ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM ENTRE O JARDIM BARROCO FRANCÊS E O JARDIM ROMÂNTICO INGLÊS NO SÉCULO XVIII MARTINS, CHRISTIANE CHAGAS “ A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos namoros de esquinas. ” Nos jardins. Ferreira Gullar Toda a matéria transformada e produzida pelo ser humano contém dentro de si aspectos da cultura que a produziu. A esta matéria os arqueólogos convencionam chamar de cultura material/artefato. O produto construído pelo homem é “contaminado” pelos elementos sociais, políticos, econômicos, históricos, artísticos, antropológicos, filosóficos, ideológicos e simbólicos, que formam e constituem uma determinada sociedade. Este produto que se materializa como produção humana, além de receber influências da sociedade que o construiu, também está imbuído do contexto social que o formou. O artefato como produto é a consequência de um processo cultural cujo princípio estabelece uma relação entre o indivíduo e a matéria. Este produto é possuidor de uma lógica encadeada de ideias, que foi refletida, planejada, escolhida, executada e finalmente concretizada como símbolo desta lógica contextual. Para a Arqueologia da Paisagem, a paisagem também é entendida como um artefato, posto que é construída culturalmente e como tal, a paisagem/artefato, é o resultado intencional da cultura. Considerada como “produto desta ação, tem o potencial de transformar-se em uma ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentos” dentro da sociedade. (Apud. ZARANKIN, 2012. In: HODDER, 1982, SHANKS e TILLEY, 1981, MILLER, 1987). Se quisermos compreender melhor uma sociedade devemos estudar seus artefatos, mas se quisermos compreender melhor sobre artefatos, devemos estudar a sociedade que o produziu.
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ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM ENTRE O JARDIM BARROCO … · de comunicação não-verbal e sua leitura como fonte de informação social se transforma ... natural. A paisagem ... se em
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ARQUEOLOGIA DA PAISAGEM ENTRE O JARDIM BARROCO
FRANCÊS E O JARDIM ROMÂNTICO INGLÊS NO SÉCULO XVIII
MARTINS, CHRISTIANE CHAGAS
“ A história humana não se desenrola apenas nos campos de batalha e nos gabinetes
presidenciais. Ela se desenrola também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas
ruas de subúrbio, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos namoros de esquinas. ”
Nos jardins.
Ferreira Gullar
Toda a matéria transformada e produzida pelo ser humano contém dentro de si aspectos da
cultura que a produziu. A esta matéria os arqueólogos convencionam chamar de cultura
material/artefato. O produto construído pelo homem é “contaminado” pelos elementos
sociais, políticos, econômicos, históricos, artísticos, antropológicos, filosóficos, ideológicos e
simbólicos, que formam e constituem uma determinada sociedade. Este produto que se
materializa como produção humana, além de receber influências da sociedade que o
construiu, também está imbuído do contexto social que o formou. O artefato como produto é
a consequência de um processo cultural cujo princípio estabelece uma relação entre o
indivíduo e a matéria. Este produto é possuidor de uma lógica encadeada de ideias, que foi
refletida, planejada, escolhida, executada e finalmente concretizada como símbolo desta
lógica contextual. Para a Arqueologia da Paisagem, a paisagem também é entendida como
um artefato, posto que é construída culturalmente e como tal, a paisagem/artefato, é o
resultado intencional da cultura. Considerada como “produto desta ação, tem o potencial de
transformar-se em uma ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentos”
dentro da sociedade. (Apud. ZARANKIN, 2012. In: HODDER, 1982, SHANKS e TILLEY,
1981, MILLER, 1987). Se quisermos compreender melhor uma sociedade devemos estudar
seus artefatos, mas se quisermos compreender melhor sobre artefatos, devemos estudar a
sociedade que o produziu.
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A materialização da paisagem converte, elementos naturais, em objetos culturais, ou
melhor, em artefatos, pois “recebe uma forma dada pelo homem, “ uma forma humana”,
porque encerra em si um conteúdo social e não apenas natural.”(FUNARI, 2003)
Entendendo a paisagem, como um artefato social que carrega consigo características do
seu contexto, uma identidade; a paisagem torna-se assim, subjetivada, percebida sob o
olhar de um sujeito, passível à interpretações, produto de uma relação entre homem e
natureza e portanto, humanizada. Desta forma, a Arqueologia da Paisagem compreende
que a paisagem está imbuída de símbolos e significados e “ pode ser considerada um tipo
de comunicação não-verbal e sua leitura como fonte de informação social se transforma no
desafio do arqueólogo. ”(ZARANKIN, 2012. In. MONKS,1992, FLETCHER, 1989,
ZARANKIN, 1999, 2002)
“Por outro lado, e como reverso dessa “humanização” do universo material, ocorre uma falsa
percepção de que as relações sociais humanas sejam naturais, e não históricas e sociais. ”
(FUNARI, 2003, p.37). Contudo é necessário que a paisagem ao ser estudada deva ser
antes de tudo contextualizada dentro do momento histórico, que lhe conferiu sentido, e
nunca analisada isoladamente, para não incorrermos no pernicioso erro de tratá-la como
mera decorrência do mundo natural. A paisagem é construída, portanto é um artefato,
produto de ação social, repleta de significados e potencialmente transmissora e receptora de
um discurso sem palavras, porém não mudo.
“A noção de paisagem no Ocidente surgiu associada ao desenvolvimento da
pintura”(ALVES, 2001) constituindo-se através de significados múltiplos e diferentes
sentidos à partir do séc. XVI em diante. A criação da ideia de paisagem no séc. XVI de uma
certa maneira, está profundamente ligada as transformações ocorridas também com as
noções de homem, natureza e espaço pela qual as sociedades da Idade Média e Moderna
se apropriaram.
Durante a Idade Média, estas noções encontraram-se sob uma forte influência coercitiva de
dogmas religiosos, comandados pela igreja católica. O mundo medieval com uma sociedade
tripartiti (aqueles que oravam, guerreavam e trabalhava), hierarquizada e sacralizada pela
ordem católica romana só entra em decadência diante das “ameaçadoras” descobertas
científicas do Renascimento como: a descoberta de um novo mundo, a retomada cultural às
obras clássicas e as novas visões religiosas que protestavam contra a visão católica
vigente.
Contudo, dentre todas estas transformações; talvez a que tenha “iniciado” ou proporcionado,
a grande possibilidade da mudança efetiva na maneira de como o homem vê/entende o
mundo que o cerca (espaço, o lugar e a paisagem), foi heliocentrismo.
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Quando pensamos nas transformações da relação do homem com a natureza, podemos
destaca a relevância da redescoberta de Galileu Galilei sobre o heliocentrismo. Entretanto, a
maior importância desta ideia, talvez não seja a de que a Terra não é o centro do universo,
mas, sobretudo por ter descontruído um espaço medieval finito e fechado para a construção
do conhecimento de um espaço moderno aberto e infinito. Esta mudança de
posicionamento, alterou a percepção do homem com a natureza e sua relação com o
espaço ocupado e consequentemente com a paisagem.
Segundo Foucault (1984), “pode-se dizer, para retraçar muito grosseiramente esta história
do espaço que ele era na idade média um conjunto hierarquizado de lugares: lugares
sagrados e profanos; lugares protegidos e sem defesa, etc. Toda esta hierarquia, esta
oposição, este entrecruzamento de lugares era o que se poderiam chamar, grosseiramente
de espaço medieval; espaço de localização. Esses espaços iniciaram-se com Galileu Galilei;
pois o verdadeiro escândalo da sua obra, não foi ter redescoberto que a Terra girava em
torno do Sol (1609), mas ter construído um espaço infinito e infinitamente aberto. De tal
forma que o lugar da idade média se encontrava, de uma certa maneira dissolvido. O lugar
de uma coisa não era mais do que um ponto em movimento. Dito de outra forma, a partir de
Galileu, séc. XVII, a noção de Extensão toma lugar da localização.”
Esta nova visão sobre um espaço que antes era de localização, para um espaço, de
extensão, desconstruiu a antiga visão medieval, sobre a relação do homem com a natureza,
em favor da nova construção renascentista de extensão do espaço que ampliou a visão
sobre o mundo natural, agora, infinito. O lugar de uma coisa ou pessoa, no mundo, dependia
agora da extensão que esta encontrava -se em relação as outras. De acordo com sua
posição, sua percepção sobre o espaço podia ser diferente, podia mudar, dependendo de
onde o sujeito estivesse observando a coisa ou o outro. Imprimindo uma nova ordem
espacial e configurando uma outra identidade para a paisagem.
Ao pensarmos as cidades como paisagens sociais, pensamos na transformação do mundo
natural em um mundo artificial, em busca de mais conforto e segurança. Todavia, as
mudanças da cidade medieval para a cidade renascentista, cartesiana, ordenada e
disciplinada não se deu de forma paulatina nem abrangente, mas, se deu de forma pontual e
em pequenas escalas. Não houve imperativamente, um remodelamento do espaço da
cidade medieval para uma transformação sob os auspícios de uma ordem renascentista.
Como afirma MUMFORD (1998, p.379) “não existe cidade renascentista. Há, contudo,
trechos da ordem renascentista, espaços abertos e clarificações que modificaram belamente
a estrutura da cidade medieval”, cujos padrões de ruas estreitas e sinuosas, continuaram
em grande parte da cidade e estas permaneceram rodeadas por muralhas.
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Mas, embora a arquitetura renascentista não tenha modificado como um todo a cidade
medieval, sob o signo de uma nova ordem; no que tange as ideias e conceitos sobre o
homem, o renascimento transformou, absolutamente, a visão estreita e medieval que se
tinha do lugar do homem na natureza e sua relação com a mesma.
A releitura de Protágoras, “o homem passa a ser a medida de todas as coisas” sob os
auspícios da razão renascentista é apoteose do homem ; consequentemente sua relação
com o mundo natural, antes de estranhamento, temor e insegurança incontrolável,
gradativamente vai se transformando para uma relação de controle e domínio, apesar do
ainda temeroso além-mar e do desconhecido Novo Mundo.
Depois disto, o mundo natural, através dos avanços tecnológicos e científicos, passa a ter a
possibilidade de controle e transformação ampliados. A “natureza” não cerca e amedronta
mais o homem como o fazia na cidade medieval. Este vai além do seus muros e fortalezas,
ele vai além-mar e busca dominá-la e explorá-la; pois apesar de ainda pertencer a um
“espaço” de origem divina e por tal sacralizada, agora, há a dúvida sobre sua verdadeira
origem e lei que a ordenam. Seriam leis divinas ou físicas. Seria regida pela religião ou
razão. Gera uma dúvida. “A razão e a não razão constitui para a cultura ocidental a
dimensão de sua originalidade.” (FOUCAULT, 1984)
Mas, “a dúvida cartesiana desfaz o encanto dos sentidos e atravessa as paisagens do
sonho sempre guiadas pela luz das coisas verdadeiras (...) de fato, penso que o que se
buscou foi um método, uma maneira racional, razoável e econômica de exercer o poder (...)
buscou-se uma maneira discreta e econômica, e é essa economia do poder que chamamos
de humanidade. ” (Ibidem FOUCAULT, 1984)
Podemos dizer, talvez, que o humanismo, séc.XVII, estruturou mais ideias e ideologias do
que propriamente suas representações no espaço. Contudo a ordem barroca que sucedeu
estas ideias, reabilitou o poder real e engendrou o Estado como nação, imprimindo como
estratégia representativa, a construção da paisagem barroca. Este “outro lugar”, a paisagem
monárquica era construída para lhe conferir poder e supremacia divina, sob o signo da
uniforme ordenação.
O espaço, o homem, a natureza e as relações com a paisagem já não eram mais os
mesmos; eram entendidos diferentemente que antes e agora cumpriam uma função definida
e determinada de domínio e representatividade deste homem ou do poder absoluto dentro
deste espaço/paisagem.
Poderíamos dizer que com todas estas transformações e mudanças de mentalidade da
ordem barroca: a percepção e o entendimento de espaço também mudou; assim como foi
construído um outro entendimento deste espaço. À partir do surgimento dos Estados
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nacionais enquanto conceito de país e do poder Absolutista como representante divino
deste Estado, surge a noção de um outro espaço, a paisagem, ligado etimologicamente a
própria ideia da construção de país.
“Do latim pagus, (...) francês pays e daqui paysan e paysage. Em italiano, com a mesma
origem resultou paesaggio e em espanhol paisage. Nas línguas germânicas, em inglês e em
alemão, de uma raiz comum, land, com significado idêntico ao de pagus, e também de
região e país, ser formam landscape e landschaft.” (AMARAL, 2001, p.75) “ A utilização de
landscape data de finais do séc. XVI ou princípios do séc. XVII, quando a influência de
pintores paisagistas holandeses encorajou o renascimento e redefinição de “paisagem” para
referir as representaçãoes de cenas, sobretudo as rurais, e depois de panoramas, em geral,
ou um espaço particular.”(Apud. AMARAL, 2001, p.75. In: PRESTON JAMES << The
terminology of regional description >>, Amals, Association of American Geographers, 1934,
24, pp. 78-86).
“A noção da paisagem no Ocidente surgiu associada ao desenvolvimento da arte da pintura.
”(ALVES, 2001, p.67) (...) “A origem da palavra é atribuída ao poeta flamão Jean Molinet
que, em 1493, a utilizou com o sentido de “quadro representando uma região.” (Apud.
ALVES. In: ROGER, 1997)
“O termo paisagem, durante quase dois séculos, não foi utilizado para designar um fato
geográfico, mas o produto da arte de representar numa tela um dado acontecimento
enquadrado por uma dada realidade geográfica. De acordo com a interpretação de
Alexandre Humboldt, a paisagem foi uma criação do homem urbanizado do norte da
Europa.” (Apud. ALVES. In: BUESCU, 1990 p.67)
“Em contrapartida, escolas de pintura da paisagem foram-se afirmando em Flandres (séc.
XV), na Holanda (séc. XVII), na Inglaterra do (séc. XVIII e XIX) e na França (séc. XIX). As
obras saídas destas escolas laicizaram a paisagem, libertando-a de qualquer referência
religiosa; todavia, fizeram-no sob a influência da representação do espaço desenvolvida
pelos pintores italianos.” (Apud. ALVES. In: ROGER 1997, p.68). Entretanto a paisagem não
pode ser limitada apenas como uma faceta de materialização do espaço, posto que é uma
representação concreta, mas sobretudo social e parte ativa de uma dinâmica subjetivada.
“Na medida em que a paisagem exprime as facetas sensoriais dos territórios em domínios
tão variados como a afetividade, o imaginário e a aprendizagem sociocultural, a paisagem
tem de ser construída como um sistema indentitário e nunca poderá ser redutível à
materialidade do mundo físico.” (ALVES, 2001, p.74).
“A paisagem deve ser assumida como um dos elementos centrais do sistema cultural, uma
espécie de montagem ordenada de objetos (materiais e imateriais) que atua como um
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sistema de significado através do qual o sistema social é comunicado, reproduzido,
experimentado e explorado (Apud. ALVES, In: DUCAN, 1988).
Como um dos elementos que compõe o sistema contextual da ordem barroca, a paisagem
do séc. XVI/XVII se constitui de forma laica, tendo além das representações pictóricas, o
jardim paisagístico/séc.XVIII; como um de seus exemplos.
“O jardim torna-se rapidamente um cenário, uma vitrine, (...) conjuntos limitados há muito
tempo chamados de cidades fazem referências a práticas urbanas infinitas; no segundo
caso, um urbano ilimitado refere-se a práticas fragmentadas e limitadas. De uma condição
urbana a outra, as relações do limite e da ausência de limites, do finito e do infinito se
transformaram radicalmente. É por isto que a história dos jardins, inevitavelmente ligada as
“culturas” (China, Japão, Oriente) que precedem os “novos mundos” vai da concepção do
jardim como um microcosmo do infinito; como espelho do poder ou como uma projeção da
casa (...) é lembrar que o jardim e a paisagem estão relacionados à culturas políticas
europeias e outras, a representação do limite, do privado e do público. (...) O jardim é um
palco: privativo ou público ele não é um simples pedaço de Terra e de Cultivo, mas um
conjunto de sinais “em representação”, um jardim faz Mundo. ” (CORBOU, 2011, p.9-10)
Doravante, vamos evocar o jardim barroco, com: suas formas simétricas, majestosas, sua
natureza controlada, seus modelos naturais trabalhados na arte da topiaria, seus caminhos
alinhados, sua perspectiva angular de observador e objeto observado, de evocação
mitológica, com esculturas greco-romanas, arquitetura “clássica”, parterres, organgeries,
pelouses, corbeilles, bosques, tapis vert, espelhos d’água; ou seja, a criação de uma nova
ordem na projeção do jardim ocidental.
“Durante muito tempo, essa foi a concepção francesa (...) de um jardim voltado para o
poder, o Estado real. Ela começou no Rei Sol, no absolutismo (séc. XVII), no criador de
jardins André Le Notre, e para ela o poder ser reflete num jardim que pode ter as dimensões
de um parque real. (...) se o jardim é um espelho real, a República francesa marcará seus
parques, seus jardins, suas praças haussmanianas (séc. XIX) com o selo dos símbolos que
exprimem o poder público. O jardim é um espelho real, cujo grande canal segue os reflexos,
mas que também pode ser um serviço público do Estado.” (Ibidem CORBOU, 2011, p.11).
“Um jardim não é uma parte da natureza. É a ordenação da natureza pelo homem, de
acordo com uma orientação que reflete suas próprias teorias e preocupações. (...) No século
XVII, os jardins consistiam em padrões rigidamente ordenados de plantas, veredas e
estatutária decorativa. Faziam parte do conjunto arquitetônico de um palácio com o de
Versailles”. (Jones, 1982, p.56). O jardim, é um produto social, uma construção artificial
onde se privilegia elementos escolhidos pelo seu proprietário.
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O jardim de Versailles como exemplo supremo de paisagem barroca francesa projeta em
seus contornos cartesianos e geometrizados, uma perspectiva que tem sua origem
“renascentista”, mas cujo gradiente hierárquico, de elevação dos níveis espaciais é
apropriado pelo barroco e usado para promover no visitante um espetáculo teatralizante de
experiências e emoções espantosas.
A construção horizontal e a vertical do jardim em níveis diferenciados e que se elevam
mediante sua proximidade como palácio, propicia ao visitante uma expectativa própria de
cenários teatrais. Esta expectativa o conduz a uma gradação ampliada de dimensões
diferem, através de um conjunto de formas, função e paisagismo, cuja formatação e controle
da natureza e do espaço leva o usuário para uma experiência de ascensão, onde o ponto
máximo desta emoção, ou seja, o seu clímax, consiste em deparar-se com elementos
majestosos, grandiosos e de absoluto fantasia, como: fontes que esguicham água, bosques,
parterres, pelouses, espelhos d’água, etc.; todos em escalas monumentais. Exibindo e
glorificando do poder do rei em dominar a natureza e o espaço. De forma
impressionantemente exuberante em seus contornos, direções, escalas, dimensões,
funções e perspectiva estavam a serviço de sua majestade, legitimando seu poder, exibindo
seu fausto, ostentando a exuberância e principalmente controlando, delineando e
imprimindo uma nova moda, cultura, maneiras e comportamentos sociais na sociedade do
Apesar de ser modificada pelos comportamentos humanos que a constroem, ela também
contribui para delinear e modificar comportamentos sociais estabelecidos, na medida que
representa esforços conscientes e ou inconscientes de sua manipulação pelo homem.
Constituindo-se em um potencial dispositivo para regular a conduta social e contribuindo
para a compreensão da subjetivação destas relações.
RUBERTON (1989) mostrou que, “mas do que um simples espelho da organização das
coisas, a paisagem é uma força ativa na criação da ordem social, legitimando-a e trazendo
mudanças para ela.”
BEAUDRY (1991, p. 174) declara que “a cultura material [paisagem/artefato] não é vista
somente como um produto passivo do comportamento econômico, mas como um
componente instrumental de ações simbólicas. E o fato dos comportamentos serem
efêmeros torna os traços matérias ainda muito mais interessantes.”
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“Desta maneira, a cultura material (paisagem/jardim) produto da ação social, tem o potencial
de transformar-se em ferramenta para entender as pessoas e seus comportamentos.”
(HODDER, 1982).
MEINING (1979) já dizia “se nós queremos compreender a nós mesmos, faremos sito bem,
quando olharmos em torno da nossa própria paisagem.” Lewis (1979) “ a paisagem humana
é a nossa autobiografia verbal, refletindo as nossas aspirações, valores e até nossos
medos; tangíveis de forma visível através dos registros culturais, que temos escrito na
paisagem, estando sujeitos a serem mais verdadeiros do que muitas autobiografias, por
estarmos com menos auto-consciência, sobre como nos auto-descrevemos. ”
A transformação da paisagem, de acordo com ISAAC (1982) e MARK LEONE (1984), pode
ser considerada uma forma de legitimação através da qual a sociedade hierarquizada se
reproduz e se representa. ”
IENTSCH ainda afirma que, “como um símbolo, os jardins são capazes de conter múltiplos
significados. ” Eles possuem multidimensões que uma análise puramente funcional ou
tecnológica não é capaz de revelar.
Entendendo-os como uma criação simbólica da realidade, torna-se um tanto explicito os
motivos de negação da burguesia pelo modelo anterior de paisagem. Mas fica uma
pergunta! Por que esta classe apesar de assemelhar-se com o modelo oriental, não
escolheu copiá-lo integralmente, mas preferiu construir uma estética própria?
Talvez, em princípio, a busca por uma identidade original que a representasse esteja na
gênese da questão. A burguesia, diferentemente da aristocracia, constituiu sua riqueza sob
égide do trabalho e sob signo do sol. Ideia está repudiada pela outra classe. Entretanto, este
estrato social não possuía “estirpe” e sua ancestralidade não está relacionada com a
antiguidade através do tempo. Sua origem funda-se numa outra “economia de poder”
(FOUCAULT, 1984), no tempo capital que oscila, para cima ou para baixo, de acordo com a
variação do mercado. Este último, possuindo a capacidade de transformar um homem pobre
em rico, quase, da noite para o dia, independentemente da sua origem hierárquica.
Com toda esta liberdade de transitação individual dentro deste espaço, nunca antes vivido; a
ascendente burguesia, desejava ser representada dentro da paisagem social, com a mesma
liberdade ou fluidez que experimentava no mundo político e econômico. Assim, rejeita as
formas rígidas e geometrizadas da paisagem barroca, que representava uma sociedade
igualmente rígida e repleta de tradições aristocráticas, em favor de uma paisagem fluida,
onde estas definições não ficam bem marcadas. Como também não é bem definido as
origens de nascimento da classe burguesa.
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A organicidade do espaço romântico em tentativa de negação do barroco é clara. A intenção
de dissolver no espaço a interferência humana, naturalizando a paisagem através de sua
sinuosidade e “rocailles”, dissipa em suas formas as diferenças espaciais, antes bem
definidas. Os espaços assemelhados à natureza não demonstram barreiras ou
impedimentos visuais, pelo contrário, eles circulam, cheios de possibilidades a cada
movimento do corpo ou do olhar. Estes outros contornos ampliam a compatibilidade com a
burguesia que, tacitamente, dissimula suas diferenças sociais através da naturalização da
sua própria aparência simbólica; tão variável quanto é variável as formas naturalizadas do
jardim.
As diversas possibilidades espaciais, conciliam-se com as propícias diversidades sociais, há
muitos tempo negada, engendrando identificação com espaços abertos, orgânicos e fluidos.
Dentro deste contexto, não há lugar para uma perspectiva retilínea. Inversamente, projeta-
se uma perspectiva difusa. Uma “ilusão” de diversas possibilidades, de mudança de olhar a
cada curva do caminho, assimétrico, mas que simboliza e legitima a descontínua origem do
poder burguês.
A mesma ordem que preterirá o barroco, escolherá elementos que denotem transitabilidade
para formar a composição interna da paisagem. Como tal a escolha de plantas cuja
aparência transmita a mensagem de mudança, intemperidade e intermitência serão
privilegiadas. Os vegetais, em sua maioria, cujas raízes não possuem profundidades
arraigadas à terra; cujos troncos são estreitos por não serem marcados pelos anéis do
tempo e cujas folham caducam, demonstram, a olhos vistos, o quanto a ordem natural da
vida e sua estruturação pode ser transitória e mutável de acordo com a sua natureza
circunstancial e dinâmica.
A vegetação barroca, “topiarizada”, dominada, disciplinada, além de suas árvores de troncos
grossos e raízes profundas, como carvalhos, que evidenciam perenidade, temporalidade e
simbolizam ancestralidade, são, de certa medida, refutadas do jardim romântico. Assim
como, analogamente no Brasil, a “alteza” da palmeira imperial, simbolicamente aristocrática
e marcadora de distinção social é representante simbólico de uma ideologia de
hereditariedade e continuidade. E como tal estes elementos não serão apropriados, nem
empoderados pela burguesia como seus símbolos identitários. Pelo contrário, são preteridos
por ela, em troca daqueles que não possuem suas origens ligadas à terra, nem a
continuidade hierárquica. Oriunda do esforço individual, cujas origens são variadas e
recentes, além de transitivas como nos fazem lembrar as árvores caducifólias, com a
possibilidade de se transformar a depender das circunstâncias temporais.
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Nesta paisagem/jardim seus sinuosos caminhos nos conduzem a outras formas de ver e ser
visto. A outras mobilidades, físicas, sensoriais, perceptivas e sociais antes não
experimentadas. Nos conduzem a liberdade de fruição, de circulação, mas contudo sem
estarmos realmente livres, pois o jardim é uma “natureza” artificializada. Diferentes
possibilidades se abrem e se fecham, a cada curva do sinuoso caminho, “nuances de um
limite fugidio” (ANDRADE, 2016), mas sempre recordam a cada subjetivação sobre a
inconstância que a mobilidade circulante traz. O jardim romântico não se pretende sagrado
como o oriental, aliás deste modelo apropria-se apenas das suas formas, pois a ideologia
constitutiva representará a materializante ordem capitalista.
Revela uma outra ortopedia, diferente da anterior, mas não menos pretenciosa. Sugere uma
outra disciplina do movimento, da percepção, da subjetivação. Constrói uma nova
gramática não verbal entre os elementos e uma outra relação com o indivíduo e com a
natureza. Tão coercitiva e dinâmica quanto a anterior, mas apenas menos evidente, ou
melhor, mais naturalizada, cuja ideologia subjacente se legitima, confere-lhe identidade
ainda que se torne sutil ao nosso olhar.
“Toda ordem social tende a naturalizar de diferentes formas e com diferentes objetivos a sua
própria arbitrariedade. A naturalização é um processo representacional através do qual a
natureza é redefinida nos termos desta nova natureza.” (BERMINGHAM, 1994, p.245, Apud,
XAVIER,2000)
Ambas as ordens (Barroco/monárquico e o Romântico/burguês) utilizaram-se desta
estratégia de “naturalização” da paisagem como dispositivos de poder, através de um
discurso não-verbal, materializado no mundo físico. A necessidade representacional de
ambas ordens evidencia a paisagem como um artefato ou um “Superartefato” (MARK
LEONE, 1988) potencialmente eficiente para ordenar e disciplinar não só o mundo físico,
mas também o universo social. Sobretudo por meio da relação que a sociedade confere à
paisagem e a paisagem ativa na sociedade.
Compreender, identificar, interpretar e revelar estas transformações é o grande desafio da
interdisciplinar Arqueologia da Paisagem.
Refereências
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