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693Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, p.693-728, set./dez.
2010
A CONVENO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA CRIANA:
DEBATES E TENSES
FLVIA ROSEMBERG Professora de Psicologia Social da Pontifcia
Universidade Catlica de So Paulo,
coordenadora do Ncleo de Estudos de Gnero, Raa e Idade,
pesquisadora do Departamento de Pesquisas Educacionais da Fundao
Carlos Chagas,
coordenadora da sesso brasileira do Programa Internacional de
Bolsas de Ps-Graduao da Fundao Ford
[email protected]
CARMEM LCIA SUSSEL MARIANODoutoranda do Programa de Estudos
Ps-Graduados em Psicologia Social
da Pontifcia Universidade Catlica de So
[email protected]
RESUMO
Neste artigo, revisitamos a literatura sobre o contexto
sociopoltico e o texto da Conveno Internacional sobre os Direitos
da Criana, bem como algumas de suas repercusses no Brasil. Nosso
interesse de apresentar e discutir a literatura sobre a Conveno
decorre no s da escassez da bibliografia brasileira, apesar da
clere ratificao do documento pelo Brasil e de ele ter inspirado a
elaborao do art. 227 da Constituio Brasileira de 1988 e do Estatuto
da Criana e do Adolescente. Deriva, sobretudo, de sua inovao na
representao de infncia e dos direitos da criana e, em consequncia,
da intensa e instigante produo acadmica que tem provocado no
hemisfrio norte. Alm disso, parece-nos urgente que a sociedade
brasileira disponha de embasamento mais consistente sobre os marcos
legais que adota.DIREITOS DA CRIANA E DO ADOLESCENTE POLTICAS
PBLICAS ASSISTNCIA INFNCIA CRIANAS
ABSTRACT
THE INTERNATIONAL CONVENTION ON THE CHILDS RIGHTS: DEBATES AND
TENSIONS. In this article, we look again at literature relating to
socio-political contexts and the text of the International
Convention on the Rights of the Child, as well as some of its
repercussions in Brazil. Our interest in presenting and discussing
the literature on the Convention stems not only from the fact that
little has been written in Brazil on this theme, despite its speedy
ratification of the document, and the fact that it inspired the
drafting of Article 227 of the 1988 Brazilian Constitution and the
Statute of the Child and Adolescent. It derives above all, from the
way it innovated in representing childhood and childrens rights
and, as a consequence, the intense
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
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and challenging academic production it provoked in the northern
hemisphere. Furthermore, it seems for us that Brazilian society
urgently needs to have a more consistent basis for the legal
frameworks it adopts.RIGHTS OF THE CHILD AND ADOLESCENT POLICIES
CHILD WELFARE CHILDREN
Longo tem sido o percurso histrico das instituies sociais,
inclusive jurdicas e acadmicas, para que os adultos das sociedades
ocidentais reconhe-cessem, criana, o estatuto de sujeito e a
dignidade de pessoa. Dentre os marcos fundantes desse
reconhecimento destacam-se a Declarao Universal dos Direitos da
Criana promulgada pela Organizao da Naes Unidas ONU , em 1959, e a
publicao do livro de Philippe Aris (1961), Lenfant et la vie
familiale sous lancien rgime. Apesar de crticas que lhes foram
feitas, ambos os textos instalaram discursos e prticas sobre a
infncia e as crianas contemporneas.
Aris (1961), ao inaugurar a viso da infncia como uma construo
so-cial, dependente ao mesmo tempo do contexto social e do discurso
intelectual (Sirota, 2001, p.10), lana as bases para a mudana
paradigmtica proposta, nas dcadas de 1980 e 1990, pelos Estudos
Sociais sobre a Infncia (na tradio anglosaxnica), ou Sociologia da
Infncia (na tradio francfona). Trata-se de alar a infncia condio de
objeto legtimo das Cincias Humanas e Sociais; entender a infncia
como uma construo social; romper com o modelo de-senvolvimentalista
da Psicologia (por exemplo, o piagetiano) impelido para uma
estrutura de racionalizao adulta permanentemente definida (Jenks,
2002, p.212); atacar o conceito de socializao da criana como
inculcao, at ento predominante na Antropologia, na Psicologia e na
Sociologia; conceber a criana como ator social.
Essa nova perspectiva de compreenso da infncia rompeu com
tendn-cias principais ento vigentes na produo terica e no contexto
sociopoltico de discursos e prticas referentes infncia e que
envolve crianas. As crticas de James e Prout (2003), bem como as de
Jenks (2002) ou Corsaro (1997), ao tratamento dado infncia no
arcabouo terico funcionalista so contundentes: teorias
funcionalistas, s voltas com a explicao da ordem social, adotam uma
concepo de infncia a seu servio, passvel apenas de explicar a
reproduo social. Pouca ateno dada contradio e ao conflito: uma
criana ou se conforma, ou tida como desviante. Dessa perspectiva,
as teorias no ofere-ceriam um quadro interpretativo para
compreender a infncia, ao contrrio,
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A conveno internacional...
695Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
adotariam uma concepo de infncia que permitia manter o arcabouo
terico assentado no pressuposto metaterico do equilbrio.
A nova produo terica foi angariando adeptos, inicialmente nos
pases do hemisfrio norte, tendo sido reconhecida como campo legtimo
de produo acadmica em 1990, quando a International Sociological
Association criou um grupo de trabalho sobre Sociologia da Infncia.
Ela tambm informou discus-ses sobre direitos da criana que
percorreram as dcadas de 1970 e 1980.
No Brasil, a despeito de alguns textos percussores na Educao
(Cadernos de Pesquisa, 1979), na Histria (Priore, 1991), na
Sociologia (Fernandes, 1979) e na Psicologia (Rosemberg, 1976),
essa nova abordagem acadmica bem mais recente, datando
especialmente desta dcada, mas j sendo abrigada em diversas
associaes de ps-graduao e campos acadmicos: Antropologia (Cohn,
2005), (Delgado e Mller, 2005), Histria (Freitas, Kuhlmann Jr.,
2002), Psicologia (Castro, 2001), Sociologia (Marchi, 2009).
Apesar de nos inspirar, temos problematizado alguns aspectos
desse en-foque terico: eventuais diferenas conceituais e polticas
que o termo criana possa recobrir em lnguas que dispem de dois
termos diferentes para puer e filius como no portugus, criana e
filho e nas que dispem de apenas um (ingls ou francs, por exemplo);
qual a idade da criana da Sociologia da Infncia diante da
complexidade ao enfrentarmos a alteridade do beb e o modo de
conceb-lo como ator social? Qual o estatuto epistemolgico do
conceito de infncia: trata-se de categoria descritiva ou analtica?
Como integrar as relaes de idade na compreenso de arranjos polticos
e jurdicos nacionais e suprana-cionais? Apesar de reconhecer
inmeras lacunas, adotamos a perspectiva terica de que as relaes de
idade (e no a infncia) constituem categoria analtica til para se
compreender a produo e sustentao de desigualdades sociais.
Assim, entendemos a delimitao das etapas da vida tambm como uma
construo social que, no ocidente contemporneo, hierarquiza as
idades, posicionando o adulto como pice desta hierarquia. Nesse
sentido, ao lado das hierarquias de classe, gnero, raa-etnia e nao,
as categorias etrias tambm configuram relaes de dominao. Porm, as
relaes de dominao no atuam de forma sincrnica, seja na trajetria
social, seja na histria individual. Isso significa, por exemplo,
que a busca de compreenso e superao de re-laes de dominao de classe
(ou de gnero, raa-etnia, nao) pode gerar ou sustentar relaes de
dominao de idade. Por exemplo, mesmo teorias
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feministas contemporneas, que romperam com a mxima essencialista
na compreenso das relaes de gnero, podem sustentar a naturalizao da
infncia ao assumir, sem problematizao, a mxima da imaturidade
biolgica da criana. Que se tenha, contudo, claro: nosso
questionamento no significa negar a imaturidade biolgica, mas
discutir como as culturas interpretam tal imaturidade (Prout,
James, 1990, p.7)1.
Nossa perspectiva analtica se distancia de interpretaes
contempor-neas que anunciam o fim da infncia (Postman, 1999).
Argumentamos que, nas sociedades contemporneas, apesar de cada vez
mais afastada da produo econmica, a infncia produz recursos
econmicos, til. Em primeiro lugar, a demarcao de sua especificidade
dinamiza os mercados de trabalho e de consumo. Ao se lhe
reconhecerem necessidades (ou direitos) especficas(os), geram-se
novas profisses no mercado de trabalho adulto que, por sua vez,
geram, tambm, a produo de novas mercadorias e servios, inclusive os
de natureza poltica, acadmica, filantrpica, comunitria, ou
solidria. Oldman (1994) assinala esse valor econmico da infncia com
base no que denomina trabalho para criana [childwork], isto ,
trabalho realizado por adultos na or-ganizao e controle das
atividades infantis (p.45). Portanto, nossas sociedades sucumbiriam
no demarcao da infncia e de suas instituies especficas. Que se
pense na hecatombe econmica se a escola bsica instituio de massa
para crianas e adolescentes desaparecesse.
Este exemplo remete segunda razo da utilidade econmica da
infncia: sua atividade de aluno, de escolar.
Contrariamente viso daqueles que consideram as crianas na
modernidade
como inteis, elas ganharam uma nova importncia na esteira da
modernizao
[] Seu tempo e suas atividades foram exigidos e portanto
colonizados pelo
novo mtodo de produo e consequentemente elas caminharam em massa
para
os locais universalmente estabelecidos para o trabalho da criana
moderna a
escola. (Qvortrup, 2001, p.139)
Entre as dificuldades para aceitar a configurao adultocntrica
das sociedades contemporneas, destacamos o hbito de pensar a
infncia, prefe-
1. Ver artigo de Prout neste nmero (p.729-750).
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A conveno internacional...
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rencialmente em contexto familiar. Assim, parece ocorrer um
deslizamento de sentido de criana para filho(a), particularmente
nas lnguas que no diferen-ciam puer de filius. como se a
generosidade de pais e mes pelo(a) filho(a) se expandisse
naturalmente para toda e qualquer criana2. Ao subsumir, no entanto,
a criana no filho, circunscreve-se a infncia esfera do privado, da
famlia, da casa e das relaes interpessoais. A prtica contempornea
de prover instituies organizadas por classes de idade (creches e
escolas), o que Aris (1961) denominou enclausuramento das crianas,
e de controlar o espao da rua, refora a reduzida visibilidade
pblica de crianas, especialmente das menores, dos bebs. A infncia e
a adolescncia ascendem visibilidade pblica preferencialmente quando
associadas excepcionalidade, ao desvio, ao drama, violncia
(Hilgartner, Bosk, 1988).
E a forma pela qual a infncia adentra a esfera pblica crucial
para a posio que ocupa na arena de negociao das polticas pblicas
inclusive dos marcos legais nacionais e internacionais, como a
Conveno Internacional sobre os Direitos da Criana. Isso porque
concebemos a agenda de polticas pblicas tambm como uma construo
social e poltica, resultante do jogo de tenses e coalizes entre
diversos atores sociais, nacionais e internacio-nais, incluindo
aqui as agncias multilaterais e fundaes. Nesse sentido, os
problemas sociais que incitam a ateno pblica podem tambm ser
enten-didos como socialmente construdos (Lahire, 2005; Rosemberg,
Andrade, 2007). Hierarquizamos problemas sociais conforme padres
ticos, polticos, orientaes ideolgicas, interesses pessoais ou
corporativos. A despeito de nossas motivaes, a construo da agenda
de problemas sociais, no mundo contemporneo, depende intensamente
das mdias, que atuam tanto em seu prprio nome, quanto como caixa de
ressonncia de outros atores sociais. A midiatizao das sociedades
modernas, mais enfaticamente das contempor-neas, penetra as
diversas instituies, entre elas a poltica (Thompson, 1995), o
ativismo social e a academia (Snchez-Jankowiski, 1997). Para o bem
e para o mal, vivemos uma era da poltica espetculo (Lipowetsky,
1989) que atinge (e por vezes configura) a agenda de polticas
sociais.
Para incitar a ateno pblica, ns, defensores de causas sociais,
constru-mos um discurso apoiado na persuaso, buscando convencer o
pblico quanto
2. A partir deste ponto, o texto abandona a frmula o(a), visando
a maior fluncia.
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698 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
relevncia das causas que nos mobilizam. Alguns de ns privilegiam
o drama. E a dramaticidade de uma necessidade humana tem sido
intensificada pelo uso retrico da criana, especialmente quando
associada violncia, como vtima ou algoz (Best, 2008).
Ns, profissionais, polticos, ativistas e acadmicos da causa da
infncia, com frequncia ultrapassamos o limite, que pode ser tnue,
entre a publici-zao de uma necessidade social intensa e a
dramatizao espetacular de um problema social. O risco, que pode
decorrer dessa passagem, a canalizao de recursos humanos e
financeiros para o espetculo, em detrimento de outras urgncias com
menor apelo miditico.
Foi com esse olhar que revisitamos a literatura sobre o contexto
sociopo-ltico e o texto da Conveno Internacional sobre os Direitos
da Criana, bem como algumas de suas repercusses no Brasil. Apesar
do reconhecimento de sua importncia no (e pelo) Brasil, a
bibliografia acadmica brasileira reduzida. Nosso interesse em
apresentar e discutir a literatura sobre a Conveno decor-re no s da
escassez da bibliografia brasileira, apesar de sua clere ratificao
pelo Brasil e sua inspirao na elaborao do art. 227 da Constituio
Federal Brasileira CF , de 19883, bem como do Estatuto da Criana e
do Adoles-cente ECA e, sobretudo, de sua inovao na representao de
infncia e dos direitos da criana e, em consequncia, da intensa e
instigante produo acadmica que tem provocado no hemisfrio
norte.
Isso porque parece urgente que a sociedade brasileira, e
principalmente os gestores, disponham de embasamento consistente e
sustentado em debates mais democrticos sobre marcos legais que
adotam. Exemplos recentes de emendas constitucionais EC e projetos
de lei, elaborados e votados pelo parlamento brasileiro, sugerem
essa necessidade. Por exemplo, no encami-nhamento da EC 59/09 que
institui a obrigatoriedade de matrcula/frequncia na pr-escola,
observamos que, na Cmara Federal e no Senado, a tendncia dominante,
tambm por desconhecimento das bases histricas e filosficas, foi
entender obrigatoriedade como universalizao da oferta (Rosemberg,
2010).
3. dever da famlia, da sociedade e do Estado assegurar criana e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito vida, sade,
alimentao, educao, ao lazer, pro-fissionalizao, cultura, dignidade,
ao respeito, liberdade e convivncia familiar e comunitria, alm de
coloc-los a salvo de toda a forma de negligncia, discriminao,
explorao, violncia, crueldade e opresso (Brasil, 1988, art.
227).
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A conveno internacional...
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A Conveno de 1989, em relao s declaraes internacionais
ante-riores, inovou no s por sua extenso, mas porque reconhece
criana (at os 18 anos) todos os direitos e todas as liberdades
inscritas na Declarao dos Direitos Humanos. Ou seja, pela primeira
vez, outorgaram-se a crianas e adolescentes direitos de liberdade,
at ento reservados aos adultos. Porm, a Conveno de 1989 reconhece,
tambm, a especificidade da criana, adotando concepo prxima do
prembulo da Declarao dos Direitos da Criana de 1959: a criana, em
razo de sua falta de maturidade fsica e intelectual, precisa de uma
proteo especial e de cuidados especiais, especialmente de proteo
jurdica apropriada antes e depois do nascimento.
Analistas da Conveno de 1989 discutem suas tenses intrnsecas,
especialmente sob duas perspectivas: sua pretenso universal, mas
seu vis ocidental captado pela nfase aos direitos individuais
(Boyden, 1997); a promul-gao simultnea de direitos proteo, proviso
e de direitos de liberdade, expresso e participao (Soares,
1997).
A tenso entre diferentes concepes de direitos da criana,
observada na Conveno de 1989, tem provocado instigante debate entre
filsofos, juristas e socilogos, especialmente europeus. Desse
debate emergem duas posies: por um lado, um compromisso com a
vertente da proteo,
sustentada pela ideia que a educao seria a nica via que pode
tirar a criana de
sua vulnerabilidade para que tenha acesso autonomia; por outro,
uma corrente
defendida pelos artesos da autodeterminao que pedem uma
mobilizao
em torno dos direitos do homem na criana. (Thry, apud Sirota,
2001, p.20)
Esta ltima denominada, comumente, posio filosfico-poltica
prote-cionista (ou paternalistas) e liberacionista (ou
autonomista). Conforme foi possvel rastrear, tais posies,
cristalizadas pelos debates em torno da Con-veno de 1989, se
conformaram muito mais cedo no sculo XX.
PRECURSORES DO SCULO XX
No artigo originalmente escrito em 1987, A era dos direitos,
Bobbio pe em evidncia como ocorreu a ampliao do mbito dos direitos
do ho-mem na passagem do homem abstrato ao homem concreto atravs de
um
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
700 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
processo de gradativa diferenciao ou especificao (1992, p.3) de
quem seja esse homem, esse cidado. Essa especificao ocorreu em
relao ao gnero, aos estados normais e excepcionais e com respeito s
vrias fases da vida, mencionando como exemplo a Declarao dos
Direitos da Criana. Esta Declarao de 1959, sob os auspcios da
Organizao das Naes Uni-das ONU , e a precedente, de 1924, conhecida
como a Declarao de Genebra, sob os auspcios da Liga das Naes,
tiveram como foco defender a ideia de proteo criana (Renaut,
2002).
Porm, a literatura se refere a duas iniciativas anteriores,
datadas da primeira dcada do sculo XX no leste europeu: os textos
do polons Janusz Korczak, de 1919 e 1929, e a Declarao dos Direitos
das Crianas elaborada pela sesso moscovita da organizao Proletkult,
importante centro de produ-o e difuso cultural criado logo aps a
revoluo de outubro, de 1917, esta ltima raramente mencionada.
Diferentemente das declaraes internacionais, ambas as iniciativas
adotaram perspectiva liberacionista em relao aos direi-tos da
criana. A declarao da Proletkult garantia que as crianas pudessem
escolher como seriam educadas, que religio abraariam ou se viveriam
com seus pais (Mally, 1990).
Contrariamente declarao da Proletkult, os textos de Janusz
Korczak, bem como sua biografia, foram amplamente divulgados na
Europa, particular-mente aps os movimentos contraculturais dos anos
1960. Korczak (1878-1942), pseudnimo de Henryk Goldshmid, judeu
polons, mdico pediatra por formao e educador por opo, criou em
1912, em Varsvia, uma instituio (Lar de Crianas da Rua Krochalna)
na qual acolhia, principalmente, crianas pobres judias. Em parceria
com Stefa Wilczinska, implantaram uma organizao da instituio
governada pelas prprias crianas, o que inclua um parlamento e um
tribunal.
Para Korczak, as crianas eram uma classe oprimida: As crianas,
afi-nal, so ou no seres humanos? [] Para ns [falando como se fosse
uma criana], no existem direitos nem justia [] Somos uma classe
oprimida (Korczak, 1987, p.112-114). Na 2a edio de sua principal
obra, Como amar uma criana, Korczak (1929) argumentava que o
principal e mais indiscutvel dos direitos da criana o que lhe
permite exprimir livremente suas ideias e tomar parte ativa no
debate sobre a apreciao de sua conduta e punio. Ainda, no folheto
publicado em anexo mesma obra, O direito da criana
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A conveno internacional...
701Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
ao respeito4, manifestava dura crtica Declarao de 1924: Os
legisladores de Genebra confundiram as noes do direito e do dever:
o tom da Decla-rao salienta a solicitao e no a exigncia. um apelo
boa vontade, um pedido de compreenso.
Uma magna charta libertatis era o que Korczak j defendia em
1915, na primeira edio de Como amar uma criana. Para ele, os
direitos das crianas deveriam repousar sobre alguns aspectos
essenciais: o direito da criana a viver sua vida atual e o direito
da criana a ser o que . O amor de Korczak s crianas foi
incondicional: acompanhou-as ao gueto de Varsvia e ao campo de
Treblinka, onde foram assassinados pelo terror nazista.
Aps as manifestaes pioneiras da Europa do Leste, observamos um
longo silncio na literatura sobre a defesa de posies
liberacionistas at os movimentos contraculturais entre os anos 1960
e 1970. Na Europa, as revises bibliogrficas sobre a emergncia da
Sociologia da Infncia (Sirota, 2001; Montandon, 2001) ignoram o
tema; o perodo foi, tambm, ignorado no abrangente trabalho de
Renaut (2002). O extensivo captulo de Becchi (1998), no volume 2,
de Histoire de lenfance en Occident, sobre o sculo XX, simplesmente
ignora os precursores liberacionistas e a Conveno de 1989. Isso no
significa que a questo tenha estado afastada de discursos e prticas
europias. Lembremos, por exemplo, o livro de Grard Mendell (1972)
Pour dcoloniser lenfant: sociopsychanalise de lautorit.
Mendell (1972), sustentando-se em uma anlise da autoridade nas
so-ciedades contemporneas, props a substituio de relaes hierrquicas
entre adultos e crianas, por relaes de reciprocidade, igualitrias
(entre classes de idade e no interindividuais), que teriam como
garantia legal a antecipao para a idade de 12 anos do direito de
votar5. necessrio, ainda, lembrar da inovao norueguesa ao se criar,
pela primeira vez na histria da humanidade,
4. No Brasil, esse texto foi publicado em livro com o mesmo
ttulo (Dallari, Korczak, 1986) e precedido, nessa edio, de outro
texto, Os direitos da criana, de autoria de Dalmo de Abreu Dallari
(1986). O direito da criana ao respeito foi resenhado em nmero
especial de Cadernos de Pesquisa (n. 31, p.103-104), alusivo ao Ano
Internacional da Criana, em 1979, talvez a primeira meno obra de
Korczak no Brasil.
5. Ver resenha de Suzanne Mollo (1972).
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
702 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
uma defensoria para as crianas em 1981, nos moldes da que j
existia, naquele pas, para a igualdade de gnero6.
Porm, do outro lado do Atlntico Norte, especialmente nos EUA, a
dcada de 1970 assistiu a uma produo instigante (e inovadora) de
tendncia liberacionista, que se diferenciava do movimento pelos
direitos da criana7.
os libertadores das crianas no devem incorrer no erro de
acreditar que
a liberao e os direitos das crianas apresentam os mesmos
objetivos. O
movimento pelos direitos das crianas luta pelas crianas que
aceitam sua pro-
teo especial, como participantes desiguais da vida social. Os
libertadores das
crianas frequentemente parecem desejar o contrrio: a liberao das
crianas
at mesmo da autoridade bem intencionada dos adultos e sua
exposio aos
mesmos direitos e privilgios dos adultos, com base em que a
proteo que a
elas proporcionam, na verdade lhes extorquem muitos direitos
como cidados.
(Berger, 1984, p.224)8
Dentre os autores liberacionistas do perodo, so mais
frequentemente citados os norte-americanos Richard Farson (1974),
John Holt (1974) e Howard Cohen (1980), considerados por Franklin
(2002) os verdadeiros pais dos denominados novos paradigmas nos
estudos da infncia.
Em Birthrights: a bill of rights for children (1974), Richard
Farson, educa-dor, assinala que, no contexto da sociedade
norte-americana, as crianas so segregadas, ignoradas, impotentes e
invisveis para a nao. Defende que as crianas deveriam ter o direito
de participar na sociedade e que deveriam ser valorizadas pelo que
so e no somente como um potencial adulto. Critica os defensores das
crianas que se centram no abuso e na vitimizao, os quais
6. Ver entrevista concedida por Maalfrid G. Flekkoiy a Peter
Moss (2009), primeira defensora da criana na histria ocidental.
7. De muito interesse a leitura dos dois volumes sucessivos (43
e 44) da Harvard Educa-tional Review (1973 e 1974), posteriormente
reunidos em um nico volume: The rights of children (1974). O volume
se inicia com reflexivo artigo de Hillary Rodham, posteriormente
conhecida como Hillary Clinton, e permite apreender-se a emergncia
de nova concepo sobre a infncia na produo acadmica e na prtica
jurdica norte-americanas.
8. O artigo de Bennett M. Berger datado originalmente de 1977,
mas foi publicado em portugus, em 1984, em coletnea.
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A conveno internacional...
703Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
seriam responsveis pelo notvel aumento da legislao protecionista
para as crianas. Predica a liberao das crianas no mundo que est
organizado contra elas, que as mantm fracas, dominadas, ignoradas.
Nesse mundo, o reconhecimento de direitos civis e polticos para as
crianas poderia ser um instrumento dessa liberao.
Em Escape from childhood: the needs and rights of children
(1974), John Holt, psiclogo, adota concepes de infncia e de defesa
de seus direitos muito prximas daquelas de Farson. Considera as
crianas um grupo oprimido e a ex-perincia da infncia, para a
maioria das crianas, muito similar de uma priso: o jardim murado da
infncia, em vez de proteo das asperezas do mundo exterior, pode
significar confinamento e humilhao. Diferentemente de Farson
(1974), utiliza mais o termo young people do que child. Da,
possivelmente, sua postura um pouco mais contundente daquela de
Farson: prope a equalizao da lei para adultos e crianas/jovens,
tornando disponvel, para os young people, direitos, privilgios,
deveres e responsabilidades dos cidados adultos.
A reviso bibliogrfica nos permitiu apreender, tambm, uma certa
evocao e referncia mtua entre os movimentos de liberao das
mulheres, dos negros (nos EUA) e das crianas. Um exemplo notvel
provm do livro de Shulamith Firestone (1976), A dialtica do sexo:
um manifesto da revoluo feminista, de 1970, no qual a autora,
feminista radical norte-americana, aps constatao de destino
equivalente entre mulheres e crianas nas sociedades capitalistas,
prope, entre seus quatro princpios revolucionrios:
2) a total autodeterminao, incluindo a independncia econmica,
tanto das
mulheres, quanto das crianas; 3) a total integrao das mulheres e
das crianas
em todos os nveis da sociedade; 4) liberdade para todas as
mulheres e crianas
usarem a sua sexualidade como quiserem. (1976, p.235-237)
Firestone no constitua exceo: experincias em comunidades hippies
entre os anos de 1960 a 1970 suscitaram prticas e pesquisas
relacionadas a novas formas de relacionamento adulto-criana, ditas
libertrias, inclusive no campo da sexualidade (Berger, 1984). Foi
somente no decorrer da dcada de 1970 que se instalou, especialmente
nos EUA, a forte tendncia de denncia e preveno ao abuso contra
crianas, inclusive o sexual, atributo que seria, com certeza,
imputado s experincias comunitrias autodenominadas libertrias.
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
704 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Em oposio corrente liberacionista, a protecionista, por razes
fi-losficas e polticas, se contrape premissa de que crianas sejam
sujeitos dos mesmos direitos outorgados aos adultos, apoiando-se em
trs assertivas: as crianas no dispem das mesmas capacidades que
qualificam os adultos para usufruto de direitos; a retrica do
direito no captura a verdade sobre a vida das crianas e de suas
famlias e encoraja uma permissividade destrutiva que tem
consequncias nefastas para adultos, crianas e sociedade; a negao
desses direitos no tem impacto negativo na vida das crianas
(sntese, a partir de traduo livre da Stanford encyclopedia of
philosophy, 2006, p.10)9. Duas filsofas de escol so frequentemente
evocadas na defesa de tal posio antes da promulgao da Conveno
Internacional sobre os Direitos da Criana Hannah Arendt e Onora
ONeill , cujos argumentos continuam sendo revi-sitados na
atualidade.
As posies de Hannah Arendt contrrias a uma tendncia
igualitarista no tratamento criana foram brevemente tratadas no
texto Entre o passado e o presente, de 1954. A partir de sua anlise
da modernidade, Arendt ataca as ideias que estariam sustentando a
crise da educao: A primeira [] [estipula que] existe um mundo da
criana e uma sociedade formada entre as crianas que so autnomas e
que se deve, na medida do possvel, deixar-se governar por si
mesmas. O papel dos adultos se deve limitar a assistir a este
governo (1991, p.225, traduo nossa). Para a autora, papel da
educao, portanto dos adultos, simultaneamente, introduzir a criana
no mundo, de modo or-denado e progressivo, e proteg-la das
vicissitudes deste, para preservar seu poder de inov-lo. A linha
que separa as crianas dos adultos deveria significar que no se pode
nem educar os adultos, nem tratar as crianas como adultos (1991,
p.252).
Talvez mais radical que a posio sustentada por Arendt tenha sido
o questionamento de Onora ONeill (1988) Childrens rights and
childrens lives sobre a prpria adequao poltica de se adotar a
retrica do direito em prol das crianas (mesmo reconhecendo o
empoderamento que a retrica do direito propicia a grupos sociais
oprimidos), na medida em que as crianas mais novas so completa e
inevitavelmente dependentes daqueles que tm o poder sobre suas
vidas. Para a autora, tal dependncia da criana (ou do
9. Disponvel em: http://plato.stanford.edu/entries,
rights-children/; acesso em: 12 jul. 2010.
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A conveno internacional...
705Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
filho?) no produzida artificialmente, tampouco pode cessar por
mudanas sociais ou polticas (1988, p.461). Alm disso, as crianas no
so um grupo a ser emancipado como outras minorias porque esta
condio no constitui um status na vida das pessoas permanentemente
associado opresso e discriminao (ONeill, 1988). Nesse sentido,
continua sua argumentao, os direitos fundamentais das crianas sua
educao e proteo no teriam o melhor apoio na retrica dos direitos,
mas, sim, no princpio das obrigaes. A autora reverte, pois, a
perspectiva de anlise, passando do foco no receptor (no caso, a
criana sujeito de direitos) para o do agente das obrigaes (no caso
os adultos que se relacionam com as crianas, nomeadamente pais e
professores).
Da perspectiva de ONeill, temos obrigaes morais que podem no
estar relacionadas a obrigaes acionadas pelos direitos. Com
respeito s crianas (filhos?), como adultos temos o dever de
promover-lhes o bem-estar. Da no se pode concluir que elas (eles?)
tenham direitos contra ns (adultos? pais?)10. A promulgao da
Conveno reacendeu e atualizou essas questes, uma vez que buscou
conciliar as duas correntes, para alguns, antagnicas.
A CONVENO E SEU CONTEXTO
O projeto original da Conveno Internacional sobre os Direitos da
Criana foi formalmente apresentado no comeo de 1978, pelo governo
po-lons, Comisso de Direitos Humanos da ONU, em homenagem a Janusz
Korczak (Cantwell, 1992). A previso era que a Conveno fosse
aprovada ao final de 1979, como um marco do Ano Internacional da
Criana, que j havia mobilizado a sociedade internacional em prol de
uma agenda para a infncia (Mariano, 2010).
Na medida em que somente um amplo consenso possibilitaria uma
apro-vao em tempo to exguo, o projeto original guardava bastante
semelhana com a Declarao de 1959. A proposta inicial, encaminhada
pelo Secretrio--Geral das Naes Unidas apreciao dos pases e
organizaes intergoverna-mentais OIGs , recebeu muitas crticas,
especialmente dos pases ocidentais
10. ONeill filia-se corrente terica da tica dos cuidados que foi
apropriada, tambm, por tericas feministas da diferena, como
Gilligan, entre outras (ver Montenegro, 2001).
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
706 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
industrializados (Pilotti, 2000, p.43), referentes sua linguagem
imprecisa, a omisses em relao a uma srie de direitos e a sua
implementao, item fundamental em tratado internacional.
Ante a ausncia de respaldo proposta inicial, a Comisso dos
Direitos Humanos decidiu criar um Grupo de Trabalho GT , de
composio ilimitada, para apreciar um segundo projeto de Conveno,
tambm apresentado pelo governo polons. O GT reuniu-se uma vez por
ano entre 1980 e 1987 (em duas ocasies em 1988), visando a que a
Conveno pudesse ser adotada em 1989. A Conveno foi aprovada na
Comisso de Direitos Humanos, no Conselho Econmico e Social Ecosoc e
na Assembleia Geral da ONU.
Relatos sobre o desenrolar dos trabalhos do GT permitem
compreender, pelo menos em parte, as tenses que o texto carrega: um
vis ocidental em documento internacional; a adoo simultnea de
direitos de proteo e de liberdades11.
Participaram das sesses do GT principalmente os Estados e as
organi-zaes internacionais no governamentais Oings , tendo sido
reduzida a participao das OIGs, inclusive do Fundo das Naes Unidas
para a Infncia Unicef. A participao das Oings foi formal, ativa e
crescente na preparao e elaborao da Conveno. Tendo considerado
muito limitada sua participao inicial no GT, as Oings criaram, em
1983, um grupo ad hoc que, reunindo-se a cada dois anos, analisava
as propostas apresentadas pelos pases e elaborava sugestes de
artigos. Embora numerosas Oings tenham participado das discus-ses,
trs delas tiveram atuao mais ativa: Defense for Children
International, Bureau International Catholique de lEnfance e Save
the Children, especial-mente suas filiais da Sucia e Gr-Bretanha.
Essas organizaes j dispunham de representaes na Amrica Latina e
Caribe, as quais constituram grupos nacionais de apoio,
encarregados de difundir o contedo das discusses da Conveno
(Pilotti, 2000). O trabalho das Oings, conforme Pilotti (2000), se
concentrou, sobretudo, na incluso de um conjunto de direitos de
proteo especial, bem como na participao da sociedade civil na
implementao da
11. O relato sobre o desenrolar dos trabalhos da Conveno
apoiou-se nas seguintes fontes: Cantwell (1992), Detrick (1992),
Hammarberg (1990), Gonalves (1989), Pilotti (2000), Prince-Cohen
(1996).
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A conveno internacional...
707Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Conveno e seu monitoramento. Pelo menos 13 artigos, ou pargrafos
subs-tantivos, foram includos devido articulao das Oings12.
A participao das OIGs aumentou somente durante a ltima sesso,
correspondente segunda leitura do texto final da Conveno. Conforme
contabiliza Pilotti (2000), o Unicef e a Organizao Internacional do
Trabalho OIT estiveram presentes em oito sesses; o Alto
Comissariado das Naes Unidas para Refugiados Acnur , em cinco; a
Organizao das Naes Unidas para a Educao, a Cincia e a Cultura
Unesco , a Organizao Mundial da Sade OMS e a Liga dos Estados
rabes, somente na ltima; e a Organi-zao dos Estados Americanos OEA
assistiu s ltimas sesses.
Os Estados tiveram uma participao diferenciada conforme as
regies geopolticas, com predomnio dos pases ocidentais
industrializados e reduzida participao dos pases africanos (Tab.
1).
TABELA 1 NMERO DE ESTADOS PARTICIPANTES NAS SESSES DO GRUPO DE
TRABALHO ENCARREGADO DA REDAO DA CONVENO
SOBRE OS DIREITOS DA CRIANA (1981* 1988)
Regio/Ano 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 19882a
Leit./88
Ocidente** 14 13 15 14 18 16 17 18 22
sia/Or. Med.
3 4 6 4 7 6 9 10 16
Amrica Latina
3 4 7 5 9 6 6 7 10
Europa Oriental
5 6 4 4 6 5 5 6 8
frica 2 1 3 1 7 4 3 7 9
Total 27 28 35 28 47 37 40 48 65 * No se dispe de dados
anteriores a 1981. ** Inclui: Europa Ocidental, Estados Unidos da
Amrica, Canad, Austrlia e Nova Zelndia. Fonte: Pilotti (apud
Detrick, 1992, p.644-657).
12. So eles: direitos referentes separao da criana dos pais
(art. 9o), sade (art. 24), educao (arts. 28, 29), cultura e religio
(art. 30), explorao sexual (art. 34), sequestro, trfico e venda de
crianas (art. 35), tortura e pena capital (art. 37), conflito
armado (art. 38), recuperao fsica, psicolgica e reintegrao social
(art. 39), disposies mais favorveis (art. 41), difuso dos princpios
e disposies da Conveno (art. 42), informes dos Estados-Partes (art.
44).
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
708 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Em se tratando da elaborao de um tratado de carter mundial sobre
os direitos da criana, era j esperada uma arena de negociaes
bastante tensa e conflituosa em decorrncia dos embates polticos
entre os Estados com diferentes interesses, desigual acesso a
recursos e poder e, em especial, ante a diversidade de concepes de
infncia e de direitos da criana. Alm da multiplicidade de atores,
da diversidade de suas agendas, da durao dos trabalhos, o contexto
da Guerra Fria ampliou a complexidade e durao das negociaes.
Conforme Marlia Sardenberg Zelner Gonalves (1989), diplomata da
delegao do Brasil para os Direitos Humanos que participou dos
trabalhos da Conveno, tal complexidade explicaria a incorporao de
dispositivos relativamente fracos, em decorrncia de tentativas de
conciliao de posies quase divergentes.
O embate Leste-Oeste ultrapassaria os limites do GT relativo
Con-veno sobre os Direitos da Criana, pois, ao mesmo tempo, a
Comisso dos Direitos Humanos da ONU havia organizado outro GT, de
iniciativa ocidental, cujo foco era a elaborao de uma Conveno
contra a tortura. Conforme relato de Cantwell (1992, p.23), uma
proposta perdida em um dos GTs por um bloco ricocheteava no outro
GT, acirrando as rivalidades.
A arena de negociaes da Conveno foi ento atravessada por embates
geopolticos, nos quais a defesa da criana se tornou instrumento de
disputas, principalmente no incio dos trabalhos, quando os direitos
humanos faziam parte da confrontao poltica entre os pases do Leste
e Oeste. Tal confronto ocor-reu, em especial, na disputa entre os
tipos de direitos que teriam maior peso na Conveno: os pases do
Leste defendiam a primazia dos direitos econmicos e sociais,
enquanto certos pases ocidentais, particularmente os Estados Unidos
EUA , somente reconheciam como direitos humanos legtimos os de
carter civil e poltico (Pilotti, 2000, p.43). Assim, em contraposio
preponderncia de direitos sociais no projeto polons, os EUA
propuseram a incluso da maio-ria dos artigos relacionados a
direitos civis e polticos s crianas liberdade de expresso;
liberdade de pensamento, conscincia e religio; liberdade de
associao e reunio e direito privacidade , bem como participaram
ativa-mente na formulao do artigo referente ao direito de acesso
informao13.
13. Susan Kilbourne (apud Pilotti, 2000, p.44) informa que foram
exatamente os artigos pro-postos pelos EUA no GT aqueles que
geraram, posteriormente, maior oposio naquele pas para ratificao da
Conveno.
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A conveno internacional...
709Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
J o artigo referente liberdade de opinio foi elaborado,
principalmente, pelos representantes dos EUA, Canad, Austrlia e
Dinamarca (Pilotti, 2000, p.44).
A tenso foi amenizada somente na segunda metade dos anos 1980,
quando mudanas polticas nos pases do Leste Europeu os conduziram a
uma aproximao das posies ocidentais nos fruns internacionais. Tal
distenso, por sua vez,
permitiu s naes da Europa Ocidental assumir posturas mais
independentes
dos alinhamentos da poltica exterior dos Estados Unidos, o que
se traduziu,
por exemplo, em um apoio muito mais decidido aos direitos
sociais contidos
no projeto da Conveno, uma vez que se tratava de um componente
central
do Estado de bem-estar de inspirao social democrata. (Pilotti,
2000, p.44)
A atuao mais relevante latino-americana representada
principal-mente por Argentina, Brasil, Cuba, Peru e Venezuela foi
sua contundente oposio s disposies sobre a adoo internacional
proposta pelos pases ocidentais industrializados, aliando-se, nessa
questo, aos representantes dos pases islmicos, contrrios adoo por
motivos religiosos (Pilotti, 2000, p.45). Gonalves (1989) pondera
que, se a atuao do Brasil pode ser considerada discreta, ela foi
constante, pois houve presena de representantes brasileiros em
todas as sesses a partir de 1981.
Ao final da aprovao da Conveno, o Unicef assumiu uma posio de
liderana nas fases de ratificao e implementao. As Oings, por seu
turno, passaram a focalizar sua ao junto s OIGs, bem como
concentraram sua ateno em alguns direitos de proteo, tais como a
explorao sexual de crianas, a utilizao de crianas como soldados e o
trabalho infantil (Pilotti, 2000, p.49). Todos temas miditicos.
At o momento, 193 pases ratificaram a Conveno14. Alm de ser o
instrumento de direitos humanos mais ratificado em escala
mun-dial15, a grande maioria das ratificaes ocorreu nos primeiros
10 anos aps sua aprovao, o que no acontecera com outros tratados
interna-
14. Disponvel em:
http://treaties.un.org/Pages/ViewDetails.aspx?src
=TREATY&mtdsg_no=IV--11&chapter=4&lang=fr; acesso em: 6
mar. 2010.
15. Disponvel em:
http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm; acesso em:
jun. 2010.
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
710 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
cionais. Somente os EUA e a Somlia no procederam ratificao da
Conveno16.
A Conveno disps sobre a criao de um rgo de vigilncia, o Comit de
Direitos da Criana das Naes Unidas. composto por experts
indepen-dentes indicados pelos pases que ratificaram a Conveno. O
Comit avalia, periodicamente, a aplicao da Conveno a partir de
relatrios enviados pe-los pases. Pelo regulamento provisrio, o
Comit, em periodicidade regular, dedica um dia de seu trabalho ao
debate de um tema especfico dos direitos da criana, por merecer
maior esclarecimento ou ateno. At 2004 (Funda-cin Bernard van Leer,
2007), haviam sido realizados debates gerais sobre os temas:
explorao econmica da criana; direitos da criana e papel da famlia;
direitos da menina; administrao da justia juvenil; direitos das
crianas com necessidades especiais; HIV/Aids e o direito das
crianas; violncia contra a criana; realizao dos direitos da criana
na primeira infncia. Este ltimo tema foi selecionado por se
considerar que a criana pequena, o beb, estava sendo negligenciada
na implementao da Conveno. Tal como problematizamos os novos
paradigmas nos estudos da infncia, a criana da Conveno tambm tem
uma idade privilegiada que no a pequena infncia.
O Brasil ratificou a Conveno em 1990 e o governo brasileiro
apresentou seu primeiro relatrio ao Comit de Direitos da Criana da
ONU em 2003, portanto, com 11 anos de atraso no cronograma de
monitoramento da Con-veno. A Associao Nacional dos Centros de
Defesa dos Direitos da Criana e do Adolescente Anced e o Frum
Nacional dos Direitos da Criana e do Adolescente apresentaram, na
ocasio, um Relatrio Alternativo da sociedade civil sobre Direitos
da Criana no Brasil. O Comit de Direitos da Criana apresentou 76
recomendaes, sendo uma delas a de que o Brasil entregasse o prximo
relatrio at outubro de 2007. No h informaes oficiais at o
16. A Somlia enfrenta problemas referentes sua prpria constituio
como Estado nacional. Um dos principais motivos pelo qual os EUA
apenas assinaram a Conveno, mas no ratificaram, decorre do teor do
art. 37o, alnea a, referente proibio da cominao de pena de morte e
priso perptua a menores de 18 anos, o que se revelava incompatvel
com o direito interno norte-americano (Monteiro, 2006). Outros
pases, embora tenham ratificado a Conveno, mantiveram uma posio de
reserva, sobretudo os muulmanos, e recusaram atribuir validade
jurdica a alguns artigos, nomeadamente ao de n. 14, que reconhece
criana o direito liberdade religiosa, pois incorpora um valor
incompatvel com os propsitos culturais e religiosos dessas naes
(Monteiro, 2006, p.154).
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A conveno internacional...
711Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
momento acerca da apresentao desse segundo relatrio17. Porm, a
Anced elaborou, em maro de 2009, em carter preliminar, o 2o
Relatrio Alternativo dos Direitos da Criana.
TENSO ENTRE DIREITOS ESPECIAIS E DIREITOS DE LIBERDADE
Proclamada dia 20 de novembro de 1989, a Conveno tem sido
con-siderada o culminar de todo um processo de reconhecimento da
infncia e de seus direitos (Monteiro, 2006, p.147). Tem carter
mandatrio (art. 4o), contm maior nmero de artigos do que a relao
Declarao de 1959 (59 artigos) que contemplam, na linguagem dos
direitos humanos: direitos civis e polticos; econmicos, sociais e
culturais; direitos especiais (proteo).
Cabe lembrar que os direitos civis so aqueles necessrios para
garantir a liberdade individual e abarcam liberdades de: expresso,
opinio, conscincia e religio, associao, reunio pacfica e direito ao
respeito vida privada. So tambm conhecidos como direitos negativos,
pois asseguram a proteo dos indivduos diante de abusos que o Estado
possa cometer. Nesse sentido, a Conveno, ao conferir um estatuto
jurdico criana, abre-lhe a possibilidade de pleitear sem ser
representada por seu tutor legal, significando o seu egresso da
tutela para ser um sujeito de direitos (Brougre, s/d).
A maior particularidade da Conveno reside em que, ao lado dos
direitos de liberdade, reconhece os direitos de proteo, ou
denominados passivos, ou ainda, direitos-crditos, conforme Renaut
(2002). Se os direitos de liberdade e participao so reconhecidos
criana devido sua identidade com o homem, os direitos de proteo so
devidos em razo da especificidade de ser criana. Assim, para vrios
analistas, aqui estaria posta uma de suas incongruncias inter-nas:
a coexistncia entre os direitos de proteo e os de liberdade18.
17. No Brasil, a elaborao do Relatrio ao Comit dos Direitos da
Criana est a cargo da Subsecretaria de Promoo dos Direitos da
Criana e do Adolescente SPDCA , rgo que substituiu o Departamento
da Criana e do Adolescente DCA.
18. No contexto anglo-saxnico, o debate tem ocorrido entre duas
teorias antagnicas no campo da Filosofia do Direito: a teoria da
capacidade e a teoria do interesse. Apesar de importante, esse
debate no ser tratado neste texto. Remetemos ao estudo de Campbell
(1992).
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
712 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
QUADRO 1 SNTESE DOS DIREITOS DA CRIANA ESTABELECIDOS NA
CONVENO
Direitos civis e polticosDireitos econmicos,
sociais e culturaisDireitos especiais (proteo)
Registro, nome, nacionalidade, conhecer os pais.
Vida, sobrevivncia e desenvolvimento.
Proteo contra abuso e negligncia.
Expresso e acesso informao.
Sade. Proteo especial e assistncia para a criana refugiada.
Liberdade de pensamento, conscincia e crena.
Previdncia social. Educao e treinamento especiais para crianas
portadoras de deficincia.
Liberdade de associao. Proteo da privacidade.
Educao fundamental (ensino primrio obrigatrio e gratuito).
Proteo contra utilizao pelo trfico de drogas, explorao sexual,
venda, trfico e sequestro.
Nvel de vida adequado ao desenvolvimento integral.
Proteo em situao de conflito armado e reabilitao de vtimas
desses conflitos.
Lazer, recreao e atividades culturais.
Proteo contra trabalho prejudicial sade e ao desenvolvimento
integral. Proteo contra uso de drogas.
Crianas de comunidades minoritrias: direito de viver conforme a
prpria cultura.
Garantias ao direito ao devido processo legal, no caso de
cometimento de ato infracional.
Fonte: Frota (2004, p.71).
A tenso intrnseca ao texto da Conveno tem sua complexidade
am-pliada perante o carter de fora de lei que passa a ter no pas
que opta por ratific-la, o que pode explicar o grande nmero de
discusses que suscitou em alguns pases ao ser adotada, bem como as
dificuldades em sua implemen-tao. Na Frana, cultivou-se uma viva e
durvel polmica sobre alguns dos equvocos que poderia acarretar essa
representao contempornea da criana como sujeito de direitos, caso
no seja submetida a uma anlise crtica sobre as condies para sua
efetivao (Renaut, 2002)19.
19. A Frana ratificou a Conveno, porm no lhe concedeu validade
interna em termos jurdicos, o que a limita posio de documento de
referncia (Monteiro, 2006). Dekeuwer-Dfossez (2009) informa que a
Frana ratificou-a sob reserva ao art. 6o, que proclama o direito
vida desde a concepo, o que contraria a legislao francesa referente
interrupo voluntria da gravidez.
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A conveno internacional...
713Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Assim, o filsofo Alain Finkielkraut, durante um debate
organizado pela revista Autrement, afirmou que a Conveno no
significava um progresso e que prosseguir simultaneamente com esses
dois princpios contraditrios conduz a tornar a proteo da criana
muito mais difcil, sob o pretexto de que, por no sei qual miragem
histrica, o jovem de hoje cessaria de ser influencivel pois, a
partir do momento em que ele considerado sujeito de direitos, ele
considerado como estando consciente de seus interesses e, por
consequn cia, desaparece o possvel manipulador (Finkielkraut, 1991,
p.175). Ou seja, o filsofo pressupe que a proclamao dos direitos de
liberdade para a criana poderia constituir um obstculo considerao
de sua vulnerabilidade, fragilida-de e irresponsabilidade e, assim,
ameaaria o direito de a criana ser diferente dos adultos. Por
consequncia, cairia por terra a razo de conferir-lhe proteo
especial (Renaut, 2002).
A sociloga Irne Thry (1996, p.343) tambm compartilha dessa vi-so
e critica o texto da Conveno: contesta, especificamente, os
direitos liberdade de opinio (art. 12), liberdade de expresso (art.
13), liberdade de pensamento, de conscincia e de religio (art. 14),
liberdade de associa-o (art. 15), pois so direitos que implicam a
capacidade jurdica, ou seja, a responsabilidade. Para Thry, a
concepo de proteo especial adotada pela Conveno remanesce da tradio
da Filosofia que prevaleceu nas Declaraes de 1924 e 1959. Essa
tradio elucidada pela autora da seguinte forma:
Na tradio de proteo, a Filosofia adverte que os direitos do
homem em
particular em Kant e Condorcet , a ideia fundamental a da
educao, da
instruo. Se o homem por essncia um ser livre, ele somente assim
se torna
realmente realizando o processo educacional que o faz alcanar a
autonomia
e a responsabilidade [] Neste sentido, os direitos da criana so
aqueles de
seres humanos particularmente vulnerveis, porque ainda no so
autnomos.
A incapacidade legal nada mais que o direito a uma certa
irresponsabilidade,
quer dizer, a no ser submetido ao dever que implica a
capacidade. (Thry,
1996, p.341-342)
Thry (1996) considera que a campanha entusistica sobre os novos
direitos da criana, orquestrada em torno do processo de ratificao
da Con-veno na Frana, dificultou um debate prudente sobre as
consequncias de
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
714 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
quando a proteo deixa de ser um direito primeiro da criana,
sobretudo nas questes relativas autoridade parental, s implicaes da
recomendao da oitiva das crianas nos assuntos de seu interesse e
possibilidade de a criana recorrer justia contra seus pais, ou
constituir advogado para defender seus interesses em litgios
familiares. Questes instigantes emergem dessas situa-es: crianas e
adolescentes deveriam suportar o nus de serem envolvidos no
processo de separao encetado pelos pais? O que significa autonomia
da palavra dos filhos no divrcio de seus pais? Podemos realmente
acreditar que eles no seriam instrumentalizados pelos pais?
Ao mesmo tempo em que reconhece que no debate proteo versus
autonomia no pretenda decidir qual das posies verdadeira, Renaut
(2002) pondera que ambas padecem de um singular erro sobre a
definio da cida-dania. Para o autor, protecionistas e
liberacionistas partem da certeza de que a Conveno atribuiria
criana os direitos de cidado:
a cidadania no est de modo algum contida no prprio fato de
reconhecer
ao indivduo humano (nem que seja uma criana) garantias jurdicas
[] dentro
da lgica da teoria do direito democrtico, perfeitamente possvel
beneficiar
dos direitos do homem sem ser cidado o que caso do estrangeiro;
ora,
no ser, precisamente, tambm este estatuto que foi retido em
relao
criana em 1989? Neste sentido, os direitos-liberdades
reconhecidos aos
menores na Conveno [] dependem, no essencial, no da cidadania,
mas
da humanidade. Assim sendo, a questo no , de modo algum, saber
se a
Conveno esteve certa ou errada em reconhecer criana direitos que
lhe
impem a responsabilidade do cidado, visto que, contrariamente ao
que se
julgou at agora de um lado e de outro, no procedeu a este
reconhecimento.
(Renaut, 2002, p.312-313)
No Brasil, Rita de Cssia Marchi (2009) prope uma releitura da
dis-cusso efetuada por Renaut (2002) e oferece uma pista para a
compreenso dessa tenso focalizando-a pelo prisma da radicalizao do
processo histrico da individualizao de crianas. Para a autora, s
voltas com o debate sobre a crise social da infncia, estaramos
diante de modos contrastados de lidar historicamente com a infncia
e que vm se ombreando historicamente: de um lado, a proteo e
homogeneizao das diferenas individuais e,
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A conveno internacional...
715Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
de outro, a liberao e individualizao. Para Marchi (2009), o modo
de proteo/homogeneizao, apesar de dominante por longo tempo, no
teria eliminado o modo de liberao/individualizao uma vez que este
manteve--se presente mais evidentemente na individualizao da criana
fora da norma (delinquente, no socializada). A novidade que, na
atualidade, o modo liberdade/individualizao estaria aflorando tambm
entre a infncia normali-zada, o que seria visto como colocando a
prpria ideia de infncia em risco (Marchi, 2009). Alm de
provocadora, instigando um debate (pois sua pedra de toque implica
a aceitao da noo de crianas sem infncia), discusses como a de
Marchi (2009) sobre a tenso entre direitos de liberdade e de proteo
constituem uma raridade no Brasil.
DEBATE SOBRE A CONVENO NO BRASIL
Um primeiro aspecto notvel o fato de a Conveno ter suscitado um
pequeno, e apenas recente, debate no Brasil, seja ele acadmico ou
miditico. Trs exemplos: a anlise exaustiva do jornal Folha de
S.Paulo, entre 1985 e 2006, permitiu a localizao de apenas dois
artigos sobre a Conveno, sendo um deles de autoria do socilogo
francs Alain Touraine (Mariano, 2010). A base de dados Scielo no
dispe do descritor, portanto, nenhum artigo foi localizado. A
anlise, por sua vez, tambm sistemtica, do banco de teses da
Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino Superior Capes
permitiu que localizssemos, sob o assunto Conveno Internacional
sobre os Direitos da Criana, apenas 28 dissertaes de mestrado e
sete teses de doutorado, no perodo 1989-2009, produzidas em ritmo
bissexto. Alm disso, cabe destacar, tambm, a restrita amplitude dos
temas que vm sendo tratados: no levantamento mencionado, os temas
prevalentes nos resumos so a adoo internacional (25,7%) e a privao
de liberdade (17,1%).
Segundo Mndez (2001), a Amrica Latina e o Caribe foram pioneiros
no processo mundial de ratificao da Conveno, tendo muitos pases a
transformado em lei nacional mediante um trmite de aprovao
parlamentar. A aprovao e difuso da Conveno na regio coincidiu com o
retorno democracia em vrios pases (Mndez, 2001), o que permite
sugerir que a linguagem progressista dos novos direitos da criana
se ajustava e impulsiona-va a reconstruo da democracia na regio, o
que pode ter contribudo para
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
716 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
franquear, sem maior debate ou contextualizao, as cleres
ratificaes da Conveno na Amrica Latina,inclusive no Brasil.
Dois meses antes de sancionar o ECA, em maio de 1990, o ento
Presidente Fernando Collor de Mello anunciava, em 31/5/1989, a
criao do Ministrio da Criana, concomitantemente ao encaminhamento,
ao Congres-so Nacional, da proposta de ratificao da Conveno
Internacional sobre os Direitos da Criana. Seu discurso naquela
ocasio:
a partir de hoje, deste momento, a qualidade de vida de nossas
crianas ser
preocupao central e objetivo maior da ao do Governo [] No
podemos
ser o Brasil dos pixotes []. Temos o dever de reverter essa
situao; de
garantir alimentao e sade para as nossas crianas. Temos de
tir-las das ruas
e dos desvios da marginalidade; de encaminh-las escola
motivando-as para o
estudo. Temos de lev-las de volta ao seio da famlia, ao convvio
e guarda de
pais capazes de dar-lhes sustento, afeto e amor; de fazer
prevalecer o sentido
da paternidade responsvel. Temos de recuperar de uma vez por
todas a famlia
brasileira. (Mello, apud Costa et al., 1990, p.16)
Collor prenunciava o tom: no obstante a CF/1988 e o ECA terem
incorporado concepes e dispositivos da Conveno acolhendo,
por-tanto, as tenses decorrentes do reconhecimento da condio de
sujeitos de direitos a crianas e adolescentes , a divulgao dos
novos direitos da criana no Brasil centrou-se em sua utilidade para
combater a doutrina da situao irregular que orientara o Cdigo de
Menores de 1979. Com efeito, desde o processo Constituinte e, mais
intensamente, durante a elaborao e aprovao ao ECA, a tnica do
debate brasileiro foi contrapor a doutrina de proteo integral
criana e ao adolescente antiga doutrina de situao irregular
(Rosemberg, 2008).
Certamente as condies econmicas, sociais e polticas que nos
diferen-ciam do hemisfrio norte, particularmente tendo em conta a
crise econmica e as polticas de ajuste na dcada de 1980 e suas
graves implicaes na vida de crianas e adolescentes pobres (Chahad,
Cervini, 1988), podem explicar as particularidades do debate
brasileiro sobre os direitos de crianas e adolescen-tes. De fato,
expressivo percentual das crianas brasileiras viveu, e ainda vive,
abaixo da linha da pobreza (Ribeiro, Saboia, 1993; Brasil, 2007).
Conforme
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A conveno internacional...
717Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Marchi (2009), no Brasil, trata-se ainda de garantir igualdade
entre crianas. A igualdade da criana na relao com o adulto
enfatizada por Renaut ou seja, enquanto um ser livre resta, por
motivos macroestruturais, em segundo plano na sociedade
brasileira.
Seria isto, porm, justificativa suficiente para que a produo
acadmica tambm restringisse sua amplitude temtica, terica e
metodolgica? Com efeito, no Estado da arte sobre juventude na
ps-graduao brasileira (Sposito, 2009) que inclui tambm estudos que
adotam o descritor adolescente/ado-lescncia , Sposito, De Tommasi e
Moreno (2009) identificam, alm da rele-vncia dada ao tema juventude
em excluso social, na produo discente na ps-graduao brasileira
(Educao, Servio Social e Sociologia), o predomnio do subtema
adolescentes em conflito com a lei (p.128). Os autores ressaltam, a
nosso ver, com justeza, a fora simblica e poltica do ECA, que, alm
de um instrumento jurdico, comps um quadro de referncia normativo
para a anlise das realidades investigadas. Assinalam que muitos
pesquisadores esto envolvidos profissional e politicamente com o
tema, o que redunda no fato de que muitas pesquisas so tensionadas
pelos anseios dos pesquisadores em encontrar respostas e propor
alternativas e terminam por sugerir um aden-samento terico e
metodolgico na formao dos alunos de ps-graduao.
A despeito das carncias apontadas, localizamos alguns poucos
autores que, se no adentram o debate sobre a tenso entre direitos
de liberdade e de proteo, pelo menos tangenciam a questo ou
explicitam um posicionamento.
Os direitos liberdade, ao respeito e dignidade prescritos pelo
ECA (cap.2) foram comentados por Monaco (2005, p.164), que, ao
ressignific-los, assinala sua importncia no desenvolvimento da
personalidade de crianas e adolescentes com vistas a sua plena
conformao e de acordo com seu interesse superior. Entende que
crianas e adolescentes devem sofrer res-tries nessa liberdade
justamente em funo desse mesmo interesse superior flexionado para o
pleno desenvolvimento de suas caractersticas humanas, portanto,
reserva direitos liberdade para uma etapa posterior da vida. Nesse
sentido, parece-nos adotar uma concepo de infncia como ser
inacabado e relaes de idade assimtricas. Exatamente essa assimetria
questionada por Fajardo (1999), mas, desta feita, para questionar o
conceito de proteo integral, quando lembra que proteo uma estratgia
de tratamento da infncia desamparada, que inclui aspectos
repressivos e preventivos e que
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718 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
pressupe uma assimetria entre protetor e protegido. Fajardo
(1999) destaca que essa assimetria reforada pela ideologia da
incapacidade infantil, que se expressa, s vezes, por meio do
conceito de discernimento associado idade, como um critrio para
restrio de direitos, tangenciando o debate entre as teorias do
direito como vontade ou interesse.
Da criana-cidad ao fim da infncia (Brayner, 2001) um texto
bra-sileiro que se posiciona frontalmente contrrio aos direitos de
liberdade. Reportando-se criana no universo escolar, o autor
discute a recente insis-tncia sobre a necessidade dos direitos da
criana que tenta trat-las como autnomas ou, ainda, como
cidados-alunos. Brayner (2001, p.208) declara-damente se contrape s
ideias de Jonh Holt, e, para afirmar a impropriedade da euforia do
princpio igualitrio nas relaes adulto-criana, bem como dos perigos
de manipulao da criana, ancora-se no pressuposto de que, na relao
intergeracional, no estamos diante de iguais: a autonomia do cidado
(adulto) no coaduna com a heteronomia infligida infncia.
Uma breve tomada de posio quanto adequao do uso do conceito
cidado, para as crianas, pode ser encontrada no livro de Alba
Zaluar (1994, p.23) Cidados no vo ao paraso. Para a autora, pelo
fato de crianas estarem em processo de socializao, devem ser
preparadas para assumir direitos e deveres na vida adulta, o que
lhes retira responsabilidades jurdicas, assim como alguns direitos
civis e polticos.
O tema da cidadania, principalmente a partir das contribuies de
Marshall, foi mote para outros dois trabalhos brasileiros que
tratam da tenso entre direitos de liberdade e de proteo: apenas
mencionado em Pinheiro (2006, p.96), em sua importante pesquisa
sobre a representao social da infncia apreendida na anlise do
processo constituinte; foco central na dissertao de Monteiro
(2006a). Esta autora parte da crtica concepo restrita de cidadania
em Marshall, que se mostra excludente para crianas e adolescentes
ao conceb-los como futuros adultos cidados. Busca, ento, para alm
do campo dos direitos, vislumbrar formas de reconhecimento social
de crianas e adolescentes como atores competentes e participativos
na sociedade contempornea. Localiza a cultura de consumo, entendida
como uma nova forma de ao coletiva, de exerccio da cidadania, como
um terreno privilegiado onde crianas e jovens por meio de
manifestaes culturais e de
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A conveno internacional...
719Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
consumo aparecem como atores relevantes na sociedade, com poder
de introduzir valores, smbolos e significados (Monteiro, 2006a,
p.108).
Duas autoras de destaque no campo da Psicologia Lucia Rabello de
Castro (2001) e Solange Jobim e Souza (2008) questionam a relao
tutelar de adultos sobre crianas, particularmente aquela que se
depreende do enfo-que tradicional da Psicologia do Desenvolvimento.
Para Castro (2001, p.27), a afirmao da criana como sujeito de
direitos implica superar a concepo de que se trata de algum ainda
no dotado de suas plenas capacidades. Para a autora, apoiada na
Teoria da Ao (Hannah Arendt e Max Weber), crianas e adolescentes
podero ser considerados sujeitos de direitos apenas quando tiverem
suas aes concebidas como verdadeiramente vlidas. Souza, por sua
vez, no sugere soluo, mas evoca como desafio contemporneo:
equacionar a tenso que se instala entre conceder maior autonomia
in-
fncia, direito de voz e participao poltica [] e o risco de que
esta prtica
possa favorecer uma certa omisso dos adultos e das instituies em
construir
junto com as crianas metas que garantam a proteo dos direitos
das crianas.
(Souza, 2008, s/p.)
No plano acadmico, algumas poucas pesquisas tm centrado o foco
na tenso entre direitos de liberdade e de proteo na anlise das
recentes campanhas orquestradas pela OIT e abraadas pelo Brasil,
referentes erra-dicao do trabalho infantil (Freitas, 2004; Prado,
2009).
No plano jurdico, ocorre tambm um debate quanto aos direitos
sexuais e reprodutivos de adolescentes. Alguns analistas tm
ponderado que a negao aos adolescentes da autodeterminao
reprodutiva e sexual pode significar, tambm, sua negao como
sujeitos de direitos. Dessa maneira, estaria prevalecendo uma
perspectiva tutelar em relao aos adolescentes, ao se lhes exigir,
por exemplo, o acompanhamento por um responsvel para ter acesso aos
servios de sade (Ventura, 2005; Pirotta, Pirotta, 2005). Pirotta e
Pirotta (2005) assinalam que, em relao sexualidade dos
adolescentes, o ECA se posiciona apenas pela negativa, prevalecendo
a preocupao de prevenir e coibir o abuso e a explorao sexual de
crianas e adolescentes por adultos. Para alguns (Ventura, 2005), a
excluso da perspectiva dos direitos na discus-so da sexualidade do
adolescente pode acarretar a violao de vrios outros
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
720 Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
direitos: o direito privacidade, ao sigilo, informao, sade
reprodutiva e sexual, no discriminao, ao consentimento informado.
Assim, os direitos de liberdade do ECA e da Conveno tm sido
evocados para sustentar a reivindicao da afirmao dos direitos
sexuais e reprodutivos de adolescentes, tornando, portanto,
explcita a tenso entre eles e os de proteo.
Outra frente aberta na produo brasileira se refere ao direito de
parti-cipao de crianas e adolescentes na vida social. De um lado,
notamos nfase na pesquisa sobre a escuta de crianas (Bernardi,
2005; Cruz, Hollanda, 2004, entre outros) como um dos
desdobramentos de sua liberdade de opinio e participao. De outro,
um debate, particularmente na Educao, sobre signifi-cados,
implicaes e, para alguns, desatinos poltico-ideolgicos do que
alguns vm denominando protagonismo infantil (Pires, 2007) ou
protagonismo juvenil (Ferretti, Zibas, Tartuce, 2004; Sposito,
Brenner, Moraes, 2009).
Finalmente, destacamos a calorosa discusso em torno da inquirio
judicial de crianas e adolescentes como vtima ou testemunha de
crimes, que adota a metodologia do depoimento sem dano20. Nesse
caso, o direito diferena no tratamento dado criana ou adolescente
que ganha relevo. Os argumentos contrrios ao depoimento sem dano
ressaltam que o ECA, ao assegurar a con-dio de sujeito de direito s
crianas, no aboliu sua diferena diante do adulto (Arantes, 2009). A
autora evoca, justamente, o reconhecimento da tenso entre os
direitos de proteo e de autonomia de crianas e adolescentes para se
contrapor mencionada proposta. Para ela, a busca pela
responsabilizao do agressor no deve se sobrepor s implicaes
decorrentes de crianas e adolescentes serem inquiridos como vtima
ou testemunha para produo de provas que podem, inclusive, servir
para condenar criminalmente seus pais e familiares. Nesse sentido,
Arantes (2009) indaga se a proposta em tela no estaria equiparando
o direito de crianas e adolescentes serem ouvidos obrigao de
testemunhar. Arantes (2009) traz assim para o debate ponderaes
sobre quanto um dispositivo autonomista (o direito de a criana se
expressar) pode ser interpretado e institucionalizado de modo a
violar o direito de crianas e adolescentes de serem protegidos.
Pergun-tamos: protegidos contra quem ou contra o qu?
20. O Conselho Federal de Psicologia tem promovido debates sobre
o depoimento sem dano, previsto no Substitutivo do Projeto de Lei
n. 4.126/2004, que prope alteraes ao ECA.
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A conveno internacional...
721Cadernos de Pesquisa, v.40, n.141, set./dez. 2010
Este nos parece ser um dos pontos cruciais na tenso instaurada
quando avanamos na atribuio do direito de crianas e adolescentes
autonomia e voz. Ou seja: cabe-nos indagar se reconhecer as crianas
como atores sociais dotadas de competncias para apreender e alterar
a realidade, com algum (ou certo) grau de conscincia sobre o que
pensam, sentem e desejam, com capacidade para emitir opinies e
fazer escolhas significa, tambm, reconhecer que devem assumir o nus
de decises importantes ou de ser envolvidas em processos judiciais,
cujo controle lhes escapa, em boa medida, porque as instituies esto
erigidas e funcionam em sociedades adultocntricas?
Portanto, para alm de uma vulnerabilidade inerente a crianas e
ado-lescentes, est implicada a tenso entre os direitos de liberdade
e proteo, sua vulnerabilidade estrutural que, ademais, assume
contornos diferentes para as subetapas que constituem a infncia e a
adolescncia. Contribumos, ento, para o debate, problematizando de
um lado a unicidade da categoria infncia, ante a desigual
visibilidade pblica e de acesso a recursos sociais, polticos e
econmicos, no s para os diferentes segmentos sociais, mas tambm
para os diferentes subgrupos etrios que a compem. Destacamos, em
seguida, tal como Lansdown (1994) e Soares (2002), a diferenciao
entre vulnerabilidade inerente a essa etapa da vida e a
vulnerabilidade estrutural, decorrente da posio socialmente
subordinada da infncia. Por tais razes, concebemos os direitos de
liberdade como um ideal regulador das intera-es entre adultos e
crianas no espao pblico e na famlia, que devem ser interpretados
luz da posio de subordinao das infncias, e, portanto, de sua
vulnerabilidade estrutural nas sociedades contemporneas. Porm, a
concretizao de direitos de liberdade para crianas e adolescentes
extrapola as relaes interpessoais, adentrando as instituies e os
diversos setores da vida em sociedade. Direito de participao sem
canais, sem transporte coletivo para circular, sem espaos para isto
destinados, sem informao disponvel? Assim, os direitos de liberdade
da criana se veem tambm res-significados pelos limites determinados
pelas polticas pblicas e pelos riscos reais derivados de ns adultos
e das instituies que criamos, ao impingirmos infncia uma posio de
subordinao. Sem uma anlise consistente das relaes de dominao,
inclusive (e sobretudo, mas no exclusivamente) as etrias,
declaraes, estatutos ou convenes dos direitos das crianas podem
gerar dispositivos que ampliam o poder adulto.
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Flvia Rosemberg e Carmem Lcia Sussel Mariano
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Recebido em: julho 2010
Aprovado para publicao em: julho 2010