Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho
2010 15ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM 1
Manuel Antnio de CastroJun ShimadaFbio Santana PessanhaAndr Lira
Jun Shimada: A palavra potica, por ter, inevitavelmente, uma faceta
semntica, nos permite a leitura da questo da verdade da obra,
pertinente ouno,muitasvezescomoumaverdadepropositiva.Emquemedidaa
questoseampliaquandosetratadamsica,linguagemsemproposio nem
semntica?Antonio Jardim: Em medida nenhuma. A verdade, entendida
como um movimento de desvelamento e velamento, no escolhe a melhor
ma-neira de se enviar, mas est em envio constante. Talvez a nica
coisa que possanosfavoreceraquestodamsicanessecasoqueamsica,na
medida em que no linguagem verbal, certamente diculta uma
abor-dagem verbal. Pelo menos no se vo cometer com a msica os
mesmos equvocos que se cometem, por exemplo, em relao poesia ou
pintu-ra. A msica no vai admitir e nunca admitiu, de maneira
nenhuma, ser reduzida expresso verbal. Quando se tenta fazer isso,
o mximo que se tem disponibilidade tcnica, ou seja, o discurso
tcnico. A questo da verdade acionada como a emergncia do ser, a
questo do modo de presenticao do ser. A msica no est fora disso,
nem guarda para si uma especialidade nisso, se ns a olhamos desse
modo. Se ns a olhsse-mos desde uma perspectiva representacional, a
talvez se tivesse como ver a ampliao que a msica impe, porque, com
um olhar representacio-nal, no d para falar de msica. Msica no
representa; no tem como.Manuel Antnio de Castro: Como isso se d em
relao poltica, pensando a msica? Em relao verdade poltica, em que
poltica se pode falar? A msica arte poltica? Com a literatura
facilmente se pode pedir engajamento poltico. Como isso acontece
com a msica?ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM16
Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010
Jardim: Sabemos que, modernamente, para o senso comum, msi-ca se
converteu num eixo onde o texto ca agregado. Quando se tenta fazer
qualquer abordagem representacional do sentido poltico da m-sica,
voc v que a imbecilidade circundante, na verdade, vai privilegiar
sempre o estudo do texto. assim que se vai dar acesso representa-o.
Se quiserem exemplo disso s pensar acerca do valor que se d a
determinados movimentos musicais onde nitidamente a nica coisa
tomada em considerao o texto. A msica mesma, essa, ca de fora. No
Brasil, tivemos muito isso na msica popular em determinados
pe-rodos em que esta se tornou via de acesso de questes
pseudopolticas ou mesmo pseudoestticas ou estetizantes. Quando
msica msica sem estar relacionada ao texto, isso dife-rente do modo
como msica msica, j que, com texto ou sem texto, a msica msica. Seu
dimensionamento poltico vem de seu relacio-namento com a plis e no
de uma provenincia interna sua. O fato de ter o texto no invalida a
msica como msica, mas agrega msica a possibilidade de um texto que,
nesse caso, e sempre ser msica. No
hrepresentaoparaforadela.Ograndevciodaignorncia,que invencvel e
onipotente, e, portanto, Deus, sempre tentar partir do que rumo a
outro modo de ser, a um modo de ser que seja de alguma
formadecodicadooupelomenosdecodicvel. Tantoquesepega literatura, se
olha para ela, se identica uma possibilidade de sair da lite-ratura
para entender, na verdade, o que a literatura tem de representao
daquilo que real. A se abandona imediatamente o que literatura e se
vai ver o que real. Esse o vcio. Por qu? Porque no se entende o que
real, o que realizao, o que realidade. No se entende, so-bretudo, a
diferena entre as trs instncias. Toda vez em que se fala que algum
est fora da realidade... Em nove entre dez vezes, quando se fala de
realidade, est se falando, de fato, de realizaes. preciso
distinguir a realizao da realidade. No tem como se estar fora da
realidade. Est se sempre dentro desta disponibilidade que o real
conduz, pe, coloca, manifesta e onde o real , sempre, verdade.
Seseentenderoquepoltica,queoquevocquerprovocar, no tem como a msica
no ser poltica de alguma maneira. Porque a poltica um dos envios do
real. A poltica um modo como o real se MANUEL ANTNIO DE CASTRO,
ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira Margem Rio
de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 17apresenta quando
ele plis, ou seja, na dinmica de uma determinada organizao. O
problema quando o real plis, quando ele travesti-do ou coberto por
um invlucro que ns chamamos poltico. Na ver-dade, poltica a
con-vivncia que estabelecemos em um determinado modo de organizar e
ordenar o real. A poltica no a nica coisa do real. A msica uma
coisa do real ao mesmo tempo em que a poltica uma coisa do real. O
problema que, como acontece com a
lingua-gem,porexemplo,dentretantasoutrascoisas,apolticapassouaser
uma coisa de uma espessura muito pequena, ou seja, a poltica no tem
densidade. Poltica , para o pensamento representativo e medocre, a
participao poltica enquanto mera adeso ao lado esquerdo, ao lado
direito, ao centro, ao meio, ao embaixo, ao em cima. E poltica, no
meu entender, no isso. Poltica um modo de se estar na plis. O modo
de se estar na plis que o denidor de poltica. A se pode dizer que o
modo de estar na plis ganhou uma maneira especca que o modo
poltico-partidrio.Sim,masahumareduodaplisaopoltico-partidrio. Tanto
assim que se faz a distino entre esquerda e direita. Diga-se de
passagem, distino esta cada dia mais difcil de ser feita. A
esquerdaeadireitanosoopostas,nem,tampouco,contraditrias. Ou seja,
eu no posso optar pela minha mo esquerda em detrimento da minha mo
direita. Eu tenho uma mo esquerda e uma direita. No tenho que
anular a esquerda para armar a direita, nem anular a direita
paraarmaraesquerda.Quandoissovirapoltica,parecequesefaz na verdade
uma lgica que to perversa quanto imbecil, porque a lgica adjetiva,
aquela em que algum prope uma contradio que, na verdade, inveno
barata. Acontradioquepoucoschegamacompreender,naverdade,
aquelaquevigorosacomocondiodepossibilidadedoreal,no proposta; ela .
Quando ela proposta, ela o a partir de envios com-pletamente
ajuizantes, atributivos ou predicativos. Ento, se diz assim:
talcoisacontratalcoisa.Est-sefazendojuzo.Quandosediz,por exemplo,
que capital contra trabalho, isso uma contradio? uma contradio. uma
contradio a partir do qu? A partir do momen-to em que o capital
poder. No nem uma contradio a partir do
momentoemquetrabalhotrabalho,porquehouvemuitotrabalho ARTE-POLTICA
NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM18 Terceira Margem Rio de
Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010
antesquenopdesercontraditadocomcapital,porquenohavia
capitalismo.Emumapocaemquenocirculamoeda,emqueno se faz acmulo de
capital, seja como moeda, seja como bem de uso ou valor de troca,
no h uma tenso real entre trabalho e capital fora do capitalismo. A
tenso trabalho e capital vai surgir na era do capitalismo,
enquadrada em um determinado contexto histrico. Se acabar o
con-textohistrico,acabaacontradio.Ora,quecontradioessaque acaba
quando acaba o contexto histrico? O contexto histrico, ainda
quesejarealnocapazdeesgot-lo.Essetipodecontradio,na verdade, uma
falsa contradio. No uma contradio que, no meu
linguajaratual,euchamariaumacontradiosubstantiva,masuma
contradiocompletamenteadjetiva.Eadjetivoaclassegramatical mais
vagabunda que podemos encontrar, precisamente porque admite a
contradio formulada por interesses e no uma contradio advinda desde
a vigncia e o vigor do real, como uma instaurao que maior que o
homem. Ningum pode me dizer o contrrio de uma uva. O con-trrio da
uva no a melancia nem um peido. No a melancia por-que grande, nem o
peido porque gs. O contrrio da uva no existe, mas o contrrio da uva
doce pode eventualmente existir: a uva amarga.
Quandovocfazdapolticaisso,oquevocestfazendo?Voc est pegando a
poltica e a adjetivando, ou seja, predicando, ajuizando. Ajuizando
signica: o meu juzo melhor do que o seu. Para a direita, para a
esquerda, para cima, para baixo, para fora. No tem jeito, porque o
ajuizamento ajuizamento sempre com interesse. Mesmo que o
in-teresse se coloque como o caminho, a verdade e a vida. Mesmo que
ele seja a salvao. Ora, as religies fazem isso todo o tempo. Tanto
que teve uma poca no Brasil em que tudo o que a esquerda fazia era
bom, at que chegaram ao poder. A, se viu que a esquerda, como a
direita, comoocentro,fazmerdadomesmojeito.Eatcumpreosmesmos
projetospolticos,comoora,porexemplo,ameujuzo,aconteceno pas. H uma
esquerda que cumpre um projeto neoliberal traado pelo
governoanterior.Nadameconvencedequeessepartidoqueestno poder se
elegeu para fazer outro programa que no o programa do go-verno
anterior, ainda que com suaves e delicadas diferenas. O projeto no
mudou. MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E
JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 19Pensar a poltica nesses termos pensar a
poltica adjetiva, que o que se tem feito no mais das vezes. Pensar
a poltica substantivamente d um pouco mais de trabalho. esse o
equvoco que cometem muitas das
pessoasengajadasemprojetospoltico-partidrios,aindaquetenham as
melhores intenes possveis. que elas sempre acham, e pode ser o cara
de direita ou de esquerda: eu sou o caminho, a verdade e a vida, eu
vou trazer a soluo. No traz. Ou o famoso agora, sim, ou agora vai,
sem medo de ser feliz. Sem medo de ser feliz um slogan que
decepcionou muita gente. Ningum tem, nem nunca teve, medo de ser
feliz.Omaisestranhodissoquenuncaningumprecisoudizerpra quem quer
que seja no ter medo de ser feliz. S diz isso quem se julga muito
enviado, desde uma ordem quase celestial. Voc no precisa disso para
ser feliz, no precisa que algum te diga isso. Voc simplesmente
feliz. Ou infeliz, como qualquer coisa que seja. Mas o slogan uma
mar-ca que vocs podem procurar nos slogans partidrios de qualquer
poca: nonazismo,nostalinismo,naditadurabrasileira,nasituaoatual, ou
no Obama, ou no Bush, ou em qualquer um. Os slogans vo sempre
dizermaisdoqueelesparecemdizereoperarmenosdoquepensam que podem.
Sem medo de ser feliz quase que aconselhamento, um juzo: voc no
precisa ter medo de ser feliz, vote em mim. Votaram. E agora d
certo pavor. D pavor porque o projeto em curso um projeto que, se
difere, difere muito residualmente do anterior. Isso dito no por
mim, mas por muitos nativos do prprio projeto. Eles esto a dizendo
isso o tempo todo: ai, meu Deus, e agora? A perplexidade se
instalou. Ela j tinha tudo para ter se instalado antes, mas faltou
sensibilidade.
Sabeporqu?Porquemuitosgostamdeterosslogansparaseguir.A maioria
gosta do pensamento arrumado. Ora, pensamento arrumado ordem e
progresso, sistema. Talvez precisemos de um pouco mais de desordem
e regresso para termos em vez de sistema para o pensamento um pouco
mais de questes para pensar. por isso que quando se diz que fulano
fascista, fulano nazista, fulano comunista, isso no faz diferena.
Na verdade, tudo pronn-cia de juzo. E juzo vagabundo, juzo
adjetivo, juzo sem-vergonha, juzo de quem no conhece aquilo que est
ajuizando. Fulano isso, fulano no-sei-o-que-ano, fulano coisiano,
quer dizer: o cara est ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM
ANTONIO JARDIM20 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 olhando pelo ngulo errado, de baixo para cima,
pelo rtulo anal. No d para fazer assim. Isso no pensamento; isso no
srio. por isso
quevoc,todavezquefazessetipodejuzo,estsemprenaiminn-cia de cair no
ridculo. E cai. No d para fazer. Eu recuso os rtulos. No quer dizer
que eu no os faa eventualmente, mas no seriamente. Colocar no papel
que fulano nazista, fulano comunista, no-sei-o-qu, complicado. Para
isso, seria preciso conhecer meandros, situaes e instncias polticas
que, em geral, se ignoram solenemente.
V-semuitoissoatortoeadireito.Temgentequegostadefa-zer esse tipo de
discurso. o que eu digo: voc no pode julgar Marx porque ele comeu a
empregada. Deixa o cara comer a empregada em paz. Ela teve um lho
dele que o Engels teve que assumir para salvar o casamento dele. O
lsofo Marx no pode estar sujeito a uma trepada mal ou bem dada. O
Marx no pode ser julgado porque trepou com a empregada. Sob o ponto
de vista de uma tica dessa ordem, o cara que
condenalinhaspolticasvaiterquecondenaroMarxcomoumcara sem tica, sem
moral, e de quem a gente no sabe o quanto se utilizou da sua prpria
posio de patro para submeter uma pobre e desampa-rada empregada. D
para fazer uma novela bem pegajosa com isso, mas, losocamente,
seriamente, no para fazer. Isso, na verdade, boba-gem. O Marx que
est vivo no o Marx que comeu a empregada, mas sim aquele que
escreveu O capital e fez a anlise talvez mais profunda que se possa
ter do sistema capitalista. No para jogar fora. Seno, va-mos jogar
fora por moralismo. E para jogar fora por moralismo, a gente joga
qualquer coisa fora.Andr Lira: uma tendncia muito comum ver as
obras de arte tanto sombra de seu autor quanto dependentes de certa
mensagem ou engajamento
poltico.Comodeixarclaroqueissonosetrataapenasdeumaposio pessoal do
Antonio Jardim ou de uma crtica losca que voc faz da lite-ratura?
Como evidenciar de uma maneira terica a importncia de separar
claramente essas diferentes instncias poltica, autoral, histrica,
cultural? Jardim: Ningum nega a vigncia e o vigor dessas instncias
todas. Noestouaquiparanegarqueocontextovaidizerdocontextopara
tudoqueestnocontexto.Sevocperguntacomo,eucocomum pouco de medo de
responder. Mas eu te digo certamente o seguinte: h MANUEL ANTNIO DE
CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 21um
caminho possvel. H questes que preciso distinguir de forma a no se
meter em determinadas confuses. Por exemplo: realizao e re-alidade.
No d para confundir, porque isso decisivo em um encontro com
qualquer manifestao de verdade. Signica: se se confunde reali-zao
com realidade, e toda vez que se fala de realidade est se falando
de realizao, faz-se um recorte da realidade que muito menor do que
ela.Notemsada,nofazeressadistinofatal.Daliteratura,por
exemplo,diz-sequeelaremeteparaumarealidade.Comoliteratura remete
para uma determinada realidade se ela j realidade, se ela um
constituidor primordial de realidade muito antes de a realidade
passar pelos ltros por que passou ao longo da tradio ocidental
toda? Como que literatura, ou pintura, ou poesia, ou msica, ou
dana, como isso tudo pode ser representao do real se instaura uma
nova modalidade de espao-temporalidade, aquela espao-temporalidade
qual, aderido, voc se esquece do tempo cronolgico? voc, na frente
de uma tela de cinema, sem saber mais h quanto tempo est vendo o
lme. voc, comolivronamo,nosabermaishquantotempoestlendo. voc, num
show ou recital de msica, parado, olhando e ouvindo aqui-lo e
esquecendo que tem relgio. Voc olha para o relgio e diz: puxa, j
passou tudo isso? ou no passou tudo isso? Na pea de teatro, se
vocolhaparaorelgioporqueapeadeixoudeinstaurarespao-tempo. Se isso
instaurao de espao-tempo, o que realidade fora de espao-tempo? Eu
me pergunto isso porque no tenho como responder como que se pode
pensar realidade fora de espao-tempo. No se precisa nem estu-dar
muito. Basta ver o Kant, quando fala dos sintticos a priori. A
priori dequalquercoisa,hespao-tempo.EmKant,jsesabiaque,forade espao
e tempo, no h nada. Claro que diverge aqui ou acol o modo como se
encara isso. Se a obra de arte foi sempre a instaurao de uma
espao-temporalidade, ela no precisa, ela prescinde do que quer que
seja de realidade externa a ela para viger e vigorar como
espao-temporalidade. Se voc consegue fazer esse envio de dentro
dela para fora dela, signica que voc jamais conseguiu entender o
que uma obra de arte. Eu tive um colega professor na UERJ que
dizia: se voc olha para um Kandinsky e no entende, porque voc j no
entendeu o Da Vin-ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO
JARDIM22 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 ci, porque est procurando no Kandinsky o que
pensa que achou no Da Vinci. Assim, trabalha-se no eixo externo
representacional. Pensa-se que se entende Da Vinci porque se acha
que se v uma mulher que sorri e passa-se o resto da vida
perguntando: ser que Monalisa sorriu, ou ser que Monalisa no
sorriu? Como se isso fosse dar conta do que
apintura.Ou:serqueCapitutraiuouserqueCapitunotraiu? Como se isso
fosse dar conta da literatura. Esse neobobismo! essa a minha frase
para isso neo, porque se atualiza todo dia. bobismo
secular.acapacidadequesetemdeprocurarbobagemcomosolu-oparaumacoisaquenoumabobagem.Sobretudo,procura-se
bobagem e soluciona-se com bobagem uma coisa que nem se capaz de
entender como instaurao de tempo e espao. Isso acontece direto e no
s na literatura. Estamos inundados por isso. Quando eu digo que no
aguento mais bobagem, porque no aguento mais isto: dar
umasoluosimplriaparaumacoisaqueinstauraodetempoe espao. No tenha
dvida: Gabriel Garca Mrquez no levou cem anos para escrever Cem
anos de solido. E ningum leva cem anos para ler (pa-rece incrvel,
mas verdade). Ningum vai contar aquilo como tempo cronolgico;
preciso que o leitor perceba cem anos, como ele sentiu para fazer.
preciso viver cem anos, mas no os cem anos cronolgi-cos. So cem
anos de tempo enico, de tempo vivido, e no de tempo medido. Se
tempo fosse apenas medio... seria unidimensional e, cer-tamente, o
tempo no o .No sei se te respondi, mas, primeiro, necessrio
discutir realiza-o e realidade discutindo verdade, a obra de arte
como instaurao de verdade. Como instaurao de verdade? a obra de
arte como instaura-o de espao-tempo, ou seja, fazendo emergir uma
modalidade de real que sem a obra de arte no haveria, que s pode
haver com ela, e por isso ela sempre a exigncia de sua (dela)
presena. Voc pode classic-la como romntica, clssica, neorromntica,
neobobista, neocubista, o capeta, mas ela a presena dela em um modo
de espao-tempo que ela instaura. por isso que quando voc vai a uma
exposio, pode car na frente de um quadro por meia hora. Quando d
tempo, porque nessas
grandesexposiestemalgumatrsteempurrandoparavocandar rpido.MANUEL
ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN
SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 23Lira: Nessa questo de tentar encarar a arte (a
vida?) como uma
lin-guagemsubstantiva,eupensoemcomoascinciashumanasseressentem
dequerersercincia,masdecertaformanopodemproduziramesma
linguagemmatemtica.Oobjetoqueelasedispeaestudarnooferece ou no
realiza todas essas possibilidades de representao. E h as relaes
entre tcnica e poesia ou tcnica e poesis, no sentido de que a gente
quer algoparamedir,agentequeralgopararepresentar,parapoderexplicar,
para poder assegurar o domnio daquilo de que a gente est falando.
Acho que a literatura vista como um discurso que tem que fazer meno
quilo, ou conter aquilo, ou ter tal forma, enm. Tudo isso
testemunha ainda um ressentimento e uma vontade de querer uma
preciso, uma objetivao da-quilo com que lidamos, enquanto quando se
faz arte, msica, poesia, no se assegura o potico pelo controle dos
procedimentos.Jardim:Sefosseassim,vocseriapoetatododia,atsentadono
vaso sanitrio. H uma coisa interessante que voc convoca na sua
per-guntaequemepermitefalardeumassunto:atrocadacoisapelo
suportedacoisa.Querdizer,oquepermiteamedidaeoqueenseja essa nsia de
medir , na verdade, a gente ter trocado o ser pelo suporte. Por
exemplo, voc no compra msica. Voc no pode comprar msi-ca. Voc
compra um disco, a bolacha antigamente, agora voc compra o CD ou
compra a partitura. E, toda vez que compra a partitura, ou crditos
na internet, voc tem a sensao de que levou msica para casa.
Vocreicaasuarelao,quenomeramentecoisal.Naverdade, ela coisal em
outro sentido, mas ela no coisicante, coisicadora,
unicamententica.Vocpegaumsuporteelevaparacasa,eeleest suportando o
potico, que, na verdade, no potico, porque ele, em si, no pode ser
potico, mas voc tem essa sensao. Tem-se a sensao de que se dono
daquilo, de que se tem a propriedade daquilo. Se voc for, por
exemplo, a Marx, que foi um grande pensador, ele falou disso tudo
sobre o capitalismo. O capitalismo converteu tudo em mercadoria e
ele percebeu isso tudo com uma sensibilidade extraordin-ria. Qual a
tese fundamental disso tudo? A tese do Marx a seguinte:
tudo,sobocapitalismo,caconvertidoemvalordetroca.Portanto, mercado
livre. Ento, l em O capital, ele analisa a mercadoria. Quando o
Marx pensa a obra de arte, que uma coisa muito fragmentria no seu
ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM24 Terceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010
pensamento, ele tem certo pudor, que os marxistas, infelizmente, no
herdaram. Por que ele tem pudor? Como calculado o valor no
capitalismo? Ele descobre: pelo tem-po de trabalho necessrio. Temos
duas canetas. Se algum que fez uma levou trs horas para fazer, e
quem fez essa outra levou duas, o tempo de trabalho socialmente
necessrio para produo de canetas de duas horas e meia. O Marx
percebe isso: voc calcula o valor do tempo, no capitalismo, e o
tempo tem valor. O tempo a medida do valor econ-mico, porque em
cima desse valor que se vai calcular no s o valor
doobjetoproduzidocomoovalordotrabalho,quesevaiestipular mais-valia,
fazer-se o lucro, e tudo isso em cima do tempo de trabalho
socialmente necessrio. Isso vale? Vale. Sob o ponto de vista do
processo industrial de produo, vale. Quanto mais industrial a
produo, mais vale, porque mais ela est acionada como produo
industrial a partir da mquina-ferramenta, que algo que o homem
interpe entre ele e
amatria-primacomaqualeletrabalha.Seessamquina-ferramenta tem uma
rotina de produo, os donos dos meios de produo sabem calcular
direitinho de quanto tempo social eles precisam para produzir
50milparesdesapato,eestabelecerovalordosparesdesapatosem nenhum
problema. medida. Quando se chega obra de arte, no d, e o Marx diz
que no d. Por qu? No se pode calcular o tempo de trabalho
socialmente necessrio para a produo de sinfonias, ou para a produo
de poemas, ou para a produo de romances; no possvel saber porque
isso no calcu-lvel. O Rilke fez as Elegias de Duno em um intervalo
estimado de dez anos da vida dele. Esse tempo caro se voc for
calcular. No tem valor de tempo social que possa ser medido da.
Mas, a, o que o capitalismo articula de forma genial? Ele no
calcula mais o valor do tempo que o Rilke levou para produzir as
Elegias de Duno, calcula o valor do tempo para se produzir o livro.
Na verdade, se faz uma reverso, em que o valor o valor do livro,
objeto, mas no o valor do que est dentro do livro, porque esse
valor inestimvel, por pior que seja. Se ele for o pior livro do
mundo, o valor inestimvel. Voc no pode calcular o valor desse
trabalho que est aqui, por mais horroroso que voc possa achar que
ele . Como no se pode calcular esse tipo de valor, o suporte vem e
voc MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN
SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 25calcula o valor do suporte. por a que se capaz
de calcular o valor do disco, o valor do CD, o valor do MP3, o
valor que voc quiser, para falar de msica. Para a literatura,
calcula-se o valor do livro. Calcula-se o tempo de televiso, por
exemplo, que um suporte. E quanto mais
essesuportefortransitvelezerdoseutrajetoumaculturamacia,
maisvalordemercadotem.Em1979eupubliqueiumtextoescrito em parceria
com meu amigo Nestor de Hollanda Cavalcanti, onde ns mostramos como
esse processo se d na produo musical.Por que voc acha que um
jogador de futebol ganha quatrocentos mil reais por ms? Porque ele
d um lucro para a mdia que certamente cinquenta, cem, um milho de
vezes mais do que aquilo que se paga a ele. No tenha dvida nenhuma,
ele no ganha muito. Ele ganha muito quando ns nos comparamos com
ele. Ele ganha pouqussimo perto do que se fatura em cima dele. E
isso vira lei de mercado. Quem tem
cons-cinciadissooempresrio,quecertamentenojogadinheirofora. Agora
se diz que no futebol no h mais passe e o jogador livre. Livre
coisa nenhuma. O jogador livre para vender a sua fora de trabalho.
No livre para coisa nenhuma alm disso. Por outro lado, s vezes,
pela sensibilidade, a pessoa tem intuies interessantes; por
exemplo, esse jogador que veio agora do Inter de Mi-lo para o Urubu
diz que preferia morar na favela a morar em Milo. Apesar de ser
urubu, e, portanto, um bicho abominvel, legal ver isso. O cara no
perdeu a origem. Ele sente falta de andar descalo na favela.
Qualquer pessoa pode sentir falta da sua origem.
Eumelembrodeoutroexemplo:humtempoeuorienteiuma dissertao de
mestrado no Conservatrio Brasileiro de Msica. A
mes-trandafoifazerumainvestigaoemumacidadedaBahiachamada
Correntina, para falar de Folia de Reis. Ela ia para l, se metia na
festa e fazia folia de reis todo ano para investigar, fazer
etnograa... Um dia, ela vem para uma dessas sesses espritas de
orientao que eu algumas vezes promovo e diz assim: Antonio, eu
descobri uma coisa interessan-tssima em Correntina nessa vez que eu
fui. Voc sabe que o palhao da folia de reis sempre o mesmo? E sabe
quem ele? Ele um camarada que mora em So Paulo, um yuppie, um testa
de ferro de multinacio-nal, um cara bem-sucedido, tem uma grana.
Ele devia ganhar na poca ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM
ANTONIO JARDIM26 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 o que seriam hoje por volta de cem mil reais, me
disse ela ento. Ele saiu de Correntina, foi para So Paulo, virou
gerente de uma multina-cional. Agora, todo ano ele vem para a Folia
de Reis para virar palhao, que um negcio extraordinrio. Ele vem
representar, ela disse para mim, o palhao. Eu digo: No! Ele vai a
So Paulo representar. Ele
opalhao.NadajusticaavoltadeleaCorrentinaquenosejao fato de ele ser
aquilo, ou seja, de ele sentir falta de sua prpria origem. Ele
representa quando gerente da multinacional; l ele representa um
papel para poder se manter vivo em um jogo de comodidades como a
gente vive no nosso tempo. Mas ele , efetivamente, o palhao da
Folia de Reis. Ele tem um prprio. Isso se chama a densidade do
prprio. Tanto que isso foi para o ttulo da dissertao dela: A
densidade do pr-prio na Folia de Reis de Correntina, da Andra Lusa
de Oliveira Teixeira. Mudou completamente a dissertao e a partir da
ela comeou a falar de densidade do prprio, que exatamente o que eu
estou falando em relao ao jogador de futebol, quando este descobre
sua relao com sua origem, o que cada dia mais difcil.
Sealgumolhaparansedizquensvamosmoraramanhem
Como,nabeiradoLagodeComo,emumcasaro,comquinhentos serviais que vo
te servir na hora que voc quiser... Quando voc esta-lar os dedos,
uma mulher vem e voc come se estiver com vontade. Se no estiver com
vontade, come frango mesmo, que tambm serve.
Mos-traessequadroparaohomemmdionoBrasil:Vocquerissopara
voc?Qualquerumdiz:Eusonhocomissoaminhavidainteira. Todo mundo sonha
com isso. Todo mundo, no, porque eu no sonho. Atraente, portanto,
sob o ponto de vista do que seja ser bem-sucedido
nessamodalidadedearticulaosocial.Ojogadorchegaedizassim:
Estouentediadocomisso,querovoltarfavelaCruzeiroparaandar descalo e
conversar com meus amigos. Acho legal. Porque o que fala a
densidade do prprio. Pode acontecer. difcil, mas pode acontecer. a
mesma coisa que voc est me perguntando. Esse emaranhado da tcnica,
na verdade, pe as coisas de cabea para baixo. Porque parece que a
realizao, no caso do cara l de Correntina, est em trabalhar na
multinacional. No; a realizao se d para o camarada no dia em que
vira palhao da Folia de Reis. A mesma coisa se d com a obra de
arte. A MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E
JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 27realizao no a realizao do livro, mas a
realizao da obra. O livro suporte da obra. A obra que importante,
no o livro. Algum vende um livro para voc, mas na verdade voc quer
a obra. Se a obra chegar
daquiaalgumtempoemoutrosuporte,quenosejaumlivro,voc teraobra.
Tantoquehojenosecompramlivros.Sevocpuder, voc vai a um instrumento
de busca desses, baixa o livro e l. Porque o importante a obra, no
o suporte dela. Amanh ela vem em DVD, ou ela vem por transmisso
mental, sei l. Mas ela vem. A obra no , de qualquer forma, apenas
um objeto.Lira: Voltando questo do suporte, isso tambm se aplicaria
ques-todaacademia,dafaculdade.Cadaumtemumpercursoacadmicoe
cotidianamente voc busca determinados suportes tericos para
orientar o trabalho, que geralmente o modus operandi das cincias
sociais e huma-nas em geral. Como que voc resgata ou tenta buscar
uma dimenso po-tica em que voc tenha uma valorizao desse tempo
kairtico de criao, em que no fundo voc est sempre se ensaiando?
Como que voc v isso e a questo que normalmente se coloca de que voc
tem que seguir determina-dos autores, ter uma determinada linha de
pensamento, embasar seu traba-lho com determinadas pesquisas? Como
seria essa tenso entre a criao e as informaes, o aglomerado de
dados e coisas assim? Jardim: Ns vivemos no tempo da informao
exatamente porque a gente vive no tempo da otimizao do suporte. Voc
tem uma internet que tem tudo. Tem aquele ser que como o Manuel
Antnio de Castro j disse: o maior erudito do mundo em todas as
lnguas, o Google. Eu tenho repetido isso. Por isso acontece como na
histria que algum me contou. Perguntaram na prova: Como era o
Brasil no perodo de Jnio
Quadros?Aresposta:Nosei,professor,novivinessapoca,mas prometo
pesquisar. A resposta to idiota quanto verdadeira. Porque, num eixo
de informao que circula como circula no Google, uma so-luo dessas
perfeitamente aceitvel, de alguma maneira. O cara no
viveunapocadoJnioQuadroseestdizendoaverdade.Como
quevocquerqueeusaibadisso?EssaaparteGoogledahistria. Mas tambm tem
legitimidade a pessoa dizer isso. No obstante, desde aquela j
mencionada invencvel ignorncia, claro, mas desde tambm
umasacrossantaingenuidade,porqueanooqueumapessoadessas ARTE-POLTICA
NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM28 Terceira Margem Rio de
Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 tem de que, quando ela
vai ao Google e recolhe a informao, ela est vivendo atualmente
aquilo, de que aquilo faz o Japo chegar aqui agora. O cara abre o
site do museu do Louvre e acha que entrou no museu do Louvre.
Sobretudo se ele estiver desavisado como quase todos ns esta-mos
sempre. Entrar no museu do Louvre virou entrar no site do museu do
Louvre, porque muito mais fcil e mais barato. Mais uma vez, h a
reverso do suporte em relao prpria coisa. A questo do suporte
acadmico a mesma coisa. No meu modo de entender, suporte acadmico
no existe. Sabe o que existe? O afeto,
nosentidomenosbanaldotermo.Afetopordeterminadasquestes
eporquemtrabalhoudeterminadasquestesemumsentidoemque voc pensa: eu
podia ter feito isso, ou eu gostaria de ter feito isso, ou isso
alguma coisa que no seria problemtico, para mim, dizer. claro que
eu no vou dizer como o outro disse, seja quem for. Pode ser o maior
pensador do mundo, pode ser um idiota qualquer. Esse mito da
racionalidade de que voc olha para o espectro todo e escolhe quais
so as suas fundamentaes no existe. Na verdade, h gente que trabalha
assim, mas essa no verdade. A verdade a seguinte: puxa, isso, ou,
num dizer menos ps-moderno e mais pr-antigo, eureka!. E a, algum
pode ver esse lampejo em qualquer um, ou em qualquer coisa.
Atemalgumacoisaoualgumcomoqueouquemvocestcerto de que no
concordaria em primeira instncia. Porque o pensamento generoso, eu
acho. Ele no tem matriz e pode fazer voc pensar a partir daquilo
que voc acha que jamais vai fazer voc pensar. Durante muito tempo,
eu no li o Heidegger. Eu estava certo de ser comunista. Durante
muito tempo, eu evitei ler o Heidegger porque ele era nazista. Na
verdade, o tempo todo em que eu pensei isso na mi-nha vida foi
antes da leitura do Heidegger. Foi por isso que me causou surpresa
quando li. Eu pensei: se nazismo isso, eu gosto! Fiquei um pouco
eticamente abalado com isso, me deu caganeira e tudo. Porque eu no
posso me armar nazista assim com essa simplicidade. A gen-te ca
sempre nessa situao de puxa, fui pego na esquina. Mas eu gosto
disso. Esse pensamento (o do Heidegger) tem mobilidade. E
eleeranazista?! Temgentequecarepetindoisso.oneobobismo.
OneobobismovaicarrepetindoqueHeideggereranazista.Existe MANUEL
ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN
SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 29idiotice suciente para car repetindo isso todo
dia, e capaz de no ter lido uma linha do Heidegger. Se leu, viu que
no era. Pelo menos,
nocomopensador.Selumpoucomais,eadquireumpoucomais
deinformao,conheceahistriatodinhadaadesoedadesadeso. A, se continua
fazendo esse jogo, m-f, ou mau-caratismo, ou, em
ltimainstncia,devemosdizer,lha-da-puticeporinteressesmuitas
vezesinconfessveis.Senoentendeu,noalcanou,agenteperdoa. Se no
entendeu, nada se pode fazer. Se entendeu e continua repetindo como
um psitacdeo, a no est pensando! Essa a questo. Voc no pode no ver
e no gostar! A no ser que seja uma coisa muito patente, muito
evidente. E que seja muito evidente por si s, em qualquer marca de
pensamento que venha. Isso difcil porque os pensadores pensam muito
mais do que so. Se voc fosse entrar pela vida de todo mundo que
pensou ou de todo mundo que criou, descobriria coisas escabrosas.
Os grandes criadores so guras muitas vezes intragveis no seu
aspecto pessoal, so pessoas com quem voc no quereria ter cinco
segundos de conversa, voc caria enojado, porm isso no retira o
valor da obra. O maior mito, em sentido estreito, que a gente
inventou o mito da coerncia. Esse mito extraordinrio porque faz uma
pessoa, uma vez dado um passo no caminho, nunca mais ser capaz de
voltar atrs. E um mito. O tempo todo voc est discutindo com voc
mesmo. Se voc no discute consigo, no discute com o pensamento,
porque o tempo todo voc est pensando aquilo que voc disse e est
redizendo de outra maneira. Com muita coragem, s vezes, est dizendo
o contrrio. O que no desdouro nenhum e signica que o pensamento
segue seu curso. por isso que os malucos da losoa tm essa maldita
mania: o primei-ro Wittgenstein, o segundo Wittgenstein, o terceiro
Wittgenstein... So vinte e cinco Wittgensteins, noventa e trs
Heideggers, quarenta e dois Plates, e assim por diante. O cara est
pensando, no est preo-cupado se o dilogo seguinte vai dizer o
contrrio do dilogo anterior, se a linha seguinte vai dizer o
contrrio da linha anterior. O pensador, assim como o poeta, tambm
no pensa nessa coerncia. Se pensar nela, no faz poesia. Coerncia
uma coisa moralista e que, portanto, no tica. Ento, ca esse
discurso meio hipcrita que exige uma tica do outro, mas no tem
nenhuma tica quando l o outro e pronuncia o ju-ARTE-POLTICA NA
MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM30 Terceira Margem Rio de
Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 zo do outro. Isso
bonito, isso d certo, costuma ser bom. Eu exijo tica de voc, mas
quando fao o juzo de voc eu posso no ser tico, ou seja, eu posso no
ter nem lido voc e posso emitir juzo a seu respeito. Eu posso no
conhecer voc e posso emitir juzo a seu respeito.Fbio Santana
Pessanha: Voc falando desse percurso dos noventa e trs Heideggers e
quarenta e dois Plates me levou a pensar num tipo de historicismo
de ordenao cronolgica, enm, ao que chamam de evoluo. No entanto, a
falta de coerncia a que voc se referiu se d em funo da vigncia do
pensamento. Ento, com essa mobilidade do pensamento, como que a
gente poderia pensar o amadurecimento? Porque, no mbito dessa
evoluo, uma obra que veio depois seria melhor porque evoluiu o que
no adequado se dizer. Em Potica, neste sentido, no teria
amadureci-mento.Semprealgoquenico.Comoqueca,porexemplo,seum
historiador zer uma pesquisa potica? O que ele poderia
fazer?Jardim: E nem sempre houve evoluo. A primeira coisa seria ele
se perguntar o que histria. Da para frente, eu entendo, o percurso
j melhoraria. Coisa que ele no faz porque historiador, ou seja,
ele, an-tes de qualquer coisa, assinou um pacto com a cronologia e
com a evo-luo. Esse pacto, ele tem que romper para fazer histria
efetivamente. Quero dizer, para fazer histria do modo da presena,
no fazer histria de um modo em que uma presena anula a outra, como
, sobretudo, ahistriadaarte.AlgumdizqueporquehouvePollockumdia,ele
acabou com o Delacroix. Isso no existe! Eu posso olhar para o
Pollock e posso olhar para o Delacroix. No posso fechar os olhos
quando vejo um para poder ver o outro. Eu me lembro da minha poca
de professor de msica, uma vez uma pessoa veio e disse: Vamos fazer
uma modicao na disciplina Histria da Msica. Quando eu disse para
acabarmos com os pr-re-quisitos, a imediata resposta foi: No pode!
Ento, perguntei: Mas como no pode? E a pessoa: No, no pode! Como
que um aluno vai poder ouvir Stravinsky sem ter ouvido Gesualdo?!
Eu disse: Com osouvidos!OcarapeoouvidoeouveStravinsky.Depois,como
mesmoouvidodele,ouveGesualdo!Aomeujuzo,quandosepe Stravinsky para
tocar, ningum vai dizer: No! Fecha os meus ouvidos rpido porque no
ouvi Gesualdo! Se fosse assim, a gente no poderia MANUEL ANTNIO DE
CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 31ouvir
rock, a gente ouviria rock daqui a trezentos anos porque teramos
que ouvir a histria da msica inteira e entender porque o rock
surgiu umdia.Noprecisamosdissoparaouvir!Vocouveegostaouno gosta.
Vocouveeachapobreouacharico,bomouruim.Ento,a primeira coisa seria,
nesse sentido, rever o conceito de histria. Rever, inclusive, o
conceito de temporalidade que sustenta essa histria, por-que se
teria que se fazer uma histria no da cronologia, mas de um tempo
enico, ou seja, dos modos de presena e de insistncia.
Umaobranodopassado.Seeununcaviumquadroeelese
apresentapelaprimeiraveznaminhavida,eupasseiaveroquadro agora. Com
isso, poderiam me dizer, por exemplo: Ah, mas voc est completamente
defasado, esse quadro tem quinhentos anos. No, para
mimeletemabsolutamenteumsegundo,euacabeidev-lo!Euno estava l quando
o cara fez o quadro, lamentavelmente. Eu gostaria de acompanhar
todo o seu processo de construo, mas eu no estava l. Quinhentos
anos o tempo cronolgico que se mede do dia que o pin-tor o fez. Ele
tem quinhentos anos de vida, ou seja, ele tem quinhentos
anosdepresena.Elenotemquinhentosanosdepassado,eletem quinhentos
anos de insistncia como presena. Ns temos uma relao com o tempo
muito estranha. Voc diz, eu digo, ele diz, ns dizemos: eu tinha trs
anos, eu tinha dez anos. Eu no tinha dez anos, eu tenho dez anos!
No adianta eu dizer que eu tinha dez anos, eu continuo ten-do: os
dez esto dentro dos cinquenta e cinco. No sei se isso que voc
gostaria que eu respondesse, no sentido de que o historiador, para
fazer histria, tem que rever o seu sentido de tempo. a primeira
coisa que ele precisa pensar. Ele, na verdade, preci-sa pensar o
tempo como aquilo que consolida um espao-tempo de pre-sena, mesmo
que seja como insistncia do que foi feito h quinhentos ou mil anos.
por isso que as obras no sofrem o processo de dissoluo perverso que
a histria da arte determinou para elas. Dostoievski no nasceu
ontem, ns sabemos. Dostoievski o autor que faz voc emular
umgostopelaliteratura. VocnoprecisateraidadedeDostoievski para
l-lo, felizmente. Dostoievski , para voc, para mim, para quem gosta
e quem no gosta, presena. Desde o momento em que ele
con-solidousuapresenacomaobraquefez,estpresente.Certamente,
ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM32 Terceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 uma
presena de longa durao. Tem que mexer na questo espao-tempo, tem
que mexer na questo histrica, necessariamente.Shimada: Dado que a
poltica inegavelmente existente, como que a gente poderia liberar
ou pensar uma poltica independentemente dos pa-dres que se zeram
normativos para se pensar
poltica?Jardim:diclimo,masachoquetemalgunsindciosde,pelo menos,
como no se deve fazer. Talvez revendo muitos dos juzos que ns
colocamos com tanta facilidade a respeito da questo poltica,
co-meando pelos nossos. Revendo o que poltica, ou seja, pensando-a,
coisa que nem poltico ou militante algum est disposto a fazer. No
se perguntam o que poltica. Essas pessoas se sentem salvadoras do
mun-doporqueestoengajadasnumprojetopolticoquedecidirampara eles e
no sabem nem como. E sobre o que poltica, necessariamente, esquerda
e direita esto de acordo, porque quanto menos voc pensar,
menostrabalhod.Oproblemaqueviraumaconsideraoquase gentica no
sentido de que se voc est comigo, voc est certo, e a quase como uma
bem-aventurana, isso quase religioso. Quero dizer, concorre-se para
uma mesma perspectiva no s perversa como perver-tida, porque assim:
voc est com o bem de qualquer maneira. Plato mais forte do que a
esquerda e a direita porque ele disse
queaideiasupremaeraaideiadobem,edessa,meuamigo,todos acham que esto
absolutamente certos, seja na direita, seja na esquerda. A primeira
coisa a ser feita rever o princpio de constituio da po-ltica desde
que ela se constituiu no ocidente. Quero dizer, desde que se montou
um caminho de ordenao. Tem-se que estudar a Repblica direitinho, e
as repblicas todas que se zeram depois, tem-se que ver de que forma
o Marx republicano no sentido da repblica platnica, porque , e to
ideal quanto. Isso no uma crtica s ao Marx, isso , na verdade, uma
forma de salvar o Marx de boa parte do marxismo,
porqueoMarxpensamentoeumpensamentoforteenecessrio
athoje.Oproblemadeleque,adespeitodelemesmo,virouuma espcie de
catlogo bblico onde voc vai buscar o caminho, a verdade e a vida. E
a no diferente de Jesus Cristo, de budismo, de islamis-mo. Poltica
virou uma religio, s que com um nome diferente. Ela se salva porque
chamada com um diferente, ou seja, voc da seita dos MANUEL ANTNIO
DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010
33bem-aventurados,vocdaseitadosmal-aventurados. Todomundo acha
isso: o cristo acha isso de si, o islmico acha isso de si, o
budista tambm acha... Enm, tudo o caminho, a verdade e a vida. E a
tica a tica do amor ao prximo como a si mesmo, ou seja, o eu me
amo. fcil amar ao prximo como a si mesmo, o difcil amar ao prximo
como o prximo. Castro: Quando o pensamento
poltico?Jardim:Semprequeelevemdaplis,isto,hoje,sempre!Ele sempre
poltico, ele poltico se est na dimenso da plis. O
pensa-mento,sepensamentoepensamento,sobretudo,cuidado, poltico
desde a plis. Mas tem uma coisa que preciso ser ressaltada: no a
rubrica que diz. No a rubrica que diz o que poltico. Se
vocpensarempensamentopoltico,pensamentoreligioso,pensa-mento losco,
pensamento potico, com o predicado, voc reduz o pensamento. Na
verdade, a diculdade que a plis impe hoje pensar a plis. Tem-se que
pensar a plis e isto signica pensar o poltico, mas pensar o poltico
no como uma forma exclusiva em que o poltico se separa da dimenso
do pensamento. O esteretipo do poltico que ele tem pavor do
pensamento, pa-rece aquele negcio: poltica prtica, que que voc faz
de prtico com isso? Ento, se algum faz um estudo poltico da questo
da es-cravido no Brasil e diz-se que ele no fez nada porque se
acredita que fezapenasteoria,cadifcil;hquempareaacharquequemestuda
escravido precisava ter sido escravo. Mas, se ele fosse escravo,
ele teria morrido, no iria fazer um estudo sobre escravido. como se
s fosse capaz de entender de escravido quem foi escravo, quase
isso. aquele negcio que tambm acontece com futebol: o treinador
terico, nun-ca chutou uma bola. Primeiro que mentira, todo mundo
chutou uma bola na vida; segundo, ningum precisa ter jogado bola
para pensar o
futebol.Meuamigoquerido,RonaldesdeMeloeSouza,dizsempre assim:
preciso devolver a palavra ao poeta. Eu, mesmo que concor-de,
tenho, no fundo, certo receio disso, pois depende do poeta. Se voc
devolver para o poeta errado, est encrencado! Ele vai causar mais
danos do que os crticos literrios causam, porque ele vai virar
crtico rapidinho, ele vira crtico dele mesmo. Essa a tentativa de
totalizao, eu sou o ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO
JARDIM34 Terceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 poeta e tenho o juzo acerca de mim mesmo, e ai
de quem discorde. Esse o pior dos poetas, o poeta que tem poder de
argumentao crtica e faz do seu poder de argumentao crtica
justicativa da sua poesia. Ele reverteu completamente o caminho. A
poesia no precisa de defesa crtica, ela . Seno, ela no . Sobretudo,
ela no precisa de defesa cr-tica do prprio poeta. Porque assim ele
assume o lado de crtico, mas assume a seu favor, o que eticamente
condenvel, moralismo puro. A poesia no precisa disso, ela se arma
como poesia. Se ela depender da crtica favorvel de um crtico
externo, j ruim. Se ela depender da crtica favorvel do prprio
poeta, a poesia no se sustenta, ela precisa de uma
bengala.Castro:Nessesentido,adensidadedeumpensamentosemedepela
densidade poltica?Jardim: No e sim. Se eu aceito a primeira coisa
que eu disse, que
todopensamento,comocuidadocomoreal,poltico,areposta sim. Mas no
poltico como esteretipo. Sua pergunta tem dois lados: quando voc
pergunta se ele se mede pelo poltico, pode-se dizer que
opensamentossejusticaporqueeletemumadimensopoltica. Mas qual
pensamento no tem? E onde a poltica no a reduo do pensamento? Essa
a grande diculdade. difcil ela, tal como pra-ticada, no ser a reduo
do pensamento, j que a gente separou essas instncias. Por exemplo,
um aluno meu tinha uma curiosidade danada porque eu dizia que o
maior pensador poltico que conheo o
Hei-degger.Eelesempreaceitouessedesaoetentavaentenderoqueeu estava
dizendo. Mas se passa algum com m vontade, pode ouvir isso e dizer
que sou nazista, porque parece que o Heidegger o nico nazista que
existiu no mundo. Nem o Hitler foi to nazista. Ele no padeceu da
crtica de nazista como o Heidegger padeceu e padece, at hoje.
NingumdizdoHitler,comoumrtulo,queelenazista.Agente olharia para o
sujeito que diz isso com piedade, n? Agora, o Heidegger, sim, pode
ser nazista. Ento, o problema do Heidegger o seguinte: ele o grande
pensa-dor da poltica. Mas toda vez que se fala isso, se entende a
poltica do nazismo. No, ele o grande pensador da possibilidade de
renovao. Ele no separa; o poltico nele est to dentro do pensamento,
que o po-MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA
E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 35ltico no precisa ser separado a ferros. Voc
vai ver que em seu pensa-mento h alternativa para se pensar o
momento poltico de hoje.
Hou-veehalternativaparapensarqualquermomentopoltico,desdeo momento
em que Heidegger produz seu pensamento, porque ele mexe na
linguagem! Se ele mexeu na linguagem, mexeu em tudo, mexeu no modo
de presena do real. Ele est olhando para o real, no est fazendo
outra coisa seno nos dando a possibilidade de aprofundar nossa
relao com o real. Nada mais poltico do que isso. O esteretipo de
poltica no d conta disso. Voc pega esses modernos pensadores
europeus da poltica,comoNorbertoBobbio,JrgenHabermas,issobobagem
perto do pensamento do Heidegger. No porque estou fazendo juzo que
bobagem: leia. Leia, porque eles esto tentando solucionar o
inso-lvel. Eles querem salvar as partes boas de algo todo
arrebentado. No d para salvar a parte boa do que est atumorado,
ruim.Castro:Comoquesepodepensaropolticosempensarohomem? Como que se
pode pensar a plis sem pensar o homem?Jardim: A plis no se pode. A
plis construda pelo homem, orde-nada pelo homem, no. Mas acho que o
fundamento do poltico no est no homem, de qualquer forma. Est no
real. No est no pensa-mento, mas no real, no modo de se presenticar
da linguagem, no real
queenquantolinguagem.Opensamento,comoocuidadoquese tem com a
linguagem, humano. Mas o fundamento no humano. O poltico em sentido
amplo esse cuidado. Falar de poltica falar do homem, entender o
homem e suas formas de ordenao de real, no necessariamente apenas
da plis. Por isso, estou dizendo que o funda-mento no o homem, mas
entender o real como aquilo que se mani-festa como
linguagem.Lira:OqueoHeideggerteriaavercomaquestodaarte,como que ele
teria a contribuir? Porque h uma crtica que pode ser feita sobre
Heideggerserumlsofo,eissoserusadopararotularseupensamentoe afast-lo
dessa reexo da arte. No sentido dessa separao disciplinar, o que
voc acha dos Estudos Culturais e a proposta de quebrar as barreiras
entre as disciplinas para pensar o mundo de uma maneira mais
global? Queria saber se esse procedimento consegue resolver algumas
das questes que esta-mos discutindo. ARTE-POLTICA NA MARGEM:
ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM36 Terceira Margem Rio de Janeiro
Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 Jardim: Eu acho que o problema
pensar o homem. No o ho-mem o problema. Toda vez que a gente
colocar o homem nisso, vai dar num desvio como os Estudos
Culturais. O que eu gosto do Heidegger talvez, mais do que aquilo
que eu entendo, aquilo que eu no entendo. O Heidegger no um
pensador do homem no e no vai ser nun-ca, para mim, mas um pensador
do real. Ele nos d ou nos aponta uma possibilidade de relao com o
real que a gente perdeu. Ele aponta para o homem, claro, porque no
aponta para a barata. Mas a grandeza do Heidegger como pensador est
num profundo anti-humanismo. Ele talvez o pensador da histria da
losoa posterior a Plato, Descartes e Kant que pe o homem no seu
lugar. E, para isso, no faz uso de instn-cias aparentemente to
dogmticas quanto fez o pensamento medieval inteiro. Retorna a uma
possibilidade em que o homem, de alguma for-ma, se conjuga mais com
a phsis, no sentido daquilo que surge por si, sendo essa a
possibilidade de o homem ser homem. A contribuio que o Heidegger d
para a arte que ele refaz uma unio perdida, ou pelo
menosesquecida,entreaobradearteeaverdadedoreal,entendida
aexpressoverdadedorealcomoumprocessodepresenticaoe ausenticao. Isso
muito mais interessante do que pensar o homem. O homem s presta,
efetivamente, quando pensa, ou seja, quando exerce algum
cuidado,sobretudocomcoisasquenosodohomem.Quandoele exerce o cuidado
com o homem, ele acaba exercendo o cuidado com ele mesmo, e voc tem
um desvio da questo poltica: quando voc est comigo, voc bom, quando
voc est sem migo, voc ruim. Toda vez que voc coloca a questo em
cima do homem, o homem sobre o real, e o homem no est sobre o real,
ele est no real: ele no pode esco-lher a hora em que est no real. O
real a instaurao de um movimen-to que se chama realidade. O homem
no est fora disso. Quando o ho-mem cria, analogiza ou faz emergir
em si uma espao-temporalidade, que no exatamente apenas a criao
dele, mas um movimento, a percepo do movimento que o real faz
enquanto tempo e espao. a vigncia de um tempo e de um espao,
instaurao de alguma coisa que ainda no foi vista ou percebida de
uma forma. Mas se eu uso vista e percebida, estou no mbito do
homem. Sim: no posso ser uma lagarta, at gosta-MANUEL ANTNIO DE
CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN SHIMADATerceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 37ria,
para fazer a experincia. No sou uma lagarta, sou um ser humano.
Vejo, portanto, como ser humano, mas entendo que o ser humano no e
nem poder ser nunca o centro desse processo, porque, toda vez que
ele for a poltica, por exemplo, vai ser o pensamento degenerado.
Assim, o fundamento do pensamento poltico no est no homem. O que
est em jogo o potico como cuidado com tudo o que real. Ele maior,
innitamente maior que o homem. E a vamos salvar, por exemplo, a
ecologia do esteretipo. Essa postura poltica, quase Hay que
endurecer, pero sin perder la ternura jams, o potico na citao do
Guevara. Quer dizer, para no perder a ternura, no pode ser o homem
no centro, uma vez que a ternura no ternura apenas quando se dirige
ao homem. Voc tem que se deixar enternecer pelo movimento de uma
folha, de uma rvore, isso o potico: o movimento da folha da rvore
ali pode enternecer e encantar, do mesmo modo como esse
enterneci-mento pode se dar com o ser humano, por que no? a que o
potico se instaura, e isso o Heidegger vai nos chamar para ver. A
importncia do Heidegger para a arte , exatamente, a de nos devolver
a experincia de nos enternecer com o movimento da folha, do
passarinho, sem
neo-bobismo.Enternecermesmo,comoapessoacapazdeveroriacho passar,
ver a catedral de Braslia, abrir um livro e no conseguir largar,
ouvir uma msica. Nesses momentos que o homem grande, quan-do o
homem capaz de fazer no outro esse tipo de apelo. Por isso, o
Heidegger um grande pensador. No porque ele escreveu trezentos
ecinquentamilensaios,formuloutantosmilconceitos.Masporque ele capaz
de fazer da losoa uma coisa encantadora, no sentido de que voc pode
se emocionar com ela. difcil voc se emocionar com
pensadoresdeoutraordem,aindaquesejaminnitamenterespeit-veis, porque
so grandes pensadores, como Kant, Hegel, Plato. Mas
claroquealgunstambmsocapazesdeemocionarcomopensa-mento, o que mais
difcil na losoa, porque ela deu as costas para o potico. E o
Heidegger, de alguma maneira, pe a losoa de frente para o potico. O
que digno de ser olhado esse momento de enternecimento, esse afeto
produzido. No exatamente uma tese que, racionalmente, articula tudo
que est presente. voc perceber que quando ele fala de ARTE-POLTICA
NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM38 Terceira Margem Rio de
Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 linguagem, ele est
falando de uma coisa simples, mas diclima para se voltar a
entender. A folha vai, faz um movimento, ela balana. Mas olha,
aquela folha no igual quela outra, ento o conceito genrico
defolhanodconta.A,temosquepensaraexperincia,comoela
realmentefazenternecer. Vocolhaparaumapaisagemenoprecisa
fazeraanlisedapaisagem,recortaremquadrantesedizerdesse ponto aqui
que emana o enternecimento; no, o jogo de cor, luz que nos
enternece. Ah,eoqueestrepresentado?Ora,oqueestrepresentadopo-dia no
estar l. Algum pega a cor e te faz enternecer com a cor. Por isso,
quando algum pensa que entendeu o Da Vinci e no entendeu o
Kandinsky,efetivamentenoentendeuoDa Vinci,porqueolhapara
aquilocomorepresentao.EoHeideggernoumpensadordare-presentao. Ele o
pensador que procura o isto. Esse isto no , na verdade, uma fuga do
real. o real posto, a res-posta. Esse isto ele nos convida a tentar
encontrar. Mas claro que voc no precisa encontrar isto,
necessariamente, no caminho do Heidegger. Voc tem o Rosa,
semdvida,oKant,comasdevidasdiferenas,oManoeldeBarros, Ceclia
Meireles. No Brasil, difcil voc achar isto na losoa. Voc
vaiencontraristonaliteratura.Porqu?Porquesomoslsofosde
segunda,mascriadoresdeprimeira.Nsnonosenternecemoscom nosso
pensamento, no sabemos onde ele est. Castro: O Emmanuel Carneiro
Leo seria uma referncia?Jardim: Seria, seria. O Emmanuel , sem
dvida, a grande
refern-ciadalosoabrasileira.Paramim,alosoabrasileirasedivideem
antes e depois dele. Claro que h outras guras importantes e
imponen-tes, como um Gerd Bornheim, um Jos Amrico Pessanha, um
sujeito extraordinrio, mas o Emmanuel antes e depois, para mim.
Como ns somosumtantotoscosdepensamento,nosevalorizaoEmmanuel como
essa joia rara por causa de questes menores, questes
poltico-acadmicas, de ignorncia profunda...Castro: Certamente, no o
mais celebrado.Jardim: Sem dvida, no . Mas no acho que haja uma
contradi-o necessria entre ser um grande pensador e no ser o mais
celebrado. Se fosse o mais celebrado, acho que talvez devssemos car
um pouco MANUEL ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA
E JUN SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010 39com o p atrs, alguma coisa estaria errada. Na
literatura, o mais cele-brado no o Rosa. Talvez seja dentro das
academias, mas no como celebridade, como um Paulo Coelho. No estou
nem discutindo o va-lor, nem conheo [Paulo Coelho], nunca li, no
tenho vontade. Pode ter coisas maravilhosas, estou falando da minha
ignorncia, qual tambm tenho direito, anal, a ignorncia tanta que
tambm tenho direito minha. Enm, tomara que o Emmanuel no seja o
mais celebrado; de al-guma maneira, se preserva o Emmanuel de
certas exposies. Mesmo sem ser o mais celebrado, ele incomoda uma
grandeza, tem gente que perde um tempo danado falando mal... Se
fosse o mais celebrado, coita-do dele! Quem puder ler e souber ler,
e quem puder entender e souber entender, vai entender.Lira: Voc
tambm professor da Faculdade de Educao. A
pergun-ta:comopolticaeeducaosepemcomoumdesaoparavoc,como professor?
Qual o desao para um ensino dos jovens, seja dos tempos de hoje ou
de sempre? O que cabe ao professor conduzir para fora, pensando na
etimologia de educar? a questo do humano, tambm: o que cabe ao
professor realizar no aluno, para o
aluno?Jardim:Euadquiricomotempoumcertocinismoeumacerta tica. Esse
cinismo e essa tica so cinismos e ticas um tanto simples, devo
dizer. Tento ser uma pessoa muito simples, na minha maneira de
pensar. Minha simplicidade, ou mesmo, para alguns, simploriedade,
se traduz da seguinte maneira: sob o ponto de vista do professor,
como voc perguntou, eu, Antonio Jardim, no salvo nada. A educao no
um processo de salvao. A j jogamos metade da educao pelo ralo,
porque a maior parte dos educadores acha que so salvadores, que vo
salvarooutrodaignorncia,daincincia;novejoassim.Noacho que seja
responsabilidade minha, nem de nenhum professor, operar esse
processodesalvao.Noutrodia,estavadandoaulanaFaculdadede
EducaoeumameninadeHistriadisseparamim:Professor,eu vou estudar
grego, porque percebi que, se eu estudar grego, a Histria vai
melhorar, vou conseguir entender melhor coisas que no entendo. E
esse testemunho me comovente, no porque eu acho que produzi isso,
no essa a minha questo. porque, de um modo ou de outro,
ARTE-POLTICA NA MARGEM: ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM40 Terceira
Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 a gente
fez, s vezes sem saber e, quando sem saber, melhor , o outro sair
do lugar cmodo e sentar em outro lugar. a melhor maneira de ser
professor. Primeiro, h um sentido tico profundo. O que um sentido
tico profundo? saber que voc faz um trabalho no qual voc acredita.
Isso precisa ser o ponto de partida. Se voc est fazendo um trabalho
em que voc no acredita, mas voc acha que faz porque faz bem ao
outro, no vaidarcerto,porquevocnovaioperarnada. Vocvaisedirigirao
outro sem saber o que o outro. L na UERJ eu tenho cada sala com
sessenta alunos, tenho trezentos alunos esse perodo, e no sei que
efeito umacoisaquefaloproduz.Podeproduzirtodososefeitos.Noseie no
quero saber, no tenho a necessidade de saber qual o efeito
produ-zido.Achocomoventenosentidoetimolgicodapalavramovente com. Eu
me movo com esse tipo de depoimento tanto quanto eu acho que essa
aluna se move quando diz para mim que vai fazer grego. No acho que
a salvao est em fazer grego, mas se isso se produziu nela e com
ela, est legal para mim, no preciso de muito mais para car
con-tente com a minha prtica docente. Se tivesse um desses por
semestre, eu caria bem feliz. No elogios do tipo voc timo, uma
maravilha, isso apenas juzo. Mas o que ela disse no me fez elogio
nenhum, mas to somente disse como foi legal, para ela, assistir
aula. No acho que haja projeto educacional renovador, nem hoje e
nem nunca. Toda vez que se tenta renovar, piora. Com mais duas
reformas, acabou a universidade. Ela no resiste, j que no adianta
reformar se voc vai otimizar o mesmo sistema. O processo
educacional melhor quando no sabe que est agindo. um thos que me
agrada. Quando tenho dvidas do que estou produzindo, co feliz. Se
estou muito certo do que ando produzindo, s vezes, pode ser que
esteja errado, e devo
estar.Achoquenosoucapazdefazernadagrandioso,talvezacoisa que mais
seja capaz de fazer, e no to grandiosa assim, a msica que fao, mais
que a aula que dou. No tenho muita expectativa de uma reforma pela
educao, nem umasalvaopelaeducao,masaEducaoprecisapensaroque educao,
e vale para a Educao tudo aquilo que falei com referncia Histria.
Ela no parou para pensar o que ela , porque ca o tempo MANUEL
ANTNIO DE CASTRO, ANDR LIRA, FBIO SANTANA PESSANHA E JUN
SHIMADATerceira Margem Rio de Janeiro Nmero 22 p. 15-42
janeiro/junho 2010
41todocomprocessosdeatualizaodemtodosemtodosdeinvesti-gao.OmtodoprincipaldaEducaoumpoucodiferentedoda
Histria: parece que ela existe para se perguntar como o professor
pode sair vivo de uma sala de aula. O professor tem medo da turma.
Ele no v o aluno como parceiro; v o aluno como adversrio. Ele no
pode ter medo do aluno, o aluno o nico parceiro em que ele pode
conar para brigar contra o modelo institucionalizado. O aluno tambm
esperneia e se bate contra o modelo. O aluno seu aliado, voc no
pode jogar o aluno fora. Claro que nem sempre, porque os seus
interesses tambm podem ser diferentes dos de seus alunos, no
podemos paternalistica-mente dizer que o aluno tem sempre razo. O
aluno outra coisa: ele meu aluno, no no sentido de sem luz, mas est
em outro percurso ain-da, que no inferior ao meu, mas outro jeito
que ele est buscando de lidar com a questo do conhecimento. Nem
sempre a nossa posio coincidente com a dos alunos. Voc no pode
faltar com o respeito ao aluno, nem ser desrespeitado por ele. O
aluno tem que entender que o seu processo com o conhecimento o seu,
e o dele o dele. H convivncia possvel? Perfeitamente. H
desinteligncia nisso? Pode haver, e h desinteligncias serissimas.
Mas o processo um cami-nho rduo, no acho que haja uma soluo
genrica. Tambm no acho que haja uma ao individual, como eu fao o
meu e que se dane. uma questo a ser discutida, mas a Educao no
discute essa questo
comoprecisavadiscutir.AEducaoquercriarummodeloquevai salvar a
educao. Enquanto ela quiser isso, ela vai ser a pior coisa do
mundo. Ela vai destroar ainda muita gente nesse caminho. No um
privilgio de faculdades de Educao, mas pode ocorrer tambm aqui [na
Faculdade de Letras] e em outros lugares.ARTE-POLTICA NA MARGEM:
ENTREVISTA COM ANTONIO JARDIM42 Terceira Margem Rio de Janeiro
Nmero 22 p. 15-42 janeiro/junho 2010 Resumo
EntrevistaconcedidapelomsicoAntonio Jardim, professor adjunto do
Depto. de Cin-ciadaLiteraturadaUFRJ.Comnuances,
modulaesedissonncias,aconversaver-sousobretemascomo:arelaoentrem-sicaepoltica,adistinoentrerealidadee
realizaesnombitodaverdade,aquesto dossuportesemmsicaeemliteratura,o
re-pensamentodahistriacomopresena,a educao, o pensamento de Marx,
as relaes de Heidegger com o nazismo.Palavras-chave Poltica; msica;
potica.Recebido para publicao em30/11/2009AbstractInterview with
the musician and professor of Teory of Literature Antonio Jardim
(UFRJ). Mostimportanttopics:relationsbetween music and politics;
distinctions between real-ity and realizations in the scope of
truth; dif-ferent medias, be them in music or literature; the
re-thinking of History as presence;
educa-tion;Marxsthought;relationsofHeidegger with Nazism.Keywords
Politics; music; poetic.Aceito em25/01/2010