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http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2013v1n31p35 ANTROPOFAGIA, MESTIÇAGEM E ESTRANHAMENTO: TRADUÇÃO EM (DIS)CURSO Alice Maria Araújo Ferreira Universidade de Brasília [email protected] Ana Helena Rossi Universidade de Brasília [email protected] Resumo: O objetivo do artigo é discutir a antropofagia em suas relações paradigmáticas com a tradução, e historicamente, dar continuidade ao sen- tido da Semana de Arte Moderna de 1922 e ao Manifesto Antropófago de 1928. Nesse sentido, importa destacar a antropofagia como movimento crítico baseado nos termos de “devoração/digestão/transformação”, pois se a arte (enquanto objeto) é, ao mesmo tempo,um processo crítico-teórico e artístico-criativo do fazer, logo a tradução pode ser definida nesses mes- mos termos. Isso implica também resgatar uma dupla relação da tradução, situando-a entre o “fazer” tradução e o “pensar este fazer da tradução, num movimento de autorreflexividade que sustenta o paradigma constru- ído nos Estudos da Tradução”. A consequência é colocar o tradutor em trêslugares de fala:tradutor, crítico e poiesiador. Nesse sentido, a tra- dução define-se como processo criativo (sujeito/tempo/espaço) e como processo crítico-teórico. Palavras-chave: Antropofagia. Tradução. Espaço “entre”. Estudos Da Tradução.
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Anthropophagy, metissage and strangeness translation on (dis)course

Mar 10, 2023

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Alison Mandeli
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http://dx.doi.org/10.5007/2175-7968.2013v1n31p35

ANTROPOFAGIA, MESTIÇAGEM E ESTRANHAMENTO: TRADUÇÃO EM (DIS)CURSO

Alice Maria Araújo FerreiraUniversidade de Brasília

[email protected]

Ana Helena RossiUniversidade de Brasília

[email protected]

Resumo: O objetivo do artigo é discutir a antropofagia em suas relações paradigmáticas com a tradução, e historicamente, dar continuidade ao sen-tido da Semana de Arte Moderna de 1922 e ao Manifesto Antropófago de 1928. Nesse sentido, importa destacar a antropofagia como movimento crítico baseado nos termos de “devoração/digestão/transformação”, pois se a arte (enquanto objeto) é, ao mesmo tempo,um processo crítico-teórico e artístico-criativo do fazer, logo a tradução pode ser definida nesses mes-mos termos. Isso implica também resgatar uma dupla relação da tradução, situando-a entre o “fazer” tradução e o “pensar este fazer da tradução, num movimento de autorreflexividade que sustenta o paradigma constru-ído nos Estudos da Tradução”. A consequência é colocar o tradutor em trêslugares de fala:tradutor, crítico e poiesiador. Nesse sentido, a tra-dução define-se como processo criativo (sujeito/tempo/espaço) e como processo crítico-teórico.Palavras-chave: Antropofagia. Tradução. Espaço “entre”. Estudos Da Tradução.

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ANTHROPOPHAGY, METISSAGE AND STRANGENESS: TRANSLATION ON (DIS)COURSE

Abstract:The aim of this article is to rescue the anthropophagy in their paradigmatic relations with translation, and historically intends cons-truct a continuity with the Semana de Arte Moderna of 1922 and the Manifesto Antropófago of 1928. In these sense, it’s important to see anthropophagy as a critical movement based in terms of “devouring” /”digestion”/”transformation” because if art (as an object) is at the same time a critical-theorical process and a artistical-creative one, when we translate,this act can be defined in these terms. That implies also rescue a double relation of translation, located between the “act” of translation andthe “think this translation act” in a movement based on autoreflectivity that supports the paradigm constructed in Translation Studies. The conse-quence is put the translator in three sites of speech : translator, critical and poiesis. In this sense, translation is defined as creative process (subject/times/space), and as a critical-theorical one. Keywords: Anthropophagy. Translation. Space “inbetween”. Translation Studies.

“Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente.Filosoficamente”.

(OSWALD DE ANDRADE, Manifesto Antropófago,1928)

Introdução

Se a Antropofagia parece não oferecer nenhuma novidade hoje no campo das artes, ela também não chega a se esgotar tão facilmente se deslocada para outros campos disciplinares. Aqui, o conceito de “antropofagia”, tal como desenvolvido por Oswald de Andrade no seu manifesto, serve para uma reflexão, em forma de ensaio, sobre o processo de tradução. Nosso intuito não é propriamente dar con-tinuidade ao sentido do Manifesto Antropófago (1928), mas operar

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um deslocamento que permite pensar esse movimento crítico como paradigma possível para se refletir a Tradução, campo em constitui-ção, no que ela “faz” à alteridade, no que ela “faz” à lingua(gem) e no(s) lugar(es) a partir dos quais o tradutor “faz”.

Oswald de Andrade escreve o Manifesto Antropófago em 1928, com uma linguagem metafórica, cheia de aforismos poéticos e re-pleto de humor. Esse manifesto corresponde ao ápice do primeiro tempo modernista, inaugurado com a Semana de Arte Moderna de 1922. Nele, Oswald de Andrade realça a contradição violenta entre culturas (africana e ameríndia/europeia) que formam a base da cultura brasileira. Encontro violento, já que não se trata de um processo de assimilação harmoniosa e espontânea entre os dois po-los. Agora, o “primitivismo” aparece como signo de devoração crítica do outro: “Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago” (Manifesto, 1928). A antropofagia, irracional, serve tanto para criticar a história do Brasil e seu passado colo-nial quanto para estabelecer uma utopia “Contra a realidade so-cial, vestida e opressora, cadastrada por Freud — a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (Manifesto, 1928).

Para resgatar e dar continuidade ao sentido da Semana de Arte Moderna de 1922 e ao Manifesto Antropófago de 1928, este ar-tigo discute a antropofagia em suas relações paradigmáticas com a tradução. Nesse sentido, importa destacar a antropofagia como movimento crítico baseado nos termos de “devoração/digestão/transformação”, pois se a arte (enquanto objeto) é, ao mesmo tem-po, um processo crítico-teórico e artístico-criativo do fazer, logo a tradução pode ser definida nesses mesmos termos.

Isso implica também resgatar uma dupla relação da tradução, situando-a entre o “fazer” tradução e o “pensar o fazer” da tradu-ção, num movimento de autorreflexividade que sustenta o paradig-ma construído por Haroldo de Campos. A consequência é colocar o tradutor em três lugares de fala:tradutor, crítico e poiesiador1. Nes-se sentido, a tradução define-se, ao mesmo tempo, como processo criativo (sujeito/tempo/espaço) e como processo crítico-teórico.

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1. Movimento antropofágico: vanguardas e conceitos

O movimento antropofágico é um dos mais originais do século XX que prolonga e radicaliza a Semana de Arte Moderna de São Paulo de fevereiro de 1922. Para François Laplantine (2001) pode ser considerado uma revolução estética inseparável de uma busca crítica que vai abalar profundamente a cultura brasileira no sentido de colocar em questão paradigmas sociais, políticos e estéticos, entre outros.

O movimento antropofágico afirma que a matriz da transfor-mação do que era luso-brasileiro na cultura nacional deve ser procurado na reativação do canibalismo índio. Diferentemente do ocorrido nos Estados Unidos ou no México, onde esses costumes antropofágicos foram perseguidos, no Brasil, apesar da persegui-ção também ter existido, reivindicam-se esses valores como me-lhor herança do país, sobretudo, dos tupinambás, principal grupo que habitava o litoral brasileiro quando da chegada dos portugue-ses nessas terras brasílicas.

Nesse sentido, como pensar os Tupinambás em sua relação com a cultura brasileira, no que diz respeito mais especificamente ao “canibalismo”? Pode-se falar em “integração” dentro do paradig-ma da cultura brasileira? É preciso se referir a uma digestão/devo-ração, o que coloca inúmeras consequências na possibilidade de pensar a cultura brasileira dentro desses paradigmas2.

Sabe-se que esse índio, simbolicamente reivindicado, não é o “bom selvagem”, construção romântica de José de Alencar que chega ao Brasil através de René de Chateaubriand, mas sim, um “mau selvagem”, desobediente que se entrega ao comunismo se-xual e sobretudo canibal. E é exatamente esse “mau caráter” que é subvertido na frase de Hamlet, personagem de William Shakespe-are, e devidamente antropofagiada por Oswald de Andrade: “Tupy or not tupy, that is the question”.

Assim, da mesma maneira que os tupi-guaranis devoravam seus inimigos e se alimentavam das qualidades de suas vítimas num pro-

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cesso de catharsis, o movimento antropofágico dos anos 1920 preco-niza a devoração do estrangeiro para apropriar-se de sua força vital.

1554 é o ano do ato canibalista dos índioscaetésque devoram o primeiro bispo de Salvador da Bahia, D. Pero Fernandes Sardinha. O Manifesto Antropófago3escrito em 1928 por Oswald de Andrade, i.e., 375 anos depois da devoração do Bispo, é assinado em Pirati-ninga, nome indígena da cidade de São Paulo.

A metáfora antropofágica da devoração atravessa a maioria das vanguardas artísticas do século XX introduzindo rupturas dentro da tradição europeia desde os anos 1880. Nesse sentido, o canibal é exaltado, por exemplo, por Alfred Jarry em seu romance Le sur-mâle (1902) e, sobretudo, por Francis Picabia que publica em 1920 o Manifesto canibal dada cuja crítica alcança a sociedade burguesa e seus valores. No entanto este, inspirado pelo futurismo agressivo de Filippo Tommaso Marinetti, exalta o “chauvinismo nacionalis-ta” e defende a “guerra imperialista” como a “única higiene do mundo”4, o que equivale a pregarum movimento de destruição: “Até hoje a literatura tem exaltado a imobilidade pensativa, o êx-tase e o sono. Queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril, a velocidade, o salto mortal, a bofetada e o murro.”5

A antropofagia brasileira, ao contrário, é uma antropofagia crítica a serviço da construção cultural da nação, não por recusa identitária, mas por gosto, quase por “glutonaria do outro” (LA-PLANTINE, 2001), por apropriação, e por expropriação e desie-rarquização6 dos valores do antigo colonizador. A cultura lusitana, assim como outras culturas europeias (em particular a francesa), deixam de ser recusadas e passam a ser devoradas e assimiladas. O Brasil se nutre delas, mas as transforma criando outras formas de observar o mundo num espaço cultural inédito que logo será expor-tado como sendo a “cultura brasileira”7. Nesse sentido, a cultura europeia é devorada assim comoa cidade de São Paulo devora os estrangeiros que chegam para transformá-los em brasileiros trans-formando-se com eles— ao contrário do que acontece na tradição europeia, onde o paradigma dominante é o pensamento do “Um” e

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do “Homogêneo”, em que a assimilação/integração consiste numa transformação unidirecional do “Outro” no “Mesmo”.

Em relação a esse movimento antropofágico, François Laplan-tine (2001) questiona, no entanto, a lógica da incorporação an-tropofágica: há “mestiçagem”8quando se exalta uma incorporação que pode chegar ao homicídio, mesmo que simbólico, do outro? Em outras palavras, podemos nos perguntar em que medida a mes-tiçagem é compatível com uma atitude que consiste em destruir o outro para existir, em tomar posse de sua cultura, em apropriar-se de suas qualidades? Não há uma tentação de substituição autoritária que pode conduzir à eliminação dos outros em proveito da afirma-ção do único?

No entanto, é precisamente contra essa tendência histórica den-tro da construção da “cultura brasileira” enquanto ordem social reificada como unidades territorial, linguística e narrativa, que se levanta o movimento antropófago. O outro que é engolido, e logo digerido, é um outro admirado, tese do livro de Hans Staden sobre o canibalismo das tribos indígenas no Brasil, formulada depois de sua experiência como prisioneiro dos índios tupinambás:

Eu não conhecia os seus costumes e julguei que se prepara-vam para matar-me. Não era assim, pois logo, apareceram os dois selvagens que me haviam aprisionado, os irmãos Nhaepepô-açú (panella grande) e Alkindar-miri (alguidar pequeno), e disseram-me que me haviam dado de presente ao seu tio Ipirú-guasú (tubarão grande), o qual devia cuidar de mim e matar-me em tempo opportuno afin de ganhar um nome á minha custa. Este Ipirú-guasú havia, um anno antes, capturado um escravo, e por amizade presenteara com elle ao sobrinho Allkindat; este se vira na obrigação de retribuir a honra com o primeiro inimigo que apresasse.9(STADEN, 1926, p. 68)

Suas qualidades são levadas a misturar-se e o deglutidor, ao final do processo, já não é mais o mesmo. Esse processo antropofá-

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gico suspende as dicotomias entre oposição frontal e aceitação ser-vil, entre movimento exclusivamente centrífugo e exclusivamente centrípeto. Introduz uma negatividade na cultura. Uma negativida-de irreverente e escandalosa. Irreverente, por negar a “simples”10 importação de pensamentos da Europa (em particular Portugal e França) e escandalosa política e ideologicamente por se apropriar de um ritual indígena como paradigma do movimento da intelectu-alidade burguesa paulista.

O Manifesto Antropófago subverte o sentido unidirecional dos portugueses em relação aos escravos, como também as relações dentro da sociedade brasileira com sua herança escravocrata. É um manifesto de euforia (para não dizer alforria!) coletiva, tropicalis-ta, de riso, de humor e de festa em que o Uno deixa de ser Uno para ser o múltiplo. Uma espécie de barbárie, como diz Sérgio Buarque de Hollanda: “Somos bárbaros!... Avante!”11, i.e., uma forma moderna de indigenismo ao mesmo tempo lírica e crítica, es-pecificamente brasileira, quer dizer, um movimento aberto ao uni-versal tendo como foco o particular, ou seja, a “cultura brasileira”.

O interesse pela antropofagia se mede na construção de uma teoria da mestiçagem (LAPLANTINE &NOUSS, 2001) enquanto paradigma possível, em que a mestiçagem é vista não como um processo de substituição, mas como processo de interpretação e de tradução. Ao construir uma das críticas mais radicais das identida-des chamadas a dissolver-se, introduz flexibilidade no pensamento pulverizando a noção de fixidez. Põe em xeque o regime autoritá-rio e identitário da sociedade e da língua.

Enfim, o pensamento antropofágico torna irrisórias as noções de “fontes” e de “influências” e, por conseguinte, a noção de “acul-turação”, assim como as de“empréstimo” (que implica a recepção de algo que deveria ser devolvido), de“elemento”, de “pureza”. Abre, no dizer de François Laplantine “a um pensamento da trans-formação e da transmutação de uma linguagem (de uma cultura, de um texto) em outro (a)” (2001, p. 103).

Nesse sentido, a incorporação da reflexão trazida no bojo do movimento antropofágico abre novas perspectivas no pensar a tra-

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dução, não mais estabelecida a partir de uma dicotomia entre um “dentro” e um “fora”, por exemplo, mas a partir de um espaço que se define como “entre” constituído a partir das inúmeras devora-ções. A tradução, portanto, passa a ser pensada como “devoração/digestão” dentro da constituição de um novo campo de reflexão epistemológico.

2. Indo além das dicotomias: o espaço “entre”

“Entre deux langues, la relation sera, non un transport,mais un rapport”

(NOUSS, 2002, p. 42)

Com frequência a tradução é pensada em termos dicotômicos: língua, texto, cultura de partida / língua, texto, cultura de chega-da; identidade / alteridade; fonte / alvo; original / tradução, letra / espírito, o outro / o mesmo, etc... Esse pensamento dicotômico sugere dois territórios distintos de linguagem, texto e cultura em que um está sempre em posição de superioridade em relação ao outro, criando um processo de tradução baseado no critério do apagamento do “Outro”. Pensar a tradução como processo antro-pofágico, objeto deste artigo, é ver a tradução como subversão e assim subverter esse pensamento dicotômico, e com isso desloca noções como “apropriação”, “valores culturais” e “identidade”, repensando-as em termos de movimento e não mais estaticamente como origem12.Essa função subversiva lança uma suspeita sobre a noção de “original” que implica numa anterioridade transformável facilmente em autoridade13.Alexis Nouss (2001) prefere falar em “língua”, “texto”, “cultura hóspede”14, para analisar suas relações no terreno da ética. Pois o que se discute é justamente a própria relação com os outros, i.e., a alteridade. O que ele qualifica de “hospedagem e/ou acolhimento”, é visto aqui como processo de

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“devoração/digestão”.Não só devoração do outro que o destrói para existir, mas acompanhado do processo de digestão enquanto possibilidade de interpretação e crítica onde ocorre a transforma-ção de uma cultura com / pelas outras.

A teoria tradicional compreende a tradução na dinâmica do mesmo e do outro, em que traduzir é converter o outro em mes-mo, i.e., reescrever como se ele tivesse sido escrito na língua que precisamente é chamada de “chegada”, cujo pressuposto paradig-mático é a ideia da “cópia perfeita”. No entanto, nessa subversão antropofágica, o outro não remete ao mesmo, mas a um outro ou-tro, sujeito instável em sua historicidade e em sua discursividade. Meschonnic nos lembra que:

À notre époque —et peut-être que seule la traduction com-me terrain de pratique et de réflexion peut le montrer —on commence [...] à passer d´une opposition entre identité et altérité à la reconnaissance d´une intéraction entre identité et altérité, telle que l’identité apparaît comme n’advenant que par l’altérité, par une pluralisation dans la logique des rapports interculturels15 (MESCHONNIC, 1999, p. 73).

A noção de alteridade ganhou, nas últimas décadas, uma nova configuração. Se durante muito tempo ela desempenhou o papel de antagonista, na medida em que era pensada a partir da lógica dicotômica, hoje ela ocupa uma posição importante nos campos da sociologia, da política e da filosofia. Está presente nas discussões sobre o oprimido, o colonizado, o dominado, o refugiado, o sem--teto, o desempregado, o que escapa aos sistemas estabelecidos (LAPLANTINE & NOUSS, 2001). Assim, estudos sobre femi-nismo, pós-colonialismo ou ainda multiculturalismo são exemplos de ideologias do outro e da alteridade. No entanto, a noção de alteridade não oferece garantias semânticas, e levanta a questão do “outro” como sendo ainda considerado o de “fora” face a um

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de “dentro”. Além disso, a alteridade é fugaz. A alteridade altera, i.e., o outro perturba, transforma, inclusive o modo de pensamen-to. Ela é de difícil definição e escapa à tematização do pensar. Pois a alteridade está presente no horizonte filosófico contemporâneo, sobretudo entre os pensadores (Baudrillard, Deleuze, entre outros) para quem o pensamento é uma operação de ruptura permanente, um questionamento constante, uma inquietude, uma vigilância que obriga o pensamento a não permanecer no mesmo lugar, a jamais sucumbir à certeza. “Pensar de outro modo para pensar o outro modo” (NOUSS, 2001, p.66).

Já com Humboldt (1830), Bakhtin (1929) e mais tarde com Ben-veniste (1966), o pensamento sobre a linguagem deslocou-se da língua para o discurso, o que produz um efeito fundamental no campo dos Estudos da Tradução. O conceito de discurso supõe o sujeito inscrito prosódica e ritmicamente na linguagem, sua orali-dade, sua corporalidade. Com a noção de discurso, a subjetivação e a historicidade aparecem — assim, identidade e alteridade intera-gem. A passagem, na teoria da linguagem, i.e., na reflexão sobre os conceitos com os quais pensamos a linguagem, que vai da língua ao discurso vê seus efeitos na tradução, ou melhor, no pensar o ato tradutório. “On ne traduit plus de la langue. Ou alors, on mécon-nait le discours, et l’écriture. C’est le discours, et l’écriture, qu’il faut traduire.”16(MESCHONNIC,1999, p. 12).

A tradução é, então, antes de tudo, interdiscursividade e, en-quanto tal, é, por excelência, o que pode suscitar a multiplicação textual por ser multiplicidade. Não há limite para o traduzir, nem línguas, nem épocas. Cada tradução terá um valor intrínseco e não um valor frente a normas externas. Nesse sentido, a tradução não “passa” valores estrangeiros ou autóctones, seu valor é de ser um texto onde se encontram as línguas e as culturas dentro de uma sin-cronia-diacronia que remete à constituição daquele espaço-tempo específico17.Alexis Nouss (2001), definindo a tradução como prá-tica mestiça, reconhece que ela se situa entre o mesmo e o outro, nem o mesmo nem o outro, mas é um devir, um dizer que jamais

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se fecha frente ao dito que produz e que manifesta. Essa tensão oriunda de sua natureza em devir explica e permite o fenômeno das múltiplas traduções de um mesmo texto. As línguas/culturas se en-trelaçam umas com as outras em uma relação de intertextualidade que não se configura como relação de substituição, mas enquanto relação histórica nascida de um encontro.

Ao traduzir o outro, me aproprio dele devorando-o, sem, no entanto, me transformar no outro, nem transformá-lo em mim mes-mo, mas me transformando com o outro e transformando-o num devir instável, em formação, mestiço. Isso implica não só um ato de devoração, enquanto leitura-apropriação, mas acompanhada de um processo de digestão, enquanto crítica, que permite a transfor-mação do corpo (para não correr o risco de vomitá-lo antes!). A tradução transforma/mestiça/muda as culturas como transforma/mestiça/muda os períodos históricos.

Nesse sentido podemos falar em tradução como processo antro-pofágico que devora o diferente e cria, portanto, diferença. Em ou-tros termos, quando traduzo, traduzo tanto o outro em mim como me traduzo no outro em um movimento múltiplo, encontrando atra-vés desse contato recursos da linguagem, modos de pensamentos e expressão que estavam latentes e que reativo. Usando a metáfora do refugiado de Agamben (apud.NOUSS, 2001), acolho o refu-giado na minha língua, mas também me refugio na dele. A tra-dução é uma transformação obtida a partir da devoração/digestão do outro. Transforma a língua e a cultura do texto original como também transforma a língua e a cultura que as acolhe. Acolher é deixar entrar na língua uma estranheza que enriquece as possibili-dades de expressão e a identidade do sujeito. Pois, traduzir, “(...) é lembrar aos leitores de uma determinada língua que é possível dizer o mundo de uma outra forma, com outro ritmo, com outras cores (...)” (LAPLANTINE &NOUSS, 2002, p. 41)18.

A tradução denuncia/manifesta o próprio movimento da lingua-gem que Meschonnic teorizou em torno do ritmo19 que é essencial-mente plural, mutante, infinito e que faz do texto uma forma-conte-

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údo que supera as próprias palavras, na encruzilhada do indivíduo (inclusive na sua corporalidade), do social e do histórico.

Assim, como Walter Benjamin propõe, a tradução é uma forma que explicita intrinsecamente uma relação entre línguas através de um conjunto de estruturas linguísticas que acarretam possibilidades de metamorfoses do/no texto. Nesse sentido, ela não remete a zo-nas abstratas de equivalências. A partir dessa perspectiva, a tradu-ção não é mais pensada a partir da linguagem, mas é a linguagem que é pensada a partir da tradução, i.e., a tradução é o posto de ob-servação adequado da linguagem. Assim, se abre espaço para uma crítica da tradução que faz dela um horizonte fundamental para a compreensão do mundo e da história, para uma Weltanschauung.

3. Ezra Pound e Haroldo de Campos: paradigmas no/do “entre”

A obra de Ezra Pound, a partir das experimentações feitas com a literatura clássica japonesa, em particular o teatro “nô” e a con-sequente publicação do livro Cathay (com traduções/reescrita de poesia clássica chinesa) em 1915 no contexto da I Guerra Mundial introduz na poética europeia de língua inglesa um novo paradig-ma que será retomado e reavaliado em vários países, inclusive no Brasil por Haroldo de Campos. Quebrando os cânones do que é “traduzir” em sua perspectiva dicotômica, e do que é “tradução” através de experimentação, Ezra Pound subverteu as dicotomias tradicionais entre “língua contemporânea” e “língua antiga”, o que acarretou uma dinamização dos potenciais inseridos na língua, entre registro, métrica, formas linguísticas, diluindo a dicotomia “forma” e “sentido”, e observando um espaço de mediação implí-cito no ato de traduzir e de escrever. Tais procedimentos e experi-mentos o levaram a construir uma nova linguagem poética onde o sincrônico e o diacrônico contribuíram para redinamizar a língua poética inglesa sem levar em conta fronteiras de quaisquer ordem.

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O resultado é conhecido: um novo paradigma de poesia enten-dida no seu sentido etimológico dado por Aristóteles na Poética, onde se recupera apoiesis do ponto de vista etimológico, que é o de “fazer”, i.e., o “fazer” com as mãos, o “fazer” de cunho manual. Logo, o poeta é aquele que “faz” na medida em que experimenta sua nova linguagem a partir dos recursos da língua, sem mais con-siderar antigas fronteiras.

Haroldo de Campos constitui um herdeiro desse paradigma na medida em que também subverterá as categorias tradicionais do que é “fazer” poesia, recuperando também, como Ezra Pound, sua dimensão manual. O poeta é, portanto, alguém que “faz” poemas. Mas, afinal de contas, se o poeta é aquele que “faz”, a questão é: o que ele “faz”, e com que ele “faz”? Responder a tais per-guntas significa indagar a dimensão da pesquisa feita por Haroldo de Campos no âmbito do português brasileiro, rastreando autores desconhecidos e totalmente esquecidos da tradição brasileira e co-locando em evidência o trabalho feito por tradutores no português brasileiro, assim como suas experimentações por intermédio da tradução de poetas russos como Maiakovski e outros. Responder a tais perguntas significa também compreender que o material do poeta é a linguagem – podemos dizer esse corpo vivo? – de onde flui o poema, onde é feito o poema, onde se fixa a prosódia em sua melodia rítmica a partir das sílabas tônicas e átonas e do ritmo sempre reconstruído em cada leitura, uma prosódia em movimento da qual o leitor precisa, a cada vez, se reapropriar.

Nesse sentido, o legado fundamental do paradigma objetivado por Haroldo de Campos é o entendimento da tradução como uma busca das estruturas de uma língua no sentido de re-construir tais estruturas em outra língua. Assim colocada, a tradução remete, sim, a um paralelismo das estruturas linguísticas, trabalho levado a cabo pelo tradutor que, nesse caso, também é poeta, e portanto crí-tico. Seguindo essa lógica, a tradução também é um espaço “entre” as línguas, um espaço de mediação. Metodologicamente, em seu trabalho de tradução, Haroldo de Campos identifica três níveis de

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análise: o gráfico (o que é visível sobre a página, i.e., a disposição da parte gráfica no espaço da pagina), o fonético (o que remete às regras fônicas do material que está impresso sobre a página), e o semântico (a construção do sentido). A partir daí, observa-se que a questão não é nem de “equivalência”, nem de termo, mas é anali-sar o que está inscrito na página a partir de sua tríplice orientação: gráfica, fônica e semântica. Portanto, esse é o lugar a partir do qual o tradutor observa a linguagem, e a partir do qual os problemas serão levantados e resolvidos – ou não – por ele. Logo, traduzir significa compreender o projeto intelectual do autor com todo seu arcabouço de estruturas e organizações internas para em seguida – e apenas em seguida – re-constituir esse arcabouço em outra língua dentro de uma reflexão sobre a linguagem. A subversão desse paradigma encontra-se na reconstituição de estruturas, e não na equivalência de termos ou de sentido baseados na equivalência. A subversão desse paradigma encontra-se na inversão da relação entre tradução, língua e linguagem.

Haroldo de Campos lembra que quando os poetas concretos de São Paulo se propuseram a tarefa de reformular a poética bra-sileira, suas atividades de teorização e criação se deram a partir da tarefa de tradução: “fazendo-o tinham presente justamente a didática decorrente da teoria e da prática poundiana da tradução e suas ideias quanto à função da crítica — e da crítica via tradução —como nutrimento do impulso criador” (CAMPOS, 1967, p. 30). Por isso, a tradução torna-se um exercício de intelecção e, através dele, uma operação de crítica “ao vivo”. Reforça assim o tradutor como “poiesiador”, que considera a “crítica através da análise e comparação do material (via tradução)” (CAMPOS, 1967, p. 32).

Ora, reconstituir estruturas textuais implica um profundo conhe-cimento de como o texto foi “feito” – tomado aqui em seu sentido aristotélico – no âmbito da criação da linguagem, e que passa pelo conhecimento da língua que é trabalhada. Daí o fato da tradução poder ser definida como um conjunto de procedimentos de questio-namento da linguagem, e não o contrário. Abre-se espaço, então,

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ao conceito de transcriação/reimaginaçãoque recupera adinâmica entre língua e linguagem a partir da qual a relação entre línguas abre lugar ao questionamento sobre a(s) linguagem(s) definida(s) a partir das estruturas presentes no texto, e que, por conseguinte, devem ser atualizadas pela tradução.

Consequentemente, o tradutor torna-se um crítico na medida em que traduzir consiste em observar os recursos de linguagem atuali-zados no texto, i.e., em sua dimensão histórica, social, cognitiva, antropológica, e re-constituí-los em função do paralelismo estabele-cido entre estruturas e recursos linguísticos. É nessa reconstituição das estruturas de linguagem que se pode identificar a questão fun-damental colocada por Walter Benjamin da reine Sprache— língua mítica acima das demais, mas que não existe enquanto tal –- e que remete ao mito da Torre de Babel e à diversidade linguística como consequente impossibilidade de comunicação entre os humanos.

Admite-se com isso, evidentemente, que toda a tradução é apenas um modo algo provisório de lidar com a estranheza das línguas. Permanece vedada aos homens (ou pelo me-nos não pode ser aspirada imediatamente) uma solução não temporal e provisória para essa estranheza, uma solução instantânea e definitiva.20(BENJAMIN, 2011, p. 110)

Essa reine Sprache configura um espaço de reflexão e de au-torreflexão para o tradutor que lhe permite pensar a linguagem dentro de um espaço “entre” e não mais no “mesmo”, espaço que explicita a potencialização de todas as línguas em uma—estado sempre precário e provisório — no âmbito de uma configuração que pede constantemente revisões e atualizações. Esse conceito de reine Sprache relativo a uma supralíngua acima de todas as outras desloca a tradução de sua definição enquanto “prática” para focar o processo tradutório em termos de “entre” no sentido da expressão francesa “dans un entre-deux”, i.e., em um espaço reflexivo do

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entremeio, que não é nem do “um” nem do “outro”, e que foge assim às dicotomias elevadas ao estatuto de teoria.Assim, a reine Sprache confirma o deslocamento epistemológico desse conjunto de procedimentos que “acontecem” quando “traduzimos” (de uma “teoria” passa-se a um processo tradutório) e que pode ser consi-derada como esse espaço definido por AntoineBerman em que se “produz”/“recria”/“transcria”/“imagina” a tradução como sendo o espaço da tradutologia. Teríamos aí as razões profundas que ex-plicam nos planos diacrônico e sincrônico a re-tradução definida aqui como re-investimentodas estruturas e dos recursos de lingua-gem potencializados no texto.

Considerações finais

nessas primeiras indagações a respeito da tradução como pro-cesso antropofágico, o espaço do “entre” remete a um espaço mes-tiço que se caracteriza pela presença de duas – ou mais – línguas--culturas. Autores como Walter Benjamin (o “entre” no “supra”), Haroldo de Campos (o “entre” na “crítica/significante”), e o “en-tre” no “fazer” de Ezra Pound já definem a tradução a partir desse espaço do “entre” que remete a uma pluralidade de línguas e de culturas.

Nesse sentido, o “e”, conjunção da mestiçagem(NOUSS, 2001), não fecha a relação em uma estrutura de totalidade: ela marca, pelo contrário, uma abertura e uma interação possível entre dois termos, ou mais. Tal pensamento do “e” é oriundo da filosofia de Deleuze que diz que o “e” não é “ni une réunion, ni une juxtaposition, mais la naissance d’un bégaiement, le tracé d’une ligne brisée qui part toujours en adjacence, une sorte de ligne de fuite active et créa-trice”21 (DELEUZE, 1996, p. 16). Pois, o “e” diferente do “é” (verbo ser), não fixa ontologicamente a substância transformando-a em essência. O “e”, diz Deleuze, não é “une relation ou une con-jonction particulières, il est ce qui sous-tend toutes les relations, la

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route de toutes les relations, et qui fait filer les relations hors de leurs termes, et hors de tout ce qui pourrait être déterminé comme Être, Un ou Tout”22 (DELEUZE, 1996, p. 71). Esse “e” encon-tra sua manifestação linguístico-cultural na tradução. Ele rege a tradução e exemplifica seu processo, seu fazer. Diferente da teo-ria tradicional que, como lembra Nouss, costuma trabalhar com a conjunção “ou”: “Certes l’idéologie traductionnelle classique aime pousser des «ou...ou» puisque le texte d’arrivée est censé rempla-cer le texte de départ, selon la terminologie courante — tous les transports, hélas, ne sont pas amoureux —, mais hurler avec les loups est condamnable, ici comme ailleurs”23(NOUSS, 2001).

Assim, a tradução dentro do paradigma da antropofagia não é passagem, nem substituição, mas um devir transformador, reve-lador. A tradução é esse espaço do “entre” que caracteriza o que pode haver de comum em todas as línguas-culturas, que revela as fronteiras e as anula. É o que denominamos de antropofagia/tra-dução/mestiçagem.

Notas

1. Termo inventado em português brasileiro que resgata o sentido etimológico de “poiesis” no grego antigo, isto é, “fazer”.

2. Nesse sentido, é de fundamental importância observar o paradigma utilizado pelos artistas da Semana de Arte Moderna em fevereiro de 1922. O que daria, muito provavelmente um outro trabalho em termos de historiografia da Semana de Arte Moderna, e de sua apropriação por esses artistas.

3. ANDRADE Oswald de, Manifesto Antropófago, 1928.

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4. MAIAKOVSKI, Antologia Poética [Estudo biográfico e tradução de Emílio C. Guerra], São Paulo, Editora Max Limonad, 1981, p. 13.

5. MARINETTI F.T., Manifesto Futurista, 20 de fevereiro de 1909.

6. Conceito traduzido diretamente de Laplantine (2001) que inventou a denomi-nação “deshierarchisation”.

7. As aspas remetem ao fato de que a “cultura brasileira” é uma construção tanto na sincronia quanto na diacronia, e não é um dado em si. A “devoração/assimi-lação” constitui um dos elementos que caracterizam a assim denominada “cultura brasileira”.

8. Em que sentido podemos observar várias acepções do termo “mestiçagem” ?

9. STADEN Hans, Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil, Texto ordenado literariamente por Monteiro Lobato, São Paulo, Livraria do Globo, 1926, 2ª edição, p. 68 (capítulo XXII – “De como vieram a mim e do que me disseram”).

10. Nesse “simples” encontra-se toda a questão da importação e legitimação dos valores europeus como sendo os valores de referência da cultura brasileira.

11. BUARQUE DE HOLLANDA S., “Il faut des barbares” in BOAVENTURA M.E. (org.), 22 por 22:A semana de arte moderna vista pelos seus contemporâ-neos, São Paulo, EDUSP, 2008, p. 35.

12. Entrevista com François Laplantine, “Le métissage, moment improbable d’une connaissance vibratoire”, X-Alta, nº2/3, Multiculturalisme, novembro 1999, p. 35-48, entrevista feita em Lyon, dia 28 de junho 1999 por Henri Vau-grand e Nathalie Vialaneix.

13. Essa equivalência segundo a qual “anterioridade” é “autoridade” caracte-riza toda a história européia com a relação ideologicamente construída com a “Antiguidade Greco-romana” fonte de todas a fontes. Essa equivalência também explica a questão do jogo de palavras tão usual no espaço da tradução, porém jamais explicado, “traduttore” e “traditore”. O que está em jogo aqui senão a

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impossibilidade reconhecida de fato – e portanto, a contradição essencial -, dentro desse paradigma, da tradução como cópia perfeita do original ?

14. Vale lembrar que em francês “hôte” pode ser o hóspede e o anfitrião.

15. “Em nossa época — e talvez apenas a tradução como terreno de prática e de reflexão possa mostrá-lo —começa-se [...] a passar de uma oposição entre identi-dade e alteridade ao reconhecimento de uma interação entre identidade e alterida-de, de maneira que a identidade aparece como advindo apenas pela alteridade, por uma pluralização na lógica das relações interculturais.” (Tradução nossa)

16. “Não se traduz mais língua. Ou então, desconhece-se o discurso, e a escrita. É o discurso, e a escrita que devem ser traduzidos.” (Tradução Nossa)

17. Conceber o ato de traduzir em suas implicações tanto nos planos sincrônicos quanto diacrônicos permite entender também por que são necessárias/demandadas traduções de um texto já traduzido.

18. A “acolhida” caracterizada como lugar e visada ética da tradução.

19. O ritmo, visto por Meschonnic (1999, 1984), é uma organização (da prosódia à entonação) da subjetividade e da especificidade de um discurso e não é separável do sentido, já que ele o organiza.

20. BENJAMIN Walter, “A tarefa do tradutor”, [tradução de Susana Kampff Lages], Escritos sobre mito e linguagem, Rio de Janeiro, Editora 34, 2011, p. 110 .

21. “nem uma reunião, nem uma justaposição, mas o nascimento de um gaguejo, o traçado de uma linha quebrada que parte sempre em adjacência, uma espécie de linha de fuga ativa e criadora” (Tradução nossa).

22. “uma relação ou uma conjunção particulares, ele é o que acarreta todas as re-lações, o caminho de todas as relações, e que faz escapar as relações fora de seus termos, e fora de tudo o que poderia ser determinado como Ser, Um ou Tudo” (Tradução Nossa).

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23. “Claro, a ideologia traducional clássica gosta de bradar “ou...ou” já que o texto de chegada é destinado a substituir o texto de partida, segundo a termino-logia corrente – nem todos os transportes, infelizmente, são amorosos —, mas, uivar com os lobos é condenável, aqui como alhures.”(Tradução Nossa).

Referências

ANDRADE Oswald de, Manifesto Antropófago, 1928.

BENJAMIN, Walter. “A tarefa do tradutor.” [Tradução de Susana Kampff La-ges], Escritos sobre mito e linguagem, Rio de Janeiro, Editora 34, 2011, p. 101 a 119.

BUARQUE DE HOLLANDA S., “Il faut des barbares” in BOAVENTURA M.E. (org.), 22 por 22: A SEMANA DE ARTE MODERNA VISTA PELOS SEUS CONTEMPORÂNEOS, São Paulo, EDUSP, 2008, p. 35.

CAMPOS, Haroldo de., Metalinguagem: ensaios de teoria e crítica literária. Vozes, Rio de Janeiro, 1967.

DELEUZE, Gilles et PARNET, Claire, Dialogues, Paris, Flammarion, coll. « Champs », 1996.

LAPLANTINE, F. NOUSS, A., Métissage de Arcimboldo à Zumbi, Paris, Pau-vert,2001. [Mestizajes, de Arcimboldo a zombi. Tradução de Víctor Goldstein, Buenos Aires, Fondo de cultura económica de Argentina, 2007].

LAPLANTINE, F. NOUSS, A. Mestiçagem. Tradução de Ana Cristina Leonar-do. Biblioteca básica de ciência e cultura, Instituto Piaget, Lisboa, 2002.

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STADEN Hans, Meu cativeiro entre os selvagens do Brasil, Texto ordenado lite-rariamente por Monteiro Lobato, São Paulo, Livraria do Globo, 1926.

Recebido em 22/12/2012Aceito em 05/03/2013

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