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Aquém do Aquém do Aquém do Aquém do Aquém do Quarto de despejo Quarto de despejo Quarto de despejo Quarto de despejo Quarto de despejo: a palavra : a palavra : a palavra : a palavra : a palavra de Carolina Maria de Jesus nos de Carolina Maria de Jesus nos de Carolina Maria de Jesus nos de Carolina Maria de Jesus nos de Carolina Maria de Jesus nos manuscritos de seu diário manuscritos de seu diário manuscritos de seu diário manuscritos de seu diário manuscritos de seu diário Elzira Divina Perpétua 1. Os cadernos de Carolina Este trabalho é parte da tese de doutorado intitulada Traços de Caro- lina de Jesus: gênese, tradução e recepção de Quarto de despejo, defendida em setembro de 2002 na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais. A pesquisa empreendida nascera da comprovação da inexistência de trabalho acadêmico sobre a escritora da Favela do Canindé, que nos anos 60 viu seu nome projetado em todo o mundo graças à publicação de Quarto de despejo: diário de uma favelada, que denuncia as condições de miséria subumana em que vivia. Uma das lacunas existentes a respeito de uma obra que tomara tal di- mensão dizia respeito ao obscurecimento da participação de Audálio Dantas no livro de Carolina de Jesus. Como explica no prefácio de Quarto de despe- jo, o jornalista, que antecipou o livro escrevendo reportagens periódicas sobre a diarista antes do lançamento, foi o responsável pela tarefa de dati- lografar e ordenar os manuscritos para publicação. Tamanha é a força ex- pressiva da linguagem de Carolina que o organizador do diário foi acusa- do, em várias ocasiões depois do lançamento, de ter forjado o diário e até de ter inventado a existência de Carolina. O estudo dos manuscritos de Quarto de despejo ofereceu-nos a oportunidade de trazer à tona essa discus- são, e ouvir um pouco mais da voz de escritora. O cotejo dos originais com a obra publicada nos revela de que modo Carolina de Jesus se estruturou como sujeito discursivo em seus cadernos, num perfil ideologicamente dis- tinto daquele em que ela se transformou com a publicação do livro. A leitura dos manuscritos dos diários de Carolina de Jesus a que tive- mos acesso corresponde ao exame dos registros de nove cadernos com numeração não seqüencial (1, 2, 6, 11, 16, 19, 21, 24 e “primeiro”), que cobrem os anos de 1958 a 1961 e abrangem parte do que foi publicado em Quarto de despejo e em Casa de alvenaria: diário de uma ex-favelada. Seu segundo diário publicado, por conter parte do histórico do primeiro, serviu de suporte na montagem de informações a respeito de Quarto de Despejo. Os manuscritos, incomparavelmente mais volumosos que os diários
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Aquém Do Quarto de Despejo

Dec 16, 2015

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Laísa Marra

artigo de Elzira Divina Perpétua sobre Carolina Maria de Jesus.
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  • Aqum do Aqum do Aqum do Aqum do Aqum do Quarto de despejoQuarto de despejoQuarto de despejoQuarto de despejoQuarto de despejo: a palavra: a palavra: a palavra: a palavra: a palavrade Carolina Maria de Jesus nosde Carolina Maria de Jesus nosde Carolina Maria de Jesus nosde Carolina Maria de Jesus nosde Carolina Maria de Jesus nos

    manuscritos de seu diriomanuscritos de seu diriomanuscritos de seu diriomanuscritos de seu diriomanuscritos de seu dirio Elzira Divina Perptua

    1. Os cadernos de CarolinaEste trabalho parte da tese de doutorado intitulada Traos de Caro-

    lina de Jesus: gnese, traduo e recepo de Quarto de despejo, defendidaem setembro de 2002 na Faculdade de Letras da Universidade Federal deMinas Gerais. A pesquisa empreendida nascera da comprovao dainexistncia de trabalho acadmico sobre a escritora da Favela doCanind, que nos anos 60 viu seu nome projetado em todo o mundograas publicao de Quarto de despejo: dirio de uma favelada, quedenuncia as condies de misria subumana em que vivia.

    Uma das lacunas existentes a respeito de uma obra que tomara tal di-menso dizia respeito ao obscurecimento da participao de Audlio Dantasno livro de Carolina de Jesus. Como explica no prefcio de Quarto de despe-jo, o jornalista, que antecipou o livro escrevendo reportagens peridicassobre a diarista antes do lanamento, foi o responsvel pela tarefa de dati-lografar e ordenar os manuscritos para publicao. Tamanha a fora ex-pressiva da linguagem de Carolina que o organizador do dirio foi acusa-do, em vrias ocasies depois do lanamento, de ter forjado o dirio e atde ter inventado a existncia de Carolina. O estudo dos manuscritos deQuarto de despejo ofereceu-nos a oportunidade de trazer tona essa discus-so, e ouvir um pouco mais da voz de escritora. O cotejo dos originais coma obra publicada nos revela de que modo Carolina de Jesus se estruturoucomo sujeito discursivo em seus cadernos, num perfil ideologicamente dis-tinto daquele em que ela se transformou com a publicao do livro.

    A leitura dos manuscritos dos dirios de Carolina de Jesus a que tive-mos acesso corresponde ao exame dos registros de nove cadernos comnumerao no seqencial (1, 2, 6, 11, 16, 19, 21, 24 e primeiro), quecobrem os anos de 1958 a 1961 e abrangem parte do que foi publicado emQuarto de despejo e em Casa de alvenaria: dirio de uma ex-favelada. Seusegundo dirio publicado, por conter parte do histrico do primeiro,serviu de suporte na montagem de informaes a respeito de Quarto deDespejo. Os manuscritos, incomparavelmente mais volumosos que os dirios

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    publicados, oferecem-nos um texto bastante diverso daquele que consta noslivros, o que se evidencia quando examinamos o processo de transcrio.

    Nosso objetivo foi estabelecer as modificaes no primeiro dirio publi-cado, a fim de relacionar as motivaes lgicas, ideolgicas e metodolgicasque determinaram o processo de editorao e da inferir a dimenso dopapel de Audlio Dantas como editor. Como contribuio para as reflexessobre os dilemas da representao, ser apresentada a seguir parte da pes-quisa que coteja a imagem de Carolina produzida atravs do livro publica-do e aquela que encontramos nos textos inditos dos manuscritos, relativa-mente ao que a diarista almejava para si como escritora.

    2. O corpo da escrita e a mo do editor:acrscimos, substituies, supresses

    Ao montar o texto para publicao, Audlio Dantas promove umareviso em relao pontuao, ortografia, vocabulrio e termos recor-rentes, alm de organiz-lo numa arquitetura prpria. Nessa etapa, obser-vam-se trs tipos de modificao em relao ao manuscrito acrscimos,substituies e supresses. No estudo da transposio da escrita cursivapara a letra de frma, o exame do processo de substituio evidencia ainteno do editor de compor uma imagem da autora diferente da queaparece no manuscrito. Nesse tipo de interferncia, nota-se que o editorelimina o que possa haver de suposta erudio ou mesmo de escorreito nalinguagem de Carolina quando substitui suas supresses por termos maispopulares. Observa-se, assim, um procedimento com base no processo deverosimilhana, ou seja, na adequao de uma imagem de Carolina suacondio social. Os exemplos demonstram que as substituies ajudam aconstruir o esteretipo de uma personagem do povo, com pouca escolari-dade, e ocorrem em vista de ter o editor suprimido grande parte do que aescritora possui de diferente das pessoas de seu meio, ou seja, o interessepelos livros em geral e por tudo o que diz respeito educao formal, peloque ela considera um mundo de cultura.

    Porm as transformaes mais comprometedoras no que tange cons-truo de uma imagem da narradora de Quarto de despejo na transposi-o do manuscrito para o livro referem-se s supresses, que acabampor subtrair informaes importantes coerncia do discurso de Caroli-na e sobretudo construo de sua imagem. As supresses vo desde a

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    omisso de partculas como pronomes, at vocbulos, oraes, pargra-fos, pginas que registram dias inteiros, semanas, meses, e podem abran-ger at um caderno inteiro, como o caso do Caderno 21, com 400pginas manuscritas inditas. No h caderno que tenha sido publica-do integralmente. A tendncia observada a de restringir cada vezmais os trechos para publicao, proporo que os cadernos se acu-mulam. Isso certamente se explica pela organizao adotada na monta-gem do livro, segundo uma ordem temporal na seleo: para se compora personagem principal, foi necessrio manter uma estrutura seqencialna montagem inicial dos dirios.

    Uma das razes apontadas por Audlio Dantas para o grande nmerode supresses apia-se no fato de que, na nsia de escrever tudo, Caroli-na tudo repete. Sabe-se que a narrativa da rotina de uma chefe de fam-lia catadora de papel que no consegue armazenar seu alimento por maisde dois dias consecutivos no pode ter muita variao. H que se ressal-var, ainda, que raramente o cotidiano humano foge ao ritual dirio dasobrevivncia. E que a repetio um dos aspectos peculiares da escritado dirio, conforme j assinalou, entre outros, Batrice Didier1 .

    O texto de Carolina sofrer cortes no s em relao repetio dosatos cotidianos, mas sobretudo no que concerne s reflexes sobre a vida. a que reside a maior transformao do texto processada na editorao,uma vez que o enunciado que acompanha o dia-a-dia sempre igual con-tm uma riqueza discursiva de observaes lcidas, carregadas de vio-lncia, humor, amargura, revolta ou resignao, que foi em grande partesuprimida. Tambm foi suprimida a maior parte das observaes que apon-tam o posicionamento poltico de Carolina e que acompanham seus co-mentrios sobre os acontecimentos locais, nacionais e internacionais. Some-se a essas supresses a manuteno, na publicao, de registros carrega-dos de expresses preconceituosas e agressivas de Carolina em relao aseus vizinhos da favela e teremos, a partir dessa editorao, uma idiaincompleta e pouco lcida de sua percepo sobre o mundo em que vive.

    1 Os diaristas se repetem. De um ms a outro, de um ano ao outro e s vezes at com vrios anos

    de distncia os problemas permanecem idnticos; idnticos os caracteres, as razes e os pensa-

    mentos. Os dirios so uma prova gritante, a maior parte do tempo, da constncia de temperamento

    e do moi. DIDIER. Problmatique, p. 11.

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    Alm das supresses que ocorrem pela inteno de composio dapersonagem, algumas parecem no obedecer a um fim prefixado. Emambos os casos, com ou sem finalidade determinada, muitas dessas su-presses parecem ter efeito desestruturante com relao montagemdo texto final.

    As modificaes realizadas na transposio dos manuscritos para o li-vro publicado mostram que o projeto de Quarto de despejo realizou-secomo um ato intencionalmente predeterminado de conferir publicaoum valor de representao coletiva e no particular da misria e do aban-dono do favelado. Para cumprir esse objetivo, foi necessrio que o editoradaptasse a narradora a um modelo de sujeito que convergisse para umapersonagem que, alm de ntegra, forte, resignada e atenta aos problemasda comunidade, fosse tambm submissa, passiva, sem capacidade de jul-gamento, sem liberdade interior enfim, produto e no produtora de umdestino. Esse perfil de Carolina que teria guiado o editor s inumerveismodificaes do original, na escolha dos trechos para publicao.

    Para tornar perene um perfil especfico de Carolina, foi necessrio queo editor estabelecesse algumas metas que resultaram no desprezo quasetotal de alguns itens recorrentes dos manuscritos, dos quais s restaramtraos no livro publicado s vezes, nem isso. Alguns desses itens interes-saram mais intensamente nossa anlise, porque, entre outros motivos,ajudaram a esboar melhor o caminho planejado para a gestao e a re-cepo de Quarto de despejo: trata-se de aspectos das reportagens queperfazem alguns passos da recepo anterior ao livro e da imagem doprprio Audlio Dantas, bem como da relao da diarista com a escritaem geral e, particularmente, com a escrita do dirio. A nfase nesta rela-o de Carolina com a escrita em geral e com a escrita do dirio especi-ficamente promove a oportunidade de refletirmos sobre o significado darepresentao pessoal e coletiva em textos memorialistas que chegam aoconhecimento do pblico.

    3. Pblico x privadoO que se acrescenta sobre a vida de Carolina na imprensa nacional e

    internacional, a partir do lanamento de Quarto de despejo, ultrapassa amorte da autora, em 1977, e vai girar em torno de seu primeiro livro e donome de Audlio Dantas. Nos manuscritos do dirio, que ela continuar

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    escrevendo fielmente durante muitos anos, podemos acompanhar o outrolado do seu texto, o que no saiu nos jornais, o que no saiu nos livros, adesmistificao das poses, os desmentidos das notcias, revelando umaverdade que, guardada, era s de Carolina. Nesse sentido, uma revisode seus escritos atravs da leitura de seus cadernos ofereceria dados que,se no completam nem mudam Quarto de despejo porque uma vez vindoa pblico o livro ganha realidade concreta , comporiam um suplemento,mostrando uma outra Carolina, diversa em vrios aspectos daquela que omarketing da poca fez ascender e da que nos oferece o perfil das ediesde seus livros. Uma Carolina talvez mais humana, pelas contradiesprprias que deixa registradas a propsito da escrita do dirio, dos dias deimpacto de Quarto de despejo e dos ecos que compem seu epitexto ulte-rior.

    Uma leitura cotejada das reportagens e dos manuscritos mostra que ummodo de recepo do livro fora definido, primeiramente, pelos textos que aimprensa divulgou sobre a vida e o tema do dirio de Carolina. Odirecionamento antecipado da leitura ligar-se-ia ao mesmo objetivo quecausaram o sucesso do livro: tratava-se de expor ao pblico, no dizer deLevine e Meihy,2 uma mercadoria que estava na onda da discusso polti-ca, social e diretamente ligada ao desenvolvimento urbano nacional olado da misria que compunha a outra face da chamada eradesenvolvimentista. Essa leitura aponta para a nossa metodologia de traba-lho: a repercusso do epitexto nos livros publicados e o que o conhecimen-to dos manuscritos muda ou acrescenta imagem pblica de Carolina.

    A preparao do pblico representada pelas matrias jornalsticas te-ria sido decisiva para a recepo do livro como depoimento real das con-dies de miserabilidade dos favelados, ou seja, como um documento-monumento coletivo. na mesma direo apontada pelas reportagens eque cativava o pblico que vo espelhar-se os arranjos editoriais dosmanuscritos para a apresentao do livro ao pblico. Porm a leitura dosmanuscritos mostra que talvez essa recepo tivesse ocorrido de mododiferente caso esses arranjos tivessem visado, primeiramente, recepode outros aspectos de uma escrita de cunho individual.

    2 LEVINE & MEIHY. Cinderela negra, p. 125.

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    Uma das inferncias que sobressaem da leitura dos manuscritos queQuarto de despejo nasceu como fruto de um acordo verbal que se estabe-leceu entre Carolina e Audlio Dantas, antes mesmo que se vislumbrassequalquer possibilidade real de publicao. Contudo infere-se tambmque o nascimento do livro ocorre entre dois desejos distintos: para AudlioDantas, desde o incio, a contribuio dos dirios para a causa social emque acredita e que defende naquele contexto; para Carolina, representaa possibilidade concreta de sobressair-se culturalmente e o caminho parasair, literalmente, da favela.

    Ocorre que o sentido da cultura, para Carolina, origina-se num lugardiferente, fora da favela, e fora tambm dos valores protagonizados porAudlio Dantas em relao ao tipo de arte que Carolina valorizava. Emrazo disso, veremos tambm, no dirio, a luta pela prevalncia de suasidias sobre as de seu agente.

    As bases desse acordo mostram-se, s vezes, antagnicas, outras, dissi-muladas, com a produo constante de Carolina do dirio e de outrostextos sendo entregue ao destinador de sua produo e este, por suavez, referindo-se raramente produo ficcional da escritora. A exceoocorre no prefcio ao segundo dirio, Casa de alvenaria, em que ele vaidesmerecer ostensivamente aquilo em que Carolina mais acreditava, comoveremos a seguir.

    4. O confronto de estticas4.1. Carolina segundo Audlio

    De acordo com o jornalista,3 a comunicao do julgamento valorativodo dirio sobre os demais textos foi feita aps a primeira reportagem. Ten-do examinado os dois cadernos do dirio de 1955 e o resto, que eramoutras coisas, romance, conto, poesia, provrbios, ele teria dito a Caroli-na, sobre o dirio: Olha, a coisa boa que voc faz isto.

    Naquele momente, portanto, Audlio Dantas havia decidido o desti-no dos textos. Sua opinio, contudo, s teria sido abstrada parcialmen-te por Carolina, j que, retomando a escrita do dirio, ela continuaria

    3 As declaraes de Audlio Dantas referidas neste foram retiradas da entrevista a mim concedida

    na ocasio do incio da pesquisa, em abril de 1995.

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    insistindo em publicar os poemas e a narrativa ficcional. Segundo Audlio,mesmo estando em evidncia por meio da publicao do dirio, ela nose conformava, queria ser uma escritora.

    A ciso, embora instaurada desde o incio, no ser visvel nem noprefcio nem no texto do primeiro dirio publicado. Porm os manuscritosmostram que o tempo agravaria as divergncias relacionadas ao julga-mento valorativo do dirio sobre os demais escritos, comprometendo asrelaes entre Audlio e Carolina. A diferena de opinies, inversamen-te proporcional ao interesse de ambos de promover uma publicao, bemcomo os argumentos de Carolina, seriam escamoteados pelo editor dosdirios. Na edio de Quarto de despejo, as referncias da diarista a essedesejo, do qual ela nunca se apartava enquanto escrevia o dirio, desa-pareceram. A leitura dos manuscritos d-nos a dimenso dessas diver-gncias e do grau de expectativa de Carolina sobre a publicao de seusdemais textos.

    Por outro lado, a opinio de Audlio Dantas a respeito da obra ficcionale potica de Carolina, bem como sobre o segundo dirio, vai aparecerexplicitamente no prefcio de Casa de alvenaria, guisa de despedida econselho. Reiterando a valorizao do primeiro dirio sobre os demaistextos, o agenciador de Carolina aconselha-a a encerrar a carreira com apublicao de seu segundo livro:

    Agora voc est na sala de visitas e continua a contribuir com este novo livro, com o

    qual voc pode dar por encerrada a sua misso. [] Guarde aquelas poesias, aqueles

    contos e aqueles romances que voc escreveu. A verdade que voc gritou muito

    forte, mais forte do que voc imagina, Carolina, ex-favelada do Canind, minha irm l

    e minha irm aqui (Casa de alvenaria, p. 10).

    Um ponto relativo produo no autobiogrfica de Carolina aindapode ser levantado a partir do prefcio de Audlio Dantas para Casa dealvenaria. Trata-se da epgrafe do texto de Audlio Dantas, escolhida deum trecho de Quarto de despejo: Vi os pobres sair chorando. As lgri-mas dos pobres comove os poetas. No comove os poetas de salo. Mascomove os poetas do lixo (Casa de alvenaria, p. 5). Inserida comoepgrafe, a frase buscaria enfatizar, na escrita potica de Carolina, umaautodefinio de sua esttica. Assim, no texto do prefcio, a esttica do

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    lixo, reconhecida e valorizada, ope-se esttica de salo, em que seinserem os gneros elevados. Dessa forma, no texto prefacial de Casa dealvenaria, Audlio reafirma seu aval sobre a escrita autobiogrfica da fa-vela, do lixo, em que se sobressai uma fora potica inusitada, uma forapotica no localizada em outros textos de Carolina.

    Por sua epgrafe e pargrafo final, o prefcio de Audlio Dantas vaicaminhar em direo oposta ao desejo de Carolina, manifesto apenas emseus cadernos. No entanto tanto o incipit como a sada do discurso prefacialvo alm do vaticnio que o editor faz sobre o texto no autobiogrfico deCarolina: os sinais do discurso de Audlio vo remontar, como no primei-ro dirio, seleo organizada pela editorao e, no exame desta, aolugar reservado pelo editor produo potica de Carolina de Jesus.

    Ao contrrio do discurso da epgrafe, porm, o discurso do manuscritovai evidenciar, na maior parte em que Carolina discorre sobre suas pre-tenses, outra aspirao: a de ser reconhecida por sua produo potica eficcional pela esttica do salo preterida por seu editor, e no pelaesttica do lixo, que subjaz ao dirio.

    4.2. Carolina segundo ela prpria

    Embora seja o que se apresenta inicialmente em Quarto de despejo, aretomada da escrita diria depois do aconselhamento de Audlio Dantasno significa uma submisso incondicional de Carolina opinio do jor-nalista. Paralelamente ao acatamento do ponto de vista do jornalista, elacontinuava a produzir, juntamente com a escrita do cotidiano, os textosno autobiogrficos a que denominava contos, provrbios, romances, po-emas e letras de msica, e tentava obstinadamente public-los4 .

    Deve-se ter em mente, porm, que, apesar de estarem fora dos planosque Audlio traou em definitivo para o primeiro livro, alguns textosrecusados pelo editor estaro mencionados fora de Quarto de despejo, sejanas reportagens em revistas e jornais, em que a produo ficcional e poti-ca citada juntamente com o dirio, seja nos programas que antecederam

    4 Desses gneros que Carolina cultivava, ela publicou, com os rendimentos auferidos pelo primeiro

    dirio, o livro Provrbios e um romance, Pedaos da fome, alm de ter produzido seu prprio disco,

    Quarto de despejo. Alguns contos foram publicados pela imprensa alternativa, como o jornal Movi-

    mento. Os poemas, reunidos pela autora, s vieram a pblico postumamente, em 1996.

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    o lanamento do livro, em que a presena da autora garantia-lhe a opor-tunidade de declamar seus poemas. Do ponto de vista publicitrio, ameno aos textos no autobiogrficos de Carolina funcionaro, dessaforma, como parte da estratgia de divulgao do dirio. Para Carolina,parecem funcionar, ainda, como uma amostra de que aquilo que ela maisvalorizava como escrita poderia estar sendo apreciado e, com isso, teraumentada a chance de publicao; ao mesmo tempo, essa iluso servia-lhe de incentivo continuao do registro do cotidiano.

    A anlise dessa produo de Carolina, dado o seu volume e as condi-es peculiares do acervo, demandaria um estudo que os limites destetexto no comportam. O que nos interessa relativamente a essa produono publicada a oportunidade, oferecida pelos manuscritos de Quartode despejo e Casa de alvenaria, de dar a ver de que modo os textos que nose inserem nos planos de publicao do editor dos dirios e nem na est-tica dominante tangenciam toda a escrita do cotidiano; e de que modoesta , de certa forma, movida pelo desejo de Carolina de ver sua obraficcional e potica principalmente os poemas publicada; e, ainda,como a manifestao escrita desse desejo se junta quela oferecida, jun-to com a dor, pela narrativa do cotidiano da favela.

    Desde os primeiros registros, nota-se uma ostensiva necessidade queCarolina tem de definir-se em alguma categoria relacionada escrita, anteo mundo que se abre com a possibilidade de publicao prometida porAudlio. Na escrita do dirio, ela vai traar, de forma recorrente, sua auto-imagem de poeta, ou de poetisa, segundo imagina as qualidades do poeta:engajado politicamente, nacionalista, possuidor de uma misso social, queluta assumidamente ao lado dos fracos e oprimidos. Essa imagem teria sidoconstruda segundo o modelo romntico estabelecido em suas leituras.

    Das imagens que Carolina tinha do poeta, as que foram aproveitadasna edio de Quarto de despejo relacionam-se sua preocupao com acomunidade pobre onde se encontra inserida. Carolina manifesta sua pro-fisso de f em relao escrita lrica em todos os cadernos. Nota-se quea reflexo metalingstica uma caracterstica sua, tanto no que diz res-peito poesia quanto ao dirio.

    nesse contexto particular da autobiografia de Carolina, visoromntica veiculada pelos poetas lidos por ela, que devemos compreendera percepo restrita de seus valores em relao poesia e que se estende

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    aos conceitos, muitas vezes antagnicos ou equivocados, do papel socialdo poeta, e a uma viso estereotipada da temtica e da forma poticaapresentada em seus registros a partir de clichs. Carolina busca estabe-lecer conexes entre as situaes de misria em que vive e clichs quecontroem uma viso estereotipada do poeta.

    Algumas vezes, a temtica do primeiro modelo de Carolina, Casimirode Abreu, vai servir de contraponto direto para observaes sobre aidealizao romntica. Como Carolina compreendia a linguagem comouma cpia da realidade, e no como uma representao, ela vai justificara impossibilidade de seguir os preceitos adotados na poesia por meio deuma viso de sua prpria realidade.

    A idealizao do passado, mostrada em contraposio s agruras dopresente, ser, por isso, um dos traos mais apreciados por Carolina aolongo dos registros em que ela apresenta as contradies entre a vida dospoetas e a sua prpria.

    A Casimiro de Abreu seguem-se outros modelos literrios em registrosnos quais Carolina descreve suas inferncias sobre a vida e obra de al-guns escritores e poetas, sempre em contraposio com a sua prpria vidae escrita.

    Nas citaes de alguns autores de renome, Carolina manifesta nitida-mente o desejo de aproximar-se do cnone artstico, do texto de prazer, omundo literrio que de fato a fascinava.

    Essa tentativa de aproximao transforma-se, s vezes, em observa-es que se tornam jocosas. Isso ocorre porque, na busca de semelhanasque confirmariam sua condio de escritora, Carolina compara detalhesde sua vida com os de autores consagrados e arrola esteretipos que com-pem uma imagem do escritor. Mas, independentemente dos equvocosde suas observaes, o que mais salta aos olhos nas citaes de Carolina o conhecimento que ela demonstra possuir de um mundo da palavra es-crita, reconhecido por ela como superior.

    4.3. A produo potica

    no contexto da idealizao de um mundo de palavras e do esforopara se afastar da ignorncia, da violncia e da misria que podemosentender o desejo de Carolina de ver-se projetada como a poetisa quesabia burilar as palavras que lhe concederiam a senha de entrada no

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    universo intelectual. Veremos, nos manuscritos, de que modo esse dese-jo, manifestado diversas vezes para Audlio Dantas, caminhou, at certoponto, numa via contrria quela planejada por seu editor: a de transfor-mar Carolina na escritora dos dirios sobre a misria da favela. O desejode Carolina reflete-se no dirio, atravs de referncias a poemas, contos,romances, que estavam em fase de composio ou j terminados.

    Sabe-se, pela leitura comparada dos manuscritos e de Quarto de Des-pejo, que a manifestao especfica desse desejo de Carolina foi pratica-mente extirpada na editorao, que manteve apenas a referncia s qua-dras, forma potica bastante utilizada por Carolina. Entendemos que fo-ram poupadas dos cortes do editor porque, traduzindo uma expresso po-tica de origem popular, sero mais um tento a favor da apresentao dodirio como retrato da coletividade. Nos manuscritos, obviamente, soencontradas em nmero e diversidade maiores. As quadras, para Caroli-na, revelam-se instrumento de crtica aos polticos e de desabafo contra asua situao de penria; porm identificamos, tambm, aquelas em que atemtica amorosa remete s cantigas de amor e de amigo.

    interessante notar que, nas vrias vezes em que menciona a publica-o do livro e o retorno financeiro prometido, Carolina no se refira pro-priamente ao dirio. Tal apagamento certamente revela seu desejo mai-or: o de publicar seus poemas e contos e dramas e provrbios, ou seja,aquilo que ela compreende como a grande literatura que produz, da qualno faz parte o dirio. A omisso de Carolina sobre a existncia do dirioconfiguraria sua forma de desdenhar a importncia da escrita do cotidia-no, uma vez que enfatiza as demais formas de texto. Secretamente, longedos compromissos angariados com vistas publicao, deseja continuarse dedicando a outros gneros literrios, conforme seu prprio juzo devalor, to dspare da esttica vigente. O sonho de dedicar-se escritaficcional se expe na escrita do cotidiano, a que ela continua fiel. Essascontradies sero justificadas pelo retorno que a publicidade sobre odirio lhe d, que o seu reconhecimento pblico como escritora.

    Independentemente do juzo de valor que emite a respeito dos prpriostextos, quaisquer que sejam a natureza deles, o que se depreende da leitu-ra do texto publicado, mas, sobretudo, dos manuscritos o inquestionveltalento literrio de Carolina, atestado pela plasticidade da narrativa, pelacapacidade de encenar situaes, pelo carter auto-reflexivo do texto, pela

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    dimenso crtica e potica neles atestada, pela perfeita interao como leitor.

    4.4. O gnero memorialstico

    Se os manuscritos do dirio revelam o que Carolina pensa e espera daprpria escrita ficcional e potica, eles tambm refletem sua avaliao dognero memorialstico por ela praticado. Como a comparao ajuda acompor os trajetos entre a inteno da escritora e a do editor dos textosrelativamente escrita do cotidiano, o cotejo das reflexes metalingsticasencontradas nos manuscritos e nos dirios publicados oferece-nos maisalgumas peas para a compreenso da forma como foi produzido o livroQuarto de despejo.

    Em vrias oportunidades, Carolina vai estabelecer com seu texto umdilogo no qual vamos percebendo sua posio em relao tarefa dediarista. Por um lado, vemos a adeso de Carolina ao gnero autobiogr-fico no que tange aos propsitos comuns a todo diarista, como a assidui-dade, a busca de fidelidade aos fatos, a ateno aos pormenores do coti-diano, entre outros. Tudo isso com referncias explcitas inteno depublicao, como ela prpria demonstra neste registro de 13 de dezembrode 19595 :

    Eu vou incluir o seu nome no meu Diario.

    O qu, que isto?

    Eu escrevo tudo que fao durante o dia, e os nomes das pessas que converso.

    Ah! No pe o meu nome. Mas o que a senhra faz com ste Diario?

    Livro. Demostrando a minha vida Eu escrevo se almoei ou se no almoei relato

    tudo. Vou escrever que eu tenho so arroz e vu jantar stes pixes que o senhr deu-

    me. e arroz. E dsde j Deus que te ajude.

    5 Na transcrio dos manuscritos, optamos pela fidelidade escrita de Carolina em seus aspectos

    lexicais e gramaticais, inclusive ortogrficos. Na seleo de trechos do manuscrito para citao,

    inserimos { } como sinais de supresso ou para conteno de termo esclarecedor do discurso; os

    sinais [ ] indicam trecho do manuscrito que foi extirpado da publicao; os parnteses e reticncias

    utilizados nas publicaes foram mantidos nas citaes.

  • Aqum do Quarto de despejo 75

    Ainda no que se refere ao exerccio do gnero, vamos encontrar algu-mas peculiaridades do dirio de Carolina que ocorrem devido s circuns-tncias de planejamento do prprio registro. Entre essas, uma das primei-ras impresses que Carolina registra a respeito das anotaes do cotidia-no de que elas funcionam como instrumento de defesa e como arma deataque nos conflitos da favela. Essa funo, inusitada para um dirio,ainda que preexista notoriedade em torno de Carolina, vai-se efetivarem conseqncia da repercusso de seu nome a partir da primeira repor-tagem que, ao tornar pblica parte de seus textos, promove essa mudanasalutar na rotina da escritora. Dessa forma, antes de converter-se eminstrumento coletivo de denncia contra as injustias, o dirio ser con-siderado um meio de denncia pessoal contra os favelados, a arma deCarolina contra seus antagonistas na favela, como registra imediatamen-te aps a publicao da reportagem, a 11 de maio de 1958: Os quebrigavam comigo, esto com recio de estar, no meu Diario.

    Porque temem que seus atos sejam publicamente expostos, os morado-res do Canind vem a escrita de Carolina como um perigo iminente.Seguramente para se proteger, a escritora tira proveito desse poder quelhe confere a escrita. Porm o registro do cotidiano ter, ao mesmo tem-po, a funo de denunciar as injustias sociais sofridas por todos os mise-rveis, da qual a diarista ser porta-voz, como se l em 10 de junho de1958: Como e horrivel a condio dos doentes indigentes. que so trata-dos com tanto desprso. Eles pensam que os pobres no compreendem.percibi que preciso escrever condenando o orgulho e a jatancia. Estadupla hedionda.

    4.5. A avaliao esttica do dirio

    Em seu dirio, a par da preocupao com a verdade do relato, Caroli-na busca tambm oferecer uma imagem daquilo que ela considera a boaescrita, caracterizada por um alto nvel de exigncia, tanto sob o pontode vista esttico quanto do tico. o que se l no registro de 6 de julhode 1958: A nortista falava so banalidades que no da gosto escrever Eufui no satope. Contei uma anedota para o empregado. A anedota cabe-luda si eu cita-la ela vae deturpar, o meu Diario.

    Dessa forma, Carolina tentar preservar no dirio sua relao com a est-tica de salo, com a pureza da linguagem, a nobreza de temas e a elevao

  • 76 Elzira Divina Perptua

    das figuras. Constata, entretanto, que essa concepo do valor esttico nocondiz com a exigncia da veracidade constituinte do gnero que pratica.

    Por outro lado, verifica-se da parte de Carolina o desconhecimento dovalor da escrita do cotidiano, acrescentado falta de compreenso sobreo interesse que Audlio Dantas mantm pelo dirios e divergncia decritrios estticos. O grau de estranheza de Carolina em relao quiloque merece seu registro vem do seu julgamento negativo sobre a escritado cotidiano da favela. Isso pode ser ilustrado por meio do registro dodilogo ocorrido entre ela e Fernanda, uma moradora do Canind, cujacitao retomamos integralmente ao manuscrito de 18 de dezembro de1958, que vai resumir o que Carolina pensa, sente e faz a respeito dodirio, bem como a opinio da vizinhana a respeito de sua escrita:

    Dona Carolina, eu estou neste livro?

    Dixa eu ver!

    No. Quem vae ler isto, e o senhr Audalio Dantas. Que vae publica-lo.

    E prque que eu estou nisto?

    Vo esta aqui, prque naqule dia que o Armim brigou com vo e comeou

    a bater-te vo saiu crrrendo nua para a rua.[E as crianas comearam a rir e pergun-

    tavam prque que a bunda das mulheres tem cablos?]

    Ela no gostou e disse-me:

    O que que a senhra ganha com isto?

    [ Eles mandaram-me escrever. e eu disse-lhes que na favela no tem nada que

    presta, para escrever. Que perssonagens de favela, so prngrafics e os seus atos no

    mereem destaque

    Eles no tem nada com a vida dos favelads.

    Eu tambem penso assim. Mas les me mandaram escrever.

    A Fernanda olhou-me e disse:

    a senhra no vae ganhar nada com isto. Apsto que les no vae dizer-te

    nem muito obrigado. porque ja faz tempo, que a senhra procura infiltrar-se entre as

    que escreve, e psta de lado como um sapato que j no tem mais conerto

    Bem. Os jornalistas das Flhas falaram. parei bruscamente pensando que no

    tenho que dar satisfao a Fernanda. E no podendo suprtar o alito alcoolico da

    Fernanda levantei e encaminhei para o prto dizendo-lhe: que no suprtava o cheiro

    do alcool.

    Ela olhu-me com desprso e fez hum! sa. E elas sairam atraz de mim.]

  • Aqum do Quarto de despejo 77

    Suprimido quase que inteiramente de Quarto de despejo, esse trechoexemplifica vrios aspectos do relacionamento da escritora com seu agentee dos pontos antagnicos entre os interesses de ambos. Em primeiro lugar,Carolina enfatiza a funo do jornalista como destinador de sua produ-o. Com isso, promove tambm uma demonstrao da relao de sub-misso que ela mantinha com esse destinador, a qual deduzimos ser uni-camente com relao ao trabalho da escrita do dirio, uma vez que con-tinua produzindo outros textos revelia do que Audlio pensa sobre eles.

    Ordenaram que ela escrevesse sobre os acontecimentos da favela, eela assim o faz, ainda que no compreenda a importncia disso, uma vezque os personagens pornogrficos da favela esto em completadiscordncia com o que considerado por Carolina digno de ser mostra-do por meio da escrita. Nota-se, ainda, que, mesmo dando razo vizi-nha no que se refere intromisso dos jornalistas na favela, Carolinaconcorda em obedecer-lhes.

    Outro trao importante nesse dilogo que ele aponta juzos diferen-tes de Carolina e Audlio com relao escrita do dirio e ao antagonis-mo de duas vises de mundo. A avaliao do gnero proposto por Audliocomo relevante choca-se com a concepo de literatura estabelecida porCarolina a partir de modelos percebidos como decadentes na estticavigente.

    Esse dilogo apresenta, ainda, a concepo dos favelados com relao tarefa intelectual de Carolina. Como ela registrou em diversas ocasies,os vizinhos nutrem um temor de serem alvo das denncias que ela pro-move com a escrita do dirio. Por outro lado, enquanto favelada, Caroli-na tambm seria uma intrusa ao tentar infiltrar-se entre os que escre-vem, o que vai merecer o desacato e o desprezo de sua vizinha que,dessa forma, representa a posio crtica da comunidade a respeito dadiarista.

    Havia muito que Carolina j interpretava o tratamento inamistoso davizinhana como sinal da m recepo que seu dirio teria na comunida-de depois de publicado, como se l no registro de 1 de julho de 1958: Eupercbo que se ste Diario fr publicado vae maguar muita gente. Tempessas que quando me v passar saem da janela ou fecham as portas.

    A referncia de Carolina ao contedo do que escreve no dirio umapreocupao constante da diarista sempre que ela se refere possibilidade

  • 78 Elzira Divina Perptua

    de publicao de seus cadernos. No decurso temporal entre o incio dodirio de 1958 e o final de 1959, j vemos como sua preocupao com arecepo do dirio publicado passa a ser cada vez maior, em vista de seucontedo, que ela considera pornogrfico, no sentido particular queela atribui ao termo.

    A preocupao de Carolina tem sentido. Ela d ao termo pornografiaum significado abrangente, no s porque sua crnica trata de temaslicenciosos relativos a uma boa parcela dos vizinhos, mas tambm porqueconsidera que na favela no h algo que preste, como vai registrardiversas vezes.

    O juzo de valor sobre a publicao est ligado, evidentemente, aoque Carolina considera esteticamente apresentvel, e que no coincidecom a escrita do dirio. compreensvel que, uma vez j encaminhadotodo o processo de marketing em torno da publicidade do livro, Carolinapasse a julgar to mal o dirio por tudo o ele traz de oposto ao que elaconsiderava esteticamente valoroso e digno de ser publicado. Talvez sejaesse o motivo pelo qual ela no ouse declarar publicamente sua opinionegativa sobre o dirio. Nos seus cadernos, entretanto, ela vai registran-do seus temores. E quanto mais se aproxima a data de lanamento, maisCarolina exprime-se desfavoravelmente em relao publicao, confor-me se deduz da passagem de 26 de abril de 1960, quando, ao registrar umdilogo, faz a seguinte observao: E um livro hororso! O livro que eununca pensei escrever. o livro que vae desgraar a minha vida. E o livroque vae regridir a minha existncia pensei. mas, no disse isto para elas.

    Assim, ao vislumbrar a iminente publicao do dirio, Carolina rene-ga-o, verbalizando a apreenso com a recepo que ter. Outro registro,de 11 de maio de 1960, no qual deixa claro que a causa de seu mal-estar o contedo do enunciado do dirio, parece apontar tambm para ascircunstncias de sua produo:

    Estes dias eu ando triste por causa do Dirio que o Audalio vae publicar. Eu classifico

    aqule Dirio de: sete capas do diabo.- As sete capas do diabo assim: ele encapa um

    livro sete vzes. Depis vae dessemcapando-o. Quer dizer que a sugeira que alguem faz

    algum dia aparee.[] Eu estava falando que acho ste Dirio horrivel. que eu queria

    escrev-lo e depis suicidar. por causa do custo de vida. E que a deficincia dixa as

    pessas dessorientada.

  • Aqum do Quarto de despejo 79

    O que se sobressai nas observaes de Carolina sobre a preocupaocom a recepo que ela permanece sem entender o valor dos registrossobre a favela. Por isso continua manifestando seu obscurecimento emface do interesse pblico por sua escrita do cotidiano. o que mostramseus comentrios sobre as oposies entre a esttica que ela privilegia e aque os jornalistas valorizam neste registro de 2 de julho de 1960: Conversei com o senhor Otavio. Disse-lhe que vou mudar da favela nes-te ms e que no gosto do dirio. Eu no sei o que que les acham nomeu dirio. Escrevo a misria e a vida infausta dos favelados (Casa dealvenaria, p. 28).

    Com a confirmao da data do lanamento do livro, Carolina volta aangustiar-se com sua recepo. Agora, porm, essa preocupao se esten-de ao pblico em geral, sobre o qual ela deduz que estar recebendo umtipo de literatura no cannica, marginal. Um ms antes do lanamento,ela escreve:

    Sa para o quintal e cumprimentei o reprter e o escritor Paulo Dantas. le disse-me

    que o livro sai dia 16 de agosto. Que susto que eu levei! Eu sei que vou angariar

    inimigos, porque ningum est habituado com este tipo de literatura. Seja o que Deus

    quiser. Eu escrevi a realidade porque eu pensava que o reporter no ia publicar (Casa de

    Alvenaria, p. 30).

    Na verdade, Carolina escreveu a realidade porque assim lhe foi pedi-do que fizesse. Nas raras passagens em que registra sua tranqilidadecom relao recepo do livro, nota-se que sua explicao incoerentecom tudo o que ela j exps de preocupao com a publicao, comoneste registro de 28 de junho de 1960: Estou pensando. Como serque vai ser o meu livro Quarto de Despejo? le {o reprter} perguntouse eu no tenho medo dos favelados, porque escrevi sbre les. Notenho. preciso escrever e dizer s a verdade (Casa de alvenaria, p. 26).

    Quanto a si prpria, nas referncias positivas que faz ao dirio e a suapublicao, fica implcito apenas o valor catrtico que Carolina atribui escrita do cotidiano, como se pode ler em 16 de maio de 1960:

    Eu estou anciosa para ver este livro porque eu escrevia no auge do dessespero. Tem

    pessoas, quando esto nervosas xingam, u pensam na mrte como soluo. E eu

  • 80 Elzira Divina Perptua

    escrevia o meu Dirio porque pretendia suicidar e queria dixar o Dirio relatando as

    agruras que os pobres passam atualmente.

    Mas o Audlio surgiu e eu dessisti de suicidar-me.

    Agradeo o ilustre senhor Audalio Dantas.

    E em 7 de julho de 1960: Fico pensando o que ser Quarto de Des-pejo, umas coisas que eu escrevia h tanto tempo para desafogar asmiserias que enlaava-me igual o cip quando enlaa nas rvores, unin-do todas (Casa de alvenaria, p. 29).

    Paralelamente sua preocupao com o contedo do dirio, porm, ojulgamento de valor negativo e a apreenso quanto recepo do livro,h dois momentos distintos em que Carolina se rende sem resistncia publicao do dirio. So aqueles em que ela se refere s razes pragm-ticas, ao lucro efetivo que vai auferir com a publicao.

    O orgulho de ser escritora estar, enfim, completamente despertadoem Carolina dois dias antes do lanamento, quando a autora de Quartode despejo, pela primeira vez, tem em mos o exemplar de seu primeirolivro e expe sua emoo para com o objeto. Ela no mais se refere aolivro como meu dirio, como o fez de modo geral em todo o manuscrito,mas pelo ttulo que traz estampado na capa. Ter o nome prprio impressono livro tambm digno de nota. Carolina percebe que isso a torna umaautora e consagra sua admisso definitiva na instituio literria. o quese l a 13 de agosto de 1960:

    O reporter desembrulhou os livros e deu-me um. Fiquei alegre olhando o livro e disse:

    O que sempre invejei nos livros foi o nome do autor.

    E li o meu nome na capa do livro.

    Carolina Maria de Jesus.

    Diario de uma favelada.

    QUARTO DE DESPEJO

    Fiquei emocionada. O reporter sorria []

    preciso gostar de livros para sentir o que eu senti (Casa de alvenaria, p. 33).

  • Aqum do Quarto de despejo 81

    5. Construo da identidade e perfisde Carolina

    Tendo o contexto histrico-geogrfico como a paisagem real, Caroli-na olha para si e para os outros eus que consigo interagem. Nos textosselecionados para publicao, vemos que, mergulhada numa escrita tra-dicionalmente subjetiva, Carolina consegue esboar objetivamente a co-munidade, mesmo quando nela se inclui, vendo-se personagem de simesma. Dessa forma, ao pretender narrar a vida daquela do Canind,vemos em Quarto de despejo que Carolina situa-se ora como mera teste-munha que registra um documento da favela, ora como personagem emodelo dos dramas que se desenvolvem diariamente a seus olhos. Ante aletargia dos vizinhos que se calam e a indiferena generalizada, que de-termina a banalizao da misria, o caderno onde escreve , para a auto-ra, a ponte entre duas extremidades: Eu escrevo porque preciso mostraraos politicos as pessimas qualidades de vocs (Quarto de despejo, p. 164).

    Algumas vezes Carolina no se contenta apenas em narrar as agru-ras dos miserveis e assume, de forma ostensiva e ousada, a funo deporta-voz dos favelados diante de personalidades pblicas. Ao faz-lo,s vezes utiliza recursos literrios, como neste exemplo, em que recor-re linguagem metafrica para fazer uma ameaa velada ao presiden-te da Repblica:

    O que o senhor Juscelino tem de aproveitvel a voz. Parece um sabi e a sua voz

    agradvel aos ouvidos. [...] Cuidado sabi, para no perder esta gaiola, porque os gatos

    quando esto com fome contempla as aves nas gaiolas. E os favelados so os gatos. Tem

    fome (Quarto de despejo, p. 35).

    O relato dirio vai proporcionar ao leitor de Quarto de despejo uma visoda favela em seus aspectos mais cruis. a figura da autora do dirio,entretanto, que vai sobrepor-se misria relatada, como quer Carolina,que nitidamente se destaca do meio favelado por meio de sua arte.

    Acima do populismo da poca e da possvel demagogia que possibili-tou a publicao do dirio, temos essa escrita que, desconhecendo asnormas lingsticas, recria o mundo da favela em sua plasticidade, cor,som e movimento. Mas uma escrita que tambm reflete sobre si mesma esobre as complexas relaes entre pobres e ricos, entre intelectuais e

  • 82 Elzira Divina Perptua

    iletrados, enfim, entre mundos antagnicos e excludentes, e estabelececom seu leitor um forte lao.

    Alm de voz da intimidade e porta-voz da coletividade, vemos queQuarto de despejo constitui um exerccio de metalinguagem em que Ca-rolina descreve algumas etapas de sua formao de escritora rumo rea-lizao de um desejo, ainda que o recorte dado por Audlio Dantas bus-casse privilegiar um outro aspecto sobre os demais. Assim, a leitura com-parada de Quarto de despejo e seus manuscritos leva-nos a refletir a res-peito da analogia registrada por Carolina nas pginas finais do dirio pu-blicado: A vida igual um livro. S depois de ter lido que sabemos oque encerra (Quarto de despejo, p. 160). Depois de ler Quarto de despejo,sabemos o que ele encerra mas no capturamos a imagem que Carolinaproduziu de si mesma nos manuscritos: complexa, multifacetada,proteiforme e at contraditria.

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