia legal, converteu-se em uma
comunidade judaica reconhecida no exterior deve ser considerada
judia. O presidente da SCI, Aharon Barak, escreveu:
A nao judaica uma s... Ela est dispersa pelo mundo, em
comunidades. Quem se converteu ao judasmo em uma dessas comunidades
no exterior aderiu nao judaica, e deve ser visto como um judeu de
acordo com a Lei do Retorno. Isto pode encorajar a imigrao para
Israel e manter a uni-dade da nao judaica na Dispora e em
Israel.89
Lembremos que isso deveria ser uma deciso judicial, no um
discurso ou manifesto poltico.90
85 HCJ 5070/95 Working and Volunteering Women Movement v.
Minister of Interior. IsrSC,v. 56, n. 2, p. 721, 2002.86 Idem.87
Idem.88 Yoaz,Yuval. Court recognizes non-orthodox overseas
conversion of israeli residents. Haaretz, 4 jan. 2005. Disponvel
em: . 89 Idem.90 Compare esta clara manifestao da judicializao de
questes fundamentais sobre identidade coleti-va (a terceira face da
judicializao) com aspectos menos relevantes das mesmas questes de
identida-
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 11
Outro exemplo claro de judicializao da megapoltica pode ser
visto no envolvimento sem precedentes da Suprema Corte do Canad com
o status bi-lngue do pas e com o futuro poltico de Quebec e da
federao canadense, mais notavelmente na histrica deciso da Corte na
Consulta sobre a Secesso de Quebec.91 O que torna essa deciso to
nica no apenas o fato de ter sido a primeira vez que um pas
democrtico testou antecipadamente os termos de sua prpria dissoluo,
mas tambm a liberdade e a autoridade com que a Corte articulou os
pilares fundamentais da comunidade canadense e de uma forma que
nenhum outro rgo estatal jamais havia feito. Em setembro de 1996,
aps uma apertada derrota de 50,6% a 49,4% do movimento de secesso
de Quebec no referendo de 1995, o governo federal canadense se
baseou no procedimento de consulta para solicitar Suprema Corte do
Canad que determinasse se uma hipottica declarao de secesso
unilateral do governo de Quebec seria cons-titucional. Na consulta
submetida por Ottawa Suprema Corte, trs questes foram
levantadas:
(1) De acordo com a Constituio do Canad, podem a Assembleia
Nacio-nal, a legislatura ou o governo de Quebec efetuar a separao
de Quebec do Canad de forma unilateral? (2) O direito internacional
d Assembleia Nacional, legislatura ou ao governo de Quebec o
direito de efetuar a sepa-rao de Quebec do Canad de forma
unilateral? Em outras palavras, existe no direito internacional um
direito autodeterminao aplicvel a Quebec? (3) Se existe um conflito
entre o direito internacional e a Constituio cana-dense sobre a
secesso de Quebec, o que deve prevalecer?92
Em uma deciso amplamente divulgada, em agosto de 1998, a SCC
sustentou por unanimidade que a secesso unilateral seria um ato
inconstitucional em face tanto do direito domstico, quanto do
internacional, e que o voto majoritrio em
de (a segunda face da judicializao): Fred convertido ao judasmo
por um rabino ortodoxo que, por estar cansado naquele dia, comete
um ou dois erros procedimentais durante o processo. Uma semana
depois, o rabino percebe seu erro e insiste que Fred passe pelo
procedimento correto. Fred diz no e o debate chega s cortes. Apesar
de o debate judicial envolver aspectos da pergunta sobre quem
judeu, eles so incidentais para a questo procedimental central em
jogo. Agradeo a Mark Graber por clarificar esse ponto.91 Reference
re secession of Que., 1998 2 S.C.R. 217. Ver tambm A.G. (Que.) v.
Que. Protestant Sch. Bds., 1984, 2 S.C.R. 66. Afirma a
inconstitucionalidade de provisos sobre instruo em ingls. Reference
re objection to resolution to amend the Constitution, 1982, 2
S.C.R. 793. Sustenta que Quebec no tinha poder para vetar emendas
constitucionais, afetando a competncia legislativa de Quebec. Re
resolution to amend the Constitution, 1981, 1 S.C.R. 753. Sustenta
que, de um ponto de vista puramente legal, as Casas do Parlamento
do Canad poderiam requisitar unilateralmente emendas Constituio do
Ca-nad, apesar de existir conveno constitucional exigindo
consentimento substantivo das provncias.92 Reference re Secession
of Que., 1998, 2 S.C.R., p. 228.
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Revista de Direito Administrativo12
Quebec no seria suficiente para permitir a essa provncia se
separar legalmente do resto do Canad.93 Entretanto, a Corte tambm
notou que, se a secesso fosse aprovada por uma clara maioria das
pessoas em Quebec, votando em um referen-do sobre uma pergunta
clara, as partes deveriam negociar de boa-f os termos da separao
subsequente.94 Quanto questo da possibilidade de secesso unilateral
no direito canadense, a Corte deu respostas que no desagradaram
completamen-te nem aos federalistas, nem aos separatistas.
Em termos estritamente legais, a Corte decidiu que a secesso do
Quebec en-volveria uma mudana significativa na Constituio do Canad,
o que requereria
uma emenda constitucional, que por sua vez requereria negociaes
entre todas as partes envolvidas.95 No nvel normativo, a Corte
declarou que a Constituio canadense baseada em quatro princpios
fundamentais igualmente importantes: (1) federalismo, (2)
democracia, (3) constitucionalismo e estado de direito, e (4) a
proteo das minorias.96 Nenhum desses princpios prevalece sobre os
outros.97 Assim, mesmo uma votao majoritria (aderncia estrita ao
princpio democrti-co e regra da maioria) no seria suficiente para
permitir que Quebec se separasse
unilateralmente.98 Porm, a Corte declarou que, se uma maioria
clara dos quebecois votasse sim para uma questo inequvoca sobre a
separao de Quebec, isto conferiria legitimidade aos esforos do
governo de Quebec para iniciar o processo de emenda constitucional
para se separar atravs de meios constitucionais.99 Esta maioria
clara em uma pergunta clara obrigaria o governo federal a negociar
de boa-f com Quebec para chegar a um acordo quanto aos termos da
separao.100
Em relao ao direito internacional, a resposta da Corte foi muito
mais curta e objetiva: foi decidido que, apesar de o direito
autodeterminao dos povos existir no direito internacional, ele no
se aplicaria a Quebec.101 Evitando a questo controversa de se a
populao de Quebec, ou parte dela, constitui um povo no sentido
corrente do direito internacional, a Corte sustentou que o direito
seces-so unilateral no se aplica a Quebec. Aos quebecois no negada
a capacidade de buscar seu desenvolvimento poltico, econmico,
social e cultural dentro do qua-dro de um Estado existente, nem
constituem um povo colonial e oprimido.102
93 Reference re Secession of Que., p. 259-260.94 Idem, p. 293.95
Idem.96 Idem, p. 247-263.97 Idem, p. 248.98 Idem, p. 259-261.99
Idem, p. 265.100 Idem, p. 271.101 Idem, p. 277.102 Idem, p.
282.
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 13
O governo de Quebec respondeu deciso promulgando uma lei
declarando que quando uma maioria de 50% mais um dos quebecois
apoiasse em um refe-rendo provincial a ideia de secesso, estaria
satisfeito o requerimento de maioria clara estabelecido pela deciso
da Corte. O governo federal, por sua vez, respon-deu no final de
1999 propondo a Lei da Clareza, formalmente confirmada pelo
Parlamento no vero de 2000.103 Resumidamente, a lei declara que
apenas uma maioria clara em uma pergunta clara teria o poder de
obrigar o governo federal a negociar os termos de separao com
Quebec; e ainda que, dada a natureza da questo, o termo maioria
clara deveria significar mais do que 50% mais um; e que, em
qualquer caso, o governo federal se reserva o direito de determinar
se a pergunta colocada pelo governo de Quebec em um futuro
referendo obedece ao critrio da pergunta clara.
Sem conhecer o contexto poltico destes eventos e decises, o
leitor no ca-nadense pode achar supreendente essa cadeia de eventos
judiciais definindo o status de Quebec. Uma coisa, porm,
inquestionvel: nos ltimos 25 anos, a SCC se tornou um dos mais
importantes fruns pblicos para lidar com a altamente controversa
questo do status de Quebec e sua futura relao com o resto do
Ca-nad. Graas ao novo cenrio constitucional estabelecido pelo Ato
Constitucional de 1982 e disposio da SCC em exercer um papel
central na saga de Quebec, as partes envolvidas (principalmente os
federalistas) foram capazes de gradualmente transferir a questo de
Quebec da esfera poltica para a esfera jurdica.
Em suma, em numerosos pases ao redor do mundo tem havido uma
cres-cente deferncia legislativa ao Judicirio, uma crescente
intruso do Judicirio em prerrogativas de legislaturas e executivos,
e uma correspondente acelerao do processo por meio do qual agendas
polticas tm sido judicializadas. Juntos, tais desenvolvimentos
contriburam para a crescente confiana em meios judiciais para
clarificar e resolver controvrsias morais fundamentais e questes
polticas altamente controversas, transformando tribunais superiores
nacionais em impor-tantes rgos de decises polticas. A onda de
ativismo judicial que inundou o mundo nas ltimas dcadas no poupou
os problemas mais fundamentais que uma comunidade democrtica deve
enfrentar seja acertar as contas com seu frequentemente pouco
admirvel passado ou lidar com conflitos de identidade coletiva. Com
a possvel exceo do monitoramento judicial do processo eleitoral,
nenhuma das recm-judicializadas questes exclusiva ou
intrinsecamente legal. Ainda que algumas delas possam envolver
certos aspectos constitucionais signi-ficativos, no so puramente,
nem mesmo primariamente, dilemas legais. Como
103 Act, 2000 S.C., ch. 26 (Can.). Esse Ato d efeito exigncia de
clareza como foi estabelecido na deci-so da Suprema Corte do Canad
no caso da Consulta sobre a Secesso de Quebec. Idem.
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Revista de Direito Administrativo14
tais, devem ser resolvidas ao menos por princpio atravs de
deliberao p-blica na esfera poltica. Entretanto, tribunais
superiores ao redor do mundo vm gradualmente se tornando
importantes rgos decisrios para lidar precisamente com tais
dilemas. Questes fundamentais de justia transicional, legitimidade
de regimes e identidades coletivas foram formuladas como argumentos
constitucio-nais e, assim, rapidamente encontraram seu caminho at
os degraus das cortes.
4. Por que isto est acontecendo?
A rea da megapoltica judicializada talvez a concretizao mais
completa da noo do direito constitucional como poltica. Os exemplos
discutidos at aqui realam o fato de que nem uma estrutura
constitucional favorvel ao ativismo judicial, nem juzes famintos
por poder ou tribunais constitucionais agressivos so condies
suficientes para a judicializao da megapoltica. A afirmao da
supremacia judicial do tipo que foi descrito neste artigo no pode
acontecer ou se manter sem o suporte tcito ou explcito de atores
polticos influentes. pouco realista e at mesmo ingnuo supor que a
definio de questes polticas centrais como o conflito sobre a
natureza do Canad como uma confederao com dois povos fundadores, o
problema de Israel com a pergunta quem judeu e sua con-dio de
Estado democrtico e judaico, o conflito sobre o status do direito
islmico em pases predominantemente mulumanos, ou a transio
democrtica na frica do Sul poderia ter sido transferida para
tribunais sem que essa transferncia contasse com no mnimo o apoio
tcito dos atores polticos relevantes nesses pa-ses. Como qualquer
outra instituio poltica, tribunais constitucionais no ope-ram em um
vcuo institucional ou ideolgico. Sua jurisprudncia explicitamente
poltica no pode ser entendida separadamente dos conflitos sociais,
polticos e econmicos concretos que do forma a um determinado
sistema poltico. De fato, deferncia poltica ao Judicirio e a
consequente judicializao da megapoltica so partes integrais e
manifestaes importantes desses conflitos polticos e no podem ser
entendidas isoladamente. Isso nos leva a um aspecto crtico e muitas
vezes negligenciado da histria os determinantes polticos da
judicializao. Uma autntica judicializao de baixo para cima tem mais
chances de ocorrer quando as instituies judiciais so percebidas por
movimentos sociais, grupos de interesse e ativistas polticos como
rgos decisrios mais respeitveis, imparciais e efetivos do que
outras instituies governamentais consideradas muito burocr-ticas ou
arenas decisrias majoritrias tidas como enviesadas. Uma
judicializao da poltica totalmente abrangente tem, ceteris paribus,
menos chances de ocorrer em uma comunidade com um sistema poltico
unificado e assertivo, que seja capaz de limitar o Judicirio. Em
tais comunidades, a esfera poltica pode fazer ameaas
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 15
crveis a um Judicirio superativo. Do mesmo modo, quanto mais
disfuncionais ou paralisados forem o sistema poltico e suas
instituies decisrias em uma dada comunidade organizada como Estado
de direito, mais provvel ser a presena de um Poder Judicirio
expansivo.104 Maior fragmentao de poder entre os rgos polticos
reduz a capacidade que tm de frear os tribunais, e,
consequentemente, aumenta a possibilidade de os tribunais se
afirmarem.105
Do ponto de vista dos polticos, a delegao de questes polticas
controver-sas para os tribunais pode ser um meio eficaz de
transferir responsabilidade, re-duzindo os riscos para eles mesmos
e para o aparato institucional no qual operam. O clculo dessa
estratgia de redirecionamento de culpa bastante intuitivo. Se a
delegao de poderes capaz de aumentar a legitimidade e/ou diminuir a
culpa atribuda aos atores polticos pelo resultado da deciso da
instituio delegada, ento tal delegao pode beneficiar os atores
polticos.106 No mnimo, a transfe-rncia de abacaxis polticos para os
tribunais oferece uma sada conveniente para polticos incapazes ou
desinteressados em resolver essas disputas na esfera poltica. Essa
transferncia tambm pode representar um refgio para polticos que
buscam evitar dilemas difceis, nos quais no h vitria possvel, e/ou
evitar o colapso de coalizes de governo em estado de fragilidade ou
de impasse.107 Da mesma forma, a oposio pode buscar judicializar a
poltica (por exemplo, peticio-nando contra polticas pblicas do
governo) para dificultar a vida do governo da vez. Polticos da
oposio podem recorrer ao Judicirio na tentativa de aumentar sua
exposio na mdia, independentemente de o resultado final da disputa
ser ou no favorvel.108 Com frequncia, por trs da transferncia para
o Judicirio de questes envolvendo mudanas de regime encontraremos
uma busca poltica por legitimidade (considere, por exemplo, a j
mencionada legitimao do golpe de Estado militar pela Suprema Corte
do Paquisto, em 1999). Estudos empricos confirmam que, na maioria
das democracias constitucionais, tribunais superiores tm mais
legitimidade e mais apoio da opinio pblica do que virtualmente
todas as outras instituies polticas.109 Isso verdade mesmo quando
os tribunais se engajam em manifestaes explcitas de jurisprudncia
poltica.110
A judicializao da megapoltica tambm pode ser alimentada por
tentativas de preservao hegemnica de grupos sociopolticos
dominantes que estejam com receio de perder seu controle sobre o
exerccio do poder poltico. Estes gru-
104 Guarnieri e Pederzoli, 2002:160-182.105 Ferejohn, 2002.106
Voigt e Salzberger, 2002. 107 Graber, 1993.108 Dotan e Hofnung,
2005. 109 Fletcher e Howe, 2001; Gibson et al., 1998.110 Caldeira
et al., 2003.
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pos e seus representantes polticos so mais propensos a delegar
ao Judicirio questes estruturantes sobre a construo da nao e sobre
identidades coletivas quando suas vises de mundo e preferncias
polticas esto sendo cada vez mais contestadas nas arenas decisrias
majoritrias.111 Talvez a melhor ilustrao des-sa tendncia possa ser
encontrada em pases onde o crescente suporte popular a modos
teocrticos de governana coloque em xeque as preferncias culturais e
polticas de elites moderadas e relativamente cosmopolitas.112
Nesses cenrios, uma estratgia cada vez mais comum por parte dos
detentores do poder poltico, que representam as elites, tem sido a
transferncia de conflitos fundamentais so-bre identidade coletiva
ou sobre a relao entre religio e Estado para tribunais
constitucionais, em detrimento da esfera poltica.
Dado o seu desproporcional acesso e influncia sobre a arena
jurdica, elites sociais em comunidades que enfrentam profundas
divises entre orientaes se-culares e religiosas procuram diminuir a
possibilidade de contestao efetiva s suas preferncias polticas
seculares ocidentalizadas. O resultado tem sido uma judicializao
sem precedentes de questes envolvendo identidades coletivas
fun-damentais, em especial... questes de religio e Estado, e a
consequente emergn-cia de tribunais constitucionais como
importantes guardies dos interesses secu-lares desses pases.
No mesmo sentido, tem-se observado que a judicializao de questes
so-bre a formao de identidades coletivas mais vivel em casos de
desarmonia constitucional, causados pelo comprometimento da
comunidade com valores aparentemente conflitantes, como a
autodefinio de Israel como um Estado si-multaneamente judaico e
democrtico.113 Tambm mais vivel quando os valores protegidos na
Constituio contrastam com os valores predominantes entre a
po-pulao. Consideremos, por exemplo, a separao constitucional
estrita entre re-ligio e Estado na Turquia, apesar de a grande
maioria dos turcos se definir como de mulumanos devotos.
A judicializao da poltica pode refletir a competitividade do
mercado elei-toral de uma comunidade ou os horizontes temporais dos
governantes. Segundo o modelo de alternncia eleitoral, por exemplo,
quando um partido governante espera vencer diversas eleies
seguidas, a probabilidade de se ter um Judicirio poderoso e
independente baixa. Porm, quando um partido governante tem bai-xa
expectativa de permanecer no poder, torna-se mais propenso a apoiar
um Judi-cirio poderoso, garantindo assim que o prximo partido
governante no poder
111 Hirschl, 2004.112 Idem.113 Ver Jacobsohn (2004).
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 1
usar o Judicirio para fins polticos.114 Do mesmo modo, quando
atores polticos so impedidos de implementar plenamente sua agenda,
podem tentar vencer os obstculos estimulando o exerccio ativo do
controle de constitucionalidade por um Judicirio que seja simptico
sua agenda.115 A judicializao da megapoltica pode permitir que
governos imponham a comunidades enormes e heterogneas uma poltica
centralizadora de tamanho nico116 (consideremos, por exemplo, o
efeito uniformizador da jurisprudncia constitucional de tribunais
superiores em comunidades extremamente heterogneas, como os Estados
Unidos ou a Unio Europeia). Por fim, a transferncia de grandes
questes controversas para tri-bunais ou outras instituies decisrias
quase profissionais e semiautnomas, tan-to domsticas quanto
supranacionais, pode ser vista como parte de um processo maior pelo
qual elites polticas e econmicas procuram proteger a elaborao de
polticas pblicas das vicissitudes da poltica democrtica, ao mesmo
tempo que manifestam apoio a uma concepo schumpeteriana (ou
minimalista) de demo-cracia.117
A transferncia de questes fundamentais sobre identidades
coletivas para os tribunais raramente leva a decises contrrias aos
interesses dos atores que opta-ram pela delegao de poder s
instituies judiciais. Do mesmo modo, o avano da justia transicional
atravs dos tribunais tem andado na melhor das hipteses a passos
pequenos e quase letrgicos. Ocasionalmente, quando provocados a se
ma-nifestar contra o establishment, os tribunais podem reagir com
decises que amea-am alterar as relaes de poder poltico que definem
o prprio lugar do tribunal na comunidade. Na maioria dos pases do
novo constitucionalismo, os legislado-res tm sido capazes de
responder de forma efetiva a tais decises desfavorveis ou de
simplesmente obstruir sua implementao. Talvez a ilustrao mais clara
da necessidade de suporte poltico para a terceira face da
judicializao possa ser encontrada nas inequvocas reaes da esfera
poltica contra manifestaes inde-sejadas de ativismo judicial.
Como nos mostra a histria recente da poltica constitucional
comparada, manifestaes recorrentes de interveno judicial no
solicitada na esfera polti-ca em especial decises inconvenientes
sobre problemas polticos altamente polmicos levaram a
significativas retaliaes polticas cortando as asas dos tribunais
hiperativos. Essas retaliaes incluem a reviso legislativa de
decises controversas; a interferncia poltica no processo de
preenchimento das vagas nos tribunais e nas garantias inerentes ao
cargo, com vistas a assegurar a indicao de
114 Ver Gillman (2002). 115 Whittington, 2005. 116 Morton, 1995;
Goldstein, 2001.117 Hirschl, 2004:211-223.
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Revista de Direito Administrativo18
juzes obedientes e/ou bloquear a indicao de juzes indesejveis;
tentativas de se preencher o tribunal (court-packing) por parte dos
detentores do poder poltico; aplicao de sanes disciplinares,
impeachment ou remoo de juzes inadequados ou hiperativos; introduo
de restries jurisdio dos tribu-nais, ou a poda dos poderes de
controle de constitucionalidade. Em alguns casos (Rssia em 1993,
Cazaquisto em 1995, Zimbbue em 2001 e Equador em 2004), as aes
adotadas como parte da retaliao poltica resultaram em crises
constitucio-nais que levaram reconstruo ou dissoluo das respectivas
cortes supremas. Podemos acrescentar a essa lista respostas
polticas mais sutis, e possivelmente mais letais, como a pura e
simples inobservncia das determinaes judiciais por parte da
burocracia estatal, ou a implementao vagarosa ou relutante de
decises indesejadas.118
So muitos os exemplos de situaes de reviso legislativa de
decises judi-ciais no mundo do novo constitucionalismo. Executivos
e legislativos nos EUA frequentemente reviram, neutralizaram ou
driblaram decises de cortes constitu-cionais.119 Em sua deciso mais
famosa, no caso Mohammed Ahmad Kan v. Shah Bano Begum, a Suprema
Corte da ndia decidiu que o direito infraconstitucional de esposas
negligenciadas receberem dos maridos auxlio para sua manuteno
deveria se manter independentemente de quaisquer outras disposies
legais apli-cveis s partes.120 Tal deciso teve implicaes srias para
a tradicional prtica in-diana de deixar que temas religiosos
centrais fossem resolvidos pelas instituies muulmanas.
Representantes tradicionalistas da comunidade mulumana tomaram a
deciso como prova das tendncias homogeneizantes dos hindus, que
ameaavam enfraquecer a identidade mulumana. O Parlamento da ndia se
curvou s macias presses polticas de mulumanos conservadores e
reverteu a deciso da Suprema Corte em Shah Bano atravs da aprovao
da Lei das Mulheres Muulmanas (prote-o aos direitos de divrcio).
Apesar do seu ttulo reconfortante, a nova lei desfez a deciso da
Corte, privando mulheres mulumanas do direito de recorrer aos
tribu-nais estatais para pedir pagamentos de penso aps o divrcio. A
lei tambm isen-tou ex-maridos mulumanos de outras obrigaes
ps-divrcio. Aparentemente, a Suprema Corte entendeu o recado. Ao
julgar um caso sobre a constitucionalidade da Lei das Mulheres
Muulmanas, a deciso da Corte foi sensivelmente mais modera-da e
ambgua do que sua deciso original em Shah Bano.121
Podemos mencionar tambm a dura reao poltica e a correspondente
rever-so por vias legislativas da expanso dos direitos dos
aborgenes promovida pela
118 Conant, 2002; Rosenberg, 1991; Garret et al., 1995. 119
Peretti, 1999.120 Muhammed Ahmad Kan v. Shah Bano Begum, A.I.R.,
1985, S.C. 945. Ver tambm Shachar (2001). 121 Danial Latifi v.
Union of India, A.I.R., 2001, S.C. 3958.
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O Novo Constitucionalismo e a Judicializao da Poltica Pura no
Mundo 19
Suprema Corte australiana. Na deciso histrica no caso Mabo v.
Queensland II, a Suprema Corte abandonou o conceito jurdico de
terra nullius (terra vaga) que por sculos servira como base para a
negao formal da validade das reivindica-es de aborgenes como
nativos estabelecidos a direitos de propriedade sobre a terra que
ocupam, e sustentou que o ttulo aborgene no se extinguiria com a
mudana de soberania.122 No caso The Wik Peoples v. Queensland, a
Suprema Corte sustentou que a cesso de terras pastorais a terceiros
por parte do governo no necessariamente extinguiria o ttulo
nativo.123 Esta extino s ocorreria depen-dendo dos termos
especficos da cesso de terras pastorais e da legislao que a
sustentava. As potencialmente profundas implicaes redistributivas
de Mabo II e Wik causaram imediata reao popular, junto com os
poderosos setores agrcola e minerador, apoiados pelos governos de
Queensland, da Austrlia do Oeste e do Territrio Norte, demandando
uma extino de forma ampla e geral do ttulo nativo de propriedade.
No incio de 1997, o governo conservador de John Howard cedeu
deliberadamente mobilizao poltica contra a Corte, introduzindo no
Native Title Act modificaes que, para todos os fins, reverteram a
deciso do caso Wik.
Consideremos tambm o caso de Cingapura. Respondendo prontamente
a uma deciso desfavorvel da Suprema Corte de Cingapura sobre o
direito ao de-vido processo legal de dissidentes polticos detidos
por conspirao comunista para derrubar o governo, o governo de
Cingapura (controlado, nas ltimas qua-tro dcadas, pelo Partido da
Ao do Povo) emendou a Constituio para revogar a autoridade da Corte
para exercer qualquer controle significativo da
constitucio-nalidade de medidas governamentais de deteno
preventiva.124 Em uma deciso de 1993, largamente divulgada na
imprensa, o Comit Judicial do Conselho de Es-tado CJCP (Privy
Council), em Londres, reverteu uma deciso da Corte Superior de
Cingapura expulsando o Sr. J. B. Jeyartenam um lder poltico de
oposio da Ordem dos Advogados de Cingapura. Antes da deciso no caso
Jeyartenam, o status do CJCP no topo do sistema judicial de
Cingapura parecia inquestionvel. Mas, to logo decidiu de forma
contrria aos interesses polticos da elite dominan-te do pas, o CJCP
foi denunciado pelos oficiais governamentais como
interven-cionista, exorbitando de seu papel previsto, alienado das
decises locais e fazendo poltica. Em questo de semanas aps a deciso
do CJCP, o governo de Cingapura aprovou uma emenda constitucional
que aboliu de uma vez por todas a possibilidade de recurso para o
CJCP.125
122 Mabo v. Queensland II, 1992, 175 C.L.R. 1.123 The Wik
Peoples v. Queensland, 1996, 187 C.L.R. 1.124 Chng Suan Tze v.
Minister of Home Affairs, 1988, 1 S.L.R. 132 (Sing.).125
Silverstein (2003). Seow, Francis T. The politics of judicial
institutions in Singapore. Disponvel em: .
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Revista de Direi