PARA ALM DA OCUPAO DO TERRITRIO:
Notas Sobre o Discurso da Pacificao e Seus Crticos.
Marcos Barreira* Resumo: a pacificao de favelas cariocas tem sido aclamada por diversos meios de comunicao e formadores de opinio, mas ainda no passou por uma avaliao do seu significado no contexto mais amplo das transformaes urbanas do Rio de Janeiro. Atravs da opinio de moradores das favelas, lderes comunitrios, especialistas em segurana pblica e intelectuais, este artigo levanta o problema sobre a interpretao e, principalmente, a legitimao de um programa de segurana que no pode ser entendido isolado de outros processos em curso na cidade. Palavras-chave: favelas; segurana pblica; territrio; reestruturao urbana; UPPs.
BEYOND THE OCCUPATION OF TERRITORY: NOTES ON PACIFICATION SPEECH AND HIS CRITICS
Abstract: the pacification of the Rio de Janeiros slums has been acclaimed by several media groups and the trendsetters, but it did not passed yet for an evaluation of its meaning in the large context of the urban transformations. Through the opinions of the slums inhabitants, community leaders, public safety experts and intellectuals, this article puts in evidence the problem about the interpretation and, especially, about the security program validation that cannot be understood if it is isolated from other processes in course in Rio de Janeiro.. Keywords: slums; public security; territory; urban restructuring; UPPs
MS ALL DE LA "OCUPACION DEL TERRITORIO":
NOTAS SOBRE EL DISCURSO DE "PACIFICACIN" Y SUS CRTICOS. Resumen: la pacificacin de las favelas cariocas ha sido aclamado por muchos medios de comunicacin y lderes de opinin, pero se desconoce su importancia en el contexto ms amplio de las transformaciones urbanas de Ro de Janeiro. A travs de opinin de los residentes de las favelas, de los lderes comunitarios, expertos en seguridad y los intelectuales de diversas instituciones, el artculo
* Marcos Barreira gegrafo, mestre e doutor em Psicologia Social/UERJ.
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plantea problemas de interpretacin y, sobre todo, en la legitimacin de un programa de seguridad que no se puede aislar de otros procesos en curso en la ciudad. Palavras clave: favelas; seguridad pblica; territorio; reestructuracin urbana; UPPs.
O processo de pacificao das favelas cariocas, iniciado em 2008 e reforado pouco
depois com a vitria da candidatura da cidade do Rio de Janeiro para sediar dois
grandes eventos internacionais, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpadas de 2016,
tornou-se um consenso que unifica a poltica, as empresas de mdia, a Universidade,
setores privados, produtores culturais e, claro, a maioria dos seus moradores. Para
implantar a assim chamada pacificao, o governo do estado do Rio de Janeiro tem
sua disposio no apenas o aparato policial-militar das Unidades de Polcias
Pacificadoras (UPPs) e recursos oriundos de diversas fontes, mas conta ainda com o
apoio decisivo dos formuladores de intervenes pblicas, especialmente as de carter
social, que se desenvolvem a partir de iniciativas como o programa UPP Social
(coordenado pelo centro de pesquisas e planejamento da Prefeitura) e novos cursos
voltados para as demandas do mercado de segurana. Atravs da repercusso
miditica, as UPPs tornam-se, para o Rio, smbolos de um novo momento repleto de
possibilidades, e o Rio, um smbolo para o Pas. No plano cultural, um exemplo
inequvoco dessa articulao o filme 5x Pacificao, de 2012, realizado por jovens
cineastas moradores de favelas que tenta mostrar as UPPs a partir do ponto de vista
de quem vive o dia a dia das comunidades cariocas. O objetivo, diz um dos diretores,
causar uma reflexo para que todo mundo siga junto com a secretaria de
segurana.34 Toda essa mobilizao parte de um programa de recriao da imagem
da cidade que vai muito alm da retomada de territrios e envolve grandes
investimentos e processos de reestruturao urbana em larga escala (repletos de leis
de exceo) e que encontram sua justificativa quase sem rplica nos megaeventos,
que funcionam como indutores da acumulao privada.
34 Luciano Vidigal fala durante exibio no Cantagalo, disponvel em: http://www.youtube.com/watch?v=5VHFwSv-ltc. Acesso em: novembro de 2011.
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Do amlgama de intervenes estatais, negcios lucrativos e formas de representao
miditica e cultural dirigidas, resulta o desaparecimento quase total da opinio
pblica independente. As implicaes dessa nova realidade sobre os saberes
especializados e o que restou da reflexo propiciada pela forma esttica so
evidentes.35 Por isso, entre aqueles que abordam o processo de pacificao com
maior distanciamento, aparecem alguns posicionamentos dissonantes e at mesmo
conflitos abertos contra o pastiche miditico, mas em nenhum momento permitido
deixar de elogiar as ocupaes militares. A imprensa tambm se encarrega de colocar
dvidas sobre aspectos parciais da pacificao, de modo a no deixar dvidas sobre
o conjunto e sobre a sua prpria atuao na cobertura dos fatos. Esse
posicionamento dbio criou um padro interpretativo que oscila entre a exaltao da
ocupao militar e a denncia altaneira dos desvios ou imperfeies do policiamento
permanente nas favelas. Um argumento comum entre os defensores mais discretos
das prticas em curso o de que o Estado deve criar ou fortalecer uma esfera
pblica capaz de instaurar o dilogo entre os diferentes atores sociais envolvidos nas
ocupaes. Para alcanar tal meta, seria necessrio investir na criao de uma polcia
comunitria ou de aproximao que garantisse o exerccio pleno da cidadania aos
moradores das favelas ocupadas. O alvo das crticas quase sempre o esvaziamento
das iniciativas locais, obstrudas, de uma forma ou de outra, pela policializao dos
conflitos sociais. Fala-se, por exemplo, de como a estreita ligao entre UPP Social e a
unidade policial, alm das fortes relaes com o setor empresarial, desenha um
modelo novo de definio do social (FLEURY, 2012: 7). Na mesma linha de
argumentao, o socilogo Luiz Werneck Vianna fala de uma poltica social sem
poltica evidenciando, no modelo de ocupao militar, a ausncia de organizaes
livres da sociedade civil.36 Em outras abordagens, fica a impresso de que a
ambiguidade em questo seria menos um produto das interpretaes do que um dado
estrutural do prprio caso analisado. Sendo assim, a impreciso dos objetivos teria
produzido uma poltica de segurana que no se definiu pela guerra ao crime ou pela
35 E, desde h muito, se sabe que todos os especialistas so miditico-estatais, e s dessa forma so reconhecidos como especialistas (DEBORD, 1988: 31). 36 Conferncia: Luiz Werneck Vianna Sociedade, Poltica e Direito, disponvel em http://www.youtube.com/watch?v=Bh3nbe5i_2w. Acesso em: novembro de 2012.
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mudana da cultura policial. Em todo caso, ao menos como projeto as UPPs so, de
fato, uma novidade muito positiva, diz Luiz Antonio Machado da Silva, acrescentando
que seu sucesso depende de um acompanhamento menos eufrico, capaz de indicar
os riscos de seu desvirtuamento e gerar expectativas menos desmesuradas como as
atuais, em relao tanto a prazos e metas de pacificao quanto ao alcance do
programa (SILVA, 2012a). Apesar da crtica ao tom eufrico das coberturas
jornalsticas, cabe ressaltar que a mdia tem adotado uma postura idntica defendida
pelo professor, guardadas as diferenas de contedo, quando se move
alternadamente entre a ideologia da libertao, representada pelas bandeiras
hasteadas sobre territrios conquistados, e os discursos mais pragmticos, que cobram
das autoridades apenas a reduo imediata dos conflitos ou a limitao da ao das
quadrilhas nas favelas. Tambm no se pode negligenciar o fato de que a maior parte
das denncias sobre a migrao de crime aps a ocupao das favelas, bem como
sobre a atuao de grupos milicianos nas periferias da cidade, tm surgido antes na
imprensa do que no debate universitrio e tm at pautado muitas pesquisas que, no
final das contas, por modstia metodolgica, revelam-se sempre inconclusivas. De
qualquer forma, os dois casos demonstram que as intervenes militarizadas podem
ser contestadas em funo de algo que se cr ser um efeito secundrio, mas
permanecem legitimadas em funo dos seus resultados imediatos, ainda que as
finalidades da pacificao permaneam pouco claras.
Uma atitude inversa, que se coloca em inequvoca oposio militarizao, pode ser
observada nos comentrios mais diretamente identificados com posies de
esquerda, que tendem a enxergar as UPPs como instrumentos de criminalizao da
pobreza e ampliao das formas de controle social. Longe de representar um desvio
ou um efeito colateral das polticas oficiais, a policializao da vida cotidiana e dos
conflitos no interior das reas ocupadas seria a prpria finalidade das operaes
estatais. Na sequncia de um longo histrico de controle social penal das camadas
populares, as UPPs so denunciadas como dispositivos (no sentido foucaultiano dos
mecanismos de operao material do poder) de ocupao militar e como laboratrios
de novas tcnicas de administrao repressiva das populaes marginalizadas. Ainda
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nessa perspectiva, as UPPs se aproximariam mais de uma forma biopoltica de
gesto global da vida dos indivduos, como se pode verificar nas inmeras proibies,
regulamentaes e sistemas de vigilncia impostos aos moradores, do que das
experincias do chamado policiamento comunitrio amide evocado pelos meios
de comunicao para legitimar as ocupaes. Para Vera Malaguti,
o fato das UPPs estarem restritas ao espao de favelas, e de algumas favelas, j seria um indcio luminoso para desvendar o que o projeto esconde: a ocupao militar e verticalizada das reas de pobreza que se localizam em regies estratgicas aos eventos esportivos do capitalismo vdeo-financeiro (...) Com isso queremos frisar que as UPPs aprofundam as desigualdades e as segregaes socioespaciais no Rio de Janeiro [grifo meu] (MALAGUTI, 2012).
Com argumentao semelhante, Joana Moncau define as UPPs como mecanismos de
controle e condicionamento das classes populares, cuja caracterstica principal a
ocupao militar do territrio. Nesse sentido, no nenhuma espcie de polcia
comunitria, como alguns afirmam, mas uma clara ocupao militar (MONCAU,
2012). Aqui, enfim, caberia retomar o problema do esvaziamento das associaes
coletivas locais, porm no mais como um fenmeno secundrio e quase acidental,
mas como um projeto deliberado de monopolizao das iniciativas nos territrios
ocupados a fim de garantir a governamentalidade dos pobres e defender interesses
privados sob a fachada da libertao dos territrios. Ainda sobre a relao entre
ocupao militar e interesses econmicos, outra abordagem chega ao ponto de
afirmar que os espaos gigantescos de moradia dos pobres se tornaram grandes
jazidas de acumulao para o capitalismo cognitivo (COCCO, 2012), o que teria
transformado as favelas em atrativos espaos de consumo disputados por empresas
privadas e grupos mafiosos (milcias). Com isso, a militarizao do espao urbano, mais
identificada com a ocupao das Foras Armadas do que com a das UPPs embora
uma tenha aberto o caminho para a outra seria um elemento necessrio para
garantir essa nova fronteira da acumulao (COCCO, 2012).
Quando os agentes do Estado ocupam indefinidamente uma favela sem que isto
melhore o acesso aos direitos dos moradores, diz Michel Misse, a lgica da
territorializao que caracterizava a atuao do trfico de drogas prolongada, seja
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sob influncia policial ou das Foras Armadas. Sendo assim, as UPPs do continuidade
lgica de operar por territrios ao invs de romper a territorialidade e integrar os
diferentes espaos da cidade. O desafio da permanncia *das UPPs+ agora no ,
como se supe, o de levar polticas pblicas para os territrios, mas, por paradoxal
que parea, desterritorializ-los, isto , integr-los como bairros normalizados
cidade (MISSE, 2012). Por trs desta lgica est a idia autoritria de que a
comunidade pertence ao Estado, como mostra Marcelo Lopes de Souza, que tambm
desenvolve sua anlise a partir do olhar sobre o territrio: atravs da reconquista
expresso que evoca fervor patritico e fanatismo religioso , a pacificao instaura
um controle social cada vez maior sobre o espao urbano. J no estamos falando
apenas dos territrios da pobreza. A utilizao das Foras Armadas para finalidades de
controle, dando suporte s UPPs nos grandes complexos de favelas, resulta na
militarizao da questo urbana e na domesticao dos segmentos mais mobilizados
da sociedade (SOUZA, 2012). Tambm aqui vemos reproduzida a diferena entre a
perspectiva sociolgica, que capta os descaminhos de um processo considerado, em
seus aspectos gerais, como positivo ou necessrio, e a denncia do carter
essencialmente autoritrio da militarizao.
Outras anlises, igualmente focadas na crtica da ideologia da pacificao, tm
chamado a ateno para o carter negociado das intervenes policiais. O conjunto de
acordos oficiosos entre os executores da poltica de segurana do Estado e as redes do
trfico estaria reorganizando a estrutura do crime. Mais: o poder policial-militar
exercido atravs do policiamento permanente teria se constitudo como uma forma
embrionria de milcia institucionalizada, pois muitos policiais, conforme diversas
denncias noticiadas pela imprensa, tm se beneficiado de sua posio para criar
fontes de renda ilegais ligadas ao varejo de drogas ou aos servios alternativos que
proliferam nos espaos da pobreza.37
Alm dos discursos produzidos pela mdia e pelas pesquisas universitrias, outras
vozes tambm se fazem ouvir, manifestando perspectivas diferentes sobre o processo
de pacificao. Na fala das lideranas comunitrias, por exemplo, surgem diferenas
37 Para exemplos de interpretao que partem dessas denncias, ver Alves e Martins (ALVES, 2012; MARTINS, 2012).
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importantes em relao ao discurso dos especialistas. Em primeiro lugar, a
necessidade, por parte de tais lideranas, de administrar conflitos e de dar voz
comunidade no permite que as denncias de violncias e arbitrariedades sejam
colocadas em segundo plano. grande o sentimento, entre os moradores das favelas
ocupadas, de que o policiamento permanente no muda imediatamente a cultura e as
prticas policiais. Por outro lado, a diminuio dos conflitos e incurses policiais
violentas se reflete, na opinio majoritria dos moradores, em aprovao, e gera
expectativas favorveis nos locais onde o programa no foi implantado.38 Assim,
quanto ao posicionamento em relao s UPPs, a maioria das lideranas adota um
discurso de acomodao, que tenta colaborar e, ao mesmo tempo, cobrar das
autoridades as prometidas polticas sociais e econmicas de integrao. A
necessidade de polticas pblicas capazes de garantir a contrapartida social das
ocupaes surge como a reivindicao principal: ns queremos o poder pblico
presente, no s o brao armado do poder pblico, diz um lder comunitrio do
Morro da Mineira.39 Outro fator determinante para a incorporao parcial do discurso
oficial pelas lideranas a cooptao poltica, que ocorre no apenas por causa de
interesses individuais, mas porque as reivindicaes populares tendem a ganhar
legitimidade junto opinio pblica quando no confrontam a ideologia da
pacificao. Mesmo assim, no faltam vozes que pensam diferente, que no
enxergam muitas diferenas entre as UPPs e outras experincias de controle policial.
38 Uma pesquisa da FVG realizada em 2009 avaliou a opinio de moradores nas duas primeiras UPPs: No mnimo 95 de cada 100 entrevistados apoiaram a expanso dessa poltica para outras comunidades e 90% desejava que a iniciativa continuasse indefinidamente em sua regio (CANO, 2012: 6). Essa aprovao esmagadora deve ser relativizada de duas maneiras. Primeiro, porque ela se refere a duas UPPs que serviram de modelo: a do morro Dona Marta e a da Cidade de Deus. Em outros casos, o processo de instalao das UPPs apresenta outras caractersticas e enfrenta maiores dificuldades, alm de contar com menor apoio local. Em segundo lugar, a aprovao alta no elimina o sentimento negativo em relao aos policiais, que provocado por diferentes abusos cometidos nas favelas ocupadas. Alm disso, j se constatou que a presena do policiamento permanente aumenta as denncias de pequenos crimes nas reas ocupadas, mas inibe as denncias quando o alvo a prpria polcia o que mascara as estatsticas de corrupo e prticas violentas cometidas pelos policiais lotados nas UPPs. Quanto ao temor de que a pacificao acabe aps os grandes eventos que a cidade vai sediar, ele no se deve somente perspectiva de interrupo dos j escassos programas sociais, mas tambm e principalmente por causa da incerteza quanto a uma possvel volta dos traficantes armados. 39 Favela-bairro ficou pela metade na Mineira, disponvel em: http://www.fazendomedia.com/favela-bairro-ficou-pela-metade-na-mineira/. Acesso em novembro de 2012.
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o caso de Rumba Gabriel do Movimento Popular de Favela, para quem a UPP apenas
um novo rtulo, exigido pelo momento poltico atual, para mascarar velhas prticas
autoritrias.40 Tambm aparece na fala de algumas lideranas que adotam uma
posio crtica s UPPs a tese de que o programa seria uma fachada de segurana
para dar uma resposta imediata aos investidores do projeto olmpico, o que no se
coaduna com as crticas que descrevem um reforo do controle social sobre a pobreza.
Alm isso, importante compreender o conjunto das favelas ocupadas como espaos
heterogneos, nos quais convivem diferentes camadas sociais, ou diferenas entra as
partes altas, menos integradas cidade, e as partes baixas, entre o comrcio
formal e o informal. Portanto, no se pode esperar uma reao uniforme da populao
local, tendo em vista que, junto com a ocupao policial-militar, ocorrem tambm
processos de regulamentao dos servios e atividades, alm da proibio de eventos
culturais responsveis pela gerao de muitos empregos e da ampliao do fluxo de
pessoas que vm de fora das comunidades.
Entre os agentes do Estado, nova dualidade: nas falas dos comandantes da PM
encontramos apenas um resumo da verso doutrinria do projeto, sem que elas
difiram das formulaes da secretaria de segurana. Os discursos oficiais vo sendo
elaborados de acordo com as demandas mais urgentes. As UPPs, que eram apenas um
experimento localizado, ganharam corpo e apoio poltico e miditico quando comeou
a crescer a ateno internacional sobre a cidade do Rio de Janeiro. Em seguida, o
programa tornou-se instrumento decisivo do governo do estado na disputa poltica no
Rio de Janeiro. A pacificao da cidade foi enaltecida pela cobertura miditica
durante a ocupao das favelas do Complexo do Alemo e da Penha, no final de 2010
(embora o episdio tenha sido protagonizado pelas Foras Armadas, sem respaldo
legal, em uma operao imprevista, mas que resultava das intervenes da Polcia
Militar em outras favelas), e as UPPs foram apresentadas como territrios da paz,
tornando-se uma marca de exportao para outras cidades. Porm, o que os polticos
40 Entrevista ao autor realizada em outubro de 2012. Rumba destaca ainda a continuidade entre as UPPs e o GPAE (Grupamento de Policiamento em reas Especiais), criado em 1999 mas logo encerrado. Michel Misse descreve a estratgia do GPAE como algo muito parecido com a atual, na qual territrios seriam primeiramente conquistados dos traficantes e depois controlados por foras especiais localizadas fisicamente na rea (MISSE, 2012).
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no dizem e a maioria dos especialistas finge no perceber pode ser constatado a
partir do ponto de vista da corporao policial, ainda que se trate apenas de uma
formulao tosca. Em contraste com as declaraes oficiais, prevalece entre os
policiais a idia de que as UPPs visam apenas segurana da Copa e das Olimpadas,
alm de se configurar como um programa eleitoreiro para tranqilizar a classe mdia
(CANO, 2012: 8-9). Igualmente relevante o surgimento de manifestaes de clara
hostilidade ao programa por parte dos policiais, como a clivagem no interior dos
batalhes entre os PMs mais antigos e os recrutas formados para atuar nas UPPs, que
no so reconhecidos pelos primeiros como verdadeiros policiais. Alm disso, uma
pesquisa com soldados lotados nas unidades pacificadoras mostra que 70% deles
preferiam realizar outro tipo de policiamento (CANO, 2012: 8-9). No entanto,
pronunciamentos mais recentes do secretrio de
segurana, Jos Mariano Beltrame, indicam uma
espcie de inflexo realista: no pretendemos
usar o projeto em todas as favelas, e isso tambm
no o remdio definitivo para os nossos
problemas, disse o secretrio em um momento de
crise gerado a partir das evidncias de que os
conflitos entre traficantes prosseguiam na periferia
da cidade.41 Isso significa que, contrariando muitas
expectativas, o policiamento permanente no deve
se converter em uma poltica de segurana para o
conjunto da cidade, o que ocorre menos por causa da carncia de recursos do que pela
prpria natureza do programa. O modelo de policiamento que vem sendo adotado nas
ocupaes exige cinco vezes mais PMs por morador do que o patrulhamento
convencional e, em muitos casos, conta ainda com instalaes provisrias e condies
de trabalho bastante precrias. Mas isso no explica tudo. O fato que as UPPs foram
concebidas a partir de uma perspectiva que v as favelas ocupadas como espaos de
ilegalidade incrustados na cidade. As UPPs no podem se generalizar porque s so
41 Rocinha e Vidigal esto entre as 40 favelas que o Estado quer pacificar, disponvel em. http://www.rocinha.org/noticias/view.asp?id=818. Acesso em novembro de 2012.
os discursos oficiais vo
sendo elaborados de
acordo com as demandas
mais urgentes. As UPPs,
que eram apenas um
experimento localizado,
ganharam corpo e apoio
poltico quando comeou
a crescer a ateno
internacional sobre a
cidade do Rio de Janeiro
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possveis onde existe um ntido contraste entre a favela e a cidade formal, o que
elucida sua implementao nas reas centrais e nos bairros das camadas mais
abastadas (alm das principais vias de acesso e circulao da cidade) em detrimento
das reas perifricas, que contam com os maiores ndices de violncia.
Esse quadro nos coloca diante de uma dificuldade que anterior questo da
estratgia de segurana adotada pelo Estado e que as coberturas jornalsticas
costumam se esforar para nos fazer esquecer: as ocupaes das favelas no foram
precedidas por nenhuma reforma das instituies policiais. Helio Luz, ex-chefe da
Polcia do Rio de Janeiro entre 1995 e 1997, diz que o fato de colocarem recrutas para
montar as UPPs revela o descontrole e a corrupo nas polcias.42 Por sua vez, Luiz
Eduardo Soares, secretrio de segurana pblica entre 1999 e 2000, que tambm
considera as UPPs uma continuao dos mutires pela paz e do GPAE, afirma que as
virtudes do programa no tero futuro se as polcias no forem profundamente
transformadas (SOARES, 2012). Mas a UPP no avana nesse sentido: o treinamento
diferenciado no diminuiu a truculncia e o autoritarismo, mantendo a desconfiana
mtua entre moradores e policiais. Se as operaes com altos ndices de mortalidade
diminuram, a convivncia forada com um aparato repressivo fortemente armado e
que exerce um controle permanente sobre a vida cotidiana das favelas produziu novos
atritos. Desde 2009, o Estado ampliou o nmero de policiais, mas a formao
diferenciada tem esbarrado nos problemas da urgncia e da falta de recursos, o que
resulta na eliminao de critrios de seleo e na reduo do tempo de formao dos
recrutas. Em 2000, os policiais do GPAE receberam treinamento especial, incluindo
instrues sobre legislao, direitos humanos e abordagem de pessoas. Mesmo assim,
cerca de 70% dos policiais empregados no grupamento foram transferidos por desvios
de conduta.
Embora existam semelhanas entre o GPAE e as ocupaes atuais, no faltam
diferenas, especialmente no que diz respeito amplitude das operaes e ao apoio
42 Eu no entendo por que colocam recrutas para montar UPPs. Eles dizem que, na mdia, so uns 200 recrutas com um oficial. Nas 14 UPPs, d algo em torno de 2,8 mil recrutas, 3 mil recrutas. Ento, 3 mil recrutas esto resolvendo a situao da criminalidade no Rio? Tem um contingente de 40 mil policiais, mais 10 mil na Polcia Civil, que no resolveram o problema da criminalidade. isso que esto dizendo? Se isso, esto confirmando que o problema corrupo (LUZ: 2012).
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poltico e miditico, ambos indissociveis do projeto olmpico. Existe tambm uma
significativa diferena de concepo. Ao contrrio das UPPs, o programa anterior no
previa a manuteno de grandes contingentes policiais nos locais ocupados. Essa
diferena reflete uma preocupao maior com a reduo dos ndices de criminalidade
violenta do que com o controle de territrios estratgicos. De qualquer forma, o
programa no foi adiante por falta de apoio poltico e em funo das denncias
envolvendo o problema para o qual as UPPs tambm no apresentam soluo: a
corrupo das polcias.
Ao descrever esse conjunto de anlises, opinies e posicionamentos a respeito da
pacificao, pretendi colocar em evidncia as implicaes deste processo e o amplo
conjunto de questes que ele suscita. Em primeiro lugar, interessa o modo como a
problemtica da segurana pblica se articula com aspectos centrais da dinmica da
cidade. Em um texto anterior, Cidade Olmpica: sobre o nexo entre reestruturao
urbana e violncia na cidade do Rio de Janeiro, persegui as pistas dessa articulao.43
Nele, argumentei que a lgica da pacificao possui trs aspectos, todos
relacionados entre si, de modo que nenhum deles pode ser plenamente
compreendidos se isolado dos demais. Em primeiro lugar, trata-se de uma imagem de
segurana a qual a cidade precisa estar associada: mesmo tendo nascido como um
experimento relativamente autnomo, o programa das UPPs s ganhou fora quando
comeou a fazer parte de um projeto mais abrangente de reestruturao urbana. Esse
projeto reproduz uma longa tradio de grandes reformas, inaugurada pela
administrao de Pereira Passos no incio do sculo XX, que tem sua razo de ser no
na melhoria das condies de vida da populao, mas na necessidade de modificar a
imagem da cidade. Como j foi dito, coube s novas unidades de policiamento
permanente diminuir o sentimento de insegurana da populao atravs da ocupao
de pontos estratgicos da cidade. Tambm a imagem do Estado e a legitimidade de
suas intervenes estavam em questo, tendo em vista os nmeros alarmantes de
supostos confrontos letais envolvendo policiais. Com a sinalizao de uma mudana
43 O artigo, ainda indito, est em vias de publicao pela Editora Boitempo na coletnea intitulada At o ltimo homem: vises cariocas da administrao armada da vida social.
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das formas de enfrentamento da criminalidade que logrou, a despeito da manuteno
dos altos ndices de violncia, a construo de um consenso a respeito dos xitos no
seu combate, a cidade do Rio pde voltar a ser um cenrio atrativo para investimentos
de grande porte. Nesse sentido, o ufanismo televisivo parte integrante e
indispensvel da lgica da pacificao. nesse contexto que os chamados
megaeventos esportivos surgem como os grandes catalisadores, que devem atrair
parceiros privados e mobilizar grande parte da populao local em torno da
renovao da cidade. Para isso, os organizadores dos eventos, que no deixaram de
inspecionar as primeiras UPPs antes que a sede dos jogos fosse escolhida, contam com
o favorecimento do poder pblico e com uma srie de medidas de exceo capazes de,
em pouco tempo, produzir a adequao da cidade ao projeto olmpico. aqui que
entra o segundo aspecto da pacificao: as UPPs participam ativamente na
consolidao de um novo modelo de cidade empreendedora. Isso acontece em funo
da escolha das reas privilegiadas, que devem se tornar mais seguras para o conjunto
de investimentos e na produo de novas segregaes socioespaciais pois, juntamente
com as UPPs e, em parte, atravs delas , a poltica de remoes tem ganhado novo
flego. Por sua vez, a valorizao imobiliria decorrente no s das ocupaes, mas do
conjunto de transformaes urbanas atuais, no deve ser considerada um simples
epifenmeno. Atravs de inmeras declaraes oficiais, podemos constatar que as
reas a serem ocupadas so escolhidas tambm em funo das possibilidades de
valorizao patrimonial. Por fim, as UPPs tm servido para garantir, nas favelas
ocupadas, a integrao de servios e atividades informais a todo um conjunto de novas
articulaes pela via econmica, cujos exemplos mais expressivos so um banco
popular na Cidade de Deus e a privatizao dos servios na zona porturia sob a
vigilncia da UPP da Providncia. Esse ltimo dado nos coloca diante de mais um
aspecto da pacificao, que o fortalecimento do controle social j mencionado.
Cabe apenas ressaltar que, ao contrrio da viso ingnua de alguns crticos, no
estamos diante de um programa passageiro, mas de uma forma adensada de controle
que modifica a dinmica da cidade e, nas favelas ocupadas, altera tambm a relao
entre o Estado e os segmentos mais pobres da populao. Por outro lado, a cidade do
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Rio de Janeiro assistiu, nos ltimos dez anos, ascenso de novas formas de regulao
social armada, que tem se intensificado e no por acaso nas reas negligenciadas
pelo programa de pacificao. Em meio a esse processo contraditrio, as periferias
que atraem a migrao do trfico, e para as quais j se disse abertamente que as UPPs
no so uma soluo, continuam a ser as principais vtimas da poltica extra-oficial de
execues e desaparecimentos.
As favelas sempre constituram relaes de cooperao em seu espao interno, a partir
das quais surgiu um discurso um tanto idealizado sobre as comunidades. No plano
da economia urbana, elas so parte de um circuito inferior que se relaciona com o
conjunto das atividades presentes na cidade (SANTOS, 2004). Porm, no plano social,
so abundantes as medidas de urgncia e de sobrevivncia que, mesmo sem qualquer
perspectiva de mudana social, no assumem a forma de relaes mercantis. A
integrao das favelas ocupadas ocorre de forma muito parcial ou seletiva. A via da
formalizao das atividades no tem contrapartida em termos de projetos sociais ou
de organizao coletiva. De um lado, ela agrava as segregaes atravs da elevao
dos custos gerais da reproduo das moradias e, de outro, estimula, nos espaos
marginalizados, as mesmas relaes presentes no restante da cidade. Assim, seus
moradores se parecem cada vez mais com indivduos atomizados que podem apenas
trocar servios entre si. As poucas formas de organizao social existentes ficam
comprimidas entre as presses econmicas e um sistema de vigilncia permanente.
Por isso, no acidental que as UPPs obstruam as iniciativas coletivas. Se o auge dos
movimentos comunitrios na dcada de 1980 estava associado ao reconhecimento dos
direitos da populao pobre, a conjuntura inaugurada na dcada seguinte, que pode
ser caracterizada como uma viragem poltica de carter neoliberal, foi dominada
pelas idias fixas do mercado e da ordem urbana. Assim, a idia de integrao, antes
associada s demandas coletivas que s podiam ser atendidas atravs de polticas
universalistas, foi sendo ressignificada at se tornar uma espcie de privatizao da
vida cotidiana por meio do consumo individual.44
44 O ex-prefeito Csar Maia, que protestou contra a privatizao das ruas pelo comrcio ambulante, foi um dos principais idelogos dessa virada que culminou no projeto da Cidade Olmpica. No por acaso, o tema da ordem urbana e da militarizao da segurana tambm faziam parte da sua agenda
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Duas questes surgem a partir desse quadro. Alm da necessidade de compreender a
transformao da poltica de segurana em um momento decisivo da renovao da
imagem da cidade, surge o desafio de articular a problemtica da violncia com o
desenvolvimento da crise urbana.
No que diz respeito relao entre violncia e reestruturao urbana, podemos dizer,
muito resumidamente, que o problema principal o tratamento monogrfico ou
unilateral dispensado a temas que, pela sua prpria natureza e dinmica, s podem ser
compreendidos como partes de uma totalidade concreta. Para um determinado
campo de investigao terica que se debrua sobre a problemtica da segurana,
os elementos negligenciados so a cidade e o urbano. Isso ocorre, por exemplo,
quando algumas anlises apontam que a limitao, por assim dizer, espacial, do
programa das UPPs, decorre exclusivamente da
falta de recursos para a expanso e manuteno de
novas unidades. O que desaparece nesse tipo de
comentrio a produo de segregaes, bem
como a reconfigurao territorial do crime quer
se trate dos grupos de traficantes que abandonam
as reas mais nobres da cidade, quer das milcias,
que ocupam as reas descuidadas pelo Estado.
Em outros momentos, a dimenso espacial volta
cena, mas adquire um sentido mais retrico que analtico. Assim, podemos ler que as
UPPs so uma proposta de poltica de segurana pblica especfica para reas da
desde o inicio dos anos 1990. Mas, no que diz respeito s polticas urbanas, essa inflexo deve ser relativizada. Fruto da conjuntura de crise estrutural, o governo de Leonel Brizola, no incio da dcada de 1980, j teve como caracterstica a impossibilidade de realizar investimentos pblicos em grande escala para a reforma urbana. Diante do problema da habitao popular, o governo foi forado a conduzi-lo oficialmente nos moldes do que j vinha sendo feito espontaneamente pela populao pobre da cidade. A atuao do governo e das administraes municipais, consideradas as duas dcadas em questo, consistiu em aceitar, legalizar e promover algumas melhorias nas favelas tudo isso em meio a um giro culturalista que substituiu as idias de planejamento global da cidade pela revalorizao do espao comunitrio e das solues criativas dos moradores das favelas. Sobre isso ver o texto de Maurilio Lima Botelho, Crise urbana no Rio de Janeiro: favelizao e empreendedorismo dos pobres, a ser publicado tambm na coletnea indicada acima, pela Editora Boitempo.
No se trata de ocupar os
territrios da pobreza,
mas de controlar a massa
de pessoas pobres que
permanece em
aglomerados de pobreza
no interior ou em contato
com os territrios nos
quais a riqueza circula.
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cidade que podem ser reunidas sob o nome de territrios da pobreza.45 Se o que est
em questo a ocupao dos territrios da pobreza, como foi afirmado, ento
convm perguntar por que motivo as regies mais pobres da cidade (sem falar nos
municpios limtrofes, ainda mais pobres e mais violentos) so, precisamente, os locais
que permanecem fora do alcance direto da pacificao? que o problema parece estar
colocado de modo invertido. No se trata de ocupar os territrios da pobreza, mas
de controlar a massa de pessoas pobres que permanece em aglomerados de pobreza
no interior ou em contato com os territrios nos quais a riqueza circula. Em todo caso,
a questo de saber por que, afinal de contas, a lgica da pacificao privilegia as
reas nobres respondida pelo mesmo autor, agora no do ngulo do especialista,
mas da razo cnica:
considero possvel que o simples deslocamento das atividades criminais para
regies mais recnditas da cidade, associado discrio no uso de armas pelos
criminosos que permanecem atuando nas reas nobres, venha a reduzir o
sentimento generalizado de medo e insegurana... (SILVA, 2012b: 3).
Outro campo de investigao que nos interessa mais diretamente o das pesquisas
urbanas. Tambm aqui se verifica o mesmo desencontro. Mesmo alguns
pesquisadores que fazem parte do debate sobre o novo modelo de cidade em
gestao, como Raquel Rolnik relatora da ONU para o direito moradia adequada
, enxergam as UPPs somente como condicionalidades, sem relao direta com os
megaeventos.46 Essa questo tambm foi alvo da reflexo de um Comit Popular da
Copa e das Olimpadas que rene, entre outros, integrantes da Central de Movimentos
Populares, da Justia Global, do Observatrio das Metrpoles e do Frum Popular de
Oramento do Rio de Janeiro. O Comit produziu o dossi Megaeventos e violao
dos direitos humanos no Rio de Janeiro, com o qual compartilho uma srie de pontos
45 Luiz A. M. da Silva, Pacificao ou controle autoritrio, entrevista disponvel em: http://comunidadesegura.org.br/pt-br/MATERIA-upps-pacificacao-ou-controle-autoritario. Acesso em novembro de 2012. 46 J esto sendo aprovadas vrias excepcionalidades para a Copa do Mundo, diz Raquel Rolnik, em entrevista concedida revista Caros Amigos de janeiro de 2011, disponvel em: http://carosamigos.terra.com.br/index/index.php/cotidiano/1218-entrevista-raquel-rolnik. Acesso em novembro de 2012.
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de vista e que tem, desde j, o mrito de colocar em foco a relao entre as UPPs e a
lgica do empreendedorismo urbano. Para o coletivo de autores,
o que fica claro no caso do Rio de Janeiro que o projeto de atrao de investimentos to propagandeado pelo poder pblico municipal e estadual com a realizao da Copa do Mundo de futebol de 2014 e dos Jogos Olmpicos de 2016 tem como um componente importante a expulso dos pobres das reas valorizadas ou que sero contempladas com investimentos pblicos. Outra faceta dessa poltica a criao das UPPs (...) tendo em vista que no possvel deslocar todos os pobres das reas nobres da cidade *grifo meu+. (DOSSI, 2012: 8).
Contudo, ao analisar mais de perto o tema da segurana pblica, o dossi afirma, em
patente contradio com o prprio diagnstico acima citado, que as UPPs, definidas
como um programa inspirado no conceito de policiamento comunitrio, que tem
como estratgia a busca de uma parceria entre a populao e as instituies de
segurana, trazem uma srie de benefcios para os moradores, incluindo a insero
no mercado formal e a reduo dos homicdios, o que, na opinio dos autores, seria
contrabalanado apenas pela crescente especulao imobiliria nas favelas ocupadas,
provocando a expulso dos mais pobres (DOSSI, 2012: 51). Ao no enfatizar as
diferenciaes econmicas no interior das comunidades ocupadas, os autores so
levados, em outra contradio, a considerar a mercantilizao das favelas como um
benefcio para os moradores. Ao mesmo tempo em que o Comit denuncia a
substituio de uma poltica de segurana eficaz pela produo de uma imagem de
segurana voltada para a atrao de investidores, o seu documento considera que o
principal instrumento dessa representao ideolgica de uma cidade segura para o
capital, as UPPs, uma importante conquista em relao s polticas anteriores, e
termina as consideraes sobre a poltica de segurana cobrando a extenso do
programa para o conjunto da cidade, pois h outras centenas de comunidades que
ainda no receberam as UPPs (DOSSI, 2012: 52).47 Alm disso, o documento, que
47 Caso semelhante ao do Dossi aqui analisado o do deputado estadual Marcelo Freixo, do PSOL, que, durante a campanha para a prefeitura, desenvolveu um discurso bastante articulado sobre o modelo de cidade baseado na lgica do mercado, mas evitou confrontar diretamente o programa das UPPs. Foi mrito inegvel de sua campanha (e de sua ao parlamentar) deslocar o foco do debate para o que poderamos chamar de lado obscuro da pacificao, ou seja, o crescimento alarmante dos grupos milicianos nas periferias da cidade. A dificuldade de interpretar as UPPs como parte do modelo de cidade denunciado pela campanha de Freixo no deve ser vista apenas como uma incapacidade de
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caracteriza vagamente as UPPs como inspiradas no policiamento comunitrio e,
assim, coloca-se em uma posio ainda mais frgil que a das abordagens sociolgicas
descritas acima , tambm as considera como parte de um programa meramente
instrumental a servio dos interesses envolvidos na organizao dos grandes eventos:
claro que esse investimento em segurana faz parte de um projeto maior de
reterritorializao urbana e de controle social, que seriam elementos chaves dos
megaeventos. (DOSSI, 2012: 51). Aqui seria necessrio inverter o argumento para
mostrar como que grandes eventos de porte internacional tornaram-se,
especialmente a partir da experincia de Barcelona, no incio dos anos 1990,
elementos importantes para a concepo de um projeto maior de reestruturao
urbana orientado pelos princpios da gesto empresarial. Se a lgica da pacificao
no pode ser explicada a partir de uma hierarquia dedutiva que a converta em simples
instrumento de interesses econmicos, mas exige o desvelamento das articulaes
entre a crise urbana e as intervenes no mbito da segurana, tampouco cabe
atribuir aos megaeventos a capacidade de produzir, por si s, uma reconfigurao da
dinmica territorial de uma cidade. De qualquer forma, a imagem desenhada pelo
dossi permanece, malgr lui, essencialmente correta para caracterizar um modelo de
cidade segregada que est sendo produzida aqui e agora:
Depois da Copa e das Olimpadas, corre-se o risco de se acordar numa cidade onde os que consomem, vivem e lucram no mercado formal das partes mais nobres da cidade podem ter acesso quase instantneo segurana, enquanto as camadas sociais menos favorecidas vivem sob a vigilncia de um regime militar altamente armado e treinado para defender os interesses mercantis (DOSSI, 2012: 54).
Quanto segunda questo, cabe, antes de tudo, reconhecer que se trata de um tema
difcil, quase no abordado por aqueles que se dedicam questo urbana e que
ultrapassa os limites destas notas. preciso considerar que a expanso do modelo do
trfico de drogas baseado no controle territorial armado no compreensvel sem
referncia ao processo de esvaziamento econmico da cidade a partir da segunda
compreenso da lgica da pacificao. Mais do que isso, ela expressa a contradio que se verifica no interior das camadas populares, que se consideram ao mesmo tempo libertadas e oprimidas pelo policiamento permanente. Em todo caso, Freixo no deixou de observar, em vrias intervenes, as diferenas entre o programa das UPPs e os princpios do policiamento comunitrio.
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metade da dcada de 1970.48 No caso do Rio de Janeiro, tambm no se pode
esquecer que essa situao de urbanizao sem crescimento econmico resultou no
modelo atual de ocupao das periferias e na favelizao. O que se viu a partir de
ento foi no apenas o domnio territorial de partes da cidade pelas faces de
traficantes armados mas, igualmente, a proliferao dos famigerados grupos de
extermnio, que constituam uma espantosa soluo privada encontrada por
comerciantes e polticos locais para suprir a ausncia do aparato policial nas regies
carentes da cidade. Ao mesmo tempo, a corrupo policial se tornava decisiva no
fortalecimento das redes do trfico de drogas e armamentos pesados. Nas favelas, os
mtodos de tortura abolidos pelos rituais punitivos modernos, que incluem
esquartejamentos e pessoas queimadas ainda com vida dentro de pneus, foram
reproduzidas nos tribunais do trfico em longas expiaes pblicas que bem
poderiam ilustrar a ostentao dos suplcios descrita por FOUCAULT (1987) em seu
livro sobre o nascimento da priso. Esse quadro de barbrie que acompanha todo o
perodo de crescimento da pobreza urbana alimentou o que foi oportunamente
classificado como uma guerra particular entre traficantes e policiais, sem falar nos
conflitos permanentes entre as faces do trfico. O Rio de Janeiro viu o antigo status
de Cidade Maravilhosa desaparecer em manchetes de jornais que descreviam a
cidade como um cenrio de guerra e decadncia econmica. Assim, a fora das armas
imps relaes brutais que, de to freqentes, foram naturalizadas: incurses
violentas nos morros, prticas sistemticas de tortura nas delegacias e unidades
prisionais e a faccionalizao de territrios perifricos.
Nessa atmosfera de decomposio social que surgem as primeiras tentativas de
reverso da crise, o que inclui a presena recorrente das Foras Armadas nas ruas da
cidade. Mas essa reverso, idealizada desde o incio dos anos 1990 e que culmina na
48 O que ocorreu num quadro mais abrangente de endividamento estatal e de esgotamento dos modelos perifricos de desenvolvimento: Planejamento urbano, poltica de transporte de massa, programa habitacional, zoneamento espacial, todos os principais pontos de uma poltica urbana ampla desapareceram com a crise geral do Estado e da economia desenvolvimentista. Foi nesse contexto que o chamado problema favela explodiu, j que essas reas de precariedade urbana e habitacional continuaram a crescer aceleradamente, apesar de o pas estar passando por um freio demogrfico, isto , prximo da ltima fase da transio populacional (Trecho do artigo de Maurilio Lima Botelho ainda indito, Crise urbana no Rio de Janeiro: favelizao e empreendedorismo dos pobres).
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realizao do projeto da Cidade Olmpica, no ocorreu a partir de uma mudana que
revertesse o quadro de pobreza e desigualdade. Ao contrrio, ela deixou os
mecanismos de excluso social intactos. O novo urbanismo est atrelado a processos
concentradores de riqueza. Ele reduz a gesto pblica criao de contextos
favorveis aos interesses privados e refora a segurana patrimonial e a vigilncia
privada contra as estratgias de sobrevivncia dos pobres. Com a imagem de
segurana produzida pelas UPPs possvel voltar a fazer da cidade um lugar atrativo
para investimentos reunidos em poucas mos, que so capazes de absorver os
segmentos mais qualificados da mo-de-obra, mas deixando em segundo plano os
servios bsicos e as condies materiais de reproduo da maior parte da populao.
Esse padro de investimento sem planejamento, guiado unicamente pelos lucros da
especulao sobre o preo dos terrenos, estimulou a poltica de remoo dos pobres,
que retornou com fora nos ltimos anos. Em funo do tipo de investimento
recebido, a cidade do Rio tem permanecido alheia at mesmo reduo da pobreza
que se verifica no cenrio nacional com a ampliao do consumo na base da pirmide
social. Na ltima dcada, de fato, ocorreu no s um aumento (em termos absolutos e
relativos) da favelizao, o que indica um aumento da pobreza, mas a cidade vem se
tornando cada vez mais cara e desigual. No h, portanto, como falar em novas
fronteiras para a acumulao. Antes, o capitalismo de crdito popular e
endividamento deveria ser visto como sintoma dos limites do crescimento impostos
por uma crise estrutural que tem se mostrado irreversvel. Os cenrios da Cidade
Olmpica, da qual as UPPs so parte essencial, tm devolvido aos cariocas a auto-
estima, enquanto as periferias se convertem em espaos de atuao dos poderes
mafiosos. Aqui, a crise urbana torna-se central para compreender as formas de
regulao social armada e a economia de pilhagem. A atuao dos grupos milicianos
nas brechas de um poder estatal, cuja capacidade de interveno global solapada
devido aos altos custos de manuteno do aparato, menos uma estratgia
consciente de poder do que um momento dessa crise.49 A crescente reduo da
49 As abordagens que enxergam o desenvolvimento das milcias ou a criminalizao dos pobres menos como um efeito do que como o objetivo das intervenes na segurana pblica acabam promovendo apenas uma inverso do ponto de vista segundo o qual tais fenmenos seriam efeitos secundrios das
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lucratividade do trfico, que expressa a mesma situao porm do ngulo de uma
economia ilegal, ampliou substancialmente o quadro de crise ao levar as diferentes
faces a prticas cada vez mais irracionais. Se em algum momento era possvel ver a
opo pelo trfico como fruto da racionalidade econmica, o morticnio verificado
nos ltimos anos especialmente entre os jovens das favelas e periferias torna
ridculo esse tipo de clculo supostamente racional, do mesmo modo que as novas
drogas baratas introduzidas j no contexto de crise no so capazes de criar um novo
mercado para o trfico, podendo, apenas, ampliar o espetculo ps-urbano de
desagregao social.
A Cidade Olmpica torna-se cada vez mais dual: da mesma forma que a Reforma
Passos acabou com a promiscuidade entre camadas sociais na antiga rea central,
dando origem a favelas e ocupaes suburbanas irregulares, a reestruturao pela qual
a cidade vem passando nas duas ltimas dcadas (e, com maior nfase, desde o incio
das obras de preparao para os eventos esportivos internacionais) ampliou as
segregaes e as formas violentas de administrao da pobreza. Essa estratgia
urbana, comum em metrpoles de pases perifricos, faz parte de uma economia
bsica de distribuio dos espaos, que implica a construo de dois territrios dentro
de uma mesma sociedade (MENEGAT, 2006: 105).50 A cidade que pretendia repetir o
estratgias de segurana do Estado. Com a referida inverso corre-se o risco de perder a dimenso estrutural do problema, que se v reduzida intencionalidade dos atores sociais. Dito de outro modo: um tanto absurdo afirmar que as estruturas mafiosas e a vigilncia nas favelas so objetivos inconfessos que as polticas de Estado devem mascarar. Mesmo quando os agentes do Estado fabricam um inimigo como o crime organizado ou eles prprios se organizam de forma ilegal , o fazem atravs de relaes de poder e interesses imediatos e no a servio de um projeto poltico. A ampliao dos mecanismos de controle sobre a populao pobre no , portanto, nem um efeito secundrio nem uma meta a ser alcanada e sim um segundo aspecto, igualmente importante, das novas formas de administrao da pobreza que se impe aos governos quando os mecanismos de integrao social perdem fora. E as milcias, por sua vez, so a expresso mais clara dessa integrao falhada. 50 Mas no se pode dizer que tal processo siga fielmente a uma estratgia de classe ou que seja determinado por um processo de espacializao da dinmica de classes como sustenta o autor, correspondendo, antes, a uma diferenciao entre os segmentos da populao que se encontram em uma situao de maior integrao lgica econmica e o segmento de no-rentveis, que tambm podem ser definidos como uma massa de desclassificados. Em outras palavras: a espacializao dos conflitos sociais no redutvel ao conflito de classes. claro que essa diferenciao entre as elites econmicas e as camadas mdias, de um lado, e a populao pobre, de outro, no exclui o fato de que o grande volume de investimentos e obras pblicas mobiliza um contingente assalariado de baixa qualificao e mal remunerado, mas que se torna parcialmente integrado, ajudando a produzir uma diferenciao no interior das camadas populares.
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aparente sucesso de Barcelona que, nesse meio tempo, se tornou mais do que
duvidoso conseguiu apenas reproduzir algumas das lies de Medelln, cidade que
inspirou uma srie de aspectos do nosso modelo de pacificao, desde a concepo
geral das ocupaes permanentes at detalhes como os telefricos, parques literrios
e acanhados projetos sociais idealizados para disputar os jovens com as redes do
trfico. Mas a maior lio, que, aparentemente, confirmava uma idia repetida de
forma dogmtica pela maioria dos especialistas, que a reduo da pobreza no
uma condio para enfrentar o problema da criminalidade. Em todo caso, o que j
acostumamos a chamar de enfrentamento da violncia no significa uma menor
necessidade de regulao armada da sociedade e, muito menos, uma reduo
substancial da criminalidade. Trata-se apenas de criar um impacto positivo com o qual
se espera garantir um salto nos negcios. Tambm aqui Medelln nos oferece um
exemplo: a pacificao, que varreu os grupos insurgentes das favelas, conseguiu
substituir os conflitos e massacres cometidos por paramilitares por assassinatos
seletivos de lideranas comunitrias. Com a desmobilizao desses grupos, o centro da
cidade finalmente se tornou um lugar seguro para os negcios, incluindo o boom
imobilirio financiado com o dinheiro das drogas. Enquanto isso, milcias civis
infiltradas por traficantes e ex-paramilitares se convertiam em grupos legalizados de
vigilncia privada. No foram poucos os que viram a articulao entre negcios ilcitos,
corrupo poltica e paz armada como um bom exemplo. Ser uma nova lio de
Medelln?
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