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APOSTAR NO FORA, NO INTERVALO, NA EXPERIMENTAO Wenceslao M.
Oliveira Jr
Faculdade de Educao/Universidade Estadual de Campinas
NOTA INICIAL Este material um documento de trabalho para os
professores do Projeto Anual com Escolas 2014-2015 Construes em
trnsito, do Servio Educativo da Fundao de Serralves. Constitui-se
como um intervalo entre os slides projetados (em formatao
centralizada) e os apontamentos lidos na conferncia homnima (em
formatao justificada) realizada no dia 31 de janeiro de 2015,
acrescido de referncias de pesquisa, bibliogrficas e flmicas (em
notas de rodap), bem como acrescido tambm de alguns trechos que
foram suprimidos na leitura oral ou escritos nessa nova organizao
do material, visando aclarar algumas relaes entre as diversas
partes e, sobretudo, as relaes entre a aposta no Fora e a aposta na
escola. a. INTRODUO Agradeo Liliana Coutinho e ao Servio Educativo
da Fundao de Serralves o convite para vir conversar com vocs,
professores, sendo eu um pesquisador da rea de Educao em suas
interfaces com a Geografia e com a Filosofia da Diferena e a Arte e
a linguagem do cinema a partir de obras de videoartistas e de vdeos
amadores disponveis na internet que foram realizados por jovens ou
crianas1. Me propus o desafio de trazer aqui coisas que estou
estudando nesse momento, portanto, coisas que ainda so um tanto
nebulosas para mim e, justamente por isso, me estimulam a pensar e
conversar acerca delas. Por isso, minha exposio ser por fragmentos
um tanto soltos... at porque estou deslocando conceitos e imagens
de seus contextos iniciais, de modo a faz-los operar (efetuar
intervalos, abrir vos) no nosso problema comum, a saber, mobilizar
ideias e possibilidades em torno da expresso construes em trnsito.
Inicio apresentando como eu, nesse perodo em Portugal, sinto a
lngua portuguesa como uma construo em trnsito em meu corpo (de)
falante. 1 Pesquisa de Ps-doutoramento As geografias menores nas
obras em vdeo de trs artistas contemporneos, realizado no
Departamento de Geografia da UMINHO (Portugal), sob superviso da
Professora Ana Francisca de Azevedo, financiada pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico-CNPq (Brasil),
processo 200131/2014-1, e integrada Rede de Pesquisa Imagens,
geografias e educao, a qual se organiza em torno de algumas
preocupaes e apostas de encontrar nas imagens potncias para dar
linguagem s experincias espaciais contemporneas vividas pelos mais
novos: Como dar s crianas e aos jovens linguagens que s comunicam e
informam, sem lhes propor tambm que fraturem essas linguagens para
poderem dizer dizer? , expressar o que lhes acontece com e neste
espao onde vivemos? Como permitir e incentivar essas crianas e
esses jovens para que possam expressar que espao este onde vivem?
... uma vez que este nosso espao est num turbilho, em franco devir,
em mltiplas metamorfoses e rotas, mais ou menos aleatrias ou
previsveis, incapaz de ser testemunhado nas linguagens que temos j
dadas e conhecidas? Quando a linguagem falta somos forados a
inventar linguagem para testemunhar o que se passa...
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Antnio Antnio
Se esquecermos que falamos
brasileiro ou portugus encontraremos origens experimentais
nesses dois grande blocos sonoros
que se configuram de muitas mesmas palavras e tantas outras
diferentes que,
ao se imiscurem no bloco onde antes no existiam, fazem todo esse
bloco tocar
outras margens da lngua (o seu Fora), outros possveis modos de
dizer
Antnio2. Quando esse Antnio improvvel (mas exatamente onde
estou!) se fizer linguagem, esse Fora ter se dobrado no dentro da
lngua (atravs de meu corpo falante), deixando de ser seu Fora e
constituindo-se em mais uma potncia de expresso daqueles que
utilizam essa lngua, fazendo dela uma construo em trnsito pelos
corpos e pelo espao Inicio por esta apresentao de mim mesmo, pois
ela me parece, tambm, uma aposta na criao, no exerccio da vida como
criao constante, como construo em trnsito quando nos abrimos ao
Fora que nos afeta. Trago a vocs, resumidamente, algumas das
maneiras como tenho pensado esse Fora, a partir de autores
variados, alguns dos quais sero mencionados adiante. apostar no
encontro com o FORA: 1. como a heterogeneidade das coisas que nos
afetam todo o tempo: heterogeneidade do espao, daquilo que nos
chega de fora 2. como as foras insconscientes que, de repente, se
manifestam e nos tiram para fora 3. como um problema que nos leva a
criar (a pensar), uma falta produtiva que leva as coisas (o espao,
a linguagem, a educao) para outras margens, outras possibilidades,
outras potncias 4. como aquilo que j constitui o sensvel (o mundo)
no qual vivemos, mas que ainda no nos sensvel: o que excede o real
dentro do real, 2 Trecho final de crnica escrita em setembro de
2014, aps o primeiro ms de minha estadia no Porto, tendo aqui
chegado no dia 8 de agosto.
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excede a experincia na prpria experincia sensvel, aquilo para o
qual ainda no h linguagem para expressar Num mundo como o nosso,
onde tudo parece oscilar (e oscila!) rapidamente, penso que esse
Fora ainda mais constituinte da vida do dia-a-dia. Seria
interessante apostar no Fora como maneira de (nos) inserir no mundo
(como) foras criadoras desse mesmo mundo (foras que tornariam
sensvel o ainda insensvel nas experincias)? Parece-me que apostar
no Fora seria tambm apostar no intervalo e na experimentao como
maneiras de conhecer e pensar, uma vez que esse nfimo (e imenso)
Fora no existe (e j existe!), mas ser (!) extrado daquilo que se
cria no embate mesmo entre os corpos (humanos e inumanos) e as
novas experincias por eles vividas. b. ATLAS e MESA DE TRABALHO
Trago a vocs duas noes operativas que me parecem potentes como
aposta em um conhecimento que se faz nos intervalos, nas
experimentaes com e atravs das imagens. ATLAS (como mina de
paradoxos: descobertas e exploses) e MESA DE TRABALHO (como
deslocamento do vertical para o horizontal; como inveno de
intervalos entre as imagens; como exerccio coletivo da imaginao;
como lugar das experimentaes do pensamento: criao) ABY WARBURG
(historiador da arte alemo e de famlia judaica e) E GEORGES
DIDI-HUBERMAN (historiador da arte francs e de famlia judaica e)
Trago aqui algumas fotografias do ateli de Aby Warburg e das
pranchas que constituem o atlas de imagens que ele criou. Muitas
outras esto disponveis na internet e tambm em livros3.
3 Como, por exemplo, no livro em que me amparei para essa
conferncia: Atlas ou a Gaia Cincia Inquieta, de Georges
Didi-Huberman (Coleo Imago, editada por KKYM, Lisboa, 2013). So
deste livro todas as citaes e pginas acerca das noes de Atlas e
Mesa de trabalho.
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Georges Didi-Huberman escreve que usamos o atlas combinando dois
gestos, aparentemente distintos: comeamos por abri-lo procura de
uma informao concreta, mas, uma vez obtida essa informao,
continuamos calcorrear as suas bifurcaes em todos os sentidos, sem
podermos encerrar a coleo de pranchas seno depois de deambular
durante algum tempo, de forma errtica e na ausncia de uma inteno
precisa, atravs de sua floresta, do seu ddalo, do seu tesouro. At a
vez seguinte, igualmente intil e fecunda. Assim se compreende, pela
evocao deste uso desdobrado, paradoxal, que o atlas, sob uma
aparncia utilitria e inofensiva, bem poderia revelar-se, para quem
o olha com ateno, um objeto dplice, perigoso ou mesmo explosivo,
ainda que inesgotavelmente generoso. Numa palavra, uma mina (p.11).
Destaco na palavra mina o sentido de lugar de onde se extraem
riquezas da terra e o sentido de artefato humano cujo vir-a-ser
explodir e destruir quem o tocou. O atlas de Warburg introduz no
saber a dimenso do sensvel, o diverso, o carter lacunar de cada
imagem. Contra toda pureza esttica [de cada imagem sozinha],
introduz (...) a hibridez de toda a montagem (p.12) (...) Assim, o
atlas [de Warburg] faz explodir, logo partida, os limites (p.13)
das imagens como prova de algo, como revelao (e contemplao) daquilo
que nela est impresso. O projeto de conhecimento subjacente ao
atlas visa fazer uma amostragem do caos (pois) reconhece a disperso
do mundo e, ao mesmo tempo, envolve(-se), no projeto da
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sua recolha (p.122), que distribui as imagens umas em relao s
outras, mas tendo na imaginao seu operador mais importante. Isso
porque a imaginao atua justamente nos intervalos entre as imagens,
na cor negra (p.243) que ali se espraia, a um s tempo unindo e
dispersando as imagens para outras conexes para fora daquela
prancha especfica. Sendo mobilizado pela inquietude e a remontagem,
o atlas de Warburg proporia um pensamento das relaes inesgotveis
entre as imagens, fazendo com que as imagens deixem a condio de
quadros a serem contemplados e passem a atuar como coisas sobre uma
mesa de trabalho. Saem do vertical da parede e horizontalizam-se
sobre o objeto simples e cotidiano da mesa, em volta do qual os
humanos se renem, trabalham e se alimentam. Sobre a mesa de
trabalho deixamos de ser somente olhos, uma vez que as imagens ali
dispostas nos exigem todo o corpo mos e tronco para mover as
imagens entre si, ps e pernas para ir em busca de outras imagens,
ouvidos para escutar as proposies dos outros ao redor da mesa
comum, boca para..., corao para..., fgados para... pois tudo ali
passageiro, disperso e aberto. A mesa mais no do que o suporte de
um trabalho que pode ser continuamente retomado, modificado, seno
mesmo recomeado. apenas uma superfcie de encontros e de disposies
passageiras: nela se coloca e dela se tira, alternadamente, tudo
quanto o seu plano de trabalho (...) acolhe sem hierarquia. A
unicidade do quadro d lugar, numa mesa, abertura contnua de novas
possibilidades, novos encontros, novas multiplicidades, novas
configuraes (p.18). A mesa de trabalho organiza-se em torno da noo
operatria do intervalo. na criao de intervalos entre imagens que
esse tipo de conhecimento pode advir ao trazer para o centro do
pensamento a inquietao (com e na disperso do mundo), a imaginao
(como exigncia) e as remontagens (como possibilidades sempre
abertas). Mas se Warburg e Didi-Huberman operam com as imagens e
com os conceitos de Atlas e Mesa de trabalho na busca do que ver a
ser o tempo?, em minhas pesquisas busco o que vem a ser o espao?.
Como tal, trago a vocs uma obra de cinema que se configura, ao meu
ver, como um atlas de imagens e opera como mesa de trabalho na
busca do que vem a ser (a) cidade? e tambm opera na busca do que
vem a ser (o) cinema (documentrio)?. c. ESPAO e CINEMA Dando incio
esta parte, antes de vermos um pequeno trecho inicial do filme
Acidente4, gostaria de lhes mostrar duas coisas desse mesmo filme
que, de certa maneira, se ligam ao atlas e mesa de trabalho: 1. A
cor azul operando de forma semelhante cor negra nas pranchas do
atlas de Warburg, mas inserindo a mais um elemento no intervalo
entre as imagens.
4 Acidente. Cao Guimares e Pablo Lobato. DOCTV (Ministrio da
Cultura). Brasil, 2005. Disponvel em:
https://www.youtube.com/watch?v=iogTRiK5V_Q
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Distinto do atlas de Warburg (onde a cor negra anuncia um
vazio-cheio a ser percorrido pela imaginao), a cor azul nas imagens
da cidade chamada TOMBOS o signo que une e separa o atlas das
imagens de uma dessa cidade e tambm o cu documental, emprico, que
havia sobre aquela cidade no momento das filmagens. Ao ser tomada
tambm como esse algo (o vazio-cheio) que liga as diversas imagens
(e as demais formas urbanas que nelas aparecem nos cantos), a cor
azul escapa do sentido nico de cu, de coisa emprica, e passa tambm
a incorporar outros sentidos, como, por exemplo, desse algo que faz
tudo girar ou ficar parado somente nos ngulos ou nas bordas do
quadro, nunca ao centro dele. Azul como intervalo e no s como coisa
em si (cu). Talvez pudssemos dizer, um puro azul, aberto a mltiplos
sentidos e sem sentidos porque nenhum sentido se fixa e paralisa a
imaginao que percorre essa cor... 2. O poema que atravessa o filme
desde seu incio como cinema at suas reverberaes em cada espectador,
sendo tambm o intervalo operador das prprias filmagens e da
montagem final, conforme se pode ler no resumo do filme presente no
site de Cao Guimares: Um poema composto por 20 nomes de cidades de
Minas Gerais, Brasil, o corpo rtmico deste filme, que se abre ao
imprevisto e ao improviso. Instigados pelos nomes destas cidades, a
equipe percorre por uma primeira vez cada uma delas. Num movimento
de imerso e submerso, o filme se faz atravs de duas camadas
narrativas - uma formada pela histria do poema e outra pelos
eventos ordinrios que surgem acidentalmente diante da cmera em cada
uma das cidades. Percepo aberta para deixar-se mesclar ao cotidiano
de cada lugar e atenta para eleger um acontecimento qualquer,
possvel de se relacionar com o poema e capaz de revelar o quanto a
vida imprevisvel e acidental.5
5 Disponvel em: http://www.caoguimaraes.com/obra/acidente/
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Vamos, ento, assistir ao trecho inicial do filme Acidente (0:19
a 3:00). Na primeira parte destes pouco menos de trs minutos
teremos a apresentao sonoro-visual das vinte cidades, feita a
partir dos vinte mapas municipais acompanhados por vinte sons
diferentes finalizados pela indicao do conjunto geogrfico a que se
referem aqueles signos brancos em tela negra: 20 CIDADES MG-BRASIL.
Cada um deles reaparecer ao longo do filme acompanhado do nome da
cidade a que se refere, na ordem indicada pelo poema. Logo a
seguir, reaparecer o primeiro dos signos com seu nome: HELIODORA.
No bloco de imagens e sons desta cidade veremos cenas captadas numa
noite de fortes relmpagos e sem iluminao eltrica dos postes
urbanos. Somente a luz dos relmpagos e os faris dos automveis
iluminam as imagens: iluminao acidental e movente que faz circular
pelo quadro sombras e negrumes que se movem, mesmo estando imveis
na paisagem filmada. Em seguida, sob a luz de uma vela, entra em
quadro a primeira personagem humana do filme: um homem gay, todo
maquiado, caminha at a casa onde vive enquanto fala da
(im)possibilidades do amor homossexual. O prximo bloco de imagens e
sons ser o da cidade de VIRGEM DA LAPA, a qual, no poema, torna-se
codinome de HELIODORA, dobrando a primeira cidade sobre a segunda e
vice-versa, as quais, conjuntamente se espraiaro por todo o poema
(e filme) na histria de amor (im)possvel que ele nos conta no entre
linhas e entrelinhas e imagens e sons e cortes e nomes e sequncias
e sentidos e sem sentidos e... que grudam e escapam do filme. Qual
poltica de pensamento (conhecimento) estaria posta em Acidente?
Fazer do espao uma mesa de trabalho na qual se misturam diversas
experincias na montagem de uma obra que faz oscilar cada tipo de
experincia espacial com a cidade, provocando muito mais intervalos
entre elas que concluses acerca delas,
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ao torna-las no s intercambiveis entre si, mas cambiveis a
tornarem-se poema, dobradas pela escrita a meras ilustraes
brincalhonas, poticas, doridas, de um amor vivido intensamente, mas
to brutalmente reprimido que nem mesmo na memria suas marcas se
mantiveram. O filme ir terminar ao som da cadeira de balano onde
estivera uma velha senhora que (no) se lembra mais das DORES DE
CAMPOS. E isso nos indica que, talvez, ele nos coloque diante de
uma situao de exlio, de abandono tal, que o testemunho em palavras
impossvel, porque ali a linguagem falta porque a experincia vivida
foi to intensa que nunca se fez palavra. O poema6 constitui-se como
algo que flutua sobre as imagens e sons, tendo sido o artifcio para
o prprio processo de captar e editar essas imagens e sons. No
entanto, ao mesmo tempo, o poema mantm-se abstrato ao filme, fora
dele, escapa do filme e, justamente por isso, faz oscilar os
sentidos das imagens entre aqueles que se ligam ao poema e aqueles
sentidos que se ligam ao espao do lugar ou mesmo ao nome do lugar,
impedindo que esses sentidos se estabilizem, provocando uma variao
contnua neles, fazendo com que os sentidos sejam tambm sem
sentidos: HELIODORA a virgem do poema ou o homem gay ou o nome da
cidade? Melhor pensar que Heliodora tudo isso, a virgem do poema e
o homem gay e o nome da cidade e aquela escurido iluminada somente
pelos raios e luzes dos automveis e a dor de um amor no vivido e
tantos outros sentidos que se desdobram no intervalo criado entre o
poema e as imagens do filme. Pois os sentidos de cada uma dessas
cidades esto sempre a escapar de algum sentido que se queira
estvel, uma vez que no intervalo entre poema e cidade que eles se
constituem. E se constituem como sentidos oscilantes, instveis,
variantes. Espao e cinema fazem-se outros ao serem atravessados por
esse poema escrito em tela, tocam o seu Fora, dobrando sobre si
novas potncias, ampliando-se como coisas, dimenses do mundo sempre
em construo. Nos slides que se seguem trago alguns conceitos e
autores7 que operam em meus percursos de pensamento, em minha mesa
de trabalho da pesquisa e em meu atlas de imagens. 6 Nesse poema,
se verdade que a posio da escrita foi mantida em seu lugar habitual
esquerda, tambm verdadeiro que as letras desviam-se do habitual e
aparecem somente em maisculas, rasurando o sentido de nome prprio
que tem nas cidades e mergulhando nos mais flexveis e variveis
sentidos adverbiais, substantivos e adjetivos. Juntando-se a isto a
ausncia de pontuao, a escrita potica ganha fora e arrasta consigo a
escrita mais informativa dos nomes das cidades para outras
paragens, outras conexes, sobretudo com as imagens e sons do filme,
mas tambm para as tantas outras imagens e sons de cidades, sejam
aquelas grafadas ali, sejam quaisquer outras, cujos nomes j oscilam
em ns, em derivas poticas: rio de janeiro (a janeiro e)/so
paulo(!)/salvador (de minha) vitria/(mantenha-me) fortaleza/(para
chegar ao) porto velho (e) alegre/(e rever seu) belo horizonte. Os
nomes das cidades como matria-prima de poemas... a lngua escrita em
deriva, em novas potencias ao incorporar mais um fora em seu
dentro. 7 ALBET, A.; BENACH, N. Doreen Massey un sentido global del
lugar. Barcelona: Editorial Icaria, 2012. DELEUZE, G. Crtica e
clnica. So Paulo: Editora 34, 1997. DELEUZE, G. Francis Bacon Lgica
da sensao. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, G e
GUATTARI, F. Kafka para uma literatura menor. Lisboa: Assrio e
Alvim, 2003. DELEUZE, G. Lgica do sentido. So Paulo: Perspectiva,
2011. DELEUZE G. e GUATTARI, F. Mil plats capitalismo e
esquizofrenia. V. 5. So Paulo: Editora 34, 1997. GIL, J. A imagem
nua e as pequenas percepes. Lisboa: Relgio Dgua, 2005. MASSEY, D.
Pelo espao uma nova poltica da espacialidade. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2008.
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O ESPAO8 COMO FORA Espao como todas as trajetrias heterogneas e
coetneas que nos chegam e nos interpelam, nos colocam diante de
certas experincias que nos desestabilizam (DOREEN MASSEY; gegrafa
inglesa e com trabalhos desenvolvidos na Amrica Latina: Mxico e
Guatemala e Venezuela e...) e nos foram a pensar (a criar) outras
maneiras de estar no mundo (DELEUZE E GUATTARI; filsofo e psiclogo
e... franceses e...). Espao como aquilo que nos impede de viver
somente com aquilo e aqueles que nos so reconhecveis e amados.
Espao, portanto, como a inevitvel diferena que nos afeta de
mltiplas maneiras, conscientes e inconscientes (pequenas percepes
JOS GIL; filsofo portugus e francs e nascido em Moambique e...).
Num espao como o nosso, onde o novo se apresenta a cada esquina e a
cada clique, preciso inventar a linguagem a cada novo acontecimento
para que se abra nela um novo possvel onde possa emergir o
testemunho (EUGNIA VILELA; filsofa portuguesa e com trabalhos
desenvolvidos na frica e) dos muitos acontecimentos e experincias
que se apresentam como indizveis de to novos que so. nesse sentido
que preciso investir contra a linguagem em busca de faz-la outra
para expressar este indizvel, ainda que saibamos que este
testemunho dado no nos dir o fato, mas sim a sua reverberao no
corpo que testemunha, em linguagem, o acontecimento. Cada
testemunho um ato inaugural na e da linguagem, pois abre a
linguagem ao seu Fora O Fora no sendo o fato, mas aquilo que nos
afeta a partir dele. No propriamente a experincia que dele tivemos,
mas justamente aquilo que dela escapa, VILELA, E. Silncios tangveis
corpo, resistncia e testemunho nos espaos contemporneos de
abandono. Porto: Edies Afrontamento, 2010. 8 Para Doreen Massey,
uma das potencialidades do espao a justaposio circunstancial de
trajetrias previamente no conectadas [criadora de um] estar juntos
[...] no-coordenado (Massey, 2008, p.143). O espao, portanto, no ,
de forma alguma, uma superfcie (idem, p.160), mas sim a esfera da
coexistncia de uma multiplicidade de trajetrias (idem, p.100)
humanas e no-humanas, uma simultaneidade de estrias-at-agora (idem,
p.29) que envolve contato e alguma forma de negociao social (idem,
p.143). O espao uma eventualidade (idem, p.89), um produto contnuo
de interconexes e no-conexes [...] sempre inacabado e aberto
(p.160), estando, portanto, sempre em construo (idem, p.29). O
espao o entrelaamento de trajetrias em curso, das quais algo novo
pode emergir. O movimento, o encontro e a construo das relaes entre
as trajetrias levam tempo (idem, p. 138). O espao como devires
coetneos (idem, p.267) implica o inesperado (idem, p.165).
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que excede prpria experincia como algo dizvel, reconhecvel, para
a qual j se teria linguagem. nesse sentido que podemos dizer que o
Fora o que atravessa os corpos expostos a uma nova experincia,
fazendo com que O DENTRO seja a DOBRA DO FORA Errar antes no espao
que no tempo. Errante e no errado. E errante aquele que deixa-se ir
no terreno, no que ainda no humano e humanizado, aquele que
encontra-se em trnsito, que encontra-se antes do construdo, antes
da casa. Eu no quero essa casa (...) quero o mais difcil: quero o
terreno9, escreveu CLARICE LISPECTOR (escritora brasileira e de
famlia judaica e nascida na Ucrnia e...). Se assim o fizermos
estaremos nas proximidades da natureza (das foras inconscientes, no
reconhecveis), daquilo que ainda inexpressivo, mas que, ao nos
afetar, exige expressar-se atravs de ns: manifestar o inexpressivo
criar, pois quando a arte boa porque tocou no inexpressivo, a pior
arte a expressiva, aquela que transgride o pedao de ferro e o pedao
de vidro, e o sorriso, e o grito10 (CLARICE LISPECTOR) d. A
LINGUAGEM QUE FALTA Trago a vocs agora alguns exemplos da escrita,
onde busco apontar a falta de linguagem como potncia para os
encontros com o Fora. num escrito11 de FERNANDO PESSOA (poeta
portugus, crescido na frica do Sul e adorado no Brasil e...), est
escrito: Eu direi aquela rapaz, violando a mais elementar das
regras da gramtica, que manda que haja concordncia de gnero, como
de nmero, entre a voz substantiva e a adjetiva. E terei dito bem;
terei falado em absoluto, fotograficamente, fora da chateza, da
norma e da quotidianidade. No terei falado: terei dito. 9
LISPECTOR, C. Mineirinho (conto). Disponvel em:
http://contobrasileiro.com.br/?tag=mineirinho-clarice-lispector 10
LISPECTOR, C. A paixo segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. 11
Fragmento 84 do Livro do desassossego (Bernardo Soares).
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O que Pessoa nos aponta que dizer construir algo e que construir
algo colocar aquilo que j existe em trnsito. Ele, ao fugir da
chateza, da norma e da quotidianidade da lngua, no s expressou
aquilo que ele, como sujeito de uma forma de falar, gostaria, mas
fez, sobretudo, a prpria lngua vivificar-se, a prpria lngua
portuguesa ganhou outras margens onde todas as demais pessoas podem
banhar-se, ampliando assim tambm as suas possibilidades de
expresso. O FORA tambm aquilo que se coloca como problema12:
problema como aquilo que nos impulsiona a criar
(a pensar) Como fazer a lngua escapar das marcas
heteronormativas ou masculinas na linguagem cotidiana? O Acordo
Queerogrfico, publicado em 2014 numa revista de Coimbra, indica,
por exemplo, trs possibilidades de escapar dos gneros e provocar
certos desmoronamentos na lngua comum: 1. escrever com um x no
lugar do a ou do o que indicariam feminino e masculino: alunxs e
professorxs; 2. escrever ora no masculino ora no feminino num mesmo
texto, de forma que os professores do incio tornem-se as
professoras no meio; 3. escrever na tenso da prpria conjugao de
gnero: os professoras, as pssaros. Em outras palavras, tanto no
poema de Fernando Pessoas quanto no problema que move o Acordo
Queerogrfico13, na falta de linguagem que a linguagem foi forada a
outras possibilidades e desta forma ganhou vida. Descubramos,
portanto, onde a linguagem falta14. Penso que so os corpos jovens
os que mais vibram nestas experincias novas para as quais a
linguagem falta15. Ao tentarem dizer disso que lhes passa e lhes 12
Lembrando que o que conhecido habitual, e o habitual o mais difcil
de conhecer, isto , de ver como problema, isto , de ver como
estranho, afastado, fora de ns. (Friedrich Nietzsche, em A gaia
cincia, p.73. Edio da Companhia das Letras, 2001) 13 O Acordo
Queerogrfico foi publicado no nmero sobre Epistemologias Feministas
do e-cadernos, uma publicao do Centro de Estudos Sociais da
Universidade de Coimbra (http://eces.revues.org/1539). 14 Apenas
como nota de passagem, buscando criar algumas conexes entre os
fragmentos que lhes estou apresentando, interessante notar que
Didi-Huberman escreve que, para Warburg, o atlas de imagens era um
aparelho para recolocar o pensamento em movimento, precisamente
onde a histria se havia detido, precisamente onde as palavras ainda
falhavam (p.20). 15 Quando aqui cheguei me disseram que os jovens
portugueses ouvem muita msica brasileira recente e que dela tiravam
muitas palavras e expresses em seu falar, experimentavam, por assim
dizer, uma outra lngua na sua lngua. Parece-me que isso poderia ser
tomado como um indicativo de que a lngua na qual esses jovens
cresceram no lhes tem permitido dizer (no sentido dado por Fernando
Pessoa de ter dito, a despeito da lngua), no lhes tem permitido
dizer dar expresso quilo que se passa em seus corpos nas relaes que
estabelecem com o mundo no qual vivem. Em
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acontece, gaguejam, titubeiam, usam onomatopeias ou palavras
muito gerais. Ao serem colocados diante do impossvel, da
impossibilidade de expressarem o que lhes passa, esses
corpos-jovens so forados a ir contra a prpria linguagem ao nela
inserirem essas gagueiras, o que implica fraturas na linguagem,
oscilaes que so, elas mesmas, buscas de uma nova linguagem. Ao
fazerem isso a linguagem que est sendo ampliada em suas margens.
Ser que eles encontrariam nas imagens formas para expressar o que
lhes passa? E dessa maneira tambm no encontraramos maneiras de
fazer com que as prprias imagens (e o espao nelas criado)
encontrassem o seu Fora, vivificando-se? Da fazer a pergunta que
lhes trago no prximo slide: Como fazer escapar as imagens de suas
funes exclusivamente informativas, figurativas, ilustrativas?
Experimentaes em vdeo que intensificam a dimenso criadora (mais que
criativa) do Fora, daquilo que antes da experimentao realizada na
obra em vdeo ainda no era vdeo (porque na obra se inventa um outro
tipo de imagem) e nem vida para alm do vdeo (no e do espao, como
algo aberto, como uma construo em trnsito, pelas e nas linguagens e
obras) porque na obra se habitou o espao de outra maneira, em outro
estilo (ANA GODINHO; filsofa portuguesa e nascida em Portugal e)
Para lidar com o problema apontado na pergunta aqui posta s
imagens, trago trs exemplos, dois deles extrados de vdeos de
artistas e um de um vdeo realizado por meninos de zona rural. Os
trs vdeos extraem potncias outras das imagens que as fazem escapar
das funes meramente informativas, figurativas, ilustrativas (ainda
que mantendo-se tambm nessas funes: ampliao de potncia por rasuras,
fraturas, fugas e no por negao ou superao). 1. As cidades de FERROS
e PALMA no filme Acidente (20:30 a 24:06) de Cao Guimares (artista
brasileiro e que viveu muitos anos em Londres e...) Nestes dois
blocos de imagens e sons presentes no filme, o cinema no mais se
coloca como aquilo que captura o real e diz sobre ele, mas como
algo que o configura, nele age e inventa imagens e sons compondo
esse real. Imagem e paisagem no se opem, nem se distanciam, mas sim
se co-constituem mutuamente, sendo uma o intervalo da outra, onde
novos devires so experimentados no encontro entre cinema e espao,
entre paisagem e imagem: verdadeiras geografias intervalares.
outras palavras, parece-me que esses jovens daqui encontram nas
msicas de l aquilo que poderamos chamar de fora da linguagem, algo
que ainda no linguagem, mas j tem elementos que expressam o sensvel
vivido por eles.
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Na cidade de FERROS h somente duas cenas, nas quais o movimento
de subir (no pau de sebo) e descer (no salto para o rio) que se
apresenta. Mas se o subir est visvel no quadro (e composto por um
misto de sensaes de alegria que nos chega via msica e de
angstia/expectativa/torcida que nos chega do esforo do menino para
alcanar o topo do pau), o descer encontra-se, em ambas as cenas,
fora do quadro, invisvel na imagem na primeira cena (o menino
escorrega para fora para baixo do quadro flmico) e invisvel na
paisagem na segunda cena (o menino mergulha para fora do visvel ao
mergulhar no rio). Em que espao se sobe e desce, se escorrega e
mergulha? No espao que se faz no entre no intervalo imagem e
paisagem, dobrando uma sobre a outra indefinidamente,
metamorfoseando-as e forando metamorfoses em nossas percepes e
relaes com as imagens e o cinema. A cidade de PALMA apresenta algo
a que o realizador do filme diz de seu cinema: uma tela onde o gro
da pelcula de super-8 t explodindo o tempo inteiro, j algo acontece
a. Existe aquela coisa qumica do gro do super-8 que voc v naquele
gro. Aquilo... se voc filmar o nada com aquilo j alguma coisa16.
Esse aquilo a imagem, o desfazimento do referente, da paisagem, o
fazer-se imagem, a imagem que dobra-se na paisagem, excede o real
contemporneo ao constitu-lo atravs imagem. Olhamos as paisagens de
Palma atravs das imagens e esse excesso, esses gros quase invisveis
que nos afetam inconscientemente que iro compor o vir a ser do
olhar que daremos quela cidade e tambm ao mundo para alm dela caso
tomemos essa maneira de olhar que o cinema de Cao Guimares nos d
para compor outras formas de mirar qualquer paisagem. Posso dizer,
ento, que as estratgias de estilo desse artista foram o espectador
a ficar no filme, mais que isso, a ficar na imagem, a deter-se a, a
prestar ateno e reparar no exatamente na forma em que a imagem se
apresenta, mas nas foras que emergem junto aos materiais e formas
singulares que configuram a imagem. Foras que s sentimos como
efeito sobre nossos corpos, portanto, no visveis na imagem, mas
sensveis atravs dela. 2. O curta-metragem A bola17, de Orlando
Mesquita (Artista moambicano e que estudou cinema em Cuba e...)
Neste, como em outros vdeos como Rodas de rua, o artista toma como
personagens principais crianas que inventam coisas a partir do que
encontram na heterogeneidade do espao onde vivem. No vdeo A bola a
inveno se far necessria, uma vez que a bola com que jogavam futebol
foi levada embora quando o dono da mesma foi retirado de campo pelo
seu responsvel. As demais crianas que ficam precisam inventar outra
bola e, por isso, comeam a reparar no que h a volta e, com
inusitados materiais, criam uma bola que ir reiniciar o jogo. Por
sua vez, o prprio vdeo ambguo o suficiente para deixarmo-nos na
dvida se a bola que foi retirada de campo j no era a mesma que foi
recriada durante o vdeo. Onde seria, enfim, o incio da inveno? O
vdeo parece nos dizer: no h incio, sempre e sempre inveno de uma
coisa tornada outra pressionada pela necessidade e possibilitada
pelos materiais disponveis... 16 Entrevista Ver uma fbula, com Cao
Guimares, disponvel em: https://www.youtube.com/watch?v=n88Ieqcy1Rw
17 Disponvel em: http://ma-schamba.com/738413.html
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3. O pequeno vdeo de menos de um minuto realizado por crianas
brasileiras e americanizadas e inventoras de outros parangols e
outros tipos de vdeos e...18 Nesse vdeo escutamos a msica Crazy in
love, de Beyonc, ser dublada por um menino vestido apenas com uma
capa de plstico preto, material colorido e flexvel como os tecidos
utilizados por Hlio Oiticica (artista brasileiro que viveu sua
segunda infncia nos Estados Unidos e que teve grande insero nas
comunidades afroamericanas e) quando criou os parangols.
O espao, como aquilo que (nos) chega de fora, se coloca desde o
incio do processo de criao dos parangols. Na Wikipdia19 l-se que A
visita ao Morro da Mangueira (...) colocou Hlio Oiticica em contato
com o xtase do samba, com seus ritmos dionisacos e com uma
comunidade organizada em torno da criao. (...) A partir da
experincia com a dana, surge o parangol, nome que Oiticica encontra
em uma placa que identificava um abrigo improvisado, construdo por
um mendigo na rua, na qual se lia 'Aqui o Parangol'." Novamente o
espao, como 18 Disponvel em:
https://www.facebook.com/video.php?v=422301101260579&pnref=story
19 Disponvel em:
http://pt.wikipedia.org/wiki/H%C3%A9lio_Oiticica
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algo atravessado tambm pela palavra, afeta o artista que o
desdobra nos corpos humanos. Da dobra efetivada pelo inusitado
(porque heterogneo) encontrado no espao, o artista desdobra
sentidos que o abrigo improvisado, feito com os materiais que o
mendigo havia encontrado no acaso de sua deambulao pela cidade,
gruda nas cores e formatos variados dos tecidos, bem como gruda na
variedade finita de corpos que os vestiro. Na reverberao dessas
duas variaes (o entre criado por tecidos e corpos) um infinito de
possibilidades, pois os parangols so obras que s se efetivam em sua
existncia artstica quando so vestidos, fazendo com que tanto o
corpo quanto a obra sofram metamorfoses, j que cada corpo diferente
e desdobrar da vestimenta gestos diferentes. Notar que os panos
coloridos no so a obra. Essa se d no que faz emergir no e do corpo,
visual e gestualmente, que, ao mesmo tempo, faz emergir movimentos
e transparncias nos panos coloridos. Corpos e panos se
metamorfoseiam pelo contato, contagiando-se mutuamente. Os
parangols, portanto, so obras sempre em construo, abertas, em
trnsito pelos corpos e gestos que aqueles panos coloridos vestem e
desvestem... Mas o que quero chamar ateno neste ltimo vdeo ,
sobretudo, para a falta como potncia de criao de linguagem e de
mundos (outros possveis que se desdobram do impossvel). Se as
roupas dos dolos pops cantores, atores, jogadores de futebol,
modelos so objetos que criam formas de subjetivao prontas, ou seja,
agem como modelos sobre nossos corpos e gostos, a falta da
possibilidade de ter essas roupas na zona rural pobre se efetiva
nesse menino como criao na prpria repetio que ele tenta fazer. So
os materiais que se negam a repetir, so eles que foram o corpo do
menino a realizar outros gestos que no os da cantora. novamente o
Fora, o que se cola no corpo, se conecta a ele e o desdobra em
inveno. Tambm os materiais ganham vida, so significados e usados de
outras maneiras ao entrarem em novas relaes com os corpos e os
demais materiais. Tijolos viram sapatos, pedao de plstico usado
para cobrir materiais de construo vira calda de vestido. E esses
materiais, por serem pesados, ao invs de liberarem o corpo do
menino para mimetizar a dana rpida da cantora, o aprisionam em
gestos lentos (nas pernas) e rpidos (no tronco e braos), gestos
trpegos, confusos, titubeantes que levam a dana a gaguejar e, justo
a, a dana inventa-se como outra coisa aqueles novos gestos poderiam
vir a compor coreografias cada vez mais elaboradas... INSERIR
IMAGEM OU IMAGENS DO VDEO Tudo ali se vivifica. Todo o conjunto de
materiais, corpos e signos que ali circulam, contagiam-se de outras
possibilidades, como a do riso do menino que dana e tambm daquele
que filma. Sim, porque o incio do vdeo, com a pose performtica (uma
verdadeira parada dramtica) do danarino-Beyonc, indica que pensaram
o vdeo na mimetizao dos clipes e produtos televisivos, com todos os
tempos e gestos pensados para comear e terminar em sintonia com o
tempo do vdeo. O riso deste vdeo to criador que fora o vdeo a
terminar antes da msica e em meio aos movimentos (de retirada do
palco de terra batida) do personagem que dublava. Um fiasco
enquanto mimetizao, uma potncia enquanto criao se nos atentarmos
para aquilo que pode ser extrado do que foi impossvel.
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Foi tambm ao lidarem com o impossvel (conseguir os materiais
como os da cantora) que fez esses meninos criarem (outros possveis)
com o que havia ali, na heterogeneidade do espao a afetar seus
corpos: restos de construo, materiais soltos, dispersos, sem uso
naquele momento, sem utilidade, sem funo qualquer e, por isso
mesmo, livres para serem recombinados na mesa de trabalho do desejo
daqueles meninos. Esses meninos criaram ao tomar uma coisa da
prpria cultura de massa como material sobre o qual impuseram mnimas
variaes e desvios20; esses meninos agiram com vontade de arte e
apontaram a vida mais comum e cotidiana como uma construo em
trnsito, mesmo em meio a todas as formas de captura da sociedade
massificada. Para finalizar esta penltima parte, fao minhas a
pergunta e a resposta de Ana Godinho. porque a arte, cada vez mais,
deve ligar-se nossa vida quotidiana? Para nos salvar (...) da
reproduo acelerada de objectos de consumo, arrancar a esta vida uma
pequena diferena, introduzindo a mais estranha seleco, (...) um
estilhaamento21, para que outras combinaes possam existir nos atlas
de imagens que todos vamos agrupando em nossas mesas de trabalho
(pensamento). e. A POTNCIA (DO FORA) DA ESCOLA No seria a criao de
atlas uma estranha seleo e um estilhaamento onde operaramos como em
mesas de trabalho, de maneira a fazer emergir, talvez, essas
pequenas diferenas que atravessam esses vrios Fora aqui elencados
(como espao, como dentro, como problema, como excesso)? Se as
expresses das crianas e dos jovens forem realizadas maneira dos
atlas de Warburg, onde os intervalos atuam como fora de pensamento
(e criao), algo dessas foras do Fora poderia vir a tornar-se
sensvel nas conexes improvveis entre um pedao de ferro, um pedao de
parede, um sorriso e um grito? Viriam ali circular sentidos e sem
sentidos que, uma vez vibrados num corpo poderiam emergir em alguma
obra (de arte)? Se certo que a escola seja uma das instituies que
fazem parte da massificao da sociedade (ainda que no via consumo de
mercadorias, mas sim do consumo de informaes necessrias), tambm
certo que h nela a maior fora de experimentao que nossa sociedade
possui, uma vez que ali onde a maior parte dos encontros, dos
contatos e dos contgios entre crianas e jovens se d. E, num mundo
to pleno de novidades como o nosso, so os corpos deles os mais
sensveis a captar, nesses encontros, as inquietaes e possibilidades
desse Fora que nos atravessa. Importante lembrar que, nas ltimas
dcadas, temos assistido, com certa conformidade e mesmo certo
conformismo, implementao de um modelo educacional praticamente nico
a ser seguido por todos os lugares e povos do mundo, a ponto de
poder haver sistemas universais de avaliao do desempenho 20 O
irrisrio, talvez pequeno demais, condio para fazer aparecer essa
coisa singular, que ousa sem mais nem porqu. Ana Godinho, As
probabilidades desiguais de Francis Bacon, Revista Poisis, n. 20.
2012, p. 51. Disponvel em: www.poiesis.uff.br/PDF/poiesis20/04.pdf
21 Na pgina 128 do livro Linhas do estilo esttica e ontologia em
Gilles Deleuze, de Ana Godinho (editado pela Relgio Dgua,
2007).
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de alunos e professores dentro desse modelo. Sem dvida, essa uma
macropoltica poderosa que conforma os sistemas educativos e as
prticas educativas ao redor do planeta, tendo como efeito mais
pernicioso o abandono quase absoluto de processos singulares que
visariam inventar a educao no prprio cotidiano da escola. Tal
modelo vem aprisionando-nos professores e alunos s prticas ditadas
como aquilo que se deve fazer (e que uma quantidade incomensurvel
de coisas) de modo a nos impedir de pensar e inventar o que se pode
fazer numa escola especfica, num contexto singular (como, afinal,
so todos os contextos). Perde-se a as prticas de escuta das
experincias que esto sendo vivenciadas (e, claro, de tudo que as
excede), uma vez que estamos sempre por demais ocupados e
preocupados (quando no acuados) em realizar aquilo que j est
prescrito como inevitvel, inexorvel (consequentemente necessrio)
para que faamos o futuro de nossas crianas e jovens o melhor
possvel. Ao fazer isso retiramos delas e deles justamente o futuro,
pois que, seguindo Hannah Arendt22, o futuro (a ser efetivado pelos
que chegam ao mundo) sempre algo distinto do que ns, os que j
estamos no mundo, pensamos ser. Mas se no permitimos que o novo
aparea, se impedimos aos que chegam ao mundo pautas para o futuro,
estamos sim conformando o futuro desses jovens e crianas conforme
nos dizem, no presente, que ele ser, ou seja, fazendo do futuro uma
previso do presente e no um tempo aberto a ser inventado pelos que
nele vivero. Penso que negar esse grande modelo educacional no nos
levaria a combate-lo. Acredito que o combate a ele seria (ser)
tanto mais forte se e quando conseguimos efetivar fraturas nele
mesmo, fazendo-o desmoronar por dentro, tornar-se insustentvel nele
prprio a partir de aes variadas e, sobretudo, cotidianas. Da
apostar no plano da micropoltica como local de combate. Combate que
visa rasurar, esburacar, fraturar, fazer gaguejar as coisas que
sustentam o modelo, como, por exemplo, o sentido meramente
informativo, figurativo e ilustrativo das imagens presentes nas
escolas, uma vez que isso as coloca na condio somente de provas e
documentos que confirmam as informaes necessrias que o modelo
educacional busca estabelecer a todos, impedindo que elas, as
imagens, ganhem tambm a potncia de linguagem com a qual expressar o
que se passa nas experincias e, talvez, dar expresso ao Fora que
tambm as constitui, s foras que atuam nas experincias como seu
excesso que pede passagem para vir a configurar um novo sensvel, um
novo mundo. Isso um tanto perigoso. H enormes riscos, pessoais e
institucionais, que corremos ao optar por deslocarmos o currculo
para o lugar de algo que est em vias de se fazer, como uma construo
em trnsito, como aquilo que se configura a partir das
possibilidades, das experimentaes, das perguntas que fazemos, dos
problemas que decidimos enfrentar, dos combates que estabelecemos
com as experincias das crianas e jovens. Cabe aqui aclarar que
esses combates so com e no contra algo. Combates como aquilo que
afirmamos e no aquilo que negamos. Combater pela possibilidade de
dar ouvidos ao que se passa nos corpos das crianas e jovens , me
parece, sobretudo criar escutas s experincias novas com as quais
eles se debatem no seu dia-a-dia contemporneo. Escutar o que se
coloca para eles como problema ainda sem expresso ou com expresso
oscilante. E no devemos buscar escapar da oscilao, mas sim
encontrar maneiras corpos, linguagens, materiais... para
inserirmo-nos nessa oscilao, tomando a oscilao como o problema e o
problema como aquilo que nos impulsiona a criar e a pensar. 22 No
ensaio Crise da educao, presente no livro Entre o passado e o
futuro, editado pela Perspectiva, 1979.
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Essa oscilao s se torna(r) um problema no sentido daquilo que
nos impede de agir e pensar e sentir quando buscarmos nega-la como
territrio possvel onde existir, o que leva(r) a buscarmos
territrios fixos onde todas as respostas j esto dadas. Parece-me
ser isso o que fazemos, por exemplo, em uma escola-educao onde ns
professores j sabemos tudo o que devemos fazer e pensar e ensinar e
informar. No entanto, tambm sabemos ns, professores que sabemos
muito pouco do que podemos fazer ali com os nossos alunos e com o
que h na escola singular onde trabalhamos. Mas caberia perguntar:
quando e de que maneiras seria possvel (e potente) partir dessas
prticas de escuta dos jovens e crianas para conseguir atuar na
mobilizao delas, arregimentar conhecimentos e informaes e materiais
e imagens (criar atlas!), inventar mtodos e ritmos e espaos para
reunir a disperso de coisas, de maneira aleatria, aos problemas
elencados nas falas e gaguejos dos alunos? E insistir tambm em
provocar desvios (tenses e problematizaes) onde as escutas
apontarem para respostas prontas ou falas submetidas aos jarges da
cultura (mdias, famlia, igreja, escola, nacionalismos, clubes
masculinos e femininos...), pois essas falas prontas e jarges
(clichs!) paralisam-nos para pensar o impensado, pensar o novo que
pode advir das experimentaes e remontagens entre os materiais e
falas e informaes e... nos intervalos que se fizerem sentir quando
algum problema da vida contempornea ali se colocar com intensidade.
Que esse monte de coisas (materiais, ideias, questes,
tensionamentos...) seja trazido para a escola (para as atividades
escolares) como para uma mesa de trabalho, tomada como um local
comum onde se dispem e recolhem heterogeneidades e encontra-se
(pensa-se, cria-se) relaes mltiplas entre elas. Escola como um
espao onde o conhecimento proliferante em torno do que j h nela
mesma. Seria possvel (n)a escola inventar maneiras de lidar com o
que j h, deixando de lado aquela sensao de falta como aquilo que
aprisiona os corpos e desejos na busca do que ainda no h e apostar
nessa outra falta na falta de linguagem para expressar as novas
experincias? Pois essa outra falta sim um excesso, esse excesso que
constitui o Fora que j nos configura porque nos afeta, mesmo que
dele ainda s sintamos seus efeitos, aqueles que nos chegam das
pequenas percepes inconscientes23. Apostar no que se cria na falta
e no no que se lamenta nela. Se a bola de futebol est furada e no h
dinheiro para comprar outra, inventemos um jogo em que a bola usada
assim, furada e muxibenta, e, para isso, ser necessrio criarmos
outras regras, outros gestos, outros tempos, outros ritmos para
jogar. Outros corpos (humanos e inumanos) viro a configurar-se no
encontro, no intervalo entre o que h e que vir a existir na
experimentao disso que h. Ser necessrio exigir pensamento, ser
necessrio pensar de fato (criar!), com intensidade, para que a
partir da falta a vida se vivifique ali. 23 Para Jos Gil, as
pequenas percepes ultrapassam mesmo a percepo trivial, pois no se
do mais como simplesmente cognitivas ou unicamente sensoriais.
Trata-se agora de uma percepo de foras e no somente das formas. A
atmosfera formada pelas pequenas percepes torna-se um meio que
impregna imediatamente os corpos, dissipando as fronteiras entre os
corpos e as coisas, tornando o interior coextensivo ao exterior,
como se o espao do corpo se dilatasse, prolongando seus limites num
campo onde h afeco, e possveis metamorfoses, mtuas entre homem e
mundo.
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Apostar, portanto, nessa outra falta uma maneira de prestar
ateno ao Fora tomando-o como o que j h , insistir em reparar
naquilo que j est a, no espao e no dentro, para que estejamos
sensveis s foras que emergem (como o excesso) das experincias de
modo a permitir que as obras que realizemos expressem essas foras
inconscientes (que nos afetam mesmo no sendo humanas, mesmo no
sendo signos reconhecveis na cultura porque ainda a excedem), foras
que, apesar de inexpressivas configuram as pequenas percepes que
constituem o sensvel, o real, a vida que ns vivemos e onde vibram
os corpos de nossos jovens alunos. Escola como lugar onde a potncia
de mobilizao do Fora poderia ser imensa, tanto daquilo que (nos)
chega de fora, o espao, como do fora que a desdobra do dentro,
aquilo que (nos) tira para fora. Fora que (nos) extrai outros
possveis modos de habitar o espao, a linguagem (a educao?) e a ns
mesmos (de preferncia nos desfazendo dos significados de espao
nacional identidades que se dobram sobre ns e nos impedem de
devirmos outros... afinal, as prprias nacionalidades j o so
oscilantes, verdadeiras e intensas construes em trnsito) nesse
sentido que apostar no Fora apostar na escola como potncia criadora
(mais que criativa), pois nela onde passam a maior parte de seu
tempo meninos e meninas como esses dos vdeos A bola ou que danam
Crazy in love. Meninxs cujos corpos vibram e experimentam tudo sua
volta o que lhes chega de fora tudo o que lhes exige expresso o que
lhes tira para fora tudo o que os constrange a vida o que se coloca
como problema e, nessas experimentaes, talvez, extraiam algo do
sensvel que ainda no era sensvel, abrindo passagens (dando
linguagem?) ao excesso de real que compe o real, ao criarem nfimas
variaes no que j havia nos intervalos (e vos) entre a experincia e
ela mesma, entre as imagens e a cor negra (ou branca, ou azul, ou
verde...) que penetra entre elas no corte entre cenas, nas bordas
dos quadros, nas aberturas entre sons e imagens, nxs... MUITO
OBRIGADO e...!