Ao andar encontro Deus: vivências do sagrado e profano nas Folias de Reis no Vale do Guaporé (Rondônia) AVACIR GOMES DOS SANTOS SILVA* 1 VALDINEI BACKES DA SILVA** Resumo Os grupos de folias de reis são exemplos da necessidade humana de interligar o profano e sagrado. O encanto e a complexidade dessa tradição são os condutores da pesquisa apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Geografia-UERJ. Nossos objetivos são: provocar a quebra de preconceitos em relação às folias de reis e interpretar seus signos, os significados e representações. Para tanto, contamos com as contribuições de Rosendahl (1999, 2007), Cassirer (1994), Landau (2013) e Chauí (2000a, 2000b) entre outros. Quanto a metodologia realizamos o estudo etnogeográfico e o acompanhamento das folias dos municípios de Novo Horizonte, Santa Luzia, Castanheiras entre dezembro/2015 a janeiro/16, e de Alta Floresta entre dezembro/2017 e janeiro/18. No decorrer desses dias mergulhamos nas águas claras e profundas das folias de reis. Frente a tantas expressões de religiosidades propomos a classificação de cinco elementos entre a vivencias das folias de reis do Vale do Guaporé (Rondônia): os identitários; os estruturantes; os sociabilizantes; os profanos e os sagrados. As folias de reis interligam o profano e sagrado e nos faz crer na capacidade da criatura se elevar ao criador. 1 Introdução A ideia central deste escrito é apresentar as espacialidades que compõem os grupos de Folias de Reis do Vale do Guaporé (Rondônia), os quais rememoram os caminhos realizadoss pelos Três Reis Magos: Melquior, Gaspar e Baltazar, em busca do menino Jesus. A folia de reis é uma tradição cultural oriunda da Espanha e Portugal, que fora trazida para o Brasil por influencias dos jesuítas e da Família Real. Sua origem mais remota está ligada a comemoração egípcia em homenagem ao Deus Sol, chamada de Festa do Sol Invencível, comemorada no dia 06 de janeiro. Em Rondônia, ao longo do território do Vale do Guaporé, a representação dessa passagem bíblica, repete-se ano após anos, desde as décadas 40/50 do século passado, quando por aqui chegaram as primeiras levas de migrantes nordestinos, para explorar os seringais e extrair a borracha, que era encaminhada para os EUA durante a “Segunda Guerra Mundial”. *Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Doutora em Geografia. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas de Espacialidades Amazônicas (GEAM). **Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Graduado em Pedagogia, Bolsista Voluntário do PIBIC/UNIR, Membro do GEAM. Apoio PIBIC/UNIR.
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Ao andar encontro Deus: vivências do sagrado e profano nas
Folias de Reis no Vale do Guaporé (Rondônia)
AVACIR GOMES DOS SANTOS SILVA*1
VALDINEI BACKES DA SILVA**
Resumo
Os grupos de folias de reis são exemplos da necessidade humana de interligar o profano e
sagrado. O encanto e a complexidade dessa tradição são os condutores da pesquisa apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Geografia-UERJ. Nossos objetivos são: provocar a quebra
de preconceitos em relação às folias de reis e interpretar seus signos, os significados e
representações. Para tanto, contamos com as contribuições de Rosendahl (1999, 2007), Cassirer
(1994), Landau (2013) e Chauí (2000a, 2000b) entre outros. Quanto a metodologia realizamos
o estudo etnogeográfico e o acompanhamento das folias dos municípios de Novo Horizonte,
Santa Luzia, Castanheiras entre dezembro/2015 a janeiro/16, e de Alta Floresta entre
dezembro/2017 e janeiro/18. No decorrer desses dias mergulhamos nas águas claras e profundas
das folias de reis. Frente a tantas expressões de religiosidades propomos a classificação de cinco
elementos entre a vivencias das folias de reis do Vale do Guaporé (Rondônia): os identitários;
os estruturantes; os sociabilizantes; os profanos e os sagrados. As folias de reis interligam o
profano e sagrado e nos faz crer na capacidade da criatura se elevar ao criador.
1 Introdução
A ideia central deste escrito é apresentar as espacialidades que compõem os grupos de
Folias de Reis do Vale do Guaporé (Rondônia), os quais rememoram os caminhos realizadoss
pelos Três Reis Magos: Melquior, Gaspar e Baltazar, em busca do menino Jesus.
A folia de reis é uma tradição cultural oriunda da Espanha e Portugal, que fora trazida
para o Brasil por influencias dos jesuítas e da Família Real. Sua origem mais remota está ligada
a comemoração egípcia em homenagem ao Deus Sol, chamada de Festa do Sol Invencível,
comemorada no dia 06 de janeiro.
Em Rondônia, ao longo do território do Vale do Guaporé, a representação dessa
passagem bíblica, repete-se ano após anos, desde as décadas 40/50 do século passado, quando
por aqui chegaram as primeiras levas de migrantes nordestinos, para explorar os seringais e
extrair a borracha, que era encaminhada para os EUA durante a “Segunda Guerra Mundial”.
*Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Doutora em Geografia. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas de
Espacialidades Amazônicas (GEAM).
**Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Graduado em Pedagogia, Bolsista Voluntário do PIBIC/UNIR,
Membro do GEAM. Apoio PIBIC/UNIR.
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Ao longo dos anos, o que temos assistido por essas plagas é a essência dos reisados,
vivenciada por seus devotos: homens, mulheres, negros, pardos, brancos, idosos, crianças,
jovens, adultos, ricos, pobres, católicos e até evangélicos. Assim, à primeira vista, esta
manifestação cultural de cunho religioso nos remete à ideia de práticas sociais, culturais e
religiosas inclusivas.
Dentre os cinco elementos: identitários; estruturantes; sociabilizantes; profanos e
sagrados, para título de especificação, abordaremos neste artigo o aspecto étnico, que se
apresenta tanto na dimensão identitária, quanto na socializante das folias de reis do Vale do
Guaporé. É a gente negra que promove a folia, que está aberta a quem queira dela fazer parte.
Dessa feita, as simbologias dos festejos das folias interligam gente, tempos, espaços e
lugares diferentes, por meio da tradição passada às várias gerações, tendo por base a oralidade,
a devoção, ensinamentos e práticas vivenciados por aqueles que, em comum, acreditam na
substanciação de um Deus que se fez homem.
Inúmeros símbolos, rituais, ritos e significados foram agenciados e (re)significados nas
Folias de Reis, a qual entre tantas outras manifestações de crença, reforçam a necessidade
humana de transcendência do espaço profano para o espaço sagrado (ELIADE, 2010). De
acordo com Cassirer: “não estando mais num universo meramente físico, o homem vive em um
universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte, a religião são partes desse universo”
(CASSISER, 1994: 48).
A fim de compreender a importância da religião como manifestação do transcendente
tomamos por base as contribuições teóricas de Cassirer (1994), Chaui (2000a, 2000b), Pereira
(2012), Risério (2012), Rosendahl (1999, 2007), Eliade (2010) e Landau (2013), os quais
concebem a religião não apenas como maquinaria de controle social e de alienação, mas como
possibilidade do ser humano relacionar-se com o sagrado, com a interferência de seus símbolos
e significados, por meio das hierofanias ou teofanias, manifestadas nos elementos da natureza.
Frente à riqueza e complexidade dessa manifestação religiosa e cultural recorremos aos
pressupostos metodológicos da História Oral (2011), para compreender como as folias são
vivenciadas por meio da ótica do narrador, que ao narrar suas tradições tipifica um saber fazer
para as próximas gerações de meninos e meninas, devotos dos Santos Reis.
Assim, além das narrativas de nossos colaboradores, os foliões, agregamos à pesquisa
de campo o estudo etnográfico, que implicou no acompanhamento dos grupos de folias durante
as caminhadas de dezembro de 2015 a janeiro de 2016, pelas casas, comunidades, linhas,
cidades, de dia, de noite, com sol e sob as chuvas torrenciais, típicas do verão amazônico.
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Esperamos que a socialização das nossas vivências contribua para maior entendimento
e reconhecimento cultural e religioso da nossa gente negra, branca e de outros tantos matizes,
que segue pelas plagas amazônicas crentes na visitação dos reis magos ao Menino Deus.
2 Os reis magos: andanças pelos caminhos da fé
As Folias de Reis, festejo popular originário da Espanha e de Portugal, datada por volta
do século XII, é uma dramatização, que alude à caminhada dos Reis Magos, Baltazar, Belquior
e Gaspar2, orientados pela Estrela Guia, em visita ao Menino Jesus. Ao encontrá-lo os reis
magos presentearam-no com ouro, incenso e mirra, os quais marcam a condição social
privilegiada da família do nazareno.
A partir de então, inúmeros grupos culturais agenciaram uma enorme simbologia e
subjetividade à folia, a partir de cada realidade local. Não se sabe ao certo quantos eram os reis,
não havendo bases históricas concretas se realmente eram três, mas subentende-se esse número
em função dos presentes descritos na narrativa bíblica, segundo o Evangelho de Mateus
(BLIBIA SAGRADA, 1982).
Há inúmeras representações artísticas, que fazem menção à quantidade de 123 reis
magos, e em outras os personagens são caracterizados como representantes das três “raças”
existentes no mundo. Assim, Belchior (ou Melchior) seria o representante da raça branca
(europeia) e descenderia de Jafé; Gaspar representaria a raça amarela (asiática) e seria
descendente de Sem; por fim, Baltazar representaria todos os de raça negra (africana) e
descenderia de Cam (SANTOS, 2005: s/p).
Negros, amarelos e brancos, postulados nessa citação, aludem às três “raças” percebidas
naquela época, organizaram-se para seguir em caravana rumo ao encontro do recém-nascido,
Menino Deus, sob orientação da Estrela Guia.
Por que no imaginário coletivo permanece a ideia de que foram três reis que viajaram
do Oriente até Belém? De onde vem esta invenção? Na Bíblia Sagrada (1982), não há indicação
da quantidade de magos e nem tão pouco das etnias ou dos nomes Baltazar, Bechior e Gaspar.
Por que a versão bíblica foi disseminada em detrimento a versão dos manuscritos do Reis
2 Embora o Evangelho de São Mateus não mencione quem nem quantos são os Reis Magos, os nomes de Belquior,
Baltazar e Gaspar foram atribuídos por um monge, conhecido como o “Venerável Beda” e significam,
respectivamente, Baltazar: “Deus manifesta o Rei; Belquior: “Meu rei é luz” e Gaspar: “Aquele que vai
magos.html>. Acesso em: 20 de maio de 2017. 3 O número 12 é repleto de simbologia nas folias. Este era a quantidade de reis magos, pertencentes as 12 tribos
de Israel, que seguiram em caravana durante 12 dias de viagem, ao menino Deus (LANDAU, 201).