1 Referência: Fiorentini, D. Learning and professional development of mathematics teacher in research communities. Sisyphus – Journal of Education. 2013 (No prelo). APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA EM COMUNIDADES INVESTIGATIVAS 1 Dario Fiorentini (FE/Unicamp) Resumo: Este artigo tem por objetivo identificar, descrever e compreender as aprendizagens e o desenvolvimento profissional do professor que participa de comunidades investigativas. Para analisar e interpretar narrativamente esse processo, foi selecionado o caso de uma professora de matemática que, ao longo de sua carreira, participou de três comunidades investigativas, sendo duas profissionais e uma acadêmica. A análise apoia-se na teoria social de aprendizagem em comunidades, com adaptações para comunidades profissionais e investigativas de professores. Além de descrever os contextos do processo de aprendizagem, foi realizada uma análise narrativa do caso, tendo por base sua história de participação e reificação no interior dessas comunidades. Os resultados mostram que a professora, mediante colaboração de parceiros críticos de comunidades investigativas, sejam elas acadêmicas ou profissionais, desenvolveu, como um dos indícios de aprendizagem e desenvolvimento profissional, uma profissionalidade com postura investigativa, desvendando continuamente outros saberes e possibilidades sobre o que se ensina e se aprende nas escolas, tendo também mudado o modo de trabalhar e de relacionar-se com os alunos e com o conhecimento matemático e didático- pedagógico, sobretudo em classes de alunos com dificuldades de aprendizagem. Palavras-chave: Aprendizagem profissional, Professor de matemática; Comunidades investigativas; Desenvolvimento profissional; Análise narrativa. Introdução O objetivo deste artigo é identificar, descrever e compreender o processo de aprendizagem e o desenvolvimento profissional do professor de matemática a partir de sua participação e reificação em comunidades investigativas. Iniciamos este texto com uma breve descrição dos contextos, isto é, das comunidades investigativas, onde ocorreram as aprendizagens e o desenvolvimento profissional a serem investigados. Apresentamos, depois, as bases teóricas deste estudo, 1 Este estudo faz parte da Bolsa de Produtividade em Pesquisa do autor no CNPq (PQ – 1D). Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no “Seminário Práticas Profissionais dos professores de Matemática” realizado na Universidade de Lisboa, em fev/2013, tendo recebido contribuições importantes de Luís Menezes (ESE de Viseu), de João Pedro da Ponte (IE/UL) e de outros revisores anônimos da Revista Sisyphus, aos quais agradeço. Agradeço também a colaboração de Vanessa Crecci e de Eliane Matesco Cristovão (Doutorandas da Unicamp).
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
Transcript
1
Referência: Fiorentini, D. Learning and professional development of mathematics teacher in research
communities. Sisyphus – Journal of Education. 2013 (No prelo).
APRENDIZAGEM E DESENVOLVIMENTO PROFISSIONAL DO
PROFESSOR DE MATEMÁTICA EM COMUNIDADES INVESTIGATIVAS1
Dario Fiorentini (FE/Unicamp)
Resumo:
Este artigo tem por objetivo identificar, descrever e compreender as aprendizagens e o
desenvolvimento profissional do professor que participa de comunidades investigativas.
Para analisar e interpretar narrativamente esse processo, foi selecionado o caso de uma
professora de matemática que, ao longo de sua carreira, participou de três comunidades
investigativas, sendo duas profissionais e uma acadêmica. A análise apoia-se na teoria
social de aprendizagem em comunidades, com adaptações para comunidades
profissionais e investigativas de professores. Além de descrever os contextos do
processo de aprendizagem, foi realizada uma análise narrativa do caso, tendo por base
sua história de participação e reificação no interior dessas comunidades. Os resultados
mostram que a professora, mediante colaboração de parceiros críticos de comunidades
investigativas, sejam elas acadêmicas ou profissionais, desenvolveu, como um dos
indícios de aprendizagem e desenvolvimento profissional, uma profissionalidade com
postura investigativa, desvendando continuamente outros saberes e possibilidades sobre
o que se ensina e se aprende nas escolas, tendo também mudado o modo de trabalhar e
de relacionar-se com os alunos e com o conhecimento matemático e didático-
pedagógico, sobretudo em classes de alunos com dificuldades de aprendizagem.
Palavras-chave: Aprendizagem profissional, Professor de matemática; Comunidades
investigativas; Desenvolvimento profissional; Análise narrativa.
Introdução
O objetivo deste artigo é identificar, descrever e compreender o processo de
aprendizagem e o desenvolvimento profissional do professor de matemática a partir de
sua participação e reificação em comunidades investigativas.
Iniciamos este texto com uma breve descrição dos contextos, isto é, das
comunidades investigativas, onde ocorreram as aprendizagens e o desenvolvimento
profissional a serem investigados. Apresentamos, depois, as bases teóricas deste estudo,
1 Este estudo faz parte da Bolsa de Produtividade em Pesquisa do autor no CNPq (PQ – 1D).
Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no “Seminário Práticas Profissionais dos professores de
Matemática” realizado na Universidade de Lisboa, em fev/2013, tendo recebido contribuições
importantes de Luís Menezes (ESE de Viseu), de João Pedro da Ponte (IE/UL) e de outros revisores
anônimos da Revista Sisyphus, aos quais agradeço. Agradeço também a colaboração de Vanessa Crecci e
de Eliane Matesco Cristovão (Doutorandas da Unicamp).
2
com destaque para a teoria social da aprendizagem em comunidades de prática, e a
revisão bibliográfica sobre aprendizagem e desenvolvimento profissional em
comunidades profissionais e investigativas.
Em seguida, tecemos considerações sobre o percurso metodológico deste estudo,
onde destacamos o estudo de caso de uma professora-investigadora que participou de
três comunidades investigativas e nossa opção pela análise narrativa (Bolívar,
Domingo e Fernandez, 2001; Galvão, 2007) do processo de aprendizagem e
desenvolvimento profissional da referida professora, tendo por base sua participação e
suas reificações nessas comunidades.
Por fim, historiamos o processo de aprendizagem e desenvolvimento da
professora a partir de sua participação nas comunidades de investigação, no qual
destacamos e analisamos narrativamente alguns episódios e reificações nessas
comunidades.
Os contextos de aprendizagem e desenvolvimento profissional deste estudo
Considerando os propósitos deste artigo, descrevemos, inicialmente, os três
contextos de aprendizagem e desenvolvimento profissional considerados neste estudo.
Esses contextos foram por nós caracterizados como comunidades investigativas porque
tinham como prática comum realizar, em um ambiente de colaboração, estudos,
análises, investigações e escrita de artigos sobre o processo de ensinar e aprender
matemática na escola básica.
O mais antigo é o Grupo de Pesquisa sobre Práticas Pedagógicas em Matemática
(PraPeM) que surgiu, em 1995, com cariz de comunidade investigativa acadêmica
vinculado à Pós-Graduação em Educação da Unicamp, visando dar suporte teórico-
metodológico às pesquisas de mestrandos e doutorandos. Trata-se de uma comunidade
colaborativa na relação universidade-escola, pois seus participantes têm a possibilidade
de realizar, de maneira compartilhada, estudos e investigações de problemas e
demandas de interesse dos professores escolares. As investigações do grupo tem girado
em torno de dois eixos básicos: um relacionado às práticas de ensinar e aprender
matemática nas escolas, com investigações etnográficas sobre o cotidiano escolar e/ou
investigações dos professores sobre suas próprias práticas; o outro relacionado à
formação e ao desenvolvimento profissional de professores em um contexto de práticas
reflexivas e investigativas e, geralmente, colaborativas entre formadores e professores.
3
O segundo contexto surge, em 1997, de um programa de formação contínua de
professores (Curso de Especialização) oferecido pelo PraPeM, quando é constituído um
grupo de cinco professores escolares e dois formadores do PraPeM com o propósito de
apoiar colaborativamente os projetos investigativos dos professores sobre suas práticas
de ensinar matemática na escola. Este grupo teve continuidade após a conclusão do
curso, prolongando-se até final de 1999, visando à publicação de um livro, intitulado
“Por Trás da Porta, que Matemática Acontece?” (Fiorentini & Miorim, 2001a),
contendo as investigações dos professores em forma de análises narrativas.
O processo colaborativo de investigação da própria prática, nessa comunidade
investigativa, apresenta alguma proximidade com os Lesson Studies japoneses (Doig &
Groves, 2011), pois compreendiam: um momento inicial de planejamento conjunto das
aulas de cada professor; um segundo momento de implementação do plano de aulas,
acompanhado de registros escritos, algumas gravações em áudio das atividades de sala
de aula e documentação das produções escritas dos alunos; e um terceiro momento de
análise conjunta das atividades desenvolvidas, onde os registros das atividades e a
produção dos alunos eram avaliados e analisados coletivamente inicialmente para
projetar novas ações e, posteriormente, para escrever o livro (Fiorentini & Miorim,
2001b, p.35).
O terceiro contexto é o Grupo de Sábado (GdS) que surgiu, em 1999,
congregando, de um lado, professores de matemática da escola básica, interessados em
estudar, refletir e investigar sobre o ensino de matemática nas escolas; e, de outro,
acadêmicos (professores universitários, mestrandos e doutorandos), interessados em
investigar o processo de formação contínua e de desenvolvimento profissional de
professores em um contexto colaborativo de reflexão e investigação sobre a prática. O
GdS tem essa denominação porque reúne-se quinzenalmente, aos sábados de manhã.
O GdS, embora tenha sido um subgrupo do PraPeM, sempre teve autonomia de
gestão, e ambos têm buscado discutir e desenvolver estudos e aportes teórico-
metodológicos, sob uma perspectiva sociocultural, que concebam e tratem: (1) a prática
pedagógica em matemática como complexa e plural, envolvendo múltiplas dimensões,
em constante mudança; (2) o professor de Matemática como sujeito capaz de produzir e
ressignificar, a partir da prática, saberes da atividade profissional e sua própria
constituição profissional; (3) a formação do professor como um processo contínuo e
sempre inconcluso, que tem início antes da licenciatura e se prolonga por toda vida,
ganhando força, principalmente, nos processos compartilhados de práticas reflexivas e
Usuario
Nota
fiq ai
4
investigativas (Carvalho e Fiorentini, 2013). Até 2013, o GdS havia publicado, entre
artigos em periódicos e anais, cinco livros contendo histórias e investigações, sendo a
maioria análises narrativas de aulas de matemática.
Estes grupos têm sido objeto de análise de vários estudos. Dentre esses,
destacamos Fiorentini et al. (2005) e Fiorentini (2009) que têm investigado a
aprendizagem dos participantes do GdS em seus 12 anos de existência.
Uma característica comum dessas comunidades é sua heterogeneidade, pois
contam com a participação de professores da escola e de formadores e acadêmicos da
universidade. Essa heterogeneidade, entretanto, não é vista de maneira hierárquica ou
desigual, mas com diferentes conhecimentos e excedentes de visão entre os participantes
(Bakhtin, 2003). Os professores da escola básica, por exemplo, trazem como excedente
de visão, em relação aos formadores e futuros professores, um saber de experiência
relativo ao ensino da matemática nas escolas e conhecem as condições e as
possibilidades de determinadas tarefas e práticas letivas. Os conhecimentos que
mobilizam e produzem são situados na complexidade de suas práticas, sendo esta a
principal referência nos processos de negociação de sentidos e significados durante a
elaboração de tarefas, de análise de episódios ou situações de ensino-aprendizagem, a
apropriação ou validação dos saberes da prática escolar e também daqueles oriundos da
pesquisa acadêmica.
Os formadores da universidade, por sua vez, têm como excedente de visão as
teorias e metodologias a partir das quais produzem análises, interpretações e
compreensões das práticas escolares vigentes, com o propósito de problematizá-las e
desnaturalizá-las. Os futuros professores, que começaram a participar do GdS a partir de
2003, apresentam como excedente em relação aos demais participantes, suas habilidades
no uso das tecnologias de informação e comunicação e uma maior proximidade ou
compreensão das culturas de referência dos alunos da escola básica.
Antes de prosseguir, cabe esclarecer que não se trata de fazer apologia às
comunidades de aprendizagem ou de investigação. Isso porque, conforme Hargreaves e
Fink (2007), nem toda comunidade de aprendizagem gera empoderamento ou maior
autonomia profissional a seus participantes; depende dos motivos e propósitos pelos
quais uma comunidade se constitui e se engaja. As comunidades, por exemplo, podem
se constituir monitoradas, controladas ou movidas por agentes externos e/ou por
motivos pragmáticos contrários à emancipação dos estudantes e professores. Por outro
lado, as comunidades de empoderamento e de liderança sustentável tendem a construir
5
seus próprios conhecimentos e motivações, movidos por princípios político-
emancipatórios ou de inclusão e justiça social, tais como, melhorar a aprendizagem de
todos os alunos, isto é, promover uma aprendizagem problematizadora, ampla e
profunda para todos os jovens e não apenas para alguns.
Essas considerações nos permitem vislumbrar diferentes modalidades de
comunidades investigativas de professores. Elas podem ser acadêmicas, escolares ou
situar-se na fronteira entre essas duas.
As acadêmicas, por serem monitoradas/governadas institucionalmente pela
universidade, podem ser endógenas, voltadas aos seus problemas teóricos e sem vínculo
com as práticas escolares. Podem ser colonizadoras das práticas escolares, ou
colaborativas, abertas aos problemas e demandas dos professores escolares e das
escolas, podendo manter uma agenda de estudo conjunto dos mesmos, como é o caso do
grupo PraPeM e do grupo colaborativo que surgiu do curso de especialização.
As escolares, por serem governadas a partir do território escolar, também podem
ser endógenas, abertas à colaboração e parceria da universidade, ou esperam ser
colonizadas pela universidade.
As comunidades fronteiriças se situam na fronteira entre a escola e a
universidade e possuem, normalmente, mais liberdade de ação e de definição de uma
agenda própria de trabalho e estudo, sem serem monitoradas institucionalmente pela
escola ou pela universidade. A fronteira é um lugar livre onde podem se reunir
interessados de comunidades diferentes que se aventuram na construção e
problematização do conhecimento, podendo ser também investigativas. Por outro lado,
é também lugar de perigo, de transgressão do instituído na escola e na academia. Tendo
em vista as diferentes origens de seus participantes, os encontros tendem a ser
entremeados por narrativas de acontecimentos que ocorrem nas comunidades de origem
de cada um. Entretanto, o que se produz e se aprende nessa comunidade tem forte
impacto na vida pessoal e profissional de cada participante.
O GdS pode ser considerado uma comunidade fronteiriça, pois, embora os
professores se reúnam na Universidade, os encontros acontecem, aos sábados, dia em
que não há atividades acadêmicas formais, nem controle de frequência e de
desempenho. Há, entretanto, um compromisso mútuo entre os participantes, de construir
um espaço conjunto e agradável de estudo e investigação, e liberdade para propor
agendas de trabalho de interesse comum.
Usuario
Nota
algo que se origina ou nasce no seu interior
Usuario
Realce
Usuario
Nota
Esta frase é muito marcante
6
Aprender em comunidades profissionais
Sob a perspectiva da teoria social da aprendizagem (Lave e Wenger, 1991;
Wenger, 2001), toda aprendizagem é situada em uma prática social que acontece
mediante participação ativa em práticas de comunidades sociais e construção de
identidades com essas comunidades. Os saberes em uma comunidade de prática são
produzidos e evidenciados através de formas compartilhadas de fazer e entender dentro
da comunidade, as quais resultam de dinâmicas de negociação, envolvendo participação
plena ou periférica legítima2 e reificação na (ou a partir da) comunidade.
A participação, conforme nossa interpretação dessa teoria, é um processo pelo
qual os membros de uma comunidade compartilham, discutem e negociam significados
sobre o que fazem, falam, pensam e produzem conjuntamente. Participar, portanto,
significa engajar-se na atividade própria da comunidade; apropriar-se da prática, dos
saberes e dos valores da mesma e também contribuir para o desenvolvimento da própria
comunidade, sobretudo de seus membros e de seu repertório de saberes (Fiorentini,
2009).
Reificação, para Wenger (2001), significa tornar em coisa, a qual não se refere
apenas a objetos materiais ou concretos (textos, tarefas, materiais manipulativos).
Refere-se também a conceitos, ideias, rotinas, registros escritos e teorias que dão
sentido às práticas da comunidade. A participação e a reificação são, portanto,
processos interdependentes e essenciais à aprendizagem e à constituição de identidades
de/em uma comunidade.
A teoria da aprendizagem situada em uma comunidade de prática, conforme
Lave (1996, p. 8), se apoia em quatro premissas referentes ao conhecimento e à
aprendizagem na prática:
(1) O conhecimento sempre se constrói e se transforma ao ser usado;
(2) A aprendizagem é parte integrante da atividade no/com o mundo, em
todos os momentos. Ou seja, produzir aprendizagem não se constitui um
problema;
(3) O que se aprende é sempre complexamente problemático;
(4) A aquisição de conhecimento não é uma simples questão de absorver
conhecimento.
2 Lave & Wenger (1991) desenvolveram o conceito de participação periférica legítima para explicar e
compreender o processo pelo qual os recém-chegados a uma comunidade tornam-se membros plenos da
mesma. Pois, para um recém-chegado tornar-se, mediante participalção e aprendizagem situada, um
membro qualificado e conhecedor das práticas de uma comunidade, precisa se envolver em um
movimento que vai da periferia a uma participação plena e efetiva nas práticas da comunidade.
7
Tendo por base essa teoria, questionamos: o que seria, então, uma aprendizagem
docente em uma comunidade de professores de matemática que atuam na escola básica?
Que práticas seriam formativas no interior dessa comunidade? Nesse contexto, parece
fazer sentido os programas de formação contínua de professores que têm, como foco de
estudo, a análise e problematização das práticas de ensinar e aprender dos próprios
professores envolvidos. Nesses programas, os formadores e professores podem, juntos e
colaborativamente, elaborar tarefas de ensino ou analisar episódios de aula, os quais
podem ser registrados em vídeos ou narrados oralmente ou por escrito pelos próprios
professores participantes. Esses programas se justificam, porque as práticas cotidianas
(com seus procedimentos, discursos e conhecimentos) são carregados de valores,
finalidades e saberes que, embora sejam plenos de sentido e significado para a formação
e o desenvolvimento humanos, podem, devido à naturalização e à rotina das mesmas –
como destaca Foucault (1977) – ter-se tornado naturais e válidas por si mesmas,
ocultando desvios, ideologias e relações de poder.
No processo de problematização e desnaturalização das práticas cotidianas de
ensinar e aprender nas escolas, as comunidades de aprendizagem profissional
heterogêneas podem ser úteis, sobretudo se envolverem pessoas com diferentes
conhecimentos e práticas sociais. Conforme Ponte et al (2009), embora as comunidades
heterogêneas tenham mais dificuldades em construir uma linguagem comum e ajustar
seus propósitos e modos de trabalho, os diferentes pontos de vista e a diversidade de
experiências e de saberes dos participantes podem proporcionar maior empoderamento à
comunidade, principalmente no sentido de perceber, identificar e analisar nuances,
possibilidades e limites das práticas que são objeto de estudo e trabalho do grupo. Essa
diversidade da comunidade pode, assim, resultar aos seus membros uma aprendizagem
mais intensa e profunda.
Ponte et al. (2009, p. 202), ao analisar três estudos3 que investigaram
aprendizagem docente em comunidades de professores de matemática, verificaram que
uma importante e significativa “variedade de uma comunidade de aprendizagem ocorre
quando essa comunidade se estabelece como uma comunidade de investigação, ou seja,
quando a investigação sobre algum assunto se torna parte do objetivo de todo o grupo”.
3 Apresentados no 15th ICMI Study: Fiorentini et al. (2005); Ponte & Serrazina (2005); Van den Heuvel-
Panhuizen & De Goeij (2005).
8
Essa, portanto, é uma poderosa forma de uma comunidade construir conhecimento e de
aprender, como veremos a seguir.
Aprender em comunidades investigativas
Toda comunidade investigativa é também uma comunidade de aprendizagem e
de prática. Mas nem toda comunidade de aprendizagem, mesmo que seja reflexiva, é
uma comunidade investigativa. A prática reflexiva difere da prática investigativa, por
esta última exigir um processo sistemático de tratamento de um fenômeno ou problema
educativo, isto é, a prática investigativa do professor pressupõe um processo metódico
de coleta e tratamento de informações acerca do fenômeno, conforme Beillerot (2001) e
Cochran-Smith & Lytle (2009). Exige que o professor-investigador, a partir de uma
determinada perspectiva (recorte, foco ou questão investigativa), faça registros escritos,
organize suas ideias e revise e analise suas práticas, buscando e produzindo, assim, uma
melhor compreensão do trabalho docente e, no final desse processo, “apresente
publicamente um relatório final escrito do estudo desenvolvido” (Fiorentini &
Lorenzato, 2006, p. 75).
Para Jaworski (2008, p. 312), o professor que participa de uma inquiry
community realiza investigações de aulas e assume, como parte de seu trabalho, o papel
de interrogar, explorar e analisar sua prática pedagógica.
Jaworski (2008) é uma educadora matemática que tem utilizado, em seus
estudos e pesquisas, o termo “inquiry community”. Ela, entretanto, distingue duas
maneiras de significar o termo inquiry no campo da Educação Matemática. Uma que
utiliza como ferramenta de ensino e aprendizagem, como é o caso das investigações
matemáticas ou do ensino com investigação. A outra o utiliza como uma forma de ser,
de modo que a identidade do indivíduo ou grupo, dentro de uma comunidade de
investigação, estaria enraizada em uma forma de inquérito:
Desenvolver a investigação, como uma forma de ser, envolve tornar-se ou assumir o
papel de um inquiridor; tornando-se uma pessoa que questiona, explora, investiga e
pesquisa, sendo esta uma prática normal. Essa visão tem muito em comum com o que
Cochran-Smith e Lytle (1999) têm denominado de ‘investigação como postura’, isto é, a
postura de professores que se engajam em um modo investigativo de ser (Jaworski,
2008, p, 312).
Essa identidade construída pelos professores em uma comunidade, que têm em
comum a reflexão e a investigação sobre a própria prática, se aproxima do que temos
9
chamado, apoiados em Cochran-Smith e Lytle (2009, p.57), de uma profissionalidade
docente calcada em uma postura investigativa:
O trabalho de investigação da prática assume que os praticantes geram conhecimento
local da prática, assumindo uma postura investigativa tanto sobre o conhecimento
gerado por outros fora do contexto local quanto sobre o que é construído através dos
esforços conjuntos dos praticantes, trabalhando em comunidades de investigação (p.
57).
Essa profissionalidade docente investigativa é, no presente estudo, concebida como
um dos indícios de desenvolvimento do professor em uma comunidade investigativa.
Essa profissionalidade, entretanto, não pode ser definida ou caracterizada apenas pelos
saberes base de uma profissão nem pela capacidade de os profissionais identificarem e
resolverem problemas em situação de incerteza; ela é perspectivada, também, a partir
dos princípios e valores ético-políticos cultivados pelos profissionais em uma
comunidade (Fiorentini, 2009).
Isso coloca em xeque as relações de poder que existem entre a comunidade
escolar e a comunidade acadêmica e, sobretudo, as políticas públicas.
Em uma comunidade investigativa, nós não estamos satisfeitos com o estado normal do
ensino. Estamos sempre enfrentando nossa prática com uma atitude de questionamento,
não para mudar tudo do dia para a noite, mas para começar a explorar o que é possível
fazer a mais, pensar diferente, fazer perguntas, e buscar entender, colaborando com os
outros na tentativa de fornecer respostas para elas (Wells, 1999). Nesta atividade, se o
nosso questionamento é sistemático e nos propomos intencionalmente a investigar
nossas práticas, nos tornamos pesquisadores (Jaworski, 2008, pp. 313-314).
Nesse contexto, tanto a profissionalidade investigativa quanto as comunidades
investigativas não nascem prontas. Elas constituem-se, primeiro, pelo questionamento,
problematização e desnaturalização do que se ensina e aprende na escola e que,
aparentemente, parece ser normal e, depois, por um processo sistemático de busca de
resposta ou compreensão dos questionamentos. Entendemos que a ruptura de uma
prática se dá pelo esgarçamento de sua continuidade e não pela sobreposição de algo
novo sem relacionar ou contrastar com a cultura vigente de sala de aula. É nesse
processo de problematização das práticas vigentes que a atuação dos formadores ganha
importância e relevância, sobretudo na fase inicial de uma comunidade com pretensões
de se tornar investigativa. Com o tempo, todos os professores que desenvolvem uma
postura investigativa assumem essa função de questionar as práticas.
O estudante que ingressa na pós-graduação passa a fazer parte da comunidade
acadêmica, a qual geralmente é formada por pequenas comunidades de investigação que
são os grupos de pesquisa. Nessas comunidades, os estudantes produzem e negociam
significados sobre o que estão aprendendo ou investigando, compartilham reflexões e
10
saberes, aprendem a produzir trabalhos científicos, assumem o compromisso de realizar
investigações e usam, para atingir seus objetivos, os recursos e exigências da
comunidade acadêmica. Embora os debates e a comunicação oral sejam largamente
utilizados nessas situações, a linguagem escrita representa um papel de destaque como
instrumento mediador da aprendizagem e da comunicação. Nesse sentido, podemos
considerar o texto da dissertação de mestrado ou de doutorado como a principal
reificação do professor-pesquisador na comunidade acadêmica.
Desenvolvimento Profissional e aprendizagem
O desenvolvimento profissional do professor é concebido, neste estudo, como
um processo contínuo que se estende ao longo de toda sua vida pessoal e profissional,
tendo início antes de ingressar na licenciatura e que “acontece nos múltiplos espaços e
momentos da vida de cada um, envolvendo aspectos pessoais, familiares, institucionais
e socioculturais” (Rocha e Fiorentini, 2006, p. 146). Trata-se, portanto, de um processo
complexo que envolve o professor como uma totalidade humana permeada de
sentimentos, desejos, utopias, saberes, valores e condicionamentos sociais e políticos
(Fiorentini e Castro, 2003).
Nessa concepção de desenvolvimento profissional, o professor é visto, conforme
Ponte (1998), como principal protagonista de sua formação e de sua cultura
profissional, exercendo um movimento de “dentro para fora” em busca do
conhecimento e da melhoria de sua prática docente.
Day (1999), ao apontar alguns indicadores de desenvolvimento profissional dos
professores, destaca que esse é um processo pelo qual
Os professores reveem, renovam e ampliam seu compromisso como agentes de
mudança, tendo em vista os fins e valores do ensino. É também o meio pelo
qual eles adquirem e desenvolvem criticamente o conhecimento, as habilidades
e a inteligência emocional essencial para o bom pensamento, planejamento e
prática profissional com crianças, jovens e colegas, através de cada fase de suas
vidas docentes (pp. 20-21).
Day (1999) entende o desenvolvimento profissional como um processo que
envolve múltiplas “experiências espontâneas de aprendizagem”, considerando-as como
indicadores ou marcos na descrição do desenvolvimento do professor. Entretanto, o
modo como os professores aprendem em comunidades, ainda tem sido pouco
investigado pelos estudos que tratam do desenvolvimento profissional. Além disso,
11
esses indicadores e marcos têm sido obtidos a partir das percepções dos próprios
professores, em entrevistas ou narrativas orais e escritas, ou extraídos de outros estudos
sem que sejam investigados detalhadamente em situação de prática ou em situação de
análise compartilhada em uma comunidade.
Entendemos que as circunstâncias e o contexto em que as aprendizagens
docentes ocorrem têm papel importante na compreensão do processo de vir a ser
professor e na constituição de sua profissionalidade docente. O contexto de
aprendizagem pode ser uma oficina, a própria sala de aula, um grupo colaborativo
homogêneo ou heterogêneo que tem como prática discutir e analisar as práticas de
ensinar e aprender.
Embora essas aprendizagens sejam situadas, os professores aprendem e se
desenvolvem profissionalmente, conforme Cochran-Smith e Lytle (2009), quando
geram conhecimentos locais da prática através do trabalho em comunidades
investigativas e teorizam e constroem seu trabalho em articulação com o contexto
social, cultural e político mais amplo. Nesse sentido, o desenvolvimento profissional,
para ser captado, requer, por parte do investigador, a realização de movimentos de
aproximação e de afastamento em relação ao que é circunstancial ou pontual no
processo de aprendizagem, pois o processo de constituição do professor só pode ser
percebido e compreendido pelo investigador em um movimento diacrônico, isto é, ao
longo do tempo. A história oral e as reificações escritas pelo próprio docente podem
ajudar o investigador a ter acesso aos sentidos e significados que cada professor atribui
ao seu processo de desenvolvimento profissional.
Por isso, o investigador, interessado em compreender como os professores
aprendem e se desenvolvem profissionalmente, necessita centrar foco de análise, ora em
momentos pontuais e situados da aprendizagem docente e ora no movimento diacrônico
do processo de desenvolvimento do professor ao longo do tempo, considerando os
contextos, lugares, práticas e interações que podem ter contribuído para seu processo de
constituir-se professor. A seguir, explicitamos com mais detalhes o processo
investigativo deste estudo.
Aspectos metodológicos deste estudo
Para identificar, descrever e compreender algumas aprendizagens profissionais
decorrentes da participação do professor-pesquisador em comunidades investigativas, e
Usuario
Realce
Usuario
Nota
Muito importante esta frase para minha pesquisa.
12
também alguns indícios de seu desenvolvimento profissional, podemos desenvolver
estudos de caso de professores que participaram, com trabalhos de investigação, em
comunidades investigativas.
De acordo com a teoria social da aprendizagem (Lave & Wenger, 1991), a
aprendizagem situada em uma comunidade pode ser captada mediante descrição e
análise dos processos de participação e reificação dos participantes nessa comunidade.
Com base nesse objetivo e nesse pressuposto, podemos, então, eleger a seguinte
questão investigativa como orientadora para o presente estudo: Que aprendizagens são
evidenciadas pelo professor que investiga sua prática e participa de comunidades
investigativas e como se desenvolve profissionalmente, mediante participação e
reificação nesses contextos?
Um modo de investigar a aprendizagem em comunidades de prática, segundo
Lave e Wenger (2002, p. 168), é por meio da análise da “produção, transformação e
mudança histórica das pessoas” que delas participam e como se desenvolvem ao longo
do tempo e constituem sua identidade no seio das mesmas.
Uma das formas de compreender e descrever esse processo é por meio da
análise narrativa, a qual consiste, segundo Bolívar, Domingo e Fernandez (2001), em
produzir a narração de um acontecimento, ou do processo de desenvolvimento de uma
pessoa mediante atribuição de sentido e significado, destacando os elementos comuns e
singulares que configuram a história de cada sujeito ao longo do tempo. A tarefa do
investigador, nesse tipo de análise, “é configurar os elementos dos dados em uma
história que unifique e dê significado aos dados, com a finalidade de expressar, de modo
autêntico, a vida individual, sem manipular a voz dos participantes” (p. 110)4.
Com o propósito de desenvolver uma análise narrativa com certa profundidade,
optamos em tomar apenas um caso. Trata-se do caso de uma professora brasileira
(Eliane Matesco Cristovão)5 que teve uma trajetória de participação e reificação em três
comunidades com características investigativas.
Dentre os vários docentes de escola com participação em comunidades
investigativas que temos em nosso banco de dados, a professora Eliane é o único caso
de participação em três dessas comunidades. A presente investigação adquire, assim, o
status de um estudo de caso, pois “apresenta características singulares que o faz
4 Para saber mais sobre análise narrativa ver:
Galvão (2005): http://www.scielo.br/pdf/ciedu/v11n2/12.pdf Riessman: http://cmsu2.ucmo.edu/public/classes/Baker%20COMM%205820/narrative%20analysis.riessman.pdf Freitas & Fiorentini (2007): http://webp.usf.edu.br/itatiba/mestrado/educacao/uploadAddress/Horizontes_25_1_06[11067].pdf Cury (2013): http://alexandria.ppgect.ufsc.br/files/2013/04/Fernando1.pdf. Carvalho (2007): http://ruc.udc.es/dspace/bitstream/2183/5039/1/AS_3-2.pdf. 5 Por consentimento e preferência da própria professora, mantivemos, neste estudo, seu nome real.