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A França, em meados do séc. XVII é governada por Ana da Áustria, viúva de Luís XIII, e por seu
ministro todo-poderoso, o Cardeal Mazarino. O país, arrasado pela Guerra dos Trinta Anos, atravessa
momentos difíceis, enquanto aguarda a maioridade de Luís XIV. A hostilidade surda entre católicos e
protestantes explode ao menor pretexto. Os nobres conspiram, fazem e desfazem alianças, cobiçando
favores e privilégios. Nos povoados e aldeias, os camponeses vivem sobressaltados, ora atacados por
bandoleiros, ora intimidados pelos coletores de impostos extorsivos.
Bem longe da corte, na aldeola de Monteloup, Angélica, a filha predileta do bom e rústico Barão
Armando de Sancé, vive no castelo em ruínas da família. Solta pelos campos, para os aldeões é uma
linda fada, a quem o futuro não preocupa. Para a família, por sua beleza excepcional, um trunfo a ser
explorado.
O pai a casa com o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse, o homem mais poderoso do sul da
França, mais rico e mais nobre que o próprio rei. Angélica não o conhece, mas dizem que é um
feiticeiro, que tem pacto com o Demônio. Um bruxo visado pela Inquisição...
"Você foi feita para amar ' suspira o trovador. "Seu corpo sedutor levará os homens
à loucura!"
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Angélica ia se casar.
Um mistério cercava a fortuna de seu futuro marido, o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse.
Tanto fausto, tanto esplendor ela não imaginara nem nos devaneios mais delirantes de mocinha pobre do
interior. Naquele momento, parecia-lhe estar vivendo um sonho ameaçador, em que se prenunciava um
destino terrível. O seu destino.
Ainda há pouco, ela dera adeus ao velho castelo da família, aos amores da juventude, à suave
existência como Marquesa dos Anjos, doce ninfa dos pântanos e florestas de sua terra natal, Monteloup.
Agora estava à mercê daquele estranho que todos diziam ser um verdadeiro monstro, desfigurado e
manco, um mago encantador de mulheres, acusado pela Inquisição de ter pacto com o Demônio.
Em sua ingenuidade, Angélica não podia prever que o futuro lhe reservava uma existência
excepcional. Ela era uma dessas pessoas marcadas pela sorte: a quem os deuses dariam tudo, mas de
quem também pediriam muito em troca...
Os Amores de Angélica
Anne e Serge Colon
Os Amores de Angélica
ANNE E SERGE GOLON
Título: Os Amores de Angélica
Autor: ANNE E SERGE GOLON
Título original: --
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Género: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
MARQUESA DOS ANJOS (1645)
CAPITULO I
A infância de Angélica no castelo campestre
— Babá — perguntou Angélica —, para que Gil de Retz matava tantas crianças?
— Para o Demônio, filhinha. Gil de Retz, o papão de Mache-coul, queria ser o senhor mais poderoso
de seu tempo. Em seu castelo havia somente retortas, frascos e panelas repletos de caldos vermelhos e
vapores espantosos. O Diabo pedia que lhe oferecessem em sacrifício o coração de uma criaturinha.
Assim tiveram início os crimes. E as mães aterrorizadas apontavam com o dedo o negro torreão de
Machecoul, rodeado de corvos, tantos eram os cadáveres de crianças inocentes que havia em seus
calabouços.
— E ele comia todas? — perguntou, com voz trêmula, Made-lon, a pequenina irmã de Angélica.
— Não todas. Não teria podido — respondeu a ama.
Curvada sobre o caldeirão em que o toucinho e a couve ferviam
lentamente, mexeu a sopa alguns instantes em silêncio.
Hortênsia, Angélica e Madelon, as três filhas do Barão de Sancé de Monteloup, de colher em punho
junto a suas éscudelas, esperaram ansiosamente o prosseguimento da história.
— Havia algo pior que comê-las — continuou por fim a ama, com voz amarga. — Primeiro fazia levar
à sua presença o pobrezinho ou a pobrezinha, que, tremendo de medo, gritava por sua mãe. O senhor,
deitado em seu leito, rejubilava-se com o pavor da criaturinha. Depois, mandava pendurá-la na parede,
em uma espécie de forca que lhe ia apertando o peito e o pescoço, estrangulando-a, embora não o
bastante p, ra matá-la. A criança estrebuchava como um frango pendurado, seus gritos se extinguiam, os
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olhos esbugalhavam-se e ela se tornava azul. Na grande sala não se ouviam se não os risos dos homens
cruéis e os gemidos da pequena vítima. Então, Gil de Retz mandava dependurá-la, punha-a sentada
sobre os joelhos e apoiava ao peito a fronte do pobre anjinho. Falava-lhe com doçura. "Não foi nada",
dizia. "Só queríamos divertir-nos, mas já terminou." Iam dar-lhe doces, teria um formoso leito com
colchão de penas, uma roupa de seda como a de um pajenzinho. A criança se tranqüilizava. Um brilho
de alegria cintilava em seus olhos cheios de lágrimas. Então o senhor, subitamente, enterrava-lhe a
adaga no pescoço. O mais espantoso, porém, era quando raptavam moças novas.
— Que lhes fazia? — perguntou Hortênsia.
Foi aí que interveio o velho Guilherme, que, sentado a um canto, junto ao fogão, picava um pedaço de
fumo. Resmungou com sua barba amarelada:
— Cale-se, velha louca! Até mesmo a mim, que sou um guerreiro, você me agita o coração com suas
histórias fantásticas.
A rude Fantina Lozier retrucou-lhe com vivacidade:
— Histórias fantásticas!... Vê-se logo que você não nasceu no Poitou, Guilherme Lützen. Basta
caminhar um pouco em direção a Nantes e logo encontrará o castelo maldito de Machecoul. Já faz dois
séculos que se cometeram os crimes e, no entanto, as pessoas que passam pelas redondezas ainda se
benzem. Mas você não é desta terra e nada sabe de seus antepassados.
— Belos antepassados, se todos forem como o seu Gil de Retz!
— Gil de Retz foi tão grande no mal que nenhuma terra além do Poitou pode orgulhar-se de ter tido
um criminoso como ele. E quando morreu, julgado e condenado em Nantes, mas batendo no peito,
confessando sua culpa e pedindo perdão a Deus, todas as mães cujos filhos ele havia torturado e
comido puseram luto por ele.
— Isso, sim, é que é grandioso! — exclamou o velho.
— Assim somos nós, do Poitou. Grandes no mal, grandes no perdão!
Carrancuda, a ama dispôs as panelas sobre a mesa e abraçou com ardor o pequeno Dionísio.
— É verdade — disse — que fui pouco à escola, mas sei distinguir entre uma história para espantar o
sono e uma narrativa dos tempos antigos. Gil de Retz foi um homem que existiu de verda de. Sua alma
talvez ainda erre por perto de Machecoul, mas seu corpo apodreceu nesta nossa terra. Por isso não se
pode falar dele frivolamente, como das fadas e dos duendes que passeiam entre as grandes pedras dos
campos. Também não é conveniente troçar demasiado de tais espíritos malignos...
— E dos fantasmas, minha bá, pode-se troçar? — perguntou An-gélica;
— É melhor não troçar, querida. Os fantasmas não são maus, mas a maioria deles são tristes e
desconfiados, e para que aumentar com zombarias os tormentos desses infelizes?
— Por que chora a velha senhora que aparece no castelo?
— Quem pode saber? A última vez que me encontrei com ela, há seis anos, entre a antiga sala da
guarda e o grande corredor, pareceu-me que já não chorava, talvez graças às preces que o avô de vocês
mandou rezar por sua alma na capela.
— Eu ouvi seus passos na torre — afirmou Nanette, a criada.
— Devia ser um rato. A velha dama de Monteloup é discreta e não quer fazer mal a ninguém. Talvez
tenha sido cega, pois sempre estende a mão para a frente como se procurasse tatear. Ou então procura
alguma coisa. Às vezes aproxima-se das crianças adormecidas e passa-lhes a mão no rosto.
A voz de Fantina tornava-se lúgubre.
— Quem sabe se não procura alguma criança morta?
— Boa mulher, você tem o espírito mais macabro que a vista de um ossário — voltou a protestar pai
Guilherme. — E possível que seu senhor de Retz, do qual tanto se orgulha de ser conterrânea, a dois
séculos de distância, seja um grande homem e que a senhora de Monteloup seja muito respeitável, mas
afirmo-lhe que não fica bem perturbar estas crianças, já tão assustadas que se esquecem de comer.
— Você se faz agora sensível, grosseiro soldado, assecla do Demônio! Quantos ventres de criaturas
como essas não terá atravessado com sua lança quando servia o imperador da Áustria nos campos da
Alemanha, da Alsácia e da Picardia? Quantas palhoças não incendiou, fechando a porta para torrar lá
dentro a família toda? Nunca enforcou nenhum aldeão? Foram tantos que até se gastaram os ramos das
árvores! E as mulheres e as moças, não as violou até matá-las de vergonha?
— Como todo mundo, como todo mundo, boa mulher. Essa e a vida do soldado. Isso é a guerra. Mas a
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vida dessas crianças que aqui vemos é feita de brincadeiras e de histórias alegres.
— — Até o dia em que passarem pelo povoado os soldados e os bandidos, como nuvens de gafanhotos.
Então, a vida das crianças se converterá na vida do soldado, da guerra, da miséria e do medo...
Amargurada, a ama destampava uma grande panela de barro cheia de patê de lebre, e passava manteiga
em fatias de pão que distribuía em volta, sem esquecer o velho Guilherme. — Esta que lhes fala... eu,
Fantina Lozier... escutem-me, filhas...
Hortênsia, Angélica e Madelon, que haviam aproveitado a discussão para esvaziar suas escudelas,
levantaram de novo a cabeça, e Gontran, seu irmão de dez anos, saiu do canto escuro em que estava
amuado e aproximou-se da mesa. Havia chegado a hora da guerra e dos saques, da soldadesca e dos
bandidos, tudo confundido no mesmo clarão vermelho dos incêndios, no retinir das espadas, nos gritos
lancinantes das mulheres...
— Guilherme Lützen, você conhece meu filho, que é carroceiro do nosso amo, o Barão de Sancé de
Monteloup, aqui mesmo, neste castelo?
— Conheço. Ê um belo rapaz.
— Pois tudo o que posso dizer de seu pai é que fazia parte dos exércitos do Sr. Cardeal de Richelieu,
quando este se dirigia para La Rochelle a fim de exterminar os protestantes. Eu não era hu-guenote, e
sempre rezara à Virgem Santíssima para conservar a castidade até o casamento. Mas, depois que as
tropas do nosso cris-tianíssimo Rei Luís XIII passaram pela região, o mínimo que posso dizer é que
havia deixado de ser donzela. E dei a meu filho o nome de João Couraça, em memória de todos aqueles
demônios, um dos quais é seu pai, cujas couraças cheias de cravos rasgaram a única camisa que eu
possuía naquele tempo... E quanto aos saqueadores e bandidos que a fome atirou tantas vezes nos cami-
nhos, poderia manter vocês acordados a noite inteira contando o que me fizeram entre a palha do celeiro,
enquanto queimavam os pés de meu homem no fogo da lareira para fazê-lo confessar onde guardava as
economias. É eu supunha, pelo cheiro, que assavam o porco.
Ao recordá-lo, a grande Fantina pôs-se a rir; depois bebeu água de pé de maçã para refrescar a língua,
que havia secado de tanto ela falar.
Assim, a vida de Angélica de Sancé de Monteloup teve início sob o signo do Ogro, dos fantasmas e
dos saqueadores.
A ama tinha nas veias um pouco daquele sangue mouro que os árabes levaram, pelo século XI, até os
umbrais do Poitou. Angélica mamara aquele leite de paixão e de sonhos em que se concentrava o antigo
espírito de sua província, terra de pântanos e de bosques, aberta como um golfo aos tépidos ventos do
oceano.
Assimilara confusamente um mundo de dramas e de histórias de fadas. Tinha tomado gosto por ele e
adquirido uma espécie de imunidade contra o medo. Olhava com pena para sua irmã mais nova,
Madelon, que tremia, ou para a mais velha, Hortênsia, muito reservada, e que, no entanto, morria de
desejo de perguntar à ama o que lhe haviam feito os bandidos entre a palha do celeiro.
Angélica, aos oito anos, adivinhava muito bem o que havia sucedido no palheiro. Quantas vezes não
havia levado a vaca ao touro ou a cabra ao bode? E seu amigo, o pastorzinho Nicolau, explicara-lhe que,
para ter filhos, os homens e as mulheres faziam o mesmo. Fora assim que a ama tivera João Couraça.
Mas o que intrigava Angélica era que, ao falar de tais coisas, a ama adotava, às vezes, uma entonação
lânguida e de êxtase, e outras a do horror mais sincero.
Mas não era necessário procurar compreender a ama, seus silêncios, seus arroubos de cólera. Era
suficiente que estivesse ali, gran-dalhona, sempre em movimento, com seus braços robustos, seu regaço
amplo formado pela saia de fustão, e que nele acolhesse as crianças como passarinhos, para entoar-lhes
uma cantiga de ninar ou falar-lhes de Gil de Retz.
Mais simples era o velho Guilherme Lützen, que falava com uma voz lenta de acento áspero. Diziam
que era suíço ou alemão. Há quinze anos o haviam visto chegar, coxeando e descalço, pela estrada
romana que vai de Angers até St. Jean d'Angély. Entrou no Castelo de Monteloup e pediu uma escudela
de leite. E ali ficou como criado para tudo: ferreiro, carpinteiro, correio do Barão de Sancé, que o
mandava levar suas cartas aos amigos e o encarregava de receber o agente fazendário quando vinha
cobrar os impostos. O velho Guilherme escutava-o com muita calma e respondia-lhe no seu dialeto de
montanhês suíço ou tirolês, e aquele funcionário acabava indo embora descoroçoado.
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Tinha vindo dos campos de batalha do norte ou do leste? E por que motivo aquele mercenário
estrangeiro parecia proceder da Bretanha quando o encontraram? Tudo quanto sabiam dele era que
havia estado em Lützen sob as ordens do Condottiere Wallenstein e que havia tido a honra de atravessar
a pança do gordo e magnífico rei da Suécia, Gustavo Adolfo, quando este, perdido na neblina, no
decorrer da batalha, esbarrou com os lanceiros austríacos.
No sótão em que habitava viam-se brilhar ao sol, entre as teias de aranha, sua velha armadura e seu
capacete, no qual continuava bebendo seu vinho quente e, às vezes, tomava a sopa. Sua imensa lança,
três vezes mais alta que ele, servia-lhe para "sacudir as nogueiras no tempo da colheita.
Mas, acima de tudo, Angélica invejava-lhe o pequeno picador de fumo. Era de concha marchetada, e
Guilherme chamava-o sua grivoise, segundo o hábito dos militares alemães a serviço da França, que
recebiam a alcunha de grivois.
Na vasta cozinha do castelo, após o anoitecer, as portas que davam para fora não paravam de se abrir e
fechar; e por elas entravam, com um forte cheiro de estrume, criados, criadas e o carroceiro João
Couraça, tão trigueiro como sua mãe.
Também apareciam os cães, os dois lebréus Marte e Manjerona e os bassês enlameados até os olhos.
Do interior do castelo, as portas davam acesso à graciosa Na-nette, que se exercitava como aia,
esperando aprender boas maneiras para deixar seus amos pobres e ir servir em casa do Sr. Marquês du
Plessis de Bellière, a pequena distância de Monteloup. Iam e vinham também os dois criadinhos, a
grenha sobre os olhos, carregando lenha para a sala grande e água para os quartos. Depois aparecia a
baronesa. Tinha o rosto suave, desgastado pelo ar do campo e pelos numerosos partos. Trajava-se de
sarja cinza e capuz de lã negra, porque a atmosfera da sala grande, onde sempre estava com o sogro e as
duas cunhadas, era mais úmida que a da cozinha.
Perguntava se logo estaria pronta a tisana do senhor barão e se o bebê tinha mamado sem problemas.
De passagem, acariciava as faces de Angélica, meio adormecida, e cujos longos cabelos de ouro escuro
se estendiam sobre a mesa e brilhavam ao clarão da lareira.
— É hora de dormir, filhinhas. Pulquéria vos levará para a cama.
E Pulquéria, uma das velhas tias, se apresentava sempre dócil. Assumira por vontade o papel de
governanta de suas pequenas sobrinhas, pois não havia encontrado marido nem convento que a quisesse
receber sem dote, e, como fazia algo útil em vez de passar o dia gemendo e bordando tapeçaria,
tratavam-na com certo desprezo e com menos atenção que à outra tia, a gorda Joana.
Pulquéria reunia as sobrinhas. As amas agasalhariam as menores, e Gontran, o menino sem preceptor,
iria, quando bem o quisesse, deitar-se em sua enxerga no último andar.
Acompanhando a magra solteirona, Hortênsia, Angélica e Ma-delon chegavam à sala do castelo, onde
a lareira e três velas não dissipavam inteiramente o amontoado de sombras acumulado pelos séculos sob
as altas abóbadas medievais. Estendidos pelas paredes, alguns tapetes tentavam protegê-las da umidade,
mas eram tão velhos e estavam tão bichados que mal se distinguiam, nas cenas que representavam, os
olhos espantados das lívidas personagens que pareciam vigiar atentamente com ar severo.
As meninas faziam uma reverência ao senhor seu avô. Estava este sentado em frente ao fogo, com seu
casacão negro guarnecido de peles quase sem pêlos. Mas suas brancas mãos, apoiadas no cas-tão da
bengala, eram mãos de rei. Cobria-se com um grande chapéu de feltro negro, e sua barba, quadrada
como a do finado Rei Henrique IV, descansava sobre uma pequena gola pregueada, que parecia a
Hortênsia, embora ela se abstivesse de dizê-lo, completamente fora de moda.
Outra reverência a tia Joana, cujos lábios mal-humorados não se dignavam sorrir, e logo subiam a
grande escada de pedra, úmida como uma gruta. Os quartos de dormir eram gelados no inverno mas
frescos no verão. Não entravam neles senão para meter-se na cama. Aquela em que dormiam as três
meninas reinava como um monumento no canto de um aposento devastado, cujos móveis tinham sido
vendidos no decurso das últimas gerações. As lajes do piso, cobertas de palha durante o inverno,
estavam quebradas em muitos lugares. Para dar acesso ao leito havia um escabelo de três degraus.
Depois de vestirem a camisola e a touca de dormir e de se haverem ajoelhado para dar graças a Deus
pelos benefícios recebidos, as três mocinhas de Sancé de Monteloup subiam para seus colchões de boa
pluma e se enrodilhavam entre as cobertas esburacadas. Angélica procurava imediatamente o furo do
lençol correspondente ao do cobertor e por ele passava o pé cor-de-rosa, mexendo os dedos para fazer rir
Madelon.
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A pequena tremia como um coelho ao recordar as histórias que a ama contara. Hortênsia também, mas
não dizia nada porque era a mais velha. Somente Angélica saboreava com prazer exaltado aquele temor.
A vida era feita de mistérios e de descobertas. Ouviam-se os ratos roendo o madeirame e as corujas
revoando nos telhados das duas torres, soltando pios agudos. Os lebréus ganiam nos pátios e um mulo
da pradaria vinha coçar-se contra a muralha.
As vezes, nas noites de nevada, ouviam-se os uivos dos lobos que desciam da selvagem floresta de
Monteloup em busca de lugares habitados. Também chegavam ao castelo, desde as primeiras noites da
primavera, as cantigas dos aldeões, que davam alguma festa ao luar...
Uma das muralhas do Castelo de Monteloup deitava para os pântanos. Era a parte mais antiga,
construída por um antigo senhor de Ridoué de Sancé, companheiro de Du Guesclin no século XII. Era
flanqueada por duas grossas torres, com caminhos de ronda cobertos de madeira, e quando Angélica
subia até lá com Gon-tran ou Dionísio divertiam-se cuspindo nos balestreiros por onde os soldados da
Idade Média haviam despejado baldes de azeite fervendo sobre os assaltantes. As muralhas surgiam de
um pequeno promontório de calcário, além do qual começavam os pântanos. Nos velhos tempos dos
primeiros homens, o mar chegava até ali. Ao retirar-se, deixou um aranhol de rios, canais e lagoas, que
agora estavam cobertos por uma trama de ervas e salgueiros, domínio das enguias e das rãs, no qual os
aldeões não circulavam senão em canoas. As aldeias e as choças isoladas eram construídas sobre as ilhas
do antigo golfo. Havendo percorrido aquela província das águas, o Sr. Duque de Ia Trémoille, que em
certo verão foi hóspede do Marquês du Plessis e tinha a mania do exotismo, deu-lhe o nome de Veneza
Verde.
A vasta planície líquida, o pântano doce, estendia-se desde Niort e Fontenay-le-Comte até o oceano.
Juntava-se um pouco antes de Marans, de Chaillé e mesmo de Luçon com os pântanos amargos, isto é,
as terras ainda salgadas. Depois já era a verdadeira praia, com sua alva barreira de sal precioso,
disputado avidamente por guardas alfandegários e contrabandistas.
Se a ama não costumava contar as histórias dos agentes aduaneiros em sua luta com os contrabandistas
de sal, as quais apaixonavam todo o pântano, era porque tinha nascido em terra firme e jactava-se de
desprezar as pessoas que viviam com os pés dentro da água, e que, além do mais, eram protestantes.
Pelo lado da terra o Castelo de Monteloup apresentava uma fachada mais moderna, com inúmeras
janelas. Somente uma velha ponte levadiça, de correntes enferrujadas, e ocupada por galinhas e perus,
separava a entrada principal da pradaria em que pastavam os muares. A direita havia o pombal
senhorial, com sua cobertura de telhas redondas, e uma das fazendas cultivadas por um meeiro. As
outras ficavam para além do fosso. Mais adiante via-se o campanário da aldeia de Monteloup.
Depois começava a floresta espessa de carvalhos e castanheiros. Essa mata podia conduzir, sem a
menor clareira, até o norte da Gâtine e do Bocage vendeano, e quase até o Loire e o Anjou, a quem se
dispusesse a atravessá-la de lado a lado sem medo dos lobos e salteadores.
O bosque de Nieul, o mais próximo, pertencia ao senhor do Plessis. Os habitantes de Monteloup aí
faziam pastar os seus porcos e estavam sempre envolvidos em disputa com o administrador do marquês,
um tal Molines, de mãos rapaces. Também andavam por ali alguns fabricantes de tamancos, carvoeiros e
uma bruxa, a velha Melusina. Esta, no inverno, por vezes saía do bosque e se aproximava para beber
uma escudela de leite nas casas do povoado, em troca de algumas plantas medicinais.
Seguindo-lhe o exemplo, Angélica recolhia flores e raízes, punha-as para secar, fervia-as, triturava-as e
metia-as em saquinhos num esconderijo que só o velho Guilherme conhecia. Pulquéria esganiçava-se
horas inteiras chamando-a, e ela não aparecia.
As vezes Pulquéria chorava, quando pensava em Angélica. Via nela o malogro não apenas do que
pensava ser uma educação tradicional, mas também de sua raça e nobreza, que iam perdendo toda a
dignidade por causa da pobreza e da miséria.
Ao romper da aurora, a menina escapulia, cabelos ao vento, vestida com uma camisa, um ralo corpete
e uma saia desbotada, e seus pés, miúdos como os de uma princesa, eram duros como cornos, porque
escondia o seu calçado na primeira moita que aparecesse, para correr mais depressa. Se a chamavam,
voltava um pouco o rosto redondo e dourado pelo sol, no qual cintilavam dois olhos verde-azulados, da
mesma cor de uma planta que cresce nos pântanos e tem o seu nome.
— Deveriam mandá-la para um convento — gemia Pulquéria.
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Mas o Barão de Sancé, taciturno e roído de preocupações, encolhia os ombros. Como poderia mandar
para o convento sua segunda filha, quando não podia mandar nem a maior, pois tinha somente quatro
mil libras de renda por ano e precisava dar quinhentas para a educação de seus dois filhos mais velhos
nos agos-tinianos de Poitiers?
Para o lado dos pântanos, Angélica tinha um amigo: Valentim, o filho do moleiro.
Do lado dos bosques, seu amigo era Nicolau, um dos sete filhos de um lavrador e que já era pastor a
serviço do Sr. de Sancé.
Com Valentim andava de barco, percorrendo os canais margeados de miosótis, hortelãs e angélicas.
Valentim colhia braçadas dessa planta alta, espessa e de cheiro esquisito, e ia logo vendê-la aos monges
da abadia de Nieul, que fabricavam com suas raízes e flores um licor medicinal, e doces com os talos.
Em troca, os monges lhe davam escapulários e terços, de que se servia para lançá-los à cabeça dos
meninos das aldeias protestantes, que fugiam em algazarra como se o próprio Demônio lhes tivesse
cuspido no rosto. Seu pai, moleiro, deplorava aquelas façanhas. Embora católico, vangloriava-se de ser
tolerante. E que necessidade tinha o filho de comerciar braçadas de angélicas quando recebia como
herança o posto de moleiro e não precisava senão instalar-se no cômodo moinho, edificado sobre pilotis
à beira da água?
Mas Valentim era um rapaz difícil de se compreender. Corado, hercúleo já aos doze anos, mais
silencioso que uma carpa, tinha o olhar vago, e as pessoas que invejavam o moleiro diziam que era meio
idiota.
Nicolau, o pastor, tagarela e gabolas, levava Angélica a recolher cogumelos, amoras e mirtilos. Ia com
ela também apanhar castanhas. No bosque, fazia para a pequena flautas com ramos de ave-leira, que
tornava ocos.
Os dois rapazes sentiam reciprocamente ciúmes mortais dos favores de Angélica. Já era tão bonita que
os aldeões a olhavam como viva personificação das fadas que habitavam o grande dólmen do campo
feiticeiro.
Ela alimentava idéias de grandeza.
— Sou marquesa — declarava a quantos quisessem ouvi-la.
— Ah, sim? E por quê?
— Porque me casei com um marquês — respondia.
O "marquês" era tanto Valentim como Nicolau ou qualquer um dos vadios, tão inofensivos como
passarinhos, que levava atrás de si pelos prados e bosques.
Dizia também com muita graça:
— Sou Angélica; conduzo à guerra os meus anjinhos.
Daí proveio seu apelido: a Marquesinha dos Anjos.
No início do verão de 1648, quando Angélica completou onze anos, a ama Fantina pôs-se a esperar os
soldados e saqueadores. A região, contudo, parecia em paz, mas a ama, que adivinhava tantas coisas,
"farejava" os bandidos no calor daquele estio sufocante. Vivia com o rosto voltado para o norte, na
direção da estrada real, como se o vento carregado de poeira lhes houvesse trazido o odor.
Bastavam-lhe muito poucos indícios para saber o que se passava a distância, não somente na região,
mas em toda a província e até em Paris.
Depois de haver comprado ao mascate da Auvergne um pouco de cera e algumas fitas, era capaz de
informar o senhor barão acerca das novidades mais importantes que se relacionassem com a vida do
reino da França.
Ia ser criado um novo imposto; estava sendo travada uma batalha em Flandres; a rainha-mãe já não
sabia o que inventar para arranjar dinheiro a fim de satisfazer os príncipes ambiciosos. Ela mesma, a
soberana, enfrentava as suas dificuldades, e o rei de cachos louros usava calças demasiado curtas, bem
como seu irmão-zinho, a quem chamavam Petit Monskur, visto que seu tio, Monsieur, irmão do Rei Luís
XIII, era vivo ainda.
Entretanto, o Cardeal Mazarino acumula bibelôs e quadros da Itália. A rainha o ama. O Parlamento de
Paris não está satisfeito. Ouve o clamor dos pobres, camponeses, arruinados pelas guerras e pelos
impostos. Em suas carruagens, paramentados com trajes magníficos, forrados de arminho, os senhores
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do Parlamento se transportam ao Palácio do Louvre, onde vive o reizinho, agarrado com uma das mãos
à saia negra de sua mãe espanhola e com a outra à batina vermelha do Cardeal Mazarino, o italiano.
Explicam àqueles figurões, que não sonham senão com poder e riquezas, que o povo não pode pagar
mais, que os burgueses já nao podem comerciar, que todos estão cansados de pagar tributos ate sobre o
mais ínfimo dos seus bens. Será que não se vai pagar, ern breve, até sobre a escudela em que se come?
A rainha-mãe não esta contente. Nem o Sr. Mazarino. Então os grandes senhores conduzem o reizinho
ao seu trono no Parlamento. Com voz bem timbrada, embora vacilando um pouco ao repetir a lição que
lhe fora ensinada, responde àquelas graves personagens que é preciso dinheiro para os exércitos, para a
paz que se vai firmar muito em breve. Falou o rei. O Parlamento curva-se. Vai-se criar novo imposto.
Os intendentes das províncias vão pôr em ação os seus coletores. Os coletores vão ameaçar. A boa gente
vai suplicar, chorar, empunhar suas foices para matar os recebedores, vai lançar-se aos caminhos para
juntar-se às tropas dispersas, virão os bandidos... Ouvindo a ama, ninguém poderia crer que aquele
bufarinheiro embrutecido houvesse podido contar-lhe tantas coisas. Atribuem à imaginação o que era
adivinhação. Uma palavra, uma sombra, a passagem de um mendigo demasiado atrevido, de um
mercador inquieto, punham-na no caminho da verdade. Pressentia os bandidos no calor violento daquele
belo verão de 1648 e, como ela, Angélica os esperava...
CAPÍTULO II
Os saqueadores
Naquela tarde, Angélica tinha resolvido ir apanhar caranguejos com o pastor Nicolau.
Galopara, sem aviso prévio, para a cabana dos Merlot, pais de Nicolau. A aldeola em que habitavam,
de três ou quatro casebres, estava situada na orla da grande floresta de Nieul. As terras que cultivavam
pertenciam, contudo, ao Barão de Sancé.
Reconhecendo a filha do amo, a camponesa levantou a tampa do caldeirão sobre o fogo e pôs na sopa
um pedaço de toucinho para melhorar seu sabor.
Angélica pôs sobre a mesa uma ave, que acabara de torcer o pescoço no pátio do castelo. Não era a
primeira vez que se fazia convidar daquela maneira em casa de um ou outro camponês, e nunca deixava
de oferecer um presentinho, pois os castelões eram quase os únicos que possuíam, na região, pombal e
galinheiro, por direito senhorial.
O homem sentado perto do fogão comia pão preto. Francina, a filha mais velha, aproximou-se de
Angélica e beijou-a. Tinha dois anos mais que ela, mas, encarregada, havia muito, de cuidar dos
menores e de trabalhar no campo, não podia ir pescar caranguejos nem buscar cogumelos, como seu
vagabundo irmão Nicolau. Era amável e polida, tinha belas faces rosadas e frescas, e a Sra. de Sancé
desejava tê-la como aia em substituição a Nanette, que a desconcertava com sua insolência.
Depois de comerem, Nicolau levou Angélica.
— Venha ao estábulo, vamos buscar a lanterna.
Saíram. A noite estava muito escura porque a tempestade ameacava ainda. Angélica recordou mais
tarde que tinha virado o rosto em direção à estrada romana que passava a meia légua dali e que lhe
parecera ouvir um vago rumor. O bosque ainda estava mais escuro.
— Não tenha medo dos lobos — disse Nicolau. — No verão não vêm até aqui.
— Não tenho medo.
Chegaram logo ao regato e colocaram os cestos com uma isca de toucinho no fundo da água.
Puxavam-nos de quando em quando, escorrendo água e carregados de caranguejos azuis, que a luz havia
atraído, e os despejavam numa cesta que tinham trazido para esse fim. Angélica não pensava que os
guardas do Castelo do Plessis poderiam surpreendê-los e que se armaria um escândalo ao descobrir-se
que uma das filhas do Barão de Sancé andava pescando furtivamente à noite com um valdevinos.
De repente ela se levantou, e Nicolau fez o mesmo.
— Não ouviu nada?
— Ouvi. Gritaram.
Os dois jovens ficaram imóveis um instante e depois voltaram a seus cestos. Mas estavam
preocupados e logo tornaram a abandonar a pescaria.
— Desta vez ouço bem. Gritam lá embaixo.
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— É do lado da aldeia.
Rapidamente Nicolau recolheu os apetrechos de pesca e pôs a cesta às costas. Angélica pegou a
lanterna. Voltaram caminhando sem ruído por uma trilha coberta de musgo. Quando se aproximavam da
beira do bosque, imobilizaram-se subitamente. Um clarão vermelho penetrava por entre as árvores e
iluminava os troncos.
— Não é... que está amanhecendo? — murmurou Angélica.
— Não. É fogo!
— Meu Deus! Vamos ver se não é a sua casa que se está incendiando. Vamos depressa!
Mas ele a deteve.
— Espere! Gritam demais para um incêndio. Deve ser outra coisa.
Avançaram devagarinho até as primeiras árvores. Adiante, um
grande prado em declive descia até a primeira casa, que era a dos Merlot, e quinhentas varas mais longe
agrupavam-se, à beira do caminho, as outras três casinhas. Uma delas era a que ardia. As chamas que
saíam do teto iluminavam uma multidão movimentada de homens que gritavam e corriam, entravam nas
cabanas e delas saíam carregados de presuntos ou puxando vacas e asnos. Vinham da estrada romana e
corriam pela ruazinha vazia, como um rio caudaloso e negro. A onda eriçada de paus e lanças passou
por cima da granja dos Merlot, submergiu-a e continuou em direção de Monteloup. Nicolau ouviu sua
mãe gritar. Soou um tiro de arma de fogo. Era o pai Merlot, que tivera tempo de despendurar seu velho
mosquete e carregá-lo. Mas pouco depois o arrastaram até o quintal, como um saco, e o mataram a
pauladas.
Angélica viu uma mulher em camisa, que atravessava o pátio de uma das casinhas e procurava fugir;
gritava e soluçava. Vários homens a perseguiam. A mulher tentava chegar ao bosque. Angélica e
Nicolau retrocederam e, de mãos dadas, fugiram tropeçando nos espinheiros.
Quando voltaram, fascinados a contragosto pelo incêndio e por aquele alarido uniforme que se elevava
no meio da noite, viram que os perseguidores haviam alcançado a mulher e a arrastavam pela pradaria.
— É Paulina — cochichou Nicolau.
Apertados um contra o outro, por trás do tronco de um enorme carvalho, contemplavam arquejantes,
com olhos esbugalhados, o horrível espetáculo.
— Levaram nosso asno e nosso porco — disse ainda Nicolau.
Chegou a aurora, fazendo esmaecer os fulgores do incêndio, que
já se extinguia. Os bandidos não tinham incendiado as outras casinhas. A maior parte deles não se havia
detido naquele povoado sem importância. Os homens haviam seguido para Monteloup. Os que se
haviam encarregado de saquear as quatro casas já abandonavam o teatro de suas proezas. Viam-se suas
roupas esfarrapadas, suas caras magras e sombreadas pelas barbas. Alguns usavam grandes chapéus de
plumas, e um deles uma espécie de capacete que podia fazê-lo passar por militar. Mas a maior parte ia
vestida com roupa sem forma nem cor. Envoltos na neblina da madrugada que subia dos pântanos,
chamavam uns aos outros. Já não eram mais de quinze. Um pouco além da casa dos Merlot fizeram alto
para verificar o botim. Por seus gestos e modo de discutir via-se que o achavam escasso: alguns lenços e
lençóis encontrados nos baús, panelas, pães, queijos. Um deles mordia um presunto. Os animais
roubados iam na frente. Os últimos saqueadores reuniram em dois ou três embrulhos os pobres objetos
recolhidos e afastaram-se sem ao menos voltar a cabeça.
Angélica e Nicolau tardaram a abandonar o refúgio das árvores. Já o sol brilhava e fazia cintilar o
orvalho dos prados, quando se arriscaram a descer até o lugarejo agora estranhamente silencioso.
Ao se aproximarem da granja dos Merlot, ouviram um choro de criança.
— É meu irmãozinho — cochichou Nicolau. — Ele, pelo me nos, não morreu.
Receando a presença de algum bandido retardatário, entraram silenciosamente no quintal. Iam de mãos
dadas e detinham-se quase a cada passo. Deram primeiro com o pai Merlot, o nariz enterrado no estéreo.
Nicolau inclinou-se e procurou levantar a cabeça de seu pai.
— Responda, papai, o senhor está morto?
Levantou-se.
— Creio que está morto. Olhe como está branco, ele que era tão corado.
Na casinhola, o garotinho se esganiçava. Sentado sobre o leito revolto, agitava as mãozinhas,
assustado. Nicolau correu para ele e tomou-o nos braços.
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— Graças, Virgem Santa! O garoto não tem nada.
Angélica, com os olhos arregalados, olhava para Francina. A moça achava-se estendida no solo,
branca, com os olhos cerrados. Tinha a saia levantada até o ventre e o sangue lhe corria entre as pernas.
— Nicolau — murmurou Angélica com voz estrangulada —, que... que lhe fizeram?
Nicolau olhou e uma terrível expressão envelheceu-lhe o semblante. Voltou os olhos para a porta e
rosnou:
— Malditos, malditos!
Com gesto brusco entregou o menino a Angélica.
— Segure-o.
Ajoelhou-se perto da irmã e desceu pudicamente a saia estraçalhada.
— Francina, sou eu, Nicolau. Responda, você está morta?
Vinham lamentos do estábulo próximo. Apareceu a mãe, gemendo e curvada.
— É você, filho? Ah! meus pobres filhos, meus pobres filhos! Que desgraça! Levaram o asno e o
porco, e nossa pequena economia de escudos. Bem que eu dizia ao meu homem que era preciso
enterrá-los!
— Dói muito, mamãe?
— A mim pouco importa, filho. Sou mulher, já passei por outras. Mas minha Francina, a pobrezinha,
que é tão sensível, são capazes de tê-la assassinado.
Acalentava a filha nós braços robustos de camponesa e chorava.
— Onde estão os outros? — perguntou Nicolau.
Depois de prolongada busca terminaram por encontrar as três crianças, um menino e duas meninas, na
ucha, onde se haviam escondido enquanto os salteadores, após roubarem o pão, se entre-tinham em
violar sua mãe e sua irmã.
Um vizinho veio saber notícias. Reuniram-se os infortunados habitantes do lugar para fazer a avaliação
de suas desditas. Tinham de chorar somente dois mortos: o pai Merlot e um velho que também procurara
usar seu mosquete. Os outros camponeses tinham sido amarrados a cadeiras, depois de terem sido
esbordoados sem crueldade excessiva. Não haviam degolado nenhuma criança, e um dos meeiros tinha
conseguido abrir a porta do estábulo para soltar suas vacas, que fugiram e sem dúvida seriam
encontradas. Mas quanto tecido e quanta roupa foram roubados! Quantos vasos de estanho, que
enfeitavam a lareira, haviam desaparecido! E os queijos, e os presuntos, e até aquele dinheiro, tão
escasso, tão contado!
Paulina continuava chorando e gritando.
— Seis se aproveitaram de mim!
— Cale-se! — disse brutalmente o pai. — Sei quem você é, e, como gosta de esconder-se com os
rapazes nos matos, acho até que aproveitou. No entanto, a nossa vaca estava prenhe! Terei mais
dificuldade para achá-la do que você para encontrar um amante!
— Precisamos sair daqui — disse a mãe Merlot, que continuava com Francina desmaiada nos braços.
— Talvez venham outros por aí.
— Vamos para o bosque com os animais que sobraram. Já fizemos isso quando passaram os exércitos
de Richelieu.
— Vamos para Monteloup.
— Para Monteloup! Com certeza eles já estão lá.
~ Vamos para o castelo — disse um.
Todos aprovaram incontinenti.
O instinto ancestral arrastava-os para a casa senhorial, em busca da proteção do amo, que, no decorrer
dos séculos, tinha estendido sobre seus trabalhos a sombra de suas muralhas e de seu torreão.
Angélica, que apertava a criança entre os braços, sentiu que o coração se lhe estreitava em um remorso
indefinido.
"Nosso pobre castelo", pensava, "está desmoronando. Como podemos agora proteger estes infelizes?
Quem sabe se os bandidos não terão ido até lá? E não seria o velho Guilherme com a sua lança quem
poderia impedi-los de entrar."
— Vamos — disse em voz alta —, vamos para o castelo. Mas não precisamos ir pela estrada real, nem
pelos atalhos dos campos. Se os bandidos estiverem emboscados neles, não poderemos aproximar-nos
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da entrada. Tudo o que podemos fazer é descer até os pântanos esgotados e chegar ao castelo pelo
grande fosso. Há uma portinha que nunca se usa, mas eu sei como se abre.
Não acrescentou que aquela portinhola meio escondida pelos escombros de um subterrâneo lhe tinha
servido para fugir do castelo mais de uma vez, e que num dos calabouços que os atuais barões de Sancé
não conheciam bem estava o esconderijo em que preparava plantas e filtros, como a bruxa Melusina.
Os aldeões escutaram-na, confiantes. Alguns somente agora observavam sua presença, mas estavam
tão acostumados a considerar Angélica como uma encarnação das fadas que sua aparição no mais negro
de sua infelicidade não lhes causou grande assombro.
Uma das mulheres tirou-lhe dos braços o garoto. E Angélica, livre de sua carga, conduziu o grupinho
por um grande rodeio através dos pântanos, sob o sol escaldante, ao longo do promon-tório abrupto que
antigamente havia dominado aquele golfo do Poitou, invadido pelas águas marinhas. Com o rosto sujo
de pó e lama, animava os camponeses.
Fê-los entrar pela estreita abertura da poterna abandonada. No fresco ambiente dos subterrâneos
reúniu-os e deu-lhes ânimo, mas a obscuridade fez as crianças chorarem.
— Calma, calma — soou, tranqüilizando-as, a voz de Angélica.— Logo estaremos na cozinha, e babá
Fantina nos servirá a sopa.
A evocação da ama Fantina animou a todos.
Seguindo a filha do Barão de Sancé,-os camponeses, gemendo I e tropeçando, subiram as escadas
meio desmoronadas e atravessa-1 ram as salas cheias de destroços, das quais fugiam os ratos. Angéb'l ca
orientava-os sem vacilação. Era seu domínio.
Quando chegaram ao grande vestíbulo, ruídos de vozes os inquietaram um momento. Mas Angélica,
tal como os aldeões, não se atrevia a supor que o castelo houvesse sido atacado. Ao se aproximarem da
cozinha, o cheiro da sopa e do vinho quente se tornou mais pronunciado. Com certeza havia muita
gente por ali, mas não eram bandidos, pois o tom das conversas era baixo, comedido e até triste.
Outros camponeses da aldeia e das fazendas vizinhas tinham vindo colocar-se sob a proteção das
velhas muralhas em ruínas.
Quando apareceram os recém-chegados, elevou-se um grito geral de pavor, pois foram tomados por
bandoleiros, mas, ao ver Angélica, a ama correu ao seu encontro e apertou-a nos braços.
— Meu tesouro! Você está viva! Graças, Senhor! Santa Radegunda! Santo Hilário! Obrigada!
Pela primeira vez Angélica não respondeu ao ardoroso abraço. Acabava de guiar "sua" gente através
dos pântanos. Horas inteiras havia tido atrás de si aquele rebanho lastimoso. Já não era uma criança!
Quase com violência, desprendeu-se de entre os braços de Fantina Lozier.
— Dê-lhes de comer — disse.
Mais tarde, como em sonho, viu sua mãe, que, com os olhos cheios de lágrimas, lhe acariciava as
faces.
— Filha, quanta inquietação você nos causou!
Pulquéria, consumida como uma vela, com sua acne inflamada pelas lágrimas, aproximou-se também,
assim como seu pai e seu avô... Parecia a Angélica muito divertido aquele desfile de fantoches. Bebera
um canecão de vinho quente e estava completamente embriagada, imersa num doce torpor. A seu redor
as pessoas trocavam comentários sobre as peripécias da trágica noite: a invasão do povoado, as
primeiras casas incendiadas, como haviam lançado o síndico pela janela do primeiro andar, que ele
estava tão orgulhoso de haver construído havia pouco.
Aqueles hereges haviam ainda invadido a pequena igreja, roubado os vasos sagrados e amarrado o
cura com a criada sobre o próprio altar! Gente possessa do Demônio! Senão, como teriam podido
inventar semelhantes coisas?
Diante de Angélica uma velha acalentava nos braços sua neta, linda adolescente que tinha o rosto
inchado de tanto chorar. A avó abanava a cabeça e repetia sem cessar, num misto de surpresa e horror:
— O que fizeram com ela! O que fizeram com ela! É incrível!...
Não falavam senão de mulheres violentadas, de homens espancados, de vacas e cabras roubadas. O
sacristão havia segurado seu burro pelo rabo, enquanto os bandoleiros o puxavam pelas orelhas.' E
quem gritava mais alto era o pobre animal!
Mas muitos haviam conseguido fugir. Uns para os bosques, outros para os pântanos, a maior parte
para o castelo. Havia lugar bastante para acolher o gado custosamente posto a salvo. Infelizmente, sua
fuga tinha atraído na mesma direção alguns salteado-res e, apesar do mosquete do Sr. de Sancé, as
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coisas teriam podido acabar mal se ao velho Guilherme não houvesse ocorrido logo uma idéia genial.
Puxando as correntes enferrujadas da ponte levadiça, tinha conseguido levantá-la.
Como lobos cruéis mas medrosos, os bandidos tinham retrocedido diante do pobre fosso de água
podre.
Deu-se então um estranho espetáculo. Viu-se o velho Guilherme junto à poterna, dizendo
impropérios em seu idioma, agitar o punho para as sombras onde desapareciam vultos andrajosos. De
repente, um dos fugitivos parou e se pôs a retrucar. Houve entre eles um áspero diálogo, no meio da
noite avermelhada pelo incêndio, naquela língua tudesca que fazia tremer.
Ninguém soube ao certo o que Guilherme e seu compatriota disseram. O certo é que os bandidos não
voltaram e ao amanhecer se haviam distanciado da aldeia. Todos consideravam Guilherme um herói,
todos repousavam à sua sombra militar.
O incidente demonstrava, em todo caso, que o bando, embora parecesse composto de mendigos
camponeses ou de miseráveis das cidades, também tinha soldados vindos do norte, dispersados em
virtude do tratado de paz de Vestfália. Havia de tudo naqueles exércitos que os príncipes recrutavam
para pôr a serviço do rei: va-lões, italianos, flamengos, lorenses, espanhóis, alemães, todo um mundo
que os pacíficos habitantes do Poitou não podiam sequer ; imaginar. Alguns chegaram a afirmar que
entre os bandidos havia até um polaco, um daqueles selvagens que o Condottiere João de | Werth levara
em outra época para a Picardia, a fim de degolar crian- . ças de peito. Tinham-no visto. De rosto
amarelo, usava um gorro de pele e possuía, sem dúvida, grande virilidade, porque, ao ter- ! minar a
jornada, todas as mulheres afirmavam ter sido suas vítimas.
Reedificaram-se as casas incendiadas da aldeola, o que não foi grande tarefa. Barro misturado com
palha e caniços formavam paredes bastante sólidas. Recolheram as messes que não foram saqueadas e a
colheita foi boa, o que consolou a muitos. Só duas mocinhas, uma delas Francina, não puderam
recuperar-se das violências sofridas. Tiveram grande febre e morreram.
Dizia-se que de Niort haviam enviado alguns soldados à procura do bando, que parecia estar isolado e
sem a menor disciplina.
Assim, a incursão dos bandidos pelas terras dos barões de Sancé não alterou grandemente a vida
rotineira do castelo. Ouviu-se o avô resmungar mais amiúde, recordando as infelicidades que havia
trazido consigo a morte do bom Rei Henrique IV e a insubordinação dos protestantes.
— Essas pessoas encarnam o espírito de destruição de um reino. Uma vez censurei o Sr. de Richelieu
por mostrar-se tão duro, mas vejo que não o foi quanto devia.
Angélica e Gontran, que naquele dia eram os únicos ouvintes da profissão de fé de seu avô, olharam-se
com ar conivente. O honesto ancião estava completamente fora da realidade!
Todos os netos adoravam o velho barão, mas raramente aceitavam suas idéias caducas.
O menino, que já ia completar doze anos, atreveu-se a observar:
— Esses bandoleiros, vovô, não eram huguenotes. Eram católicos, mas desertores de exércitos
famintos, e estrangeiros a quem não haviam pago o soldo, conforme dizem, e também aldeões dos
campos de batalha.
— Então, não precisavam vir até aqui. Além disso, você não conseguirá convencer-me de que os
protestantes não os ajudam. No meu tempo, o exército pagava mal às tropas, não nego, mas pagava
pontualmente. Creia no que eu digo: toda esta desordem tem inspiração estrangeira, talvez inglesa ou
holandesa. Entendem-se e agrupam-se, tanto mais que o Edito de Nantes foi demasiado in-dulgente para
com eles, deixando-lhes não só o direito de professar o seu credo, mas ainda a igualdade de direitos
cívicos...
— Vovô — perguntou subitamente Angélica —, que direito é esse que deixaram aos protestantes?
— Você é muito jovem para compreender, filhinha — disse o velho barão, e acrescentou: — Os
direitos cívicos representam algo que não se pode tirar a ninguém sem que se perca a honra.
— Então, não é dinheiro — disse a menina.
O velho gentil-homem felicitou-a:
— Muito bem, Angélica. Na verdade, você compreende as coisas bem demais para a
sua idade.
Mas parecia a Angélica que o assunto exigia mais explicações.
— De maneira que, embora os bandidos nos saqueiem completamente e nos deixem nus, deixam-nos,
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contudo, nossos direitos cívicos?
— Exatamente, minha filha — respondeu seu irmão.
Mas havia ironia em sua voz, e Angélica perguntou a si mesma se ele não estaria troçando.
Gontran era um rapaz de quem nunca se sabia o que pensar. Falava pouco e vivia muito só. Como não
podia ter preceptor nem ir ao colégio, devia contentar-se, para seus estudos, com os rudi-mentos
intelectuais que lhe ministravam o mestre-escola e o cura da aldeia. Freqüentemente se retirava para sua
água-furtada a fim de triturar cochinilhas ou amassar argilas de cores diferentes para com elas executar
estranhas composições, a que dava o nome de "quadros" ou "pinturas".
Embora muito descuidado com a sua pessoa, como todas as crianças de Sancé, costumava reprovar
Angélica por viver feito uma selvagem e não saber honrar a sua linhagem.
— Você não é tão tola como parece — disse-lhe nesse dia, à guisa de cumprimento.
CAPÍTULO III
Os arrecadadores de impostos — A volta dos irmãos estudantes
Após algum tempo, o velho nobre dirigiu a atenção para o pátio, de onde chegavam interpelações e
gritos misturados com ca-carejos de galinhas assustadas. Depois ouviu-se o ruído de um galope e, afinal,
exclamações mais violentas, nas quais se reconheciam os acentos de Guilherme. Era uma bela tarde de
outono, e os demais moradores do castelo deviam estar ausentes.
— Não tenham medo, meus filhos — dizia o avô. — Estão afugentando algum mendigo.
Mas já Angélica havia descido a escada aos pulos e gritava:
— Estão atacando Guilherme, querem maltratá-lo!
Coxeando, o barão foi buscar um sabre enferrujado, e Gontran voltou armado de um chicote, dos que
se utilizam para bater nos cães. Chegaram até a porta e viram o velho servidor empunhando a lança e
Angélica a seu lado.
O adversário não estava muito longe. Achava-se fora de seu alcance, do outro lado da ponte levadiça,
mas ainda o defrontava. Era um moço de aspecto famulento e parecia furioso. Procurava, ao mesmo
tempo, retomar o porte afetado e oficial.
Gontran baixou o chicote e puxou seu avô para o interior da casa, cochichando:
— E o cobrador de impostos. Já o afugentaram várias vezes...
O funcionário hostilizado continuava a retroceder lentamente, mas sem dar as costas, e adquiria novo
ânimo ante a hesitação dos reforços. Parou a distância respeitosa e, tirando do bolso um rolo de papel
bastante amassado pela rixa, pôs-se a desenrolá-lo carinhosamente, suspirando. Depois, fazendo
contorções, começou a ler a intimação segundo a qual o Barão de Sancé devia pagar sem demora a
quantia de oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros, correspondente a
impostos de meeiros atrasados, dízimos das rendas do senhor e imposto real, taxas pela cobertura de
éguas, "direitos de pó" pelos rebanhos que transitaram pela estrada real e multa pelo atraso nos
pagamentos. O velho nobre ficou vermelho de cólera.
— Por acaso você pensa, patife, que um gentil-homem vai pagar só por ouvir esse aranzel do fisco,
como se fosse um vilão qualquer? — gritou, exaltado.
— O senhor sabe de sobra que o seu filho pagou até agora regularmente os tributos anuais — disse o
homem, curvando a espinha. — Voltarei, pois, quando ele estiver aqui. Mas eu o previno: se amanhã, à
mesma hora, pela quarta vez, não estiver aqui e não pagar, mando-lhe uma citação, e seu castelo e seus
móveis serão vendidos por dívidas ao Tesouro Real.
— Fora daqui, lacaio dos usurários do Estado!
— Senhor barão, advirto-o de que sou um servidor juramentado da lei e que posso ser designado
agente executivo.
— Para a execução é preciso um julgamento — fulminou o velho fidalgo.
— Os senhores terão o julgamento facilmente, acredite, se não pagarem...
— Como quer que paguemos se não temos com quê? — exclamou Gontran, vendo que o barão se
perturbava. — Já que o senhor é oficial de justiça, venha certificar-se de que os saqueadores nos levaram
um garanhão, duas jumentas e quatro vacas, e que a maior parte do que reclama como dívida procede
dos impostos dos meeiros de meu pai. Desejou até pagar por eles, pois esses pobres camponeses não
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podiam fazê-lo, mas ele mesmo nada deve. Além disso, por terem sido atacados pelos bandidos, nossos
aldeòes sofreram ainda mais que nós, e não é hoje, precisamente depois deste saque, que meu pai está
em situação de pagar essas contas...
Aquela linguagem razoável apaziguou o agente do fisco muito mais que as injúrias do velho cavaleiro.
Lançando olhares prudentes para o lado em que se encontrava Guilherme, aproximou-se um pouco e,
em tom mais brando e quase compassivo, embora firme, explicou que ele não podia senão receber e
transmitir as ordens da intendência fiscal. A seu ver, o único meio capaz de retardar o embargo seria o
barão dirigir um pedido ao intendente geral do fisco, por intermédio do intendente provincial de
Poitiers.
— Aqui entre nós — acrescentou o oficial de justiça, provocando com isso uma careta de repugnância
no velho senhor —, entre nós, digo ao senhor que nem mesmo meus chefes imediatos, como o
procurador e o inspetor de arrecadações, serão capazes de lhes dar derrogação ou dispensa. No entanto,
como são da nobreza, certamente conhecem as pessoas importantes. Então, devem agir dessa maneira, é
um conselho de amigo.
— Não serei eu que me orgulharei de citá-lo como amigo! — observou em tom acerbo o Barão de
Ridoué.
— Digo-lhe isto para que o senhor repita ao seu filho. A miséria é geral, podem crer. Pensam que me
diverte andar por aí causando a todos a impressão de um fantasma e levando bordoada como se fosse um
cão sarnento? Bem, boa tarde a todos vocês, e esqueçamos o incidente.
Enfiou na cabeça o chapéu, e foi-se a capengar, observando com pena que a manga de seu dólmã se
tinha rasgado na briga.
Em sentido oposto, afastou-se, também claudicando, o velho barão. Acompanharam-no Gontran e
Angélica, ambos silenciosos.
O velho Guilherme, praguejando contra inimigos imaginários, devolveu sua antiga lança ao depósito
de relíquias históricas.
De volta ao salão, o avô pôs-se a andar de um lado para outro, e durante muito tempo seus netos não
ousaram falar. Mas, na penumbra do anoitecer, ergueu-se a voz da menina.
— Diz-me, vovô, se os bandidos nos deixaram os direitos cívicos, esse bom homem agourento não os
levou agora?
— Vai para junto de tua mãe! — disse o ancião com voz trêmula.
Tornou a sentar-se em sua grande e velha poltrona estofada e não mais falou. Depois de fazer uma
reverência, os netos se retiraram.
Quando Armando de Sancé soube da recepção que tinham feito ao arrecadador de impostos, suspirou e
cocou demoradamente a grisalha mosca que usava, à maneira de Luís XIII.
Angélica amava com afeição um tanto protetora aquele pai bondoso e tranqüilo, cujas dificuldades
cotidianas lhe haviam cavado rugas profundas na fronte queimada pelo sol.
Para criar sua numerosa prole, aquele filho de fidalgo pobre tivera de renunciar a todos os prazeres da
sua condição social. Raramente viajava e até deixara de caçar, ao contrário dos fidalgotes vizinhos, não
mais ricos do que ele, que se consolavam de sua miséria empregando boa parte da vida a perseguir
lebres e javalis.
Armando de Sancé dedicava todo o seu tempo ao trato de suas minguadas culturas. Não se vestia
muito melhor que seus camponeses e, tanto quanto eles, exalava forte odor de estéreo e de cavalos.
Amava seus filhos, que o distraíam, e orgulhava-se deles. Representavam sua melhor razão de viver.
Para ele, o mais importante no mundo eram seus filhos. Depois, os seus muares. Durante algum tempo o
gentil-homem sonhara estabelecer pequena criação dessas bestas de carga, menos delicadas que os
cavalos e mais resistentes que os asnos.
Mas agora os bandidos haviam levado seu melhor garanhão e duas jumentas. Era um desastre, e ele
quase se dispunha a vender os muares restantes e um pedaço de terra que reservava para aquele fim.
No dia seguinte_ao da visita do agente fiscal, o Barão Armando aparou cuidadosamente uma pena de
ganso e acomodou-se ante a escrivaninha a fim de redigir uma súplica ao rei, para que o isentasse dos
impostos anuais. Expunha naquela carta sua pobreza de gentil-homem.
Primeiro, desculpava-se de não poder apresentar senão nove filhos vivos, mas outros nasceriam, sem
dúvida, porque "tanto ele como sua mulher ainda eram jovens e os tinham de boa vontade".
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Acrescentou que sustentava um pai inválido, sem pensão, que tinha alcançado o posto de coronel sob
Luís XIII. Que ele próprio tinha sido capitão e indicado para posto mais elevado, mas tivera de
abandonar o serviço do rei porque seu soldo de oficial de artilharia, mil e setecentas libras por ano, "não
lhe proporcionava meios para manter-se no serviço". Também salientou que sustentava duas irmãs
idosas, as quais "não puderam encontrar marido nem entrar para um convento por falta de dote, e não
podiam senão consumir-se em tarefas humildes"; que tinha quatro criados, entre eles um velho militar
sem pensão, necessário ao seu serviço. Os dois filhos mais velhos estavam no colégio e custava-lhe
quinhentas libras somente a sua educação. Também era mister enviar para o convento uma das filhas,
mas exigiam trezentas libras. Terminava dizendo que pagava havia anos os impostos de seus meeiros
para conservá-los na terra, e que por isso tudo se encontrava em débito para com o fisco, que lhe
reclamava oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros só para aquele ano. Seu
rendimento total alcançava apenas quatro mil libras por ano, tendo de alimentar dezenove pessoas e
conservar sua posição de gentil-homem, num momento em que, por cúmulo da infelicidade, os bandidos
tinham saqueado e incendiado suas terras, matando alguns de seus meeiros e deixando os sobreviventes
na maior penúria. Pedia,-para concluir, confiante na bondade real, perdão para os impostos reclamados e
uma ajuda ou adiantamento de pelo menos mil libras, e solicitava "como graça do rei" que, se fosse
preparada alguma expedição à América ou às índias, empregasse como alferes seu "cavaleiro", seu
primogênito, que estudava lógica com os agostinianos, aos quais, acrescentava, devia um ano de pensão.
Aceitaria, por sua parte, qualquer cargo compatível com sua condição de nobre, para poder manter sua
gente, porque suas terras, ainda que as vendesse, não lhe permitiriam...
Após secar com areia tão extensa missiva, que lhe tinha custado algumas horas de trabalho, Armando
de Sancé escreveu ainda umas palavras dirigidas a seu protetor e primo, o Sr. Marquês du Plessis de
Bellière, a quem incumbia de encaminhar sua petição ao próprio rei ou à rainha-mãe, acrescentando
recomendações capazes de a fazer aceitar favoravelmente.
Terminava com esta gentileza:
"Desejo, senhor, tornar a vê-lo brevemente e achar ocasião, nesta província, de vos ser útil; seja
oferecendo-lhe belas mulas de carga, seja ofertando-lhe frutas, castanhas, queijos e boiões de coalhada
para a sua mesa".
Algumas semanas depois, o pobre Barão Armando de Sancé acrescentaria novo dissabor à sua extensa
lista.
Uma noite, em que se anunciavam as primeiras geadas, ouviu-se o galope de um cavalo na estrada, e
logo depois na ponte levadiça, que tinha recuperado seus adornos de perus.
Latiram os cães no pátio. Angélica, que tia Pulquéria conseguira reter em seu quarto, para obrigá-la a
fazer um trabalho de agulha, precipitou-se para a janela.
Avistou um cavalo do qual se apeavam dois ginetes altos e magros, vestidos de negro, enquanto uma
mula carregada de malas aparecia na trilha, conduzida por um pequeno camponês.
— Titia! Hortênsia! — gritou. — Venham ver. Acho que são nossos irmãos Josselino e Raimundo.
As duas meninas e a velha demoiselle desceram apressadamente e chegaram ao salão no momento em
que os estudantes saudavam o avô e a tia Joana. Acudiram os domésticos de todos os lados. Alguns
foram buscar o barão no campo e a baronesa na horta.
Os adolescentes respondiam secamente às ruidosas boas-vindas.
Tinham quinze e dezesseis anos, mas freqüentemente os supunham gêmeos, porque tinham a mesma
estatura e eram muito parecidos. Possuíam ambos a mesma tez mate, os olhos pardos e os cabelos negros
e rígidos, que lhes caíam sobre o colarinho branco, amarrotado é sujo do uniforme. Somente se
distinguiam pela expressão. Nas feições de Josselino havia mais franqueza; nas de Raimundo, mais
reserva.
Enquanto respondiam por monossílabos às perguntas do avô, a ama, felicíssima, estendia sobre a mesa
uma bela toalha e trazia terrinas de patê, pão, manteiga e uma panelada das primeiras castanhas.
Brilharam os olhos dos adolescentes. Sem mais espera, sentaram-se à mesa e comeram com tal
sofreguidão e incivilidade que encheram Angélica de espanto.
Notou esta, contudo, que eles estavam magros e pálidos e suas roupas de sarja preta, puídas nos
joelhos e nos cotovelos.
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Baixavam os olhos quando falavam. Nenhum deles parecia reconhecê-la e, contudo, ela recordava que
antigamente havia ajudado Josselino a desaninhar passarinhos, como agora Dionísio a ajudava.
Raimundo trazia pendurado ao cinto um chifre oco. Ela perguntou-lhe o que era.
— É para a tinta — respondeu com arrogância.
— Eu joguei fora o meu — disse Josselino.
O pai e a mãe chegaram empunhando tochas. O barão, não obstante sua alegria, estava um tanto
inquieto.
— Por que motivo estão aqui, meus rapazes? No verão não vieram. Não é curioso que lhes dêem férias
no início do inverno?
— Não viemos no verão porque não tínhamos um níquel para alugar um cavalo, nem mesmo para
tomar a diligência que vai de Poitiers a Niort — explicou Raimundo.
— E se agora estamos aqui — continuou Josselino —, não é porque estejamos mais ricos...— ...mas
porque os padres nos puseram no olho da rua — concluiu Raimundo.
Houve um silêncio contrafeito.
— Por São Dionísio! — exclamou o avô. — Que falha cometeram, senhores, para lhes fazerem tão
grande afronta?
— Nenhuma. E que já faz dois anos que os agostinianos deixaram de receber a nossa pensão. Deram-
nos a entender que outros estudantes, cujos pais eram mais generosos, precisavam dos nos- sos
lugares...
O Barão Armando pôs-se a caminhar de um lado para outro, o que era indício de grande agitação
interior.
— Mas isso não é possível. Se não fizeram nada de mau, os padres não podem pô-los na rua sem mais
nem menos. Vocês são gentis-homens! E os padres sabem disso!
Josselino, o mais velho, tomou um ar malicioso.
— É verdade, eles o sabem de sobra, e posso repetir-lhes as palavras que o administrador nos deu
como provisão de viagem. Disse que os nobres eram os piores pagadores, e que, se não tinham dinheiro,
podiam dispensar o latim e as ciências.
O velho barão ergueu altivamente o busto.
— Custa-me crer que diga a verdade. Lembre-se de que a Igreja e a nobreza formam um todo e que os
estudantes representam a futura flor do Estado. Os bons padres o sabem melhor que ninguém!
Foi Raimundo, o segundo, que estava destinado ao sacerdócio, quem replicou, sem tirar os olhos do
chão:
— Os padres ensinaram-nos que Deus teria os seus eleitos, e talvez não nos tenha julgado dignos...
— Feche o seu armazém de bobagens, Raimundo! — interveio o irmão. — Asseguro-lhe que não é o
momento de o abrir. Se quer ser monge mendicante, vá. Mas eu sou o primogênito e estou de acordo
com o nosso avô: a Igreja deve-nos consideração, a nós, os nobres! Agora, se prefere os filhos dos
burgueses e negociantes, bom proveito lhe façam. Terá escolhido sua perdição e afundará!
Os dois barões protestaram a uma voz:
— Josselino, você não tem o direito de blasfemar dessa maneira!
— Não estou blasfemando. Limito-me a consignar o que vejo. Na aula de lógica, da qual eu era o
mais jovem e o segundo entre trinta alunos, há exatamente vinte e cinco filhos de burgueses e
funcionários que pagam pontualmente, e cinco gentis-homens dos quais somente dois não se atrasam...
Armando de Sancé procurou consolar-se:
— Há, então, mais dois filhos de nobres que mandaram embora com vocês?
— Nem tanto assim. Os outros pais que não pagam são pessoas altamente colocadas e os
agostinianos têm medo deles.
— Proíbo-lhe de falar assim dos seus educadores — disse o Barão Armando, enquanto seu
velho pai resmungava como para si mesmo:
— Felizmente o rei morreu e não pode tomar conhecimento de semelhantes coisas!
— Sim, felizmente, vovô — disse Josselino em tom de mofa. — E foi até um bravo monge que
assassinou Henrique IV.
— Cale-se, Josselino! — disse prontamente Angélica. — As palavras não são o seu forte e você
parece um sapo quando fala. Além disso, quem morreu assassinado por um monge não foi
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Henrique IV, mas Henrique III.
O adolescente olhou com surpresa para a menina de cabelos ane-lados, que o apostrofava
calmamente.
— Ah, falou a rã, a princesa dos brejos! "Marquesa dos Anjos"... E pensar, maninha, que até
me esqueci de cumprimentá-la!
— Por que me chama de rã?
— Porque me chamou de sapo. Além disso, você não continua gostando de desaparecer entre a
erva e os caniços dos pântanos? Ou acaso se tornou formalista e orgulhosa como Hortênsia?
— Creio que não — disse Angélica modestamente.
Sua intervenção acalmara um pouco o ambiente. Os dois irmãos tinham acabado de comer e a
ama estava tirando a mesa.
Mesmo assim, a atmosfera continuava carregada. Confusamen-te, cada qual procurava uma
solução para esse novo golpe da adversidade.
Em meio ao silêncio, ouviu-se berrar o caçula. A mãe, as tias e até Gontran valeram-se do
pretexto para "ir ver". Mas Angélica ficou entre os dois barões e seus irmãos recém-vindos da
cidade em tão triste situação.
Indagava a si mesma se desta vez iam perder a honra. Tinha grande desejo de perguntá-lo, mas
não se atrevia. Seus irmãos inspiravam-lhe algo que se parecia vagamente com uma piedade des-
denhosa.
O velho Lützen, que estava ausente no momento em que chegaram os dois jovens, voltou trazendo
mais tochas em homenagem aos viajantes. Derramou um pouco de cera ao beijar canhestramente o mais
velho. O segundo evitou com algum desdém a rude carícia de boas-vindas.
Mas, sem se perturbar, o velho soldado não vacilou em proclamar seu ponto de vista:
— Já era tempo de voltarem ao lar. Em primeiro lugar, de que lhes serve remoer o latim e quase não
saber escrever sua própria língua? Quando Fantina me disse que os jovens senhores voltavam
definitivamente, disse logo para comigo que o Sr. Josselino podia afinal ir para o mar...
— Sargento Lützen, será necessário recordar-lhe a antiga disciplina? — interrompeu bruscamente o
velho barão.
Guilherme não insistiu e manteve-se calado. Angélica ficou surpreendida com o tom arrogante e
alterado de seu avô. Este virou-se para o primogênito:
— Espero, Josselino, que você tenha esquecido seus planos de criança de se tornar navegante.
— Por que haveria de esquecê-los, vovô? Ao contrário, parece-me que agora é que não há outra
solução para mim.
— Enquanto eu viver, você não será marinheiro. Qualquer coisa, mas não isso! — E o ancião bateu
com a bengala nas lajes rachadas do piso.
Josselino parecia aterrado pela brusca teimosia de seu avô a respeito de um projeto que acariciava no
fundo do coração e que-o havia ajudado a tolerar sem grande ressentimento a expulsão de que fora
vítima.
"Acabaram-se os padres-nossos e as recitações de latim", havia pensado. "Agora já sou um homem e
embarcarei em um navio do rei."
Armando de Sancé procurou intervir.
— Meu pai — disse —, por que essa intransigência? Talvez fosse uma solução tão boa quanto qualquer
outra. Digo-lhe, aliás, que, na súplica por mim endereçada ao rei há pouco, pedi-lhe, entre outras coisas,
que facilitasse o embarque eventual de meu primo gênito em um corsário ou navio de guerra.
Mas o velho barão agitava-se com raiva. Nunca Angélica o vira tão encolerizado, nem sequer no dia da
discussão com o arrecadador de impostos.
— Não gosto das pessoas que sentem os pés arderem no chão de seus avós. Para além dos mares
nunca encontram montes nem maravilhas, mas selvagens inteiramente nus, com os braços tatua-dos. O
primogênito de um nobre deve servir nos exércitos do rei. Isso é tudo.
— Com muito prazer servirei ao rei, mas no mar — retrucou o moço.
— Josselino tem dezesseis anos. Já é tempo, afinal, de que escolha seu destino — disse seu pai, com
alguma hesitação.
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Uma expressão de dor anuviou a face encarquilhada que a curta barba branca emoldurava. O velho
ergueu a mão.
— É verdade que outros, na família, escolheram seu destino. Causar-me-á uma decepção você
também, meu filho? — acrescentou, em tom de grande tristeza.
— Longe de mim a idéia de trazer-lhe à memória recordações dolorosas, meu pai — escusou-se o
Barão Armando. — Eu nunca pensei em exilar-me e não encontro palavras para exprimir o meu apego
às nossas terras do Poitou. Mas lembro-me de quão dura e precária era a minha situação no exército.
Ainda sendo nobre, não se consegue chegar aos postos superiores sem dinheiro. Estava crivado de
dívidas e, às vezes, para manter-me, tive de vender tudo o que possuía: o cavalo, a tenda, as armas;
cheguei a alugar meu próprio criado. Recorda-se o senhor de todas as boas terras I que teve de
transformar em dinheiro para manter-me no serviço? I
Angélica seguia a conversação com muito interesse. Jamais vira I marinheiros, mas era de uma região
aonde chegam, pelos vales do I Sèvre e da Vendée, os grandes chamados do oceano. Na costa de I La
Rochelle a Nantes, pelos Sables d'01onne, sabia haver barcos I de pescadores que partiam para terras
longínquas, onde encontra-1 vam homens vermelhos como o fogo ou listrados como filhotes I de javali.
Contava-se até que um marinheiro bretão, para o lado I de Saint-Malo, havia desembarcado na França
selvagens em cujal cabeça cresciam penas como as dos pássaros.
Ah! se ela fosse homem, não teria pedido o conselho de seu avô!-1 Teria já partido, levando para o
Novo Mundo todos os seus afl'l jinhos.
No dia seguinte de manhã, Angélica, que estava no pátio, viu que um pequeno camponês entregava ao
barão um papel amarrotado.
— Éo Intendente Molines; pede-me que passe por sua casa. Creio que não estarei de volta para o
almoço — disse o barão, mandando por acenos que o palafreneiro arreasse o cavalo.
A Sra. de Sancé, que, com um chapéu de palha colocado sobre o lenço que lhe cobria a cabeça, se
preparava para ir à horta, contraiu os lábios.
— Não são estranhos — suspirou — os tempos em que vivemos? Tolerar que um vizinho plebeu, um
intendente huguenote, se permita ingenuamente convocá-lo, a você, que é um descendente autêntico de
Filipe Augusto? Pergunto-me que honestos negócios pode ter de tratar um nobre gentil-homem com o
administrador de um castelo vizinho. Com certeza trata-se novamente de muares...
O barão não respondeu e sua mulher afastou-se, abanando a cabeça.
Angélica, durante aquela cena, entrara na cozinha, onde sabia que se encontravam seus sapatos e seu
manto. Depois juntou-se ao pai, na estrebaria.
— Posso acompanhá-lo, pai? — perguntou com seu mais gracioso sorriso.
O barão não pôde resistir e fê-la montar atravessada na sela. Angélica era sua filha predileta. Achava-a
muito bonita e às vezes sonhava que ela se casaria com um duque.
CAPÍTULO IV
Estranho oferecimento ao pai de Angélica
Aquele dia outonal estava claro, e a floresta muito próxima, ainda não despojada de suas folhas,
estendia para o céu azul suas ramagens cor de ferrugem.
Ao passar em frente à grade do Castelo do Plessis-Bellière, Angélica curvou-se, procurando enxergar,
no fim da aléia de castanheiros, a branca visão do encantador edifício que se refletia no jjflago como
uma nuvem de sonho. Tudo estava em silêncio, e o castelo, em estilo renascentista, que os donos
haviam abandonado para morar na corte, parecia dormir no mistério de seu parque e de seus jardins. As
corças do bosque de Nieul, que lhe ficava próximo, pastavam nas alamedas desertas.
A habitação do administrador Molines ficava meia légua além, em uma das entradas do parque. Belo
pavilhão de tijolos vermelhos, coberto de ardósia azul, parecia, em sua solidez burguesa, o guardião
prudente de uma construção leve, cuja graça italiana continuava assombrando os habitantes da região,
acostumados aos castelos medievais.
O administrador era a imagem viva de sua casa. Austero e ricaço, cônscio de seus direitos e de seu
papel, era quem de fato parecia o proprietário daquele vasto domínio do Plessis, cujo dono estava
perpetuamente fora. Uma ou outra vez, no outono para as caçadas ou na primavera para colher os
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lírios-do-vale, uma nuvem de senhores e senhoras descia sobre o Plessis, com seus co-ches, seus
cavalos, seus lebréus e seus músicos. Durante alguns dias havia uma série de festas e diversões que
enlouqueciam um pouco os fidalgotes da vizinhança, convidados para alvo de zombarias. Depois, toda
aquela gente regressava a Paris e a mansão recaía em seu silêncio sob a égide do severo intendente.
Ao ruído dos cascos do cavalo, Molines avançou pelo pátio de sua casa e inclinou-se várias vezes com
uma flexibilidade que não lhe exigia esforço, pois fazia parte de suas funções. Angélica, que sabia como
era duro e arrogante aquele homem, não apreciava aquela excessiva cortesia, mas o Barão Armando não
disfarçava o seu contentamento.
— Esta manhã tinha tempo de sobra e não achei conveniente fazê-lo esperar, Sr. Molines.
— Agradeço-lhe, senhor barão. Receava que lhe tivesse parecido descortês o convite por intermédio
de um criado.
— Não me ofendi. Sei que o senhor evita vir a minha residência por causa de meu pai, que insiste em
considerá-lo um perigoso huguenote.
— O senhor barão tem o espírito muito arguto. Realmente, não queria causar desgostos ao Sr. de
Ridoué, nem à senhora baronesa, que é muito devota. Prefiro, pois, falar-lhe em minha casa e espero que
o senhor me dê a honra de partilhar de nossa mesa, bem como sua filhinha.
— Já não sou uma criança — disse Angélica com vivacidade. — Tenho dez anos e meio, e em nossa
casa vieram depois de mim Madelon, Dionísio, Maria Inês, Alberto e o bebê que acaba de nascer.
— Peço à Srta. Angélica que me desculpe. Ser a mais velha exige, com efeito, juízo e maturidade de
espírito. Muito feliz eu seria se minha pequena Berta freqüentasse a sua casa, porque, ai de mim! as
religiosas de seu convento me afirmam que é uma cabeça de avelã, donde não sairá grande coisa.
— O senhor exagera, Sr. Molines — protestou cortesmente o Barão Armando.
"Desta vez sou da mesma opinião de Molines", pensou Angélica, que detestava a filha do intendente,
pequena trigueira e sonsa.
Em relação ao intendente, seus sentimentos eram mais indecisos. Embora o achasse desagradável,
sentia por ele certa admiração, baseada sem dúvida no aspecto confortável de sua pessoa e de sua casa.
As roupas do intendente, sempre escuras, eram de belo pano, e deviam ser dadas ou vendidas antes que
nelas se percebesse o menor sinal de desgaste. Usava sapatos com fivela e tacão bastante alto, segundo a
nova moda.
Em sua casa comia-se maravilhosamente. O narizinho de Angélica estremeceu quando penetraram na
primeira sala, lajeada e reluzente de limpeza, que dava para a cozinha. A Sra. Molines mergulhou em
suas saias, numa reverência profunda, e em seguida voltou aos seus bolos.
O intendente conduziu seus convidados a um pequeno gabinete, para onde mandou trazer água fresca
e uma garrafa de vinho.
— Gosto muito deste vinho — disse ele, após erguer o copo. — É produto de uma colina que esteve
muito tempo inculta. Graças a cuidados especiais, pude vindimá-la no outono passado. Os vinhos do
Poitou não se comparam com os do Loire, mas são excelentes.
Depois de uma pequena pausa, acrescentou:
— Não seria demais repetir-lhe, senhor, quanto estou feliz por haver atendido pessoalmente ao meu
chamado. Para mim, isso é sinal de que o negócio em que estou pensando tem probabilidades de
realizar-se.
— Em suma, o senhor fez comigo uma experiência.
— Rogo ao senhor barão que não me leve a mal. Não sou homem de elevada educação, pois recebi
apenas uma instrução de aldeia. Mas confesso-lhe que o orgulho de alguns nobres nunca me pareceu
indício de inteligência. E para tratar de negócios, por modestos que sejam, é preciso inteligência.
O gentil-homem camponês recostou-se na poltrona estofada e passou a observar com curiosidade o
intendente. Estava um tanto ansioso pelo que pudesse propor-lhe aquele vizinho cuja reputação não era
das melhores.
Era tido por muito rico. No princípio, tinha-se mostrado duro com os camponeses e com os rendeiros,
mas nos últimos anos esforçava-se por ser amável até com os aldeões mais pobres.
Pouco se sabia acerca das causas de tal mudança e de tão insólita bondade. Os camponeses
desconfiavam, mas, como agora se mostrava tratável a respeito das contribuições que o castelo exigia
em nome do rei e do marquês, olhavam-no com respeito.
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Os maliciosos insinuavam que ele procedia assim para encher de dívidas o seu amo sempre ausente.
Quanto à marquesa e seu filho Filipe, não se interessavam pelas terras mais que o próprio marquês.
— Se o que dizem é verdade, o senhor está simplesmente a ponto de tomar por sua conta todo o
domínio do Plessis — disse Armando de Sancé um tanto brutalmente.
— Pura calúnia, senhor barão. Não só me empenho em servir com lealdade o senhor marquês, como
não vejo nenhuma vantagem em semelhante aquisição. Para acalmar seus escrúpulos, confiar Ihe-ei,
embora não traia nenhum segredo, que esta propriedade já está há muito hipotecada!
— Não me proponha que a compre. Não tenho meios para tanto...
— Longe de mim tal pensamento, senhor barão... Um pouco de vinho?
Angélica, a quem a conversa não interessava, escapou silenciosamente do gabinete e voltou para a
grande sala, onde a Sra. Moli-nes se ocupava em enrolar a massa de uma enorme torta. Sorriu para a
menina e estendeu-lhe uma caixa que exalava delicioso aroma.
— Tome, querida, coma isto. E angélica confeitada. Tem o seu nome. Preparo-a eu mesma com o belo
açúcar branco. E melhor que a dos padres da abadia, que a fazem com açúcar mascavo. Como querem
que os pasteleiros de Paris apreciem esse condimento, se perdeu todo o seu sabor por ser fervido
grosseiramente nos enormes caldeirões mal lavados de suas sopas e morcelas?
Ouvindo-a com atenção, Angélica mordia com prazer os finos talos, pegajosos e verdes. Então era
naquilo que se convertiam, depois de cortadas, aquelas grandes e fortes plantas do brejo, cujo aroma, no
estado natural, era tão pronunciado!
Olhava em redor com admiração. Os móveis rebrilhavam. A um canto havia um relógio, essa invenção
que seu avô dizia ser obra do Diabo. Para vê-lo melhor e ouvir seu ruído, aproximou-se do gabinete
onde estavam conversando os dois homens. Ouviu seu pai, que dizia:
— Por São Dionísio, Molines, o senhor me desconcerta! Contam muitas coisas a seu respeito, mas,
afinal, todo mundo está de acordo em reconhecer no senhor uma forte personalidade e um espírito
penetrante. E agora, por seus lábios, fico sabendo que cultiva as mais incríveis utopias.
— Em que lhe parece tão pouco razoável o que acabo de expor, senhor barão?
— Veja bem. O senhor sabe que me interesso por muares e que consegui por cruzamento uma
belíssima raça, e me propõe que intensifique a criação, ficando o senhor encarregado de dar escoamento
ao produto. Tudo isso está muito bem. Mas não o entendo e quando pensa em um contrato de longa
duração com... a Espanha. Meu amigo... estamos em guerra com a Espanha!
— A guerra não durará sempre, senhor barão.
— Assim o esperamos. Mas não se pode fundar um compromisso sobre uma esperança desse gênero.
O intendente esboçou um sorriso que o nobre arruinado não percebeu. Este continuou com veemência:
— Como quer comerciar com uma nação que está em guerra conosco? Em primeiro lugar, está
proibido, e muito justamente, porque a Espanha é um país inimigo. Além disso, as fronteiras estão
fechadas e as comunicações e as portagens vigiadas. Quero acreditar que fornecer muares ao inimigo
não seja tão grave como fornecer-lhe armas, principalmente porque as hostilidades não se desenrolam
aqui, mas em território estrangeiro. Para concluir: tenho muito poucos animais para que valha a pena
comerciar com eles. Custaria muito caro e vários anos de trabalho. Meus recursos não me permitem essa
experiência.
Por amor-próprio não acrescentou que estava prestes a liquidar seu plantei.
— O senhor barão me fará a fineza de considerar a circunstância de que já possui quatro garanhões
excepcionais e que lhe seria muito mais fácil que a mim conseguir muitos outros entre os nobres das
redondezas. Quanto às jumentas, podem-se encontrar centenas delas a dez ou vinte libras por cabeça.
Um pequeno trabalho adicional de drenagem dos pântanos pode melhorar os pastos, por que as suas
mulas de tiro são muito rústicas. Creio que com vinte mil libras poderíamos levar a sério este negócio,
que começaria a dar resultados daqui a três ou quatro anos.
O pobre barão parecia tomado de vertigem.
— Por São Dionísio, o senhor vê as coisas com excessivo otimismo! Vinte mil libras! Acredita serem
tão preciosos meus pobres muares de que todo mundo se ri abertamente? Vinte mil libras! Não será
certamente o senhor quem me adiantará essa quantia.
— E por que não? — disse calmamente Molines.
O barão encarou-o com espanto.
— Seria uma loucura da sua parte, Molines! Apresso-me em dizer-lhe que não tenho nenhum fiador.
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— Contentar-me-ei com um simples contrato de sociedade em partes iguais e uma hipoteca sobre a
criação, mas o faríamos a título privado e secreto em Paris.
— Se o senhor quer saber, receio não ter os meios necessários, e por muito tempo, para ir à capital. À
primeira vista, sua proposta me parece perturbadora e arriscada, e gostaria de consultar previamente
alguns amigos...
— Nesse caso, senhor barão, nada feito. Porque a chave do nos so êxito está no segredo absoluto. Sem
isto, nada há que fazer.
— Mas não posso atirar-me, sem pedir conselhos, a um negócio que, além do mais, me parece
contrário aos interesses do meu próprio país!
— Que é também o meu, senhor barão...
— Ninguém o diria, Molines!
— Então não falemos mais nisto, senhor barão. Vejo agora que me enganei. Diante dos seus
excepcionais resultados, supus que o senhor fosse o único capaz de estabelecer um grande
plantei, e sob seu nome, nestas terras.
O barão sentiu-se justamente lisonjeado.
— Essa não é a questão...
— Então, permita-me o senhor barão observar-lhe quão próxima se acha essa questão da que o
preocupa, isto é, o cuidado de instalar condignamente sua numerosa família...
— Mereceria uma chicotada, Molines, porque estes são assuntos que não lhe dizem respeito!
— Seja como deseja, senhor barão. Entretanto, embora meus recursos sejam mais modestos do
que alguns pensam, tinha cogitado de acrescentar imediatamente — a título de adiantamento
sobre nosso futuro negócio, naturalmente — um empréstimo de soma igual: vinte mil libras, que
lhe permitiriam dedicar-se a sua propriedade sem cuidados excessivamente fatigantes acerca de
seus filhos. Sei por experiência própria que os trabalhos não caminham muito rápido quando se
tem o espírito distraído pela inquietação.
— E quando o fisco o aperta — disse o barão, um tanto agitado.
— Para que esses empréstimos entre nós não pareçam suspeitos, penso que não teríamos
nenhum interesse em divulgar nosso acordo. Insisto em que, qualquer que seja sua decisão, não
repita a ninguém nossa conversa.
— Entendo-o perfeitamente. Mas deve compreender que minha mulher deve ser sabedora da
proposta que o senhor acaba de fazer-me. Trata-se do futuro de nossos dez filhos.
— Desculpe-me o senhor barão por lhe fazer essa indiscreta pergunta, mas será a senhora
baronesa capaz de silenciar? Nunca ouvi dizer que uma mulher soubesse guardar um segredo.
— Minha mulher tem fama de falar pouco. Além do mais, não temos relações com ninguém. Se
eu lhe pedir, não falará.
Nesse momento o intendente viu a ponta do nariz de Angélica, que, apoiada na ombreira da porta, os
escutava sem procurar esconder-se. O barão, voltando-se, viu-a também e franziu o sobrolho.
— Venha aqui, Angélica — disse secamente. — Creio que você está começando a adquirir o mau hábito
de escutar atrás das portas. Aparece sempre nos momentos inoportunos e não se percebe a sua chegada.
Essas maneiras são deploráveis.
Molines fixava na pequena um olhar penetrante, mas não parecia tão contrariado quanto o barão.
— Os camponeses dizem que é uma fada — comentou sorrindo. Ela se aproximou sem se alterar.
— Você ouviu nossa conversa? — perguntou o barão.
— Ouvi, meu pai! Molines disse que Josselino poderia ir para o exército e Hortensia para o convento,
se o senhor produzisse muitos muares.
— Você tem uma curiosa maneira de sintetizar as coisas. Agora, escute-me. Vai prometer-me não
contar esta história a ninguém.
Angélica levantou para eles seus olhos verdes.
— Posso prometer... Mas que é que ganho? O administrador sufocou o riso.
— Angélica! — exclamou o pai com assombro e decepção. Molines foi quem respondeu:
— Comece por provar-nos sua discrição, Srta. Angélica. Se, como espero, se realizar a nossa
sociedade com o senhor barão seu pai, será necessário esperar que o negócio prospere sem dificuldade,
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para o que é preciso que não se divulgue nada de nossos projetos. Então, como recompensa, dar-lhe-
emos um marido...
Angélica fez um muxoxo, pareceu refletir, e disse:
— Está bem. Prometo.
Em seguida retirou-se. Na cozinha, a Sra. Molines, afastando as criadas, colocou ela mesma no forno
sua torta coberta de creme e cerejas.
— Sra. Molines, vamos comer logo? — perguntou Angélica.
— Ainda não, querida. Se você está com muita fome, eu lhe darei uma fatia de pão com manteiga.
— Não é isso, mas eu queria saber se tenho tempo para ir correndo até o Plessis.
— Claro que sim. Mandarei um garoto chamá-la quando a mesa estiver posta.
Angélica saiu correndo, e, numa curva da primeira aléia, tirou os sapatos e escondeu-os debaixo de
uma pedra, para apanhá-los na volta. Depois, correu de novo, mais rápida que uma gazela. O bosque
recendia a cogumelos e musgo, e uma chuva recente havia deixado poças aqui e acolá. Angélica
transpunha-as de um salto.
Estava feliz. O Sr. Molines havia-lhe prometido um marido. Não tinha certeza de ser um presente
importante. Que faria com ele?... Em todo caso, se fosse tão agradável como Nicolau, seria um com-
panheiro sempre disponível para ir pescar caranguejos.
Viu aparecer no fim da aléia o perfil do castelo, sobressaindo em branco puro sobre o esmalte azul do
céu. Certamente, o Castelo do Plessis-Bellière era uma casa de conto de fadas, pois nenhum outro se
lhe assemelhava na região. Todas as moradias nobres das redondezas eram como Monteloup, cinzentas,
cheias de musgos, compactas. Aqui, no século anterior, um artista italiano havia multiplicado janelas,
trapeiras e pórticos. Uma ponte levadiça em miniatura atravessava os fossos cheios de nenúfares. As
torrinhas dos ângulos eram apenas adornos. Todavia, as linhas do edifício eram simples. Nada existia de
pesado naqueles arcos, naquelas abóbadas flexíveis, mas uma graça natural de plantas ou guirlandas. Só,
em cima do pórtico principal, um escudo com uma quimera que estirava a língua flamígera recordava a
decoração mais rebuscada da Idade Média.
Angélica, com surpreendente destreza, subiu até o terraço e, agarrando-se aos ornamentos das janelas
e balcões, chegou até o primeiro andar, onde uma biqueira lhe oferecia cômodo apoio. Colou então o
rosto ao vidro da janela. Amiúde tinha vindo àquele mesmo lugar e não se cansava de impressionar-se
com o mistério daquele aposento fechado, em cuja penumbra se via brilhar a prata e o marfim de tantos
objetos artísticos colocados sobre móveis marchetados, as cores vivas, ruivas e azuis, dos tapetes
novos, a magnificência dos quadros ao longo das paredes.
No fundo havia uma alcova cujo leito estava coberto com uma colcha adamascada. As cortinas
brilhavam com seus fios de ouro,
que lhe davam peso, misturados em sua trama. Sobre a chaminé atraía os olhares um grande quadro que
enchia Angélica de admiração. Um mundo, de que tinha apenas a presciência, havia vindo encerrar-se
naquele quadro: era o mundo dos habitantes do Olimpo, com sua graça paga e livre. Ali se via um deus e
uma deusa unirem-se num abraço sob o olhar de um fauno barbudo, simbolizando seus corpos
magníficos, como o próprio castelo, a graça dos Campos Elísios na vizinhança da floresta selvagem.
A emoção dominava Angélica até oprimi-la levemente.
"Todas essas coisas", pensava, "gostaria de tocá-las, acariciá-las. Quisera que algum dia fossem
minhas..."
CAPITULO V
Casamento na aldeia — Novo plantel de muares
Em maio naquela região, os rapazes, com uma espiga verde no chapéu, e as moças, engalanadas com
flores de linho, vão dançar à volta dos dólmens, essas grandes mesas de pedra que a pré-história erigiu
nos campos.
Ao regressarem, dispersam-se um pouco, aos pares, pelos prados e nas sombras da mata recendente a
lírio-do-vale.
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Em junho o pai Saulier casou a filha e houve uma grande festa. Era o único arrendatário do Barão de
Sancé, que, afora aquele, não empregava senão meeiros. O homem, que era também o dono da taberna
da aldeia, desfrutava boa situação financeira.
A pequena igreja romana foi adornada de flores e círios grossos como punhos. O próprio senhor barão
conduziu a nubente ao altar.
O banquete, que durou várias horas, abundava em morcelas, chouriços, salsichas e queijos. Bebeu-se
vinho. Após a refeição vieram todas as mulheres casadas do povoado, como de praxe, ofertar seus
presentes à noiva. Esta já estava em sua nova casa, sentada em um banco diante de uma grande mesa
sobre a qual se amontoavam lençóis, baixelas, caldeirões de cobre e de estanho. Seu rosto redondo, um
tanto bovino, brilhava de prazer sob uma enorme grinalda de margaridas.
A Sra. de Sancé envergonhava-se de não levar senão um modesto presente: alguns pratos de bela
faiança que guardava para essas ocasiões. Angélica lembrou-se de que em Sancé comia em escude-las,
como os camponeses. E sentiu-se ferida por aquele ilogismo. As pessoas eram esquisitas! Podia apostar
que também a recém-casada jamais utilizaria aqueles pratos; guardá-los-ia cuidadosamente em uma arca
e continuaria comendo em sua escudela. E no Plessis havia tantos objetos maravilhosos que seus donos
abandonavam como em uma tumba!...
Angélica entristeceu-se e beijou a recém-casada sem qualquer efu-são. Entrementes, os jovens
reuniam-se junto ao grande leito conjugai e soltavam piadas.
— Ah! minha linda, com a cara que têm você e seu marido, certamente o chaudaut vos calhará bem ao
amanhecer! — disse um deles.
— Mamãe — perguntou Angélica ao sair —, que é esse chaudaut de que falam em todos os
casamentos?
— E um costume de camponeses, como levar presentes ou dançar — respondeu evasiva a baronesa. A
explicação não satisfez a menina, que prometeu a si mesma assistir ao chaudaut.
Na praça da aldeia não se tinham iniciado ainda as danças embaixo do grande olmeiro. Os homens
permaneciam em redor das mesas armadas ao ar livre, sobre cavaletes.
Angélica ouviu os soluços de sua irmã mais velha, que pedia para voltar ao castelo, pois se
envergonhava de seu vestido simples e cerzido.
— Ora essa! — exclamou Angélica. — Você complica demais a sua vida, pobre mana! Queixo-me eu
do meu vestido, apesar de apertado e muito curto para mim? Só os sapatos me incomodam deveras. Mas
trouxe os tamancos embrulhados e os calçarei para dançar à vontade. Estou disposta a me divertir!
Hortênsia insistiu, queixando-se do calor e garantindo que se sentia mal. A Sra. de Sancé aproximou-
se do marido, que estava sentado entre os figurões da terra, e avisou-o de que se retirava, mas deixava
Angélica a seus cuidados. A menina ficou um momento junto de seu pai. Tinha comido muito e sentia-
se sonolenta.
Em torno dele estavam o cura, o síndico, o mestre-escola, que às vezes fazia o papel de chantre, o
cirurgião, o barbeiro e o sinei-Êro, e alguns lavradores que possuíam charruas puxadas por bois e
empregavam vários manobradores, formando assim uma pequena "aristocracia de aldeia. Também fazia
parte do grupo Artêmio Callot, agrimensor do burgo vizinho e nomeado provisoriamente para ajudar na
drenagem do pântano próximo, o qual figurava como sábio e estrangeiro, embora fosse, na realidade, do
Limousin. Finalmente, ali se encontrava também o pai da noiva, Paulo Saulier, criador de gado grosso e
miúdo.
Esse corpulento camponês do Poitou era o mais importante dos pequenos pecuaristas do lugar, e,
embora o Barão Armando de Sancé fosse o "dono" das terras, seu rendeiro era certamente mais rico do
que ele.
Angélica olhava para o pai, cujo semblante se mantinha carregado, e adivinhava sem esforço o que lhe
ia no íntimo.
"Eis aqui", devia pensar com melancolia, "outro sinal da decadência dos nobres."
Houve um rebuliço na praça, em torno do olmeiro, e apareceram dois homens, que, transportando
debaixo do braço uns sacos brancos já muito inflados, subiram a uns toneis. Eram os gaitei-ros. Um
tocador de flauta se juntou a eles.
— Vamos dançar! — exclamou Angélica, e precipitou-se para a casa do síndico, onde havia escondido
seus tamancos.
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Seu pai viu-a voltar pulando e batendo palmas segundo o ritmo das baladas e rondas que se começaria
a dançar dali a pouco. Saltavam-lhe sobre os ombros os seus cabelos de ouro escuro. Talvez porque
trajava um vestido curto e apertado demais, sentiu logo que ela se havia desenvolvido nos últimos
meses. Ela, que fora sempre tão franzina, parecia ter agora doze anos. Seus ombros tinham-se alargado e
seu peito punha leves saliências na sarja puí-da do vestido. O sangue jovem avermelhava-lhe as faces, e
seus lábios entreabertos e úmidos sorriam, deixando aparecer os dentinhos perfeitos.
Como a maior parte das moças da aldeia, tinha posto na abertura de seu corpete um grande ramo de
prímulas amarelas e lilases. Os homens que ali estavam também se surpreenderam ante sua aparição
cheia de louçania e frescura.
— Sua filha está ficando uma bela moça — disse papai Saulier com sorriso obsequioso e lançando um
olhar malicioso a seus vizinhos.
O orgulho do barão tingiu-se de inquietude.
"Já é muito crescida para misturar-se com esses rústicos", pensou prontamente. "A ela, mais do que a
Hortênsia, é que teria de mandar para o convento..."
Angélica, sem prestar atenção aos olhares de que era alvo e aos pensamentos que ia despertando,
misturava-se alegremente com os rapazes e as moças que vinham de todos os lados em grupos ou aos
pares.
Quase esbarrou num mocinho a quem não reconheceu logo, tão ricamente vestido estava.
— Valentim, meu Deus! — exclamou, empregando o patoá da terra, que falava correntemente. — Que
elegante você está, meu caro!
O filho do moleiro envergava uma roupa talhada certamente na cidade, de tecido cinza tão bom que as
abas da sobrecasaca pareciam engomadas. Esta e o colete eram adornados com várias fileiras de
botõezinhos dourados e cintilantes. Trazia fivelas de metal nos sapatos e no chapéu de feltro, e ligas de
cetim azul com rose-tas. O rapaz, que aos catorze anos já tinha um físico de Hércules, parecia
extremamente desajeitado na grotesca farpeia, mas seu rosto vermelho resplandecia de satisfação.
Angélica, que passara vários meses sem vê-lo por causa da viagem que ele havia feito à cidade com o
pai, percebeu que mal lhe chegava ao ombro e sentiu-se meio atemorizada. Para esvanecer o susto,
puxou-o pela mão.
— Venha dançar — disse-lhe.
— Não, não! — protestou o moço. — Não quero estragar meu traje novo. Vou beber com os homens
— acrescentou com suficiência, dirigindo-se para o grupo das pessoas importantes, entre as quais
acabava de sentar-se seu pai.
— Venha dançar! — exclamou um moço, tomando Angélica pela cintura.
Era Nicolau. Seus olhos escuros como castanhas maduras brilhavam de alegria.
Colocaram-se frente a frente e começaram a bater com os pés no chão, ao compasso do som agudo das
gaitas e da flauta. Aquelas danças, que poderiam ter parecido pesadas e monótonas, tinham um sentido
rítmico instintivo que lhes dava uma harmonia extraordinária. Apesar das gaitas e da flauta, o
instrumento principal era precisamente o barulho surdo dos tamancos que golpeavam o solo em
uníssono, e as figuras complicadas que os dançarinos execu-ítavam no momento preciso acrescentavam
graça à perfeição do bailado campestre.
Começava a anoitecer. A frescura do fim de tarde era um refrigério para as frontes suarentas.
Completamente entregue à dança, Angélica sentia-se feliz, liberta de seus pensamentos. Seus pares se
sucediam, e nos olhos brilhantes e risonhos daqueles moços lia algo que a excitava um pouco. A poeira
subia em um leve tom pastel, colorido pelo sol poente. O flautista tinha as bochechas como duas bolas, e
os olhos saltavam-lhe das órbitas à força de soprar em seu instrumento. Foi necessário suspender a dança
para que se aproximassem das mesas, a fim de molharem a garganta.
— Em que está pensando, meu pai? — perguntou Angélica, que foi sentar-se junto ao barão, cuja
fronte não se desfranzia.
Estava afogueada e esbaforida. O barão quase se sentiu ofendido ao vê-la despreocupada e feliz,
quando ele se inquietava a ponto de não poder desfrutar a festa como de outras vezes.
— Nos impostos! — respondeu, olhando com ar sombrio para um dos figurões que tinha à sua frente, e
que outro não era senão o agente fazendário Corne, que tantas vezes fora expulso do castelo. Angélica
protestou:
— Não é bom pensar nisso quando todos se divertem. Pensam acaso eles, pensam nossos aldeões? No
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entanto, são os que mais pagam. Não é verdade, Sr. Corne? — gritou para o outro lado da mesa. — Não
é certo que num dia como hoje ninguém deve pensar nas contribuições, nem mesmo o senhor?
Isso fez rir estrondosamente aos circunstantes. Começaram a cantar, e o pai Saulier entoou o estribilho
do Coletor Pilhante, que o Sr. Corne se dignou escutar com sorriso benevolente. Mas depressa chegaria
a vez das canções menos inocentes a que dão lugar todas as bodas. E Armando de Sancé, cada vez mais
inquieto pelas maneiras de sua filha, que bebia trago após trago, resolveu retirar-se.
Disse a Angélica que o acompanhasse para despedir-se dos presentes e voltar com ele ao castelo.
Raimundo e os mais novos, acompanhados pela ama, havia tempo tinham regressado a casa. Somente o
primogênito Josselino é que não tivera pressa, entretido com uma das jovens mais bonitas do lugar. O
barão absteve-se de chamá-lo à ordem. Estava satisfeito ao ver que o magro e pálido colegial recobrava,
nos braços da mãe Natureza, idéias e cores mais sadias. Com a idade do rapaz havia muito que ele
próprio já tinha estendido sobre o feno uma robusta pastora da povoação vizinha. Quem sabe! Talvez
isso viesse prendê-lo à terra.
Na certeza de que Angélica o seguia, o castelão começou a distribuir adeuses aos que ficavam.
Mas sua filha tinha outros projetos. Desde algum tempo procurava um meio de assistir à cerimônia do
chaudaut, quando despontasse o sol. Por isso, aproveitando um remoinho de gente, escapuliu para fora
do tumulto e, com os tamancos na mão, pôs-[se a correr para o extremo da aldeia, cujas casas estavam
todas va-;zias, desertadas até pelas avós. Viu a escada de um celeiro, subiu jpor ela rapidamente e
estendeu-se no feno macio e fragrante.
O vinho e o cansaço faziam-na bocejar.
"Vou dormir", pensou. "Quando despertar, será exatamente a [hora, e assistirei ao chaudaut."
Uniram-se-lhe as pálpebras e ela mergulhou em profundo sono.
Acordou com uma agradável sensação de bem-estar e de prazer.
A sombra do celeiro continuava densa e quente. Ainda era noite, e ouvia-se a distância o vozear dos
camponeses ainda em festa.
Angélica não compreendia bem o que lhe estava acontecendo. Sentia o corpo invadido por uma grande
doçura e tinha desejos de se espreguiçar e gemer. De repente sentiu o contato de uma mão que lhe
alisava o peito, descia-lhe pelo corpo e lhe afagava as pernas. Um hálito curto e quente lhe queimava a
face. Seus dedos apalparam um tecido grosso.
— É você, Valentim? — sussurrou.
Ele não respondeu, mas aproximou-se mais.
Os vapores do vinho e a vertigem da escuridão toldavam o pen-[samento de Angélica. Não tinha medo.
Reconhecia Valentim por sua respiração pesada, por seu cheiro, até por suas mãos, cortadas, lamiúde,
pelos caniços e ervas do pântano e cuja aspereza a fazia
estremecer.
— Já não receia estragar a roupa? — murmurou com uma ingenuidade não isenta de inconsciente
malícia.
Valentim grunhiu, e sua fronte veio agasalhar-se no pescoço gracioso da menina.
— Você cheira bem — suspirou. — Cheira como a flor da angélica.
Procurou beijá-la, mas a ela não agradou sua boca úmida que a ia buscando, e o repeliu. Ele a agarrou
com mais violência e deitou-
Ise sobre ela. Aquela brutalidade súbita, acordando Angélica de todo, devolveu-lhe a consciência.
Debateu-se, procurou pôr-se de pé. Mas ele a segurava pela cintura, arquejando. Então, furiosa, bateu-
lhe no rosto com os punhos cerrados, gritando: — Solte-me, vilão, solte-me!
Soltou-a, por fim, e ela se deixou deslizar pelo feno, e desceu a escada do celeiro. Estava com raiva e
tinha pena, sem saber por
quê... Ali fora, gritos e luzes enchiam a noite e se aproximavam.
"A farandola!"
Dando-se as mãos, moças e rapazes passaram junto dela. Angélica deixou-se arrastar pela onda. A
farandola entrava pelas ruelas, saltava as barreiras, atravessava os campos, na meia-luz do amanhecer.
Todos, ébrios de vinho e de sidra, tropeçavam constantemente, caíam, levantavam-se rindo. Voltaram à
praça. Mesas e bancos estavam por terra; a farandola passou por sobre eles. As tochas iam-se apagando.
— O chaudaut, o chaudauú — clamavam as vozes agora. Bateram à porta do síndico, que tinha
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ido deitar-se. -
— Acorde, burguês! Vamos reconfortar os recém-casados! Angélica, que tinha conseguido, a
cotoveladas, desembaraçar-se
da cadeia humana, viu chegar então um curioso cortejo.
Na frente marchavam dois personagens cômicos, cobertos de ouropeis e guizos, à moda dos antigos
bobos reais. Em seguida vinham dois rapazes trazendo um pau sobre os ombros, do qual pendia enorme
caldeirão. Seus companheiros os rodeavam, levando jarras de vinho e copos. Todos os moradores da
aldeia que ainda podiam manter-se de pé caminhavam atrás, formando um grupo assaz numeroso.
Sem mais cerimônias, entraram na cabana dos recém-casados.
Pareceram a Angélica muito simpáticos, deitados um ao lado do outro em seu grande leito. A noiva
estava ruborizada. Bebe-ram, contudo, sem protestar, o vinho quente misturado com drogas aromáticas
que lhes serviram. Mas um dos assistentes, mais embriagado que os outros, quis levantar os lençóis que
os cobria. O marido deu-lhe um murro. Seguiu-se uma luta em cujo decurso se ouviam os gritos da
pobre noiva, que se agarrava às cobertas. Empurrada por aqueles corpos suarentos, asfixiada pelos
odores camponeses de vinho e de peles mal lavadas, pouco faltou para que Angélica tombasse ao solo e
a pisoteassem. Nicolau foi quem a retirou daquela posição crítica e a levou para fora.
— Ufa! — suspirou, quando, afinal, se encontrou ao ar livre. — Não é muito agradável seu costume do
chaudaut. Diga-me, Nicolau, por que levam vinho quente aos noivos?
— Ora essa! Para reanimá-los depois da sua noite de núpcias.
— Mas é assim tão cansativa?
— Assim dizem... — e pôs-se a rir.
Reluziam-lhe os olhos. Os anéis de seus cabelos negros caíam-lhe sobre a fronte morena. Ela viu que
ele estava tão bêbado como os demais. De súbito estendeu as mãos para ela e se aproximou
cambaleando.
— Angélica, sabe que você fica linda quando fala assim? Vocêé tão bonita, Angélica!...
Lançou-lhe os braços ao pescoço. Ela desprendeu-se dele sem uma palavra e afastou-se.
Erguia-se o sol sobre a devastada praça da aldeia. Decididamente, a festa terminara. Angélica ia a
caminho do castelo com passo incerto, meditando com amargura.
Depois de Valentim, também Nicolau se havia permitido modos estranhos. Acabava de perder os dois
ao mesmo tempo. Parecia-lhe que sua infância tinha morrido, e sentia ímpetos de chorar ante a idéia de
que não voltaria mais aos pântanos ou ao bosque com seus companheiros habituais.
Foi assim que o Barão de Sancé e o velho Guilherme, que haviam saído à sua procura, a encontraram,
caminhando para eles com andar inseguro, com o vestido roto e os cabelos cheios de feno.
— Mein Gott! — exclamou Guilherme, parando, consternado.
— De onde vem você, Angélica? — disse severamente o castelão.
Mas, ao ver que ela não se encontrava em condições de responder, o velho soldado a tomou nos braços
e a carregou para o castelo. Preocupado, Armando de Sancé disse consigo mesmo que haveria de
encontrar um meio de enviar, sem demora, sua segunda filha para o convento.
CAPITULO VI
Chegada do primo nobre de Paris
Num dia de inverno em que Angélica estava à janela contemplando a chuva, viu com espanto que
muitos cavaleiros e algumas caleças sacudidas pelas irregularidades do terreno entravam no lamacento
caminho que conduzia à ponte levadiça. Lacaios de libre com guarnições amarelas precediam os coches
e um carro que parecia cheio de bagagens, aias e criados.
Já os postilhões saltavam do alto de suas selas para guiar os cavalos através da estreita entrada. Os
lacaios, que iam na traseira da primeira carruagem, apearam-se e abriram as portinholas, em cuja
madeira envernizada se viam armas de cores vermelho e ouro.
Angélica voou sobre os degraus da torre e chegou à escada externa a tempo de ver tropeçar no estéreo
do pátio um magnífico senhor, cujo chapéu emplumado caiu por terra. Uma forte basto-nada nas costas
de um lacaio e uma torrente de insultos acompanharam o incidente.
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Saltando de pedra em pedra na ponta de seus elegantes sapatos, o senhor afinal conseguiu chegar à sala
de entrada, onde Angélica e alguns de seus irmãos pequenos o observavam.
Estava acompanhado por um jovem de uns quinze anos, vestido com igual esmero.
— Por São Dionísio, onde está meu primo? — exclamou o recém-chegado olhando em torno.
Viu Angélica e exclamou:
— Por Santo Hilário! É o retrato de minha prima de Sancé, quando a conheci em Poitiers no dia de seu
casamento. Permita que he dê um beijo, garota, pois sou seu velho tio.
Levantou-a nos braços e beijou-a cordialmente. Quando tornou I a pô-la no chão, Angélica espirrou
duas vezes, tão violento era o perfume de que estavam impregnadas as roupas do cavaleiro.
Limpou a ponta do nariz com a manga; ao fazê-lo, lembrou-se repentinamente de que a tia
Pulquéria teria ralhado com ela, mas não se ruborizou, porque não sabia envergonhar-se nem I
desconcertar-se.
Fez uma reverência amável ao visitante, em quem acabava de reconhecer o Marquês du Plessis de
Bellière. Depois avançou para dar um beijo em seu primo Filipe.
Este recuou um passo e olhou horrorizado para o marquês.
— Meu pai, sou obrigado a beijar esta... esta... jovem?
— Claro que sim, fedelho, aproveite enquanto é tempo! — exclamou o nobre senhor, soltando uma
gargalhada.
O rapaz osculou de má vontade as faces redondas de Angélica; depois tirou do seu gibão um lenço
bordado e perfumado e o agitou em torno de seu rosto, como se espantasse moscas.
O Barão Armando, enlameado até os joelhos, não tardou a chegar.
— Sr. Marquês du Plessis, que agradável surpresa! Por que não me enviou um correio para prevenir-
me da sua chegada?
— Para dizer a verdade, meu primo, tinha intenção de seguir I diretamente para minha casa do
Plessis, mas não nos faltaram transtornos na viagem: tivemos um eixo partido nas proximidades de E
Neuchaut, o que nos fez perder tempo. Caía a tarde e estávamos gelados. Como passávamos perto de sua
casa, ocorreu-me pedir-lhes hospitalidade, sem mais cerimônias. Trouxemos nossas camas e nossos
guarda-roupas, que os criados instalarão nos aposentos que achar por bem indicar-lhes. E com isso
teremos o prazer de conversar sem mais demora. Filipe, saúde seu primo de Sancé e todo o grupo
encantador de seus herdeiros. Assim intimado, o belo adolescente adiantou-se com ar resigna-Hdo e
inclinou profundamente a cabeça loura em uma saudação um tanto exagerada, dado o aspecto rústico
daquele a quem se dirigia.
Depois, documente, foi beijar as faces gorduchas e sujas dos seus parentes mais jovens, feito o quê,
tornou a puxar o lenço de renda e aspirou-lhe o perfume com gesto altaneiro.
— Meu filho é um comediante da corte, que não está acostumado ao campo — declarou o marquês.
— Não serve senão para dedilhar a guitarra. Tinha-o posto como pajem a serviço do Sr. de Mazarino,
mas receio que ali aprenda o modo de amar à italiana. Não acha que ele parece uma bonita menina?
Sabe em que consiste a maneira de amar à italiana?
— Não — disse ingenuamente o barão.
— Explicar-lhe-ei qualquer dia, longe desses ouvidos inocentes. Mas morre-se de frio em seu
vestíbulo, meu caro. Poderia saudar minha encantadora prima?
O barão disse supor que as damas, ao ver as carruagens, se tivessem precipitado para os seus aposentos
a fim de vestir-se, mas que seu pai, o velho barão, ficaria feliz em vê-lo.
Angélica notou o desdenhoso relance de seu primo ao entrar no salão malcuidado e escuro. Filipe du
Plessis tinha olhos de um azul muito claro, mas tão frio como o aço. O mesmo olhar que havia
observado os tapetes desbotados, o fogo na lareira e até o avô com sua gola plissada fora de moda
dirigiu-se para a porta; as sobrancelhas louras do jovem alçaram-se, enquanto um sorriso meio trocista
se desenhava em seus lábios.
Entrou a Sra. de Sancé, acompanhada de Hortênsia e das duas tias. Tinham-se arrumado, certamente,
com seus melhores atavios, mas estes deviam parecer ridículos ao jovem, porque tapou a boca com o
lenço para disfarçar o riso.
Angélica, que não lhe tirava os olhos de cima, teve ímpeto de marcar-lhe o rosto com as suas unhas.
Não era bem mais ridículo ele, com todas as suas rendas, com as suas ondas de fitas sobre os ombros e
as mangas abertas desde as axilas até os punhos a fim de mostrar o fino tecido da camisa?
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Seu pai, mais simples, inclinava-se ante as damas, varrendo os ladrilhos com a bela pluma encrespada
de seu chapéu.
— Minha prima, desculpe meus modestos trajes. Venho pedir-lhe hospitalidade por uma noite.
Apresento-lhe o meu cavaleiro, Filipe. Cresceu muito desde que você o viu pela última vez, mas não
está mais agradável no trato do que quando menino. Vou comprar-lhe brevemente o posto de coronel.
No exército ele estará muito bem. Os pajens da corte já não têm nenhuma disciplina.
A tia Pulquéria, sempre cordial, propôs:
— Tomaria alguma coisa... Aguapé ou coalhada? Vejo que vieram de longe.
— Obrigado. Tomaríamos com prazer um dedo de vinho misturado com água fresca.
— Já não temos vinho — disse o Barão Armando —, mas mandaremos buscá-lo em casa do cura.
O marquês sentou-se e, brincando com seu bastão de ébano adornado com uma roseta de cetim, contou
que chegava de Saint-Germain. Disse que os caminhos eram umas fossas e tornou a pedir desculpas por
sua modesta vestimenta.
"Como seriam se estivessem vestidos com luxo?", pensou Angélica.
O avô, irritado com tantas escusas pela indumentária, tocou com a ponta de sua bengala os canhões
das botas do visitante.
— A julgar pelas rendas de suas botas e por seus bacalhaus, acha-se bem esquecido o edito que o
senhor cardeal baixou em 1633 para proibir todos os enfeites supérfluos.
— Oh! — suspirou o marquês —, não de todo! A regente é pobre e austera. Alguns de nós nos
arruinamos para manter um pouco de originalidade nessa corte devota. O Sr. de Mazarino tem o gosto
da ostentação, mas usa batina. Traz os dedos cheios de diamantes, mas atira seus dardos contra alguns
pedacinhos de fitas que os príncipes prendem ao gibão. Nisso ele imita o seu antecessor, o Sr. de
Richelieu. Os canos das botas... sim...
Cruzou os pés e examinou-os com a mesma atenção com que Armando examinava seus muares.
— Creio que esta moda das rendas nas botas vai cessar um dia destes. Alguns jovens senhores chegam
a usá-las tão largas como as arandelas das tochas, e são tão difíceis de conservar armadas que é preciso
andar com as pernas abertas. Quando uma moda chega a ser terrível, desaparece por si mesma. Não é
esse o seu parecer, querida prima? — perguntou, voltando-se para Hortênsia, que en-
rubesceu de satisfação.
Hortênsia respondeu com uma ousadia e uma espontaneidade que ninguém teria esperado daquela
frágil libélula.
— Oh, meu primo, creio que a moda, enquanto não desaparece, sempre tem razão! Contudo, acerca
deste detalhe não posso dar-lhe minha opinião, porque nunca vi botas como as suas... Certamente, o
senhor é o mais moderno dos nossos parentes.
— Felicito-me, senhorita, por ver que a distância a que se acha sua província não a impede de levar a
palma em matéria de espírito e etiqueta; porque, se você me achar moderno, deve saber que nos meus
tempos uma senhorita nunca teria sido a primeira a cumprimentar um cavalheiro... Mas assim são as
coisas na nova geração... e não é desagradável, muito ao contrário. Como se chama?
— Hortênsia.
— Hortênsia, você precisa ir a Paris e freqüentar as alcovas em que se reúnem nossas elegantes e
nossas "preciosas". Filipe, meu filho, tome cuidado; talvez encontre uma forte oponente em nossas boas
terras do Poitou.
— Pela espada do Bearnês! — exclamou o velho barão. — Creio que sei um pouco de inglês, arranho
o alemão e estudei minha própria língua, o francês; mas devo reconhecer, marquês, que não compreendo
absolutamente nada do que acabou de dizer a estas damas.
— Estas damas compreenderam, e isso é o principal quando se fala de rendas — disse alegremente o
gentil-homem. — E meus sapatos, que lhes parecem?
— Por que são tão grandes e têm o bico quadrado? — perguntou Madelon.
— Por quê? Ninguém é capaz de dizê-lo, priminha. Mas estão de acordo com a moda. E é uma moda
útil! Noutro dia, o Sr. de Rochefort, aproveitando-se de que o Sr. de Conde falava ardorosamente, fincou
um prego no bico de cada um de seus sapatos. Quando o príncipe quis andar, ficou pregado no chão. Se
os bicos fossem menores, os cravos ter-lhe-iam atravessado os pés.
— Não se inventou o calçado para que as pessoas se divirtam pregando os pés alheios — grunhiu o
avô. — Tudo isso é ridículo.
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— Vocês sabiam que o rei está em Saint-Germain? — perguntou o marquês.
— Não — disse Armando de Sancé. — Por que essa notícia lhe parece extraordinária?
— Ora, meu caro, por causa da Fronda.
O palavrório divertia as senhoras e as crianças, mas os dois barões, acostumados à simplicidade
camponesa, perguntavam-se se seu prolixo parente não estava troçando deles, como tinha por hábito.
— A Fronda? Que é isso?
— Então não sabe, meu primo? O que na corte chamamos de "Fronda" é simplesmente a rebelião do
Parlamento de Paris contra o rei. Já ouviu alguma vez semelhante coisa? Há vários meses que estes
senhores de barrete quadrado estão em luta contra a regente e seu cardeal italiano... Questões de
impostos que nem sequer afetaram seus privilégios. Mas arvoram-se em protetores do povo. E aí estão
eles fazendo acusações e mais acusações. E sobe a mostarda ao nariz da regente. Pelo menos você ouviu
falar das agitações que se produziram em abril passado...
— Vagamente.
— Aconteceu por causa da prisão do parlamentar Broussel. A regente mandou prendê-lo uma
manhã em que ele tinha tomado um purgante. Amotinando-se a populaça aos gritos de uma cria-
da, Comminges, o coronel dos guardas, não pôde esperar que Broussel se vestisse, e levou-o de
roupão. Foi com dificuldade que conseguiu efetuar a prisão que lhe haviam ordenado. Contou-
me depois que aquela cavalgada entre os amotinados o teria divertido muitíssimo se se tratasse
de uma linda moça e não de um velho desconsolado que não sabia o que se passava. O caso é
que a ralé, decepcionada, entregou-se a levantar barricadas nas ruas. É uma brincadeira que o
povo adora fazer para espairecer a cólera.
— E a rainha e o reizinho? — perguntou com ansiedade a tia Pulquéria, que era sentimental.
— Que lhes direi? A rainha recebeu com grande altivez esses senhores do Parlamento, mas
cedeu prontamente. Depois inimizaram-se e reconciliaram-se várias vezes. Todavia, acreditem-
me, nesses últimos meses Paris me produzia a impressão de um caldeirão de bruxas, fervente de
paixões. É uma cidade agradável, mas oculta em seus recônditos um número incalculável de
miseráveis e de bandidos dos quais não seria possível alguém livrar-se senão queimando-os aos
montes como sevandijas. E isso sem falar dos panfletistas e dos poetastros, cuja pena fere mais
que o ferrão da abelha. Paris está inundada de papéis que repetem em verso e em prosa: "Abaixo
Mazarino, abaixo Mazarino!" Tanto assim que já são denominados "mazarinadas". A rainha os
acha até na cama, e nada é mais apropriado para tirar o sono do que esses pa-
peizinhos que parecem tão inocentes. Começou, pois, o drama. Os senhores do Parlamento
previam-no há muito tempo; receavam que a rainha retirasse de Paris o reizinho e acorriam três ve-
zes por noite em grande número, para pedir que lhes deixassem contemplar o formoso menino
adormecido; na realidade, era para verificarem se ainda se encontrava ali. Mas a espanhola e o ita-
liano são astutos. No Dia de Reis bebemos e nos divertimos na corte com muita alegria, e
comemos, sem segunda intenção, o bolo tradicional. Pela meia-noite, enquanto, com alguns
amigos, pretendia percorrer as tabernas, deram-me ordem de reunir meus criados e carruagens e
dirigir-me para uma das portas de Paris. Dali, para Saint-Germain. Lá encontrei a rainha com seus
dois filhos, suas damas de honor e seus pajens, toda essa brilhante gente deitada sobre palha, no
velho castelo, exposto a correntes de ar. O Sr. de Mazarino também chegou. Desde então, Paris
está sitiada pelo Príncipe de Conde, que se colocou à testa dos exércitos do rei. O Parlamento, na
capital, continua agitando o estandarte da insurreição, mas está muito enfastiado. O coadjutor de
Paris, o Príncipe de Gondi, Cardeal de Retz, que desejava ocupar o posto de Mazarino, também
está do lado dos rebeldes. Quanto a mim, segui o Sr. de Conde.
— Muito me agrada o que diz — suspirou o velho barão. — Nunca, nos tempos de Henrique IV, se
teria visto tamanha desordem. Parlamentares e príncipes em rebelião contra o rei da França! Eis, aí, mais
uma vez, a influência das idéias do outro lado do canal. Não dizem que também o Parlamento inglês
desfraldou a bandeira da sedição contra seu rei, e que chegou a prendê-lo?
— Puseram sua cabeça no cepo. Sua Majestade Carlos I foi executado em Londres no mês passado.
— Que horror! — exclamaram aterrados todos os presentes.
— Como podem supor, a notícia não tranqüilizou ninguém na corte da França, onde, além disso, se
encontra a desconsolada viúva do rei da Inglaterra, com seus dois filhinhos. Por isso foi decidido agir
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com dureza e intransigência contra Paris. Acabam precisamente de enviar-me como adjunto do Sr. de
Saint-Maur para levantar exércitos no Poitou e levá-los ao Sr. de Turenne, que é o mais valente cabo de
guerra a serviço do rei. Mal seria se em minhas terras e nas suas, querido primo, não recrutasse ao
menos um regimento para oferecê-lo a meu filho. Envie, pois, seus man-driões e indesejáveis aos meus
sargentos, barão. Convertê-los-emos em dragões.
— É preciso falar outra vez de guerra? — disse lentamente o barão. — Seria lícito esperar que as
coisas se arranjassem. Não se acaba de firmar, no último outono, um tratado em Vestfália, que consagra
a derrota da Áustria e da Alemanha?... Pensávamos poder respirar um pouco. E ainda me parece que
nossa região não é demasiado digna de lástima, se a compararmos com os campos da Picardia e de
Flandres, onde ainda estão os espanhóis e onde, faz trinta anos...
— Os habitantes de lá já estão acostumados — disse irrefletida-mente o marquês. — A guerra, meu
caro, é um mal necessário, e me parece uma heresia reclamar uma paz que Deus não quis para nós,
pobres pecadores. O importante é ser dos que fazem a guerra e não dos que a sofrem... Pelo que me
toca, sempre escolherei a primeira fórmula, à qual me dá direito a minha linhagem. O lamentável,
neste assunto, é que minha mulher ficou em Paris... do outro lado, sim, com o Parlamento. Não penso,
contudo, que tenha um amante entre esses graves e doutos magistrados sem nenhum brilho. Mas
acredite que as damas morrem por conspirar e que a Fron-da as encanta. Agruparam-se em torno da
filha de Gastão d'Orléans, irmão do Rei Luís XIII. Trazem faixas azuis cruzadas sobre o peito e até
espadins com talabarte de renda. Tudo isso é muito bonito, mas não posso deixar de inquietar-me pela
marquesa...
— Pode receber um golpe sério — gemeu Pulquéria.
— Não é isso que eu temo. Considero-a exaltada, mas é prudente. Minhas preocupações são de
outra ordem e, se houvesse golpes, seriam para mim. Compreendem-me? As separações desse
gênero são fatais para um esposo a quem não agrada dividir suas coisas. Quanto a mim...
Interrompeu-se e tossiu violentamente, porque o moço de cava-lariça, elevado à posição de
camareiro, acabava de deitar na lareira, para avivar o fogo, enorme feixe de palha úmida. No
meio das nuvens de fumo que se desprendiam, não se ouviram durante alguns instantes senão
acessos de tosse.
— Com mil demônios, meu primo! — exclamou o marquês quando conseguiu recuperar o
fôlego. — Compreendo sua ânsia de que rer respirar um pouco. Seu tonto criado mereceria uma
boa sova.
Levava o caso para a brincadeira, e pareceu simpático a Angélica, apesar da sua
condescendência. Sua tagarelice a havia apaixonado. Dir-se-ia que o velho castelo adormecido
acabava de despertar e abrir suas pesadas portas para outro mundo cheio de vida.
Mas, em troca, o filho se tornava cada vez mais retraído. Empertigado em sua cadeira, com
seus caracóis dourados graciosamente caídos sobre a ampla gola de renda, lançava olhares
horrorizados sobre Josselino e Gontran, que, percebendo a impressão que lhe scausavam,
exageravam suas maneiras rústicas, metendo os dedos no nariz e cocando a cabeça.
Esse modo de proceder perturbava claramente Angélica e causava-lhe um mal-estar bem
próximo da náusea. Fazia algum tempo que jjá não se sentia bem. Doía-lhe o ventre, e Pulquéria
havia-lhe proibido comer cenouras cruas, como era seu costume. Mas naquela noite, após as
muitas emoções e distrações que haviam trazido consigo os extraordinários visitantes, tinha a
impressão de estar a ponto de cair doente. De modo que não dizia nada e ficou sentada, muito
quieta. Cada vez que olhava para seu primo Filipe du Plessis, algo desconhecido apertava-lhe a
garganta, e não compreendia se era aborrecimento ou admiração. Jamais havia visto rapaz tão
belo.
Os cabelos dele caíam-lhe sobre a testa em franja sedosa e eram de ouro tão brilhante que, perto deles,
os seus lhe pareciam escuros. Tinha as feições perfeitas. Seu traje, de fino tecido cinza, guar-necido de
rendas e fitas azuis, combinava bem com sua tez branca e rosada. Na verdade, tomá-lo-iam por uma
moça, se não fosse a dureza de seu olhar, que não tinha nada de feminino.
Por causa do jovem, a tertúlia e a refeição foram um suplício para Angélica. Cada falha dos criados,
cada descuido era sublinhado com um olhar ou um sorriso trocista do adolescente.
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João. Couraça, que fazia as vezes de mordomo, trazia os pratos com o guardanapo sobre o ombro. O
marquês soltou uma gargalhada e disse que essa moda do guardanapo ao ombro não se usava senão a
serviço do rei e dos príncipes de sangue, e que se sentia lisonjeado pela honra que queriam prestar-lhe,
mas que se daria por satisfeito se fosse servido mais simplesmente, isto é, com o guardanapo enrolado
no antebraço. Cheio de boa vontade, o carroceiro enrodilhou o pano não muito limpo em seu braço pelu-
do, mas sua falta de traquejo e seus suspiros não fizeram senão aumentar a hilaridade do marquês, a
cujas risadas prontamente fizeram coro as do filho.
— Eis aqui um homem que, parece-me, serviria mais para dragão que para criado — disse o marquês,
olhando para João Couraça. — Não lhe parece, meu rapaz?
Bastante acanhado, o carroceiro respondeu com um grunhido de urso, que não fazia honra à
loquacidade de sua mãe. A toalha, recém-tirada de um armário úmido, fumegava ao calor dos pratos de
sopa. Um dos criados, por excesso de zelo, não parava de espe-vitar as velas, e apagou-as várias vezes.
Finalmente, por cúmulo do azar, o rapaz que tinham mandado buscar vinho na casa do cura voltou
dizendo, enquanto cocava a cabeça, que o sacerdote havia ido a uma aldeia próxima exorcis-mar os ratos
e que sua criada, a Maria Joana, não tinha querido dar nem um barrilzinho.
— Não se preocupe com esse detalhe, minha prima — interveio galantemente o Marquês du Plessis —
, beberemos aguapé de maçã, e, se o senhor meu filho não gostar, não beberá nada. Mas, em
compensação, dêem-me algumas informações sobre o que acabo de ouvir. Entendo bastante a
linguagem da região, que falei nos meus tempos de criança, mas não compreendo o que diz este pobre
moço. O cura foi exorcismar os ratos!... Que história é essa?
— Nada tem de estranho, meu primo. Há já algum tempo que as pessoas de uma aldeia vizinha se
queixam de uma invasão de ratos que lhes comem os grãos nos celeiros. O cura teve de ir lá para levar
água benta e rezar as preces costumeiras, a fim de que os espíritos malignos que moram nesses animais
se afastem e cessem de ser prejudiciais.
O marquês olhou estupefato para Armando de Sancé e, recostando-se na cadeira, começou a rir.
— Nunca ouvi dizer coisa mais divertida. Preciso escrevê-lo à Sra. de Beaufort. De modo que, para
destruir os ratos, borrifam-nos com água benta?
— Onde está a graça? Todo mal é obra dos espíritos malignos que penetram nos animais para
prejudicar os seres humanos. No ano passado, as lagartas invadiram um dos meus campos, e eu mesmo
as fiz exorcismar.
— E elas foram embora?
— Foram, ao fim de dois ou três dias.
— Quando já não tinham nada para comer.
A Sra. de Sancé, que tinha por norma que uma mulher deve calar-se humildemente, não pôde deixar de
tomar a palavra para defender sua fé, que suspeitou estar sendo atacada.
— Não vejo por que, meu primo, certas práticas sagradas não possam ter influência sobre os animais
daninhos. O próprio Nosso Senhor não fez entrar os demônios numa vara de porcos, segundo conta o
Evangelho? Nosso cura põe muito empenho nessa espécie de orações.
— E quanto lhe pagam por exorcismo?
— Muito pouco, e está sempre pronto a vir quando chamado.
Desta vez, Angélica surpreendeu o olhar de cumplicidade que
o Marquês du Plessis trocava com seu filho. "Esta pobre gente", parecia dizer, "é de uma ingenuidade
incrível."
— Devo falar ao Sr. Vicente desses costumes campesinos — disse o marquês. — Vai considerá-los
uma enfermidade, o pobre homem, ele que fundou uma ordem especialmente encarregada de
evangelizar o clero rural. Seus missionários têm por patrono São Lázaro, e são chamados lazaristas. Vão
em grupos de três, pelos campos, fazer prédicas e ensinar aos curas de nossas aldeias que não devem
começar a missa pelo Pater, nem dormir com a criada. É uma obra bastante inesperada, mas o Sr.
Vicente é partidário da reforma da Igreja pela Igreja.
— Eis uma palavra de que não gosto! — exclamou o velho barão. — Reforma, sempre reforma! Suas
palavras têm uma ressonância huguenote, meu primo. Receio que entre a reforma e a traição ao rei não
haja senão um passo. E quanto a esse Sr. Vicente, por mais eclesiástico que seja, pelo que compreendi e
pelo que tenho ouvido dizer dele, seus modos de agir têm algo de herético, e Roma faria bem em
desconfiar.
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— O que não impediu que Sua Majestade, o Rei Luís XIII, no momento de morrer, quisesse pô-lo à
testa do Conselho de Consciência.
— E que vem a ser isso?
Com dedo hábil, o marquês bojou as mangas da camisa.
— Como explicar-lhes? Ê uma coisa enorme. A consciência do reino! O Sr. Vicente de Paulo é a
consciência do reino, isso é tudo. Vê a rainha quase todos os dias e é recebido por todos os príncipes.
Apesar disso, é um homem simples e sorridente. Acha que a miséria pode curar-se, e que os grandes
deste mundo devem ajudar a reduzi-la.
— Utopia! — interrompeu rudemente a tia Joana. — A miséria, como o senhor mesmo dizia há pouco
a respeito da guerra, é um mal que Deus quis para castigar o pecado original. Levantar-se contra ela
eqüivale a revoltar-se contra a disciplina divina!
— O Sr. Vicente lhe responderia, minha cara, que "você" é responsável pelos males que nos cercam. E
a mandaria, sem mais rodeios, levar remédios e alimentos aos mais pobres de seus camponeses, fazendo-
a observar que, se os acha, segundo sua expressão, "demasiado grosseiros e terrestres", não precisa
senão olhar o reverso da medalha para ver o rosto sofredor de Cristo. Encontrou, assim, esse homem um
meio de recrutar para suas falanges caritativas quase todas as altas personalidades do reino. Este que
aqui vêem — acrescentou o marquês com ar compungido —, quando estava em Paris, às vezes ia dois
dias por semana ao Hôtel-Dieu servir a sopa aos doentes.
— Você me deixa cada vez mais assombrado! — exclamou o velho barão, agitadíssimo. —
Decididamente, os nobres de sua espécie não sabem mais o que inventar para desonrar seus brasões.
Vejo que o mundo caminha às avessas: preparam-se sacerdotes para evan-gelizar os sacerdotes, e
chegamos ao ponto de um desavergonhado como você, quase um libertino, vir pregar moral a uma
família honesta e sã como a nossa. Não posso tolerá-lo!
Fora de si, o ancião ergueu-se, e, como a refeição havia terminado, todos o imitaram. Angélica, que
não tinha podido comer nada, saiu da sala sem se fazer notar. Inexplicavelmente, sentia-se gelada e
tinha calafrios. Tudo o que acabara de ouvir rodopiava em sua cabeça: o rei dormindo sobre palha, o
Parlamento rebelado, os grandes senhores servindo sopa, Paris, um mundo cheio de vida e de atrativos.
Diante daquela agitação, sentia-se como morta, vivendo encerrada em uma cripta.
Subitamente postou-se num canto do corredor. Seu primo Filipe passou perto dela sem vê-la. Ouviu-o
subir ao pavimento superior e interpelar seus criados, que, à pálida luz de algumas velas, preparavam os
quartos para seus amos. A voz de falsete do rapaz elevava-se raivosa:
— É incrível que nenhum de vocês se tenha lembrado de obter brandões na última parada. Poderíamos
ter suspeitado de que, nestas remotas paragens, os pretensos nobres não valem mais do que os seus
vilões. Aqueceram ào menos a água para o meu banho?
O homem respondeu qualquer coisa que Angélica não ouviu. Filipe tornou resignadamente:
— Tanto pior! Lavar-me-ei em uma tina! Felizmente, meu pai me disse que no Castelo do Plessis há
dois banheiros florentinos.
Estou impaciente por chegar. Tenho a impressão de que o odor desta tribo dos Sancé nunca me vai sair
do nariz.
"Desta vez", pensou Angélica, "ele me pagará." Viu-o descer de novo à luz da lanterna colocada sobre o
consolo da antecâmara. Quando ele estava bem perto, saiu da sombra da escada.
— Como se atreve a falar de nós com tal insolência aos lacaios? — interrogou com voz firme, que
ressoou sob as abóbadas. — Você não tem sentido da dignidade da nobreza? Isso se deve, sem dúvida, a
descendentes de um bastardo de rei. Quanto a nós, temos o sangue puro.
— Tão puro o sangue como suja a cara — replicou o jovem friamente.
Dando um salto inesperado, Angélica atirou-se contra ele, disposta a enterrar-lhe as unhas no rosto.
Mas o rapaz, com força já varonil, segurou-a pelos pulsos e atirou-a violentamente contra a parede. Em
seguida afastou-se sem aligeirar o passo.
Atordoada, Angélica sentia que o coração lhe batia precipitadamente. Afogava-a um sentimento misto
de vergonha e desespero.
"Odeio-o", pensava, "e me vingarei algum dia. Terá de curvar-se, de me pedir perdão."
Mas por enquanto não passava de uma menina miserável à sombra de um castelo velho e úmido.
Rangeu uma porta, e Angélica percebeu a silhueta maciça do velho Guilherme, que entrava trazendo
dois baldes de água fume-gante para o banho do jovem senhor. Ao vê-la, deteve-se.
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— Quem está aí?
— Sou eu — respondeu Angélica em alemão.
Quando estava a sós com o velho soldado, falava sempre nessa língua, que ele lhe havia ensinado.
— Que faz aí? — retrucou Guilherme no mesmo idioma. — Faz frio. Vá para a sala escutar as histórias
do senhor marquês, seu tio. Assim poderá alegrar-se para todo o ano.
— Detesto essa gente! — disse Angélica. — São impertinentes e em nada se parecem conosco.
Destroem tudo o que tocam e deixam-nos depois sozinhos e com as mãos vazias, enquanto partem para
seus belos castelos, cheios de objetos magníficos.
— Que se passa com você, minha filha? — perguntou lentamente o velho Lützen. — Seu espírito não
poderia estar acima de algumas brincadeiras?
Crescia o mal-estar de Angélica. Um suor frio molhava-lhe a fronte.
— Guilherme, você, que nunca esteve em uma corte de príncipes, diga-me: quando alguém encontra de
uma só vez um malvado e um covarde, que deve fazer?
— Estranha pergunta para uma menina! Já que me pergunta, dir-lhe-ei que deve matar o malvado e
deixar que o covarde fuja.
E acrescentou, depois de um momento de reflexão, tornando a pegar os baldes:
— Mas seu primo Filipe não é nem covarde nem malvado. É um pouco jovem, eis tudo...
— Então, também você o defende? — exclamou Angélica com voz aguda. — Também você. Porque é
formoso... porque é rico...
Enchia-lhe a boca um gosto amargo. Vacilou e, escorregando ao longo da parede, tombou
desmaiada.
A enfermidade de Angélica era coisa naturalíssima. A Sra. de Sancé deu à menina explicações
tranqüilizadoras sobre os sintomas que a inquietavam: havia-se transformado em mulher. Avisou-a de
que aquilo lhe aconteceria daí em diante todos os meses, até uma idade avançada.
— E desmaiarei todos os meses? — perguntou Angélica, surpreendida de não haver percebido mais
amiúde os desmaios obrigatórios das mulheres que a rodeavam.
— Não, o desmaio foi um acidente. Logo você se recobrará e se acostumará perfeitamente ao seu
novo estado.
— De qualquer maneira... falta muito para ser velha! — suspirou a menina. — E, quando for velha,
já não poderei subir nas árvores.
— Pode continuar subindo nas árvores — disse a Sra. de Sancé, que punha muita delicadeza na
educação de seus filhos e parecia compreender os dissabores de Angélica. — Mas, como você mesma
compreende, já é hora de renunciar a algumas criancices que não ficam bem para a sua idade e para a
sua condição de senhorita nobre.
Acrescentou pequeno discurso em que tratou da alegria de trazer filhos ao mundo e do castigo
original que pesa sobre todas as mulheres por culpa de nossa mãe Eva.
"Juntemos isso à miséria e à guerra", pensou Angélica.
Estirada entre os lençóis, escutando a chuva que caía, experimentava certo bem-estar. Sentia-se fraca
e, ao mesmo tempo, engrandecida. Tinha a impressão de se achar estendida em um navio que se afastava
de uma praia conhecida, rumo a outro destino. De vez em quando pensava em Filipe e cerrava os
dentes.
Depois do seu desfalecimento, velada no leito pela tia Pulquéria, Angélica não percebera a partida
do marquês e de seu filho. Soube que não haviam demorado muito em Monteloup. Filipe queixava-
se dos percevejos, que não o tinham deixado dormir. — E minha petição ao rei? — perguntou o
Barão de Sancé no momento em que seu ilustre parente subia para a carruagem. — Você pôde
apresentá-la?
— Apresentei-a, meu bom amigo, mas não creio que você tenha direito a esperar dela grande coisa;
o pequeno rei está agora mais pobre do que você e não tem, por assim dizer, nem um teto sob o qual
repouse a cabeça. Contaram-me — prosseguiu desdenhosamente — que você preenche seus lazeres
criando belos mua-res. Venda alguns.
— Refletirei sobre sua sugestão — disse Armando de Sancé, em tom irônico. — Atualmente, é melhor
para um gentil-homem ser trabalhador do que contar com a generosidade de seus pares.
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4- Trabalhador! Oh! Que palavra feia! — disse o marquês com gesto amaneirado. — Adeus, meu
primo! Envie seu filho para o exército, e os seus mais robustos aldeões para o meu regimento. Adeus!
Beijo-lhe mil vezes.
A carruagem afastou-se aos solavancos, enquanto uma bem tratada mão se agitava na portinhola.
Não houve outras visitas dos senhores do Plessis. Soube-se que davam algumas festas; depois, que se
preparavam para voltar à He de France com seu exército inteiramente novo. Os sargentos re-crutadores
já tinham passado por Monteloup.
No castelo, somente João Couraça e um dos trabalhadores do campo se deixaram tentar pelo glorioso
porvir reservado aos dragões do rei. A ama Fantina chorou copiosamente quando seu filho partiu.
— Não era mau, e agora se converterá em um soldado-cavaleiro como você — disse a Guilherme
Lützen.
— É questão de herança, minha cara. Não teve por pai um soldado?
Para marcar as épocas, adquiriu-se, no castelo, o hábito de dizer:
"Isso aconteceu antes, ou depois, da visita do Marquês du Plessis".
CAPÍTULO VII
A visita do homem de negro — O irmão mais veiho de Angélica foge para a América
Ocorreu depois do incidente do "visitante negro".
Foi recordado por Angélica mais profundamente e por muito mais tempo. Longe de abater e
mortificar, como o haviam feito os hóspedes anteriores, o visitante trouxe, com suas palavras
estranhas, uma esperança que haveria de acompanhar a jovem no transcurso de sua vida, uma
esperança tão arraigada que nos momentos de angústia vividos mais tarde bastava-lhe fechar os
olhos para rever aquela tarde chuvosa de primavera, na qual o homem havia aparecido.
Angélica estava na cozinha, como de costume. A seu redor brincavam Dionísio, Maria Inês e o
pequeno Alberto. O caçula estava no berço, perto do fogão. Para as crianças, a cozinha era a
mais bela peça da casa. O fogo ali ardia todas as horas e quase sem fumaça, pois a chaminé era
muita alta. A luz daquele fogo perene dançava e refletia-se nos fundos vermelhos de caçarolas e
de pesados tachos de cobre, que pendiam das paredes. O retraído e pen-sativo Gontran passava
horas inteiras observando a cintilação daqueles reflexos, nos quais enxergava estranhas visões, e
nos quais Angélica reconhecia os gênios tutelares de Monteloup.
Naquela tarde Angélica estava preparando um pastelão de lebre. Já tinha dado à massa a
forma de torta, e estava picando a carne. Ouviu-se o tropel de um cavalo.
— É seu pai que volta — disse tia Pulquéria. — Angélica, creio que devemos ir ao salão.
Depois de curto silêncio, durante o qual o cavaleiro deve ter-se apeado, soou a campainh t da
porta de entrada.
— Vou atender — gritou Angélica.
E precipitou-se, com as mangas arregaçadas e os braços sujos de farinha. Através da chuva e da bruma
distinguiu um homem alto e magro de cuja capa escorria água.
— Abrigou seu cavalo? — perguntou. — Aqui os animais se res-friam facilmente. Há demasiada
névoa, por causa dos pântanos.
— Agradeço-lhe, senhorita — respondeu o forasteiro, tirando o grande chapéu de feltro e fazendo uma
reverência. — Tomei a liberdade, segundo o costume dos viajantes, de levar o meu cavalo e a bagagem
para a sua estrebaria. Como me achava demasiado longe do meu destino, e passava perto do Castelo de
Monteloup, decidi-me a solicitar do senhor barão hospitalidade por uma noite.
Pelo traje de grosso tecido negro, apenas adornado com um colarinho branco, Angélica pensou que se
tratasse de um pequeno comerciante ou de um camponês em roupa dommgueira. Mas seu acento, que
não era da região e parecia um pouco estrangeiro, desconcertava-a, bem como a linguagem rebuscada.
— Meu pai ainda não voltou para casa, mas venha aquecer-se na cozinha. Um moço cuidará do animal.
Quando voltou à cozinha, à frente do visitante, seu irmão Josselino acabava de entrar pela porta dos
fundos. Coberto de lama, com o rosto vermelho e sujo, ia arrastando pelo chão um javali por ele morto.
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— Boa caça, senhor? — perguntou o forasteiro com muita cortesia.
Josselino lançou-lhe um olhar pouco amável e respondeu com
um grunhido. Sentou-se, depois, em um tamborete e estendeu os pés para o lume. Mais modestamente, o
visitante sentou-se também junto ao fogo e aceitou um prato de sopa que Fantina lhe ofereceu. Explicou
que era originário da região, pois havia nascido perto de Secondigny, mas que, por ter passado muitos
anos viajando, falava com sotaque estrangeiro a sua própria língua.
— Mas perdê-lo-ei prontamente — afirmou. Não fazia mais de uma semana que desembarcara em La
Roche.
Ao ouvir as últimas palavras, Josselino levantou a cabeça e fitou-o com olhos brilhantes. Os meninos
rodearam-no e começaram a crivá-lo de perguntas.
— Que paises visitou?
— Muito distantes daqui?
— Qual é sua profissão?
— Não tenho profissão — respondeu o desconhecido. — Por enquanto, creio que gostaria bastante de
percorrer a França e contar a quantos queiram escutá-las as minhas viagens e aventuras.Como os poetas,
como os trovadores medievais? — perguntou Angélica, que, apesar dos pesares, havia aproveitado
algumas das lições de tia Pulquéria.
— Qualquer coisa assim, embora eu não saiba cantar nem fazer versos. Mas poderei contar-lhes coisas
muito belas das terras em que não é preciso plantar vides. As uvas pendem das árvores das florestas, mas
os habitantes não sabem fazer vinho com elas. É melhor assim, porque Noé se embriagou e o Senhor
não quer que os homens se transformem em porcos. Ainda existem povos inocentes sobre a Terra.
Também poderia falar-lhes dessas extensas planícies, onde, para conseguir um cavalo, basta espreitar,
atrás de uma rocha, a passagem das recuas selvagens, que galopam com as crinas ao vento. Lança-se-
lhes uma corda comprida com um nó corrediço, e fica-se dono do animal.
— E podem-se domá-los facilmente?
— Nem sempre — disse sorrindo o forasteiro.
Angélica compreendeu que aquele homem devia sorrir poucas vezes. Parecia ter uns quarenta anos,
mas existia em seu olhar algo inflexível e apaixonado.
— Para chegar a esses países é preciso atravessar o mar? — perguntou com desconfiança o taciturno
Josselino.
— Atravessa-se todo o oceano. Além, no interior das terras, encontram-se grandes rios e lagos. Os
habitantes são de cor vermelho-acobreada. Enfeitam a cabeça com penas de aves e viajam em canoas
feitas com peles de animais. Também estive numas ilhas onde todos os homens são negros.
Alimentavam-se de plantas grossas como o punho de um homem, chamadas cana-de-açúcar, e é delas,
na verdade, que provém o açúcar. Com o mela-ço fazem uma bebida mais forte que a aguardente dos
cereais, mas que embriaga menos e dá alegria e força: chama-se "rum".
— Trouxe um pouco dessa bebida maravilhosa? — perguntou Josselino.
— Tenho uma garrafa na bolsa de minha sela. Mas deixei vários toneis em casa de meu primo, que
mora em La Rochelle e que ten-ciona tirar deles bons lucros. É esse o seu negócio. Quanto a mim, sou
apenas um viajante curioso de ver terras novas, ávido de conhecer esses lugares onde ninguém tem fome
nem sede e onde o homem se sente livre. Foi ali que compreendi que todo o mal provém dos homens de
raça branca, que não atenderam à palavra do Senhor, mas a desviaram de seu verdadeiro sentido. Porque
o Senhor não mandou matar nem destruir, mas amar uns aos outros.
Houve um silêncio. As crianças não estavam acostumadas àque-inguagem tão insólita.
—A vida nas Américas é, pois, mais perfeita que em nossos países, onde Deus reina há tanto tempo?
— perguntou a voz tranqüila de Raimundo.
"ambém ele se tinha aproximado, e Angélica notou em seu olhar ia expressão análoga à do forasteiro.
Este mirou-o com atenção.
— É difícil pesar em uma balança as diversas perfeições de um indo antigo e de um mundo novo, meu
filho. Que posso dizer-:? Nas Américas vive-se de maneira muito diferente. A hospita-ade entre os
homens brancos é ampla; nunca se fala ali de pagar além disso, em certos lugares, o dinheiro não existe
e vive-se icamente da caça, da pesca e da troca de peles por avelórios.
— E as plantações?
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Desta vez era Fantina Lozier quem interrogava, coisa a que não teria atrevido em presença de seus
patrões. Mas a curiosidade levorava, como às crianças.
— As plantações? Nas Antilhas os negros trabalham pouco a terra, i América, os peles-vermelhas não se
ocupam disso, mas vivem colheita de frutos e rebentos. Em outros rincões, cultiva-se a baia, que se
denomina trufa na Europa, mas que ainda não se plan-aqui. Mas o que mais se vê são frutas; por
exemplo, espécies de ras que, na realidade, são cheias de manteiga, e árvores de pão.
— Árvores de pão? Então, não são necessários os moleiros? — clamou Fantina.
— Claro que não. Além do mais, existe muito milho. Em outras reses, as pessoas mascam algumas cascas,
ou nozes de cola. Com isso, io sentem fome nem sede durante todo o dia. Também se come uma pécie de
massa de amêndoa, o cacau, que se mistura com açúcar mas-vo. E bebe-se um extrato de faVas, chamado
café. Nos países mais isérticos, encontra-se suco de palma ou de agave. Há animais...
— Nesses países pode-se fazer cabotagem? — interrompeu Josselino.
— Alguns habitantes de Dieppe já o fazem, e também pessoas dali. Meu primo trabalha para um
armador que às vezes manda seus ivios à Costa Franciscana, como diziam no tempo de Francisco .
— Já sei, já sei — interrompeu de novo Josselino, impaciente. Sei também que oloneses têm ido à Terra
Nova, e pessoas do arte à Nova França, mas me parece que esses países são muito ios e não me
agradariam.
— Enviaram Champlain à Nova França já em 1608, e há ali muitos colonos franceses. Mas é, realmente,
um país muito frio, e a vida nele é muito dura.
— Por quê?
— É bastante difícil explicar-lhes isso. Talvez porque já se acham lá alguns jesuítas franceses.
— O senhor é protestante, não é verdade? — arriscou Raimundo.
— Sim. Sou até pastor, embora sem paróquia, e principalmente viajante.
— Entrou em porta errada, senhor — disse com riso irônico Jos-selino. — Creio que meu irmão sente
forte atração pela disciplina e exercícios espirituais da Companhia de Jesus, que o senhor critica.
— Longe de mim a idéia de censurar-lhes — disse o huguenote com gesto de protesto. — Encontrei
por lá, muitas vezes, padres jesuítas que penetraram no interior da terra com uma coragem e abnegação
evangélicas. Para certas tribos da Nova França, não existe maior herói do que o célebre Padre Jogues,
mártir dos iroqueses. Mas cada um tem liberdade de consciência e de convicções.
— Em verdade — disse Josselino —, não posso conversar com o senhor sobre tais assuntos, pois
começo a esquecer o latim, mas meu irmão o fala com mais elegância que o francês e...
— Essa é uma das maiores desditas que tombaram sobre a nossa França! — exclamou o pastor. — Que
já não possamos rezar a Deus cada qual em nossa língua materna e com o coração, e sim que seja
indispensável servirmo-nos desses encantamentos em latim...
Angélica lamentava que já não falassem de mares encapelados nem de navios negreiros, de animais
extraordinários como as serpentes ou desses lagartos gigantescos com dentes de lúcio, capazes de matar
um boi, ou ainda de baleias grandes como barcos.
Não havia percebido que a ama acabava de sair da cozinha. Tinha deixado a porta entreaberta, por
onde chegaram aos ouvidos de Angélica as palavras pronunciadas em voz baixa pela Sra. de Sancé:
— Protestante ou não, minha filha, esse homem é nosso hóspede e permanecerá aqui enquanto desejar.
Pouco depois a baronesa, seguida de Hortênsia, entrou na cozinha.
O visitante inclinou-se cortesmente, sem beija-mão nem reverência palaciana. Angélica pensou que
era certamente um plebeu, mas achou-o simpático, embora huguenote, e muito pouco exaltado.
— Pastor Rochefort — disse, apresentando-se. — Tenho de ir a Secondigny, minha terra natal, mas,
como o percurso é longo, pensei em acolher-me sob seu teto hospitaleiro, minha senhora.
A dona da casa garantiu-lhe que era muito bem-vindo e que, embora todos ali fossem católicos
praticantes, isso. não os impedia de ser tolerantes, como o tinha recomendado o bom Rei Henrique IV.
— E o que me atrevi a esperar ao entrar aqui, minha senhora
— respondeu o pastor, inclinando-se mais profundamente —, pois devo confessar-lhe que amigos
meus me confiaram que a senhora tem há muitos anos um velho servidor huguenote. Assim foi que me
dirigi a ele em primeiro lugar. Trata-se de Guilherme Lützen, que me fez confiar em que a senhora
poderia acolher-me esta noite.
— Pode ficar certo disso, meu senhor, e ainda nos dias seguintes, se assim desejar.
— Meu único prazer é estar às ordens do Senhor, na medida em que posso servi-lo. Ele me inspirou
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bem, embora, confesso-o, a quem acima de tudo desejaria ver é a seu marido...
— O Senhor traz uma incumbência em relação a meu marido?
— disse surpresa a Sra. de Sancé.
— Não uma incumbência, mas talvez uma missão. Permita, senhora, que não a comunique senão a ele.
— Certamente, senhor. Aliás, já ouço os passos de seu cavalo.
O Barão Armando não tardou a entrar. Certamente o avisaram
da inesperada visita. Não demonstrou para com seu hóspede a habitual cordialidade. Parecia
constrangido e preocupado.
— É certo, senhor pastor, que vem das Américas? — perguntou, depois das saudações costumeiras.
— Sim, senhor barão. E me agradaria ter com o senhor uns momentos em particular para falar-lhe de
quem o senhor sabe.
— Psiu! — fez imperativamente Armando de Sancé, lançando um olhar inquieto para a porta.
E acrescentou um tanto precipitadamente que sua casa estava à disposição do Sr. Rochefort, e que lhe
bastaria pedir aos criados tudo o que fosse necessário para o seu conforto. Jantariam dali a uma hora. O
pastor agradeceu e pediu permissão para retirar-se, a fim de "lavar-se um pouco".
"Não lhe bastou o aguaceiro?", pensou Angélica. "Que pessoas originais esse huguenotes! Dizem com
razão que não são como as outras criaturas. Amanhã perguntarei a Guilherme se ele também se lava a
cada instante. Deve ser algum de seus ritos. Por isso mostram, amiu-de, esse ar triste e às vezes são tão
irritáveis, como Lützen. Têm a pele muito áspera e em carne viva e deve doer-lhes... É como o jovem
Filipe, que também sente necessidade de passar a vida a banhar-se. Não há dúvida de que essa
preocupação acabará por arrastá-lo à heresia. Pode ser que o queimem, e será muito bem feito!"
Quando o forasteiro se encaminhava para a porta, a fim de ir ao aposento que lhe havia destinado a
Sra. de Sancé, Josselino, com sua habitual incivilidade, reteve-o pelo braço.
— Mais uma palavra, pastor. Para poder trabalhar nesses países da América, sem dúvida, é preciso ser
muito rico, ou então comprar um posto de oficial de navegação ou, pelo menos, de artesão de qualquer
ofício?
— Meu filho, as Américas são terras livres, onde nada se exige, embora seja certo que nelas é preciso
trabalhar muito e duramente e também defender-se.
— Quem é você, estrangeiro, para permitir-se chamar "meu filho" a esse jovem, e ainda mais na
presença de seu próprio pai e na minha, seu avô?
Havia-se feito ouvir a voz depreciativa do velho barão.
— Sou o Pastor Rochefort, senhor barão, para servir-lhe, mas não tenho diocese designada, e somente
estou de passagem.
— Um huguenote! — grunhiu o velho. — E que, além do mais, vem desses países malditos...
Estava de pé na soleira, apoiado na bengala, mas tão empertigado quanto podia. Havia tirado o amplo
sobretudo negro com que se agasalhava no inverno. Pareceu a Angélica que tinha o rosto tão branco
como a barba. Sem saber por quê, sentiu medo e apressou-se a intervir.
— Meu avô, este cavalheiro estava todo molhado e oferecemos-lhe agasalho. Contou-nos histórias
fascinantes...
— Seja. Não nego que aprecio a coragem e, quando o inimigo se apresenta de rosto descoberto, sei que
tem direito a todas as considerações.
— Senhor, não venho como inimigo.
— Poupe-nos das suas prédicas heréticas. Nunca tomei parte em controvérsias que não são da
competência de um velho soldado. Mas desejo avisar-lhe que nesta casa não encontrará almas para
converter.
O pastor suspirou imperceptivelmente.
— Para dizer a verdade, não venho da América como pregador em busca de novas conversões. Em
nossa Igreja, os fiéis e curiosos aproximam-se livremente. Sei muito bem que em sua família são todos
católicos fervorosos e que é muito difícil converter aqueles cuja religião está fundada sobre as mais
antigas superstições, e que pretendem ser os únicos infalíveis.
— Com isso reconhece que não recruta seus adeptos entre as pessoas de bem, mas entre os indecisos,
os ambiciosos desiludidos, os monges que largaram a batina e que se alegram de ver san-tificados os-
seus desmandos.
— Senhor barão, o senhor é demasiado imprudente em seus juízos — disse o pastor, em tom enérgico.
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— Altas personagens e prelados do mundo católico já se converteram à nossa doutrina.
— Não me revela nada que eu já não saiba. O orgulho pode fazer afrouxar os melhores. Mas a
vantagem de que gozamos, nós, os católicos, é que somos auxiliados pelas orações de toda a Igreja, dos
santos e de nossos mortos, enquanto vocês, em seu orgulho, recusam esta intercessão e pretendem tratar
com o próprio Deus.
— Os papistas acusam-nos de orgulho, mas eles mesmos consideram-se infalíveis e arrogam-se o
direito da violência. Quando saí da França — continuou o pastor com voz surda —, em 1629, acabava
de escapar, muito jovem, ao sítio atroz de La Rochelle pelas hordas do Sr. de Richelieu. Estavam então
firmando a paz de Ales, que tirava aos protestantes o direito de possuir praças fortes.
— Já era tempo. Estavam convertendo-se em um Estado dentro do Estado. Confesse que seu fim era
arrebatar à influência do rei todas as regiões do oeste e do centro da França.
— Ignoro-o. Era então demasiado jovem para abraçar tão vastos desígnios. Tudo o que compreendi foi
que aquelas novas decisões estavam em desacordo com o Edito de Nantes, do Rei Henrique IV. Vejo a
meu redor, com amargura, que não cessaram de contestar e deturpar os pontos do referido edito, ao fazê-
lo cumprir com um rigor que corre parelhas com a má-fé dos ca-suístas e dos juizes. A isso chamam
"observância mínima" do edito. Vejo, por exemplo, que os protestantes são obrigados a enterrar seus
mortos de noite. Por quê? Porque o edito não diz explicitamente que o enterro de um reformado pode ser
feito de dia. Logo, tem de ser feito à noite.
— O que deve comprazer à sua humildade — disse em tom de troça o velho nobre.
— Quanto ao artigo 28, que permite aos protestantes abrir escola em todos os lugares onde esteja
autorizado o exercício de culto, como foi interpretado? Como o edito não fala nem das matérias, nem do
número de professores, nem da importância das classes por comunidade, decidiram que não devia existir
senão um mestre protestante por escola e por burgo. Assim é que em Marennes vi seiscentas crianças
protestantes com direito a um só mestre. Ah, bem se vê o espírito ladino que anima a falsa dialética da
Igreja antiga! — exclamou o pastor. Houve um silêncio embaraçoso, e Angélica percebeu que seu avô,
no fundo um espírito reto e justo, estava levemente perturbado pela exposição de tais fatos, que ele não
ignorava. Mas de repente a voz calma de Raimundo se fez ouvir:
— Senhor pastor, não estou em condições de apreciar a justiça da investigação que o senhor realizou
nestas terras sobre certos abusos de zeladores intransigentes. Agradeço-lhe não haver citado os casos de
conversões compradas de crianças e adultos, mas deve saber que, se tais excessos existem, Sua
Santidade, o papa, em pessoa interferiu muitas vezes junto ao clero da França e ao rei. Comissões
oficiais e secretas percorrem o país para sanar as injustiças praticadas. Estou convencido de que, se fosse
até Roma e entregasse uma representação minuciosa ao sumo pontífice, a maior parte das faltas que
observou seriam corrigidas...
— Jovem, a mim não me cabe intentar a reforma da sua Igreja — disse o pastor com rudeza.
— Pois a faremos nós mesmos, senhor pastor, e, queira ou não, o Todo-Poderoso nos iluminará! —
exclamou o adolescente com súbito calor.
Angélica olhou com espanto para seu irmão. Nunca desconfiara que podia esconder-se tanta paixão
sob aquela aparência insignificante e um tanto hipócrita.
Desta vez quem se desconcertou foi o pastor. Procurando dissipar o enleio, o Barão Armando disse,
rindo sem malícia:
— Suas discussões fazem-me lembrar que desde há algum tempo lamento, às vezes, não ser huguenote.
Porque parece que dão até três mil libras por um nobre que se converte ao catolicismo.
O velho barão saltou:
— Meu filho, poupe-me de suas pesadas brincadeiras. São de mau gosto perante um adversário.
O pastor havia apanhado sua capa úmida de sobre a cadeira.
— Não vim aqui como adversário. Tinha uma missão a cumprir no Castelo de Sancé. Uma mensagem
de terras distantes. Queria falar a sós com o Barão Armando, mas vejo que tem o costume de tratar dos
seus assuntos publicamente em família. Agrada-me essa maneira. Era a dos patriarcas e também a dos
apóstolos.
Angélica viu que seu avô tinha ficado tão branco como o castão de marfim de sua bengala e que se
apoiava na ombreira da porta.
Teve pena dele. Gostaria de prender as palavras que estavam por vir, mas já o pastor continuava:
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— O Sr. Antônio de Ridoué de Sancé, seu filho,.a quem tive o prazer de encontrar na Flórida, pediu-
me que viesse ao castelo onde ele nasceu e obtivesse notícias de sua família, para que eu lhas possa
transmitir quando voltar. Minha tarefa está cumprida.
O velho gentil-homem acercara-se dele vagarosamente.
— Fora daqui! — disse com voz surda e ofegante. — Nunca, enquanto eu viver, se pronunciará sob
este teto o nome de meu filho perjuro ante seu Deus, seu rei e sua pátria. Fora daqui, digo-lhe! Não
quero huguenotes em minha casa!
— Eu vou — disse o pastor, muito calmo.
— Não!
Era a voz de Raimundo que se erguia de novo.
— Fique, senhor pastor. Não pode sair com esta noite chuvosa. Nenhum habitante de Monteloup
quererá dar-lhe asilo, e a primeira aldeia protestante é muito longe. Peço-lhe que aceite a hospitalidade
do meu quarto.
— Fique — disse Josselino com sua voz rouca. — É preciso que continue falando-me das Américas e
do mar.
A barba do velho barão tremia.
— Armando! — exclamou, com tal angústia que partiu o coração de Angélica. — Eis aqui onde se
refugiou o espírito de rebeldia de seu irmão Antônio: nestes dois rapazes que eu amava. Deus não me
poupará a coisa nenhuma. Na verdade, vivi demasiado.
Cambaleou. Guilherme foi quem o amparou. Saiu apoiado ao velho soldado e repetindo com voz
trêmula:
— Antônio... Antônio...
Alguns dias mais tarde o avô morreu. Não se pôde saber de que doença. Extinguiu-se quando já o
acreditavam recuperado da emoção causada pela visita do pastor.
Não sentiu a dor de inteirar-se da partida de Josselino.
Com efeito, certa manhã, pouco depois do enterro, Angélica, que ainda dormia, ouviu que alguém a
chamava a meia voz e viu, com surpresa, que Josselino estava à cabeceira de sua cama. Ela fez-lhe sinal
para que não acordasse Madelon e saiu com ele para o corredor.
— Vou-me embora — murmurou Josselino. — Você procurará fazê-los compreender.
— Aonde vai?
— Primeiro a La Rochelle e depois para as Américas. O Pastor Rochefort me falou de todos estes
países: Antilhas, Nova Inglaterra, e também das colônias: Virgínia, Maryland, Carolina, o novo ducado
de York, a Pensilvânia. Acabarei chegando a alguma parte onde me queiram.
— Aqui também o querem — disse Angélica em tom queixoso. Tiritava dentro de sua tênue camisola
surrada.
— Não — disse Josselino —, neste país não há lugar para mim. Estou cansado de pertencer a uma
classe que possui privilégios e já não tem utilidade alguma. Ricos ou pobres, os nobres já não sabem
absolutamente para que servem. Veja o que se passa com papai. Anda às tontas. Rebaixa-se a criar
muares, mas não se atreve a explorar a fundo essa situação humilhante para erguer com dinheiro seu
título de gentil-homem. De modo que perde por ambos os lados. Zombam dele porque se entrega ao
negócio de muares, e também porque somos nobres sem dinheiro. Felizmente nosso tio Antônio de
Sancé, o irmão mais velho de papai, indicou-me o caminho: fez-se huguenote e deixou o continente.
— Você vai abjurar? — perguntou horrorizada.
— Não. As beatices não me interessam. Eu quero é viver.
Beijou-a apressadamente, desceu alguns degraus e voltou-se para lançar sobre sua irmã meio desnuda
um olhar de homem prudente.
— Você está se tornando bela e forte, Angélica. Cuidado! Também deveria ir embora. Se não o fizer,
qualquer dia destes se encontrará no palheiro com um moço de cavalariça. Ou se converterá em
propriedade de um destes ricaços que temos por vizinhos.
Acrescentou com súbita doçura:
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— Creia na minha experiência de menino mau, querida: seria para você uma vida insuportável. Fuja
também destas velhas muralhas. Quanto a mim, vou para o mar.
E, saltando os degraus de dois em dois, desapareceu.
CAPITULO VIII
O claustro dos monges dissolutos — Singular conclusão do negócio dos
muares — A Marquesa du Plessis quer Angélica para donzela de honor
A morte dó avô, a partida de Josselino e aquelas palavras que lhe havia dito: "Vá você também!",
transtornaram Angélica profundamente, numa idade em que uma natureza hipersensível se predispõe a
todas as extravagâncias.
Foi assim que, nos primeiros dias do verão, Angélica de Sancé de Monteloup partiu para as Américas
com um grupo de rapazes camponeses que havia recrutado e entusiasmado com seus projetos
aventurosos. Disso se falou durante muito tempo na região, e muitas pessoas viram no acontecimento
mais uma prova de que ela pertencia à família das fadas.
Para dizer a verdade, a expedição não foi além da floresta de Nieul. Angélica voltou à razão ao cair da
tarde, quando o sol projetava suas grandes pinceladas de luz vermelha por entre enormes troncos da
selva centenária. Havia vivido uns tantos dias em plena febre. Via-se chegando a La Rochelle,
oferecendo-se como gru-mete aos navios prestes a zarpar, desembarcando em terras desconhecidas onde
seres amáveis a acolheriam com as mãos carregadas de uvas. Seduziu facilmente Nicolau. "Marinheiro...
isto é muito melhor do que guardar as bestas. Sempre desejei correr mundo." Outros valdevinos, a quem
agradava mais vaguear pelos bosques do que trabalhar no campo, suplicaram que os levassem, e
Dionísio também, naturalmente. Eram oito ao todo. E Angélica, a única moça, era o chefe. Cheios de
confiança nela, inquietaram-se apenas quando a noite começou a invadir a mata. Com flores nas mãos e
o nariz lambuzado de amoras, acharam esta primeira parte da expedição extremamente agradável.
Andaram desde o amanhecer e fizeram alto por volta do meio-dia, perto de um riacho, para devorar as
provisões de castanhas e pão de rala.
Em dado momento Angélica teve um calafrio e de repente a consciência de sua tolice a invadiu com
tal lucidez que ela sentiu a boca seca.
"Não podemos passar a noite na floresta", pensou. "Aqui há lobos."
— Nicolau — disse em voz alta —, não lhe parece estranho que ainda não tenhamos chegado à aldeia
de Naillé?
O rapaz começou a intranqüilizar-se.
— Parece-me que nos perdemos. Quando fui com meu falecido pai, tenho a impressão de que não
andamos tanto tempo.
Angélica sentiu que uma mãozinha suja deslizava na sua. Era a do expedicionário mais novo, que
tinha seis anos.
— Já começa a anoitecer — gemeu ele. — Creio que estamos perdidos.
— Pode ser que já estejamos muito perto — tranqüilizou-o Angélica. — Continuemos caminhando.
Voltaram a empreender a marcha em silêncio. Por entre a ramagem, o céu empalidecia.
— Se não chegarmos à aldeia até a noite, não há motivo para nos assustarmos — disse Angélica. —
Subiremos às árvores para dormir. Assim não seremos vistos pelos lobos.
Mas, embora aparentasse tranqüilidade, sentia-se angustiada. Subitamente chegou até eles o som
argenteo de um sino e a menina deu um suspiro de alívio.
— Ali está a aldeia, onde estão tocando o ângelus! — exclamou.
Puseram-se a correr. O caminho começava a descer, as árvores
espaçavam-se. Encontraram-se de repente na orla do bosque e detiveram-se encantados.
No fundo de um pequeno vale verdejante, ali estava, maravilha silenciosa no seio da floresta, a Abadia
de Nieul.
O sol poente dourava seus numerosos telhados cor-de-rosa, seus pináculos, suas paredes pálidas
semeadas de trepadeiras, seus claustros, seus grandes pátios desertos. Soava um sino. Um monge car-
regado de baldes dirigia-se para o poço.
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Emudecidos pela emoção religiosa, os meninos aproximaram-se do pórtico principal. A porta de
madeira estava entreaberta.
Entraram. Um velho monge, vestido de batina escura, estava sentado em um banco e havia adormecido.
Os cabelos brancos formavam-lhe uma pequena coroa de neve cuidadosamente arrumada sobre o crânio
desnudo.
Nervosos pelas emoções diversas que acabavam de experimentar, os pequenos tunantes olharam-no e
puseram-se a rir, o que atraiu um frade gordo e jovial à soleira de uma porta.
— Ei, meninos! — gritou-lhes em patoá. — São uns malcriados!
— Parece-me que é Frei Anselmo — cochichou Nicolau.
Frei Anselmo costumava percorrer a região com seu asno. Distribuía terços e garrafas de licor
medicinal, extraído das flores da angélica, em troca de trigo e pedaços de toucinho. As pessoas es-
tranhavam isso porque a abadia não pertencia a uma ordem men-dicante, e diziam que era muito rica em
conseqüência das rendas que obtinha de suas terras.
Angélica dirigiu-se para ele, acompanhada de seu fiel grupinho. Não se atreveu a confiar-lhe o seu
plano inicial de seguir para as Américas. Seguramente Frei Anselmo nunca teria ouvido falar das
Américas. Contou-lhe somente que eram de Monteloup e que, tendo ido ao bosque apanhar morangos e
framboesas, se haviam perdido.
— Pobres franguinhos! — disse o frade, que era muito bom homem. — Vejam o que acontece aos
gulosos. Suas mães os busca rão chorando e prevejo que, ao seu regresso, vão esquentar-lhes as nádegas.
Mas por enquanto nada podem fazer senão sentar-se aí. Vou dar-lhes uma escudela de leite e pão de rala.
Dormirão no celeiro e amanhã atrelarei a carriola para levá-los a suas casas. Estava mesmo pensando em
ir pedir esmolas no lugar.
O projeto era razoável. Angélica e seus companheiros tinham andado o dia inteiro. Sabiam que, mesmo
de carriola, somente chegariam a Monteloup altas horas da noite. Nenhum caminho atravessava a floresta
de um lado a outro, exceto as trilhas que haviam seguido as crianças. Deveriam tomar um caminho muito
mais extenso, que passava pelas comunas de Naillé e Varrout, das quais estavam muito longe.
"A floresta é como o mar", pensou Angélica. "Quem nela penetra tem de guiar-se por um relógio,
como explicava Josselino; de outra maneira, caminhará às cegas."
Foi tomada de súbito desalento. Via-se reiniciando mal a viagem, conduzindo um relógio tão pesado
como o que tinha visto em casa de Molines. Além disso, seus "homens" não estavam a ponto de
abandoná-la? A menina ficou silenciosa, enquanto os demais comiam sentados junto à parede, na
mornidão do crepúsculo que enchia os grandes pátios.
O sino continuava a soar. As andorinhas lançavam seus pios agudos no céu cor-de-rosa, e as galinhas
cacarejavam sobre montões de palha e estéreo.
Frei Anselmo passou encapuzado.
— Vou para as completas — disse. — Portem-se bem, se não que rem que os cozinhe na panela.
Viam-se perfis escuros que passavam entre as arcadas do claus-tro. Perto do pórtico, o velho frade
continuava dormindo. Sem dúvida, estava dispensado de assistir aos ofícios...
Angélica precisava refletir, e distanciou-se sozinha.
Em um dos pátios viu belíssimo coche brasonado, que descansava sobre seus varais. Uns cavalos de
raça comiam seu feno na estrebaria. Este detalhe a intrigou sem que ela soubesse bem por quê.
Caminhava devagarinho, em silêncio, enfeitiçada pelo encanto daquela grande morada no meio das
árvores. Quando a noite enchesse a mata e os lobos vagassem nela, a abadia, protegida pelas grossas
paredes, continuaria sua vida fechada, cujos segredos a menina não podia imaginar. Ao longe elevavam-
se os cânticos da igreja, lentos e doces. Angélica, orientada pela música, começou a subir uma escada de
pedra. Nunca tinha ouvido harmonia tão suave, pois na igreja de Monteloup os cânticos berrados pelo
cura e pelo mestre-escola em nada faziam lembrar os das falanges celestiais.
Subitamente ouviu um rumor de saias e, ao voltar-se, viu caminhar na penumbra do claustro uma
formosa dama ricamente vestida. Isso foi, pelo menos, o que lhe pareceu. Angélica nunca vira sua mãe
nem suas tias em traje de veludo negro com flores cinzentas incrustadas. Como poderia suspeitar que era
um vestido de extraordinária simplicidade, reservado para o retiro piedoso na tranqüilidade de um
mosteiro? Sobre os cabelos castanhos a criatura trazia uma mantilha de renda negra e na mão um grosso
mis-sal. Passou perto de Angélica e lançou-lhe um olhar de surpresa.
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— Que faz aqui, menina? Não é hora de pedir esmola.
Angélica recuou, procurando assumir o ar pateta de uma camponesa assustada.
Na sombra daquelas abóbadas, o busto da dama lhe parecia extremamente branco e avantajado.
Apenas uma fina renda cobria aquelas magníficas rotundidades que o plastrão bordado apresentava,
como uma cornucópia oferece seus frutos.
"Eu gostaria de ser assim, quando crescer", pensou Angélica, que voltou a descer a escada em caracol.
Afagava seu busto ainda pouco desenvolvido e sentia certa inquietação. O ruído de umas sandálias que
subiam a escada fê-la ocultar-se nervosamente atrás de um pilar. O burel de um monge roçou-a ao
passar. Não conseguiu ver mais que um belo rosto, cuidadosamente barbeado, e uns olhos azuis,
brilhantes de inteligência na sombra do capuz. Ele desapareceu. Depois elevou-se sua voz varonil e
suave.
— Só agora me preveniram de sua visita, senhora. Estava na biblioteca do mosteiro, inclinado sobre
uns códices que tratam de filosofias gregas. Mas a sala está muito distante e meus frades não são muito
lestos, principalmente em época de calor. Apesar de ser o abade, não me avisaram da sua chegada até a
hora das completas.
— Não se desculpe, padre. Conheço o mosteiro, e me acomodei. Ah! Que bom ar se respira aqui!
Cheguei ontem a minhas terras de Richeville, e estava impaciente por vir a Nieul. A atmosfera da corte,
desde que se transferiu para Saint-Germain, é insuportável. Tudo está revolto, triste e pobre. A verdade é
que não consigo viver senão em Paris... ou em Nieul. Além disso, o Sr. de Mazarino não gosta de mim.
Dir-lhe-ei até que esse cardeal...
O resto da conversa se perdeu. Os dois interlocutores se afastavam.
Angélica encontrou seus companheiros na grande cozinha da abadia, onde Frei Anselmo, metido em
um avental branco, azafamava-se ajudado por dois ou três adolescentes vestidos com hábitos
excessivamente grandes para eles. Eram os noviços da abadia.
— Ceia delicada esta noite — dizia o irmão cozinheiro. — A Con-dessa de Richeville encontra-se
entre nós. Tenho ordem de descer à adega e escolher os melhores vinhos, assar seis capões e arranjar-me
como puder para apresentar um prato de pescado. Tudo bem temperado — acrescentou, lançando um
olhar malicioso a um de seus confrades, que, sentado junto a um extremo da mesa de madeira, bebia um
copo de licor.
— As criadas da visitante são graciosas — respondeu o outro, homem gordo e vermelho, cujo ventre
quase fazia rebentar um cordão cheio de nós, do qual pendia um terço. — Ajudei três dessas
encantadoras moças a levar o leito para a cela reservada para sua patroa, bem como as malas e o guarda-
roupa.
— Ah, ah, ah! — exclamou Frei Anselmo. — Gostaria de tê-lo visto, Frei Tomás, carregando mala e
guarda-roupa! Você, que nem ao menos tem força para carregar a pança.
— Ajudei-as com meus conselhos — disse gravemente Frei Tomás.
Seus olhos avermelhados percorriam o aposento, onde brilhava e crepitava o lume sob assadores e
enormes panelas.
— Que nuvem é essa de vilõezinhos que acolheu em seus domínios, Frei Anselmo?
— São crianças de Monteloup que se extraviaram na mata.
— Por que não os prepara com escabeche? — disse Frei Tomás, revirando os olhos de maneira terrível.
Dois dos meninos puseram-se a chorar assustados.
— Vamos, vamos! — disse Frei Anselmo, abrindo uma porta. — Sigam por este corredor. Encontrarão
um celeiro, deitem-se ali e durmam. Não tenho tempo para cuidar de vocês esta noite. Felizmente, um
pescador me trouxe um belo lúcio; do contrário, o nosso abade seria capaz de dar-me como penitência
três horas com os braços em cruz. E já estou ficando velho para esses exercícios...
Quando se certificou de que seus pequenos companheiros estavam dormindo, Angélica, deitada no
cheiroso feno, sentiu que os olhos se lhe enchiam de lágrimas.
— Nicolau — cochichou ela —, creio que nunca poderemos chegar às Américas. Pensei muito nisso.
Necessitaríamos de um relógio.
— Não se inquiete — respondeu o adolescente, bocejando. — Desta vez saímo-nos mal. Mas
divertimo-nos bastante.
— Naturalmente — disse Angélica, furiosa —, você é como um esquilo. Incapaz de realizar grandes
projetos. Além disso, não se importa qüe voltemos em situação lastimável a Monteloup. Seu pai não lhe
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dará uma sova, porque está morto, mas os outros, que tunda!
— Não se preocupe com eles — retrucou Nicolau meio adormecido —, têm o lombo duro.
Três segundos depois, roncava ruidosamente.
Angélica supunha que tantas preocupações a impedissem de conciliar o sono, mas pouco a pouco a voz
distante de Frei Anselmo, que azoinava seus noviços, foi sumindo e a menina adormeceu.
Com o calor excessivo, despertou. As crianças continuavam dormindo, e suas respirações cadenciadas
enchiam o celeiro.
"Vou respirar lá fora", disse consigo mesma.
Procurou, tateando, a porta do pequeno corredor que conduzia à cozinha. Quando conseguiu abri-la,
chegou até ela um rumor de vozes estridentes e de gargalhadas camponesas. Nos domínios de Frei
Anselmo parecia haver numerosa assembléia.
Angélica chegou até a soleira.
Viu uma dezena de monges sentados em torno da grande mesa coberta de pratos e jarros de estanho.
Carcaças de aves entulhavam os pratos. Um cheiro de vinho e de fritura misturava-se com o odor mais
delicado de uma garrafa de licor aberta, do qual cada um dos comensais tinha um copo diante de si. Três
mulheres, camponesas louças disfarçadas em aias, tomavam parte na festa. Duas delas riam muito e
pareciam completamente embriagadas. A terceira, mais modesta, resistia a Frei Tomás, que procurava
atraí-la.
— Vamos, vamos, querida — dizia o gordo monge —, não seja mais pudica que a sua augusta patroa.
A esta hora, pode ter certeza de que ela não mais se ocupa de filosofia grega com o nosso abade. Você
será a única a não se divertir esta noite, na abadia.
A criada lançou em volta de si olhares constrangidos e decepcionados. Sem dúvida ela era menos
arisca do que desejava parecer, mas a face rubicunda de Frei Tomás não a seduzia.
Um dos outros monges pareceu compreender isso, pois ergueu-se de súbito e enlaçou-lhe a cintura
num gesto carinhoso.
— Por São Bernardo, padroeiro do nosso claustro — exclamou ele —, esta moça é muito fina para
você, grande porco! Que está pensando? — interrogou, levantando com um dedo o queixo da
recalcitrante. — Será que não tenho belos olhos, embora me faltem belos cabelos? Pois digo-lhe que fui
soldado e sei divertir as garotas.
Ele tinha, efetivamente, olhos negros e vivos, e um ar astuto. A criada não pôde deixar de sorrir.
Seguiu-se uma curta rixa, provocada por Frei Tomás, aborrecido por ter sido desprezado. Uma vasilha
de estanho foi derrubada e as mulheres protestaram. Subitamente, alguém gritou:
— Olhem! Ali!... Um anjo!...
Todos se voltaram para a porta, onde se encontrava Angélica. Não recuou porque não era medrosa.
Tinha assistido a muitas festas camponesas e não se assustava com as algazarras provocadas ne-
cessariamente pelas libações abundantes. Mas algo se rebelava dentro dela. Parecia-lhe que aquele
espetáculo não condizia com a visão que havia tido ante os olhos, do alto da floresta, quando lhe surgiu
a abadia, na luz dourada do entardecer, como asilo e refúgio de paz.
— E uma garota que se perdeu no bosque — explicou Frei Anselmo.
— A única de um bando de meninos — explicou Frei Tomás. _- É uma esperança. Quem sabe não
gostará da brincadeira? Tome, venha beber isto! — disse, oferecendo a Angélica um copo de licor. — É
bom, é doce. Nós mesmos o fabricamos com a angélica dos pântanos: Angélica sylvestris.
Angélica obedeceu, menos por gulodice do que por curiosidade, e provou aquela bebida que tanto
tinha ouvido elogiar e que trazia seu nome. Era de um verde dourado e pareceu-lhe forte, mas deliciosa.
Depois de tomá-la, um calor agradável espraiou-se-lhe pelo corpo.
— Bravo! — exclamou Frei Tomás. — Mostrou, pelo menos, que sabe beber.
Fê-la sentar-se em seus joelhos. Seu hálito avinhado, o odor que se desprendia de seu burel
desagradaram a Angélica, mas ela estava entontecida pelo álcool que acabara de ingerir. A mão de Frei
Tomás dava palmadinhas nos joelhos da menina, com um gesto que pretendia ser paternal.
— Ela é tão delicada, esta pequena! Da porta se fez ouvir uma voz:
— Irmão, deixe em paz essa criança!
Um monge encapuzado, com as mãos ocultas nas largas mangas do hábito, estava de pé na soleira,
como um espectro.
— Aí vem o desmancha-prazeres — grunhiu Frei Tomás. — Ninguém lhe pede que se junte a nós, Frei
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João, se a boa mesa não o tenta. Mas ao menos deixe que os outros se divirtam tranqüilamente. Ainda
não se tornou nosso prior.
— Não se trata disso — replicou o recém-vindo, com voz alterada. — Não faço senão aconselhar-lhe a
que deixeis essa menina. É a filha do Barão de Sancé, e não ficaria bem que houvesse de queixar-se dos
seus costumes, em vez de agradecer a sua hospitalidade.
Houve um silêncio feito de assombro e constrangimento.
— Venha, minha filha — disse o monge com voz firme.
Angélica seguiu-o maquinalmente. Atravessaram o pátio. Erguendo os olhos, a menina viu o céu
estrelado, de uma pureza indescritível, sobre o convento.
— Entre aí — disse Frei João, abrindo uma porta de madeira compostigo. — É a minha cela. Pode
descansar em paz até o amanhecer.
Era um quarto muito pequeno, de paredes nuas, nas quais não se viam outros ornamentos além de um
crucifixo de madeira e uma imagem da Virgem. Em um canto existia um catre, simples tábua coberta de
lençóis grosseiros e um cobertor. Um genufle-xório de madeira, com a prateleira cheia de livros de
orações, estava colocado por baixo do crucifixo. Reinava ali agradável frescor, que no inverno devia
transformar-se em frio atroz. A janela, redonda, fechava-se por uma só folha de madeira. Aberta, essa
noite, os eflúvios da floresta, os odores de musgo e de cogumelos penetravam na cela. A esquerda, um
degrau dava acesso a um retiro em que brilhava uma lamparina. Uma estante coberta de per-gaminhos e
pequenos copos ocupava-o quase completamente.
O monge aponton a enxerga:
— Deite-se aí e durma sem temor, minha filha. Eu continuarei meu trabalho.
Entrou no pequeno quarto, sentou-se em um tamborete e inclinou-se sobre os pergaminhos.
Sentada na beira do desconfortável leito, a menina não sentia nenhum desejo de dormir. Jamais havia
imaginado lugares tão estranhos. Pôs-se de pé e foi olhar pela janela. Divisou lá embaixo uma fila de
hortas muito reduzidas, separadas umas das outras por altos muros. Cada monge tinha a sua, aonde ia
diariamente cultivar algumas hortaliças e cavar sua sepultura.
Com passo cauteloso aproximou-se do cubículo em que trabalhava Frei João. A lamparina alumiava
um perfil de homem jovem, semi-oculto em seu capuz. Com mão esmerada copiava uma iluminura
antiga. Seus pincéis, molhados no vermelho, no ouro e no azul distribuídos pelos copinhos, reproduziam
habilmente as flores e monstros com que a arte da Idade Média se havia com-prazido em ilustrar os
missais.
Percebendo a presença da menina, o monge levantou a cabeça e sorriu.
— Não está dormindo?
— Não.
— Como se chama?
— Angélica.
Uma súbita emoção alterou o rosto macerado pelas privações e pelo ascetismo.
— Angélica! Filha dos anjos! — murmurou.
__ Alegro-me muito de que tenha chegado, meu padre. Não gostei daquele frade gordo.
__ De repente — disse Frei João, cujos olhos brilharam de modo estranho —, ouvi uma voz dentro de
mim: "Levante-se, deixe seu agradável trabalho. Vele por minhas ovelhas perdidas..." Saí da cela,
movido por misterioso impulso. Minha filha, por que não está prudentemente sob o teto de seus pais,
como deve fazê-lo uma menina de sua idade e sua condição?
_ Não sei — murmurou Angélica, baixando a cabeça, confusa.
O monge tinha largado os pincéis. Levantou-se e, ocultando as mãos nas largas mangas, aproximou-se
da janela e olhou demora-damente para o céu estrelado.
— Veja — disse a meia voz —, a noite ainda reina sobre a terra. Os aldeões estão dormindo em seus
casebres e os nobres em seus castelos. Eles esquecem suas penas durante o sono. Mas a abadia não
dorme nunca... Existem lugares em que sopra o espírito. Aqui mesmo, numa luta que não tem fim,
sopram o espírito de Deus e o espírito do Mal... Abandonei o mundo muito jovem e vim enterrar-me
entre estas paredes para servir a Deus na oração e no jejum. Aqui encontrei, mesclados com a mais alta
cultura, com a mais pura mística, costumes infames, corruptos. Soldados desertores ou inválidos,
aldeões preguiçosos buscam no claustro, sob o hábito monacal, uma vida negligente e segura, e
introduzem nela seus costumes depravados. A abadia é como um grande navio sacudido pelas
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tempestades e que range por todos os lados. Mas não soçobrará enquanto houver entre seus muros almas
devotas.
Somos, alguns, homens resolvidos a, custe o que custar, levar aqui a vida de penitência e santificação a
que nos havíamos destinado.
Ah! não é coisa fácil! Que não inventa o Demônio para desencaminhar-nos? Quem não viveu nos
claustros nunca se deparou com a face de Satanás. Muito desejaria reinar como dono na casa de Deus!...
E, como se julgasse insuficientes as tentações do desespero ou as que nos envia pelas mulheres que têm
direito de entrar em nosso recinto, vem ele próprio, à noite, bate às nossas portas, desperta-nos, golpeia-
nos sem piedade...
Levantou a manga e mostrou o braço cheio de equimoses.
— Veja — disse queixosamente — o que Satanás fez comigo.
Angélica escutava-o com crescente terror.
"Está louco", pensava.
Mas ainda lhe causava mais horror pensar que poderia não estar. Pressentia a verdade de suas palavras,
e o medo lhe punha em pé os cabelos. Quando terminaria aquela noite angustiosa?
O monge tinha caído de joelhos sobre o solo duro e frio.
— Senhor — dizia —, venha em meu socorro! Compadeça-se da .minha fraqueza! Que se afaste o
Maldito!
Angélica, sentada na beira da enxerga, tinha a boca seca e sentia um pavor que não conseguia definir.
Ácudiu-lhe à mente a expressão "noite maléfica", com que a babá Fantina enfeitava suas histórias.
Havia em torno dela algo insuportável e indefinível, que a sufocava e afligia.
Afinal o som agudo e fraco de um sino elevou-se na noite, rompendo o profundo silêncio do mosteiro.
Frei João ergueu-se. Angélica viu que o suor lhe molhava as têmporas, como se acabasse de travar um
combate físico esgotante.
— Tocam as matinas — disse. — Ainda não amanheceu, mas tenho de ir à capela com meus irmãos.
Fique aqui, se o desejar. Virei buscá-la quando o sol nascer.
— Não, tenho medo — protestou Angélica, que teve ímpeto de se agarrar à batina de seu protetor. —
Não posso ir com o senhor à igreja? Eu também rezarei.
— Se assim o quer, minha filha...
Acrescentou com um sorriso triste:
— Antigamente, ninguém teria pensado em levar uma menina às matinas, mas agora cruzamo-nos em
nossos claustros com rostos tão estranhos que já nada nos surpreende. Por isso a conduzi a minha cela,
onde está mais segura que num celeiro.
E gravemente:
— Quando sair deste recinto, posso pedir-lhe que não conte o que nele viu?
— Prometo-lhe — disse ela, erguendo para ele seus olhos puros.
Saíram para o corredor, de cujas velhas paredes parecia brotar
um vapor úmido ao aproximar-se a alvorada.
— Por que existe um postigo em sua porta? — interrogou Angélica.
— Noutro tempo éramos uma ordem de solitários. Os padres nunca saíam de suas celas a não ser para
ir aos ofícios, e mesmo isso era proibido durante a quaresma. Os irmãos leigos deixavam a comida no
postigo. Agora, menina, cale-se e seja o mais discreta possível. Agradecer-lhe-ei.
Silhuetas encapuzadas passavam perto deles, num rumor de terços e preces murmuradas.
Angélica encolheu-se num canto da capela e esforçou-se por orar, mas os cânticos monótonos e o
cheiro dos círios acesos fizeram-na dormir.
Quando despertou, a capela estava deserta, mas os círios, recém-apagados, fumegavam sob as
abóbadas sombrias.
Deixou o templo quando despontava o sol. Sob sua luz purpúrea, os telhados tinham cor de aleli. As
pombas arrulhavam na horta, perto de um velho santo de pedra. Angélica espreguiçou-se demora-
damente e bocejou. Perguntava a si mesma se não teria sonhado.
Frei Anselmo, cordial mas pachorrento, só atrelou a carriola após a refeição do meio-dia.
— Não se impacientem, meninos — dizia alegremente. — Assim lhes retardo a hora da sova.
Chegaremos de noite à sua aldeia e seus pais estarão com sono...
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"A não ser que andem pelos campos em busca de seus pimpo-lhos", pensava Angélica desanimada.
Parecia-lhe que em algumas horas havia envelhecido.
"Não voltarei a fazer asneiras", dizia a si mesma, com resolução mesclada de melancolia.
Frei Anselmo, em sinal de respeito à sua linhagem, fê-la sentar-se junto de si na boléia, enquanto os
demais se amontoavam no interior do veículo.
— Arre, arre, doce mula! — cantarolava o monge, sacudindo as rédeas.
Mas a besta não se apressava. Já caía a tarde e ainda se encontravam na estrada romana.
— Vou seguir por um atalho — disse o frade. — O pior é terde passar por Vaunou e Chaillé, que são
aldeias protestantes. Queira Deus que já tenha anoitecido e que esses hereges não nos vejam. Meu burel
não é muito estimado por lá.
Apeou-se para puxar a mula num aclive. Angélica, que sentia desejos de esticar as pernas, pôs-se a
caminhar a seu lado. Olhava com assombro em redor, pois jamais havia ido para aquelas bandas, que,
todavia, não estavam nem a uma légua de Monteloup. O caminho flanqueava um montão de fragmentos
de rocha que parecia uma pedreira abandonada.
Examinando o lugar com mais atenção, viu surgirem, com efeito, algumas ruínas. Seus pés desnudos
escorregavam sobre escórias enegrecidas.
— Diacho de pedra-pomes! — disse, abaixando-se para apanhar uma pedra grande e pesada que lhe
ferira o pé.
— É uma velhíssima mina de chumbo dos romanos — explicou o frade. — Figura em nossos antigos
escritos sob o nome de argen-tum, porque, ao que parece, tiravam dela também prata. Procuraram
reiniciar a exploração no século XIII, e os fornos abandonados são quase todos dessa época mais
recente.
A menina escutava-o com interesse.
— E o mineral de onde se extraía o chumbo é, sem dúvida, essalava solidificada, negra e pesada?
Frei Anselmo assumiu um ar doutorai.
— Engana-se! O mineral é o terreno amarelo, em grandes blocos. Dizem que dele também se tira
arsênico. Não apanhe isso! Em compensação, pode tocar nesses cubos brilhantes cor de prata, mas
frágeis, que vou ver se acho.
O frade procurou alguns instantes, e depois chamou Angélica para mostrar-lhe, em cima de um
rochedo, uma espécie de baixos-relevos de rocha negra e de forma geométrica. Raspou alguns deles, e
apareceu uma superfície brilhante cor de prata.
— Mas isso é prata maciça! — observou Angélica com senso prático. — Por que ninguém a apanha?
Deve valer muito, e com ela poder-se-iam pagar pelo menos os impostos...
— Não é tão simples, nobre senhorita. Em primeiro lugar, nem tudo que brilha é prata, e o que está
vendo é, na realidade, outro mineral de chumbo. Contém prata, é verdade, mas a extração é muito
complicada. Somente os espanhóis e os saxões conhecem o processo. Parece que fazem misturas com
carvão e resina e, em seguida, as fundem numa forja a fogo violento. Obtém-se, então, um lingote de
chumbo. Antigamente utilizava-se derretido para lançá-lo sobre os inimigos pelos balestreiros de seu
castelo. Mas extrair a prata do mineral é coisa de sábios alquimistas, e a tanto não vão os meus
conhecimentos.
— O senhor falou, Frei Anselmo, de nosso castelo. Por que "nosso castelo"?
— Céus! Pela simples razão de que este sítio abandonado faz parte de suas terras, embora delas esteja
separado pelas terras do Plessis.
— Meu pai nunca me falou disso.
_ Este terreno é pequeno e muito estreito e nele não dá resultado nenhuma plantação. Que quer que faça
com ele seu pai? __ E esse chumbo e essa prata?...
— Sem dúvida esgotaram-se. Além do mais, tudo o que eu lhe disse me foi contado por um frade
saxão. Tinha a mania das pedras e dos velhos livros de magia. Creio que era meio doido...
A mula, puxando a carriola, seguia sozinha seu caminho e tinha chegado ao alto da ladeira. Angélica e
Frei Anselmo a alcançaram, e retomaram seus lugares. Em breve a escuridão se tornou bastante densa.
— Não acendo a lanterna — disse o frade — para não chamar atenção. Quando passo por estas aldeias,
acredite-me, gostaria mais de ir inteiramente nu do que de levar este capelo às costas e o terço na
cintura. Olhe... não são fachos aquelas luzes lá longe? — per
guntou subitamente, puxando as rédeas.
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Via-se, com efeito, a certa distância, moverem-se muitos pontos luminosos, que aos poucos se
multiplicavam. O vento da noite trazia o som de um canto estranho e triste.
— Que a Virgem nos proteja! — exclamou Frei Anselmo descendo da carriola. — São os huguenotes
de Vauloup que vão enterrar seus mortos. O cortejo vem por ali. É melhor voltarmos.
Segurou o freio da mula e procurou fazê-la dar volta no caminho estreito. Mas o animal recusou-se a
obedecer. O monge enfurecia-se, praguejava. Já não a chamava "doce mula", mas "besta maldita".
Angélica e Nicolau juntaram-se a ele para procurar convencer o animal. O préstito se aproximava. O
cântico soava cada vez mais alto: "O Senhor é nosso amparo em nossas tribulações..."
— Ai de mim! — gemia o frade.
Os primeiros portadores de archotes surgiram na curva do caminho. A súbita claridade iluminou a
carriola, meio atravessada nele.
— Que é aquilo?
— E um súdito do Diabo, um monge...
— E corta-nos o caminho.
— Não basta que sejamos obrigados a enterrar os nossos mortos de noite, como se fossem cães?...
— Quer profaná-los ainda com sua presença.
— Bandido! Libertino! Papista do inferno! Porco!
As primeiras pedras atingiram as tábuas da carriola. Os meninos começaram a chorar.
Angélica precipitou-se com os braços estendidos.
— Detenham-se, detenham-se! São crianças!
Sua aparição, com os cabelos em desalinho, desencadeou as paixões.
— Uma transviada, naturalmente! Uma de suas concubinas!
— E, na carriola, seus bastardos aspergidos de água benta...
— Também foram concebidos sem pecado!
— E por obra do Espírito Santo!
— Vão roubar nossos filhos para os imolar diante de seus ídolos!
— Morte aos bastardos do Demônio!
— Protejamos os nossos filhos!
Rudes camponeses, vestidos de negro, cercavam a carriola. Os da procissão, que não sabiam de que se
tratava, continuavam cantando: "O Senhor é nosso amparo... O Eterno é nossa fortaleza!" Acorria gente
de todos os lados.
Fustigado, moído de pancadas, Frei Anselmo, com agilidade que ninguém teria esperado de corpo tão
avantajado, conseguiu romper o cerco e fugir através do campo. Nicolau, também esbordoa-do a pau,
procurava, mesmo assim, fazer que a mula retornasse. Mãos como garras caíam sobre Angélica.
Retorcendo-se como uma cobra, escapuliu pelo declive lateral. Um dos huguenotes a perseguiu e
alcançou. Era um rapaz muito novo, quase de sua idade, e sua juventude exacerbava, sem dúvida, a
paixão sectária.
Rolaram sobre o pasto, lutando desesperadamente. Angélica estava possuída de um súbito delírio de
raiva. Arranhava, mordia, cravava-lhe todos os dentes na carne, cujo sangue salgado lhe escorria da
língua. Sentiu, por fim, que seu adversário fraquejava e pôde reencetar a fuga.
Diante da carriola havia-se postado um homem alto.
— Detenham-se! Detenham-se, infelizes! — gritava, repetindo o apelo que Angélica fizera. — São
crianças!
— Filhos do Diabo, é o que são! E que fizeram com os nossos? Lançaram-nos das janelas sobre lanças,
na noite de São Bartolomeu!
— São coisas do passado, meus filhos. Acalmem seu braço vingador. Precisamos de paz. Detenham-se,
meus filhos, escutem seu pastor.
Angélica ouviu o chiado da carriola que se punha em marcha, guiada por Nicolau, que tinha conseguido
vencer a obstinação da mula.
Esgueirando-se por trás das sebes, juntou-se a ele na primeira curva.
— Se não fosse o pastor; creio que seríamos todos mortos — murmurou o jovem camponês, rangendo
os dentes.
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Angélica estava cheia de arranhões e procurou pôr um pouco de ordem em seu vestido rasgado e
enlameado. Tanto lhe haviam puxado os cabelos que tinha a impressão de os terem arrancado, e sofria
horrivelmente.
Um pouco adiante, ouviram uma voz sufocada que chamava, e Frei Anselmo saiu dos espinheiros.
Foi preciso descer até a estrada romana. Felizmente, a lua assomara no firmamento. Somente ao
romper da aurora chegaram os meninos a Monteloup. Disseram-lhes que desde a véspera os camponeses
batiam a mata de Nieul. Não tendo encontrado senão a bruxa que estava colhendo plantas em uma
clareira, tinham-na acusado de haver raptado as crianças e a enforcaram, sumariamente, no ramo de um
carvalho.
— Percebe — disse o Barão Armando a sua filha Angélica — as preocupações e desgostos em que me
consumo por causa de vocês todos, e particularmente por sua causa?
Haviam transcorrido vários dias após sua fuga. Angélica, passeando sem rumo por uma vereda
profunda, acabava de encontrar seu pai sentado num tronco de árvore, enquanto seu cavalo pastava não
muito longe.
— Vai mal o negócio dos muares, pai?
— Tudo caminha bem. Acabo de regressar da casa do intendente Molines. Olhe, Angélica, como
conseqüência da sua insensata aventura, Pulquéria convenceu sua mãe e a mim de que é impossível
conservá-la mais tempo no castelo. É preciso levá-la para o convento. Por isso, decidi-me a dar um
passo muito humilhante e que preferiria ter evitado de qualquer maneira. Acabo de ir ver o intendente
para pedir-lhe que me dê o adiantamento que me havia proposto.
Falava em voz baixa e triste, como se alguma coisa se houvesse partido dentro dele, como se lhe
tivesse acontecido algo ainda mais doloroso do que a morte de seu pai ou a ida para o estrangeiro de seu
primogênito.
— Pobre papai! — murmurou Angélica.
— Mas a coisa não é tão simples — continuou o barão. — Se fosse suficiente estender a mão a um
plebeu, o caso já seria bem duro. Mas o que me inquieta é que não consigo compreender a intenção
oculta de Molines. Estabeleceu, para seu novo empréstimo, condições estranhas.
— Que condições, pai?
Contemplou-a pensativo e, estendendo sua mão calosa, afagou-lhe os esplêndidos cabelos de ouro
acastanhado.
— É curioso... Para mim é mais fácil confiar em você do que em sua mãe. Embora seja uma louca
selvagem, parece-me que já é capaz de compreender tudo. Certamente eu já desconfiava que Molines,
nesse negócio dos muares, procurava importante vantagem comercial, mas não compreendia bem por
que se dirigiu a mim, em vez de procurar um simples criador da região. De fato, o que lhe interessa é
minha condição de nobre. Hoje me disse que conta comigo para obter de minhas relações ou de meus
parentes a dispensa total, pelo intendente das Finanças, Fouquet, dos direitos aduaneiros, de barreira e de
pó, para a quarta parte da nossa produção muar, bem como a garantia de poder exportar essa quarta parte
para a Inglaterra ou a Espanha, quando terminar a guerra com esta.
— Mas é ótimo! — respondeu Angélica entusiasmada. — É um negócio muito bem planejado. De um
lado, Molines, que é plebeu mas esperto. De outro lado, o senhor, que é nobre...
— E nada esperto — disse o pai sorrindo.
— Eu ia dizer "inexperiente". Só tem relações e títulos. Mas precisa prosperar. O senhor mesmo disse
outro dia que o envio de muares para o estrangeiro lhe parecia impossível com todos esses tributos que
multiplicam as despesas. E se pedir isenção somente para a quarta parte, o superintendente achará
razoável. E que poderia fazer com os demais?
—. A intendência militar terá o direito de reservar para si a compra, ao preço do ano, no mercado de
Poitiers.
— Tudo foi previsto. Esse Molines é homem que sabe o que faz. É preciso ir ver o Sr. du Plessis e
talvez escrever ao Duque de Ia Trémoille. Mas parece que todas essas grandes personagens tencionam
vir à região dentro em pouco para continuar ocupando-se da sua Fronda.
— Fala-se disso, efetivamente — disse o barão, de mau humor. — No entanto, não se apresse em dar-
me parabéns. Venham ou não os príncipes, não é certo que eu tenha força para obter seu auxílio, E não
lhe contei ainda o mais surpreendente.
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— Do que se trata?
— Molines quer que eu ponha a funcionar a velha mina de chumbo que possuímos nas proximidades de
Vauloup — suspirou o barão com ar pensativo. — As vezes pergunto a mim mesmo se esse homem
estará em seu perfeito juízo, e confesso que não compreendo esses negócios confusos... se realmente são
negócios. Em resumo: pediu-me que solicitasse ao rei a renovação do privilégio que tinham os meus
antepassados de produzir lingotes de chumbo e prata extraídos dessa mina. Conhece a mina abandonada
de Vauloup? — perguntou Armando de Sancé, notando que sua filha estava desatenta. Angélica
respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.
— Gostaria de saber o que esse endiabrado espera extrair dessas velhas pedras. Porque, naturalmente, o
reaparelhamento da mina será feito em meu nome, mas ele é quem pagará. Um acordo se creto entre nós
dois estipulará que ele terá direito de arrendamento por dez anos, ficando a seu cargo minhas obrigações
de proprietário do solo e de exploração do mineral. Eu apenas terei de obter do superintendente a mesma
isenção de impostos para a quarta parte da futura produção, bem como as mesmas garantias de
exportação. Tudo isso me parece um tanto complicado — concluiu o barão, ao mesmo tempo que se
levantava.
O gesto fez tilintar em sua bolsa os escudos que lhe acabara de entregar Molines, e aquele som
agradável relaxou-lhe os nervos.
Chamou o cavalo e fitou sobre a pensativa Angélica um olhar a que procurou imprimir severidade.
— Trate de esquecer o que lhe contei e cuide de seu enxoval. Desta vez, está resolvido, minha filha.
Você vai para o convento.
Angélica preparou o enxoval. Hortênsia e Madelon também partiriam. Raimundo e Gontran as
acompanhariam e, após deixá-las no convento das ursulinas, iriam para o dos padres jesuítas de Poi-
tiers, educadores de quem se contavam maravilhas. Falou-se até de incluir nessa emigração o pequeno
Dionísio, que não passava dos nove anos. Mas a ama protestou. Depois de a terem feito gemer sob a
carga de dez crianças, agora queriam tirar-lhe "todas". Horrorizavam-na, dizia, aquelas maneiras
extremadas. Em vista disso, Dionísio ficou em casa. Com ele e ainda Maria Inês, Alberto e o caçula de
dois anos, a quem chamavam Bebê, haveria com que ocupar os "lazeres" de Fantina Lozier.
Poucos dias antes da partida, um incidente quase modificava o curso do destino de Angélica.
Certa manhã de setembro, o Sr. de Sancé voltou muito azafa-mado do Castelo do Plessis.
— Angélica! — exclamou ao entrar na sala de jantar, onde a família reunida o esperava para sentar-se
à mesa. — Você está aí, Angélica?
— Estou, meu pai.
Lançou um olhar perscrutador a sua filha, que nos últimos meses continuara crescendo e agora tinha as
mãos limpas e os cabelos bem penteados. Todos concordavam em dizer que Angélica estava criando
juízo.
— Desta vez a coisa vai — murmurou. E dirigindo-se a sua mulher: — Imagine que toda a tribo do
Plessis, marquês, marquesa, filho, pajens, criados, cães, acaba de chegar a seus domínios. Têm um
hóspede ilustre, o Príncipe de Conde, com todo o seu séquito. Caí no meio deles e me senti deslocado.
Mas meu primo se mostrou amável. Fez-me perguntas, pediu-me notícias suas, e sabe o que me
solicitou? Que levasse Angélica para substituir uma das donzelas de honor da marquesa. Esta teve de
deixar em Paris quase todas as meninas que a penteiam, a divertem e tocam alaú-de para distraí-la. A
chegada do Príncipe de Conde a alvoroça. Necessita, assegura, de algumas camareiras graciosas para
ajudá-la.
— E por que não eu? — exclamou Hortênsia, escandalizada.
— Porque ele disse "graciosas" — respondeu seu pai sem rodeios.
— O marquês me disse que tenho muito espírito.
— Mas a marquesa quer ter em seu redor carinhas bonitas.
— Oh, é demais! — gritou Hortênsia, precipitando-se para sua irmã com as garras à mostra.
Mas Angélica previra o ataque e se esquivou com presteza. Com o coração aos pulos, subiu para o
quarto grande, que agora partilhava somente com Madelon. Pela janela chamou um dos criadi-nhos e
ordenou-lhe que trouxesse um balde de água e uma tina.
Lavou-se com esmero e escovou longamente seus formosos cabelos, que trazia sobre os ombros como
uma capelina sedosa. Pul-quéria entrou trazendo-lhe o mais belo vestido que lhe tinham feito para o seu
ingresso no convento. Angélica admirava aquele vestido, embora fosse de uma cor cinzenta bastante
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fosca. Mas a fazenda era nova, comprada especialmente para a ocasião na casa de um importante
negociante de tecidos de Niort, e uma golinha branca o adornava. Era seu primeiro vestido comprido.
Envergou-o com um frêmito de prazer. A tia juntava as mãos enternecida.
— Angélica, minha menina, qualquer um diria que você já é uma jovem. E se levantássemos o seu
cabelo?
Mas Angélica recusou-se. Seu instinto feminino aconselhava-lhe que não diminuísse o esplendor de
seu único enfeite.
Montou numa bonita mula baia, que seu pai havia mandado ar-rear para ela, e, em companhia dele,
tomou o caminho do Castelo do Plessis!
O castelo acordara de seu sono encantado. Quando o barão e sua filha, após deixarem suas montarias
em casa do administrador Mo-lines, subiam a alameda principal, ondas de música vieram ao seu
encontro. Grandes e pequenos cães de caça brincavam sobre a rel-va. Senhores de cabelos anelados e
senhoras de vestidos cintilantes percorriam as aléias. Alguns olharam espantados o fidalgo vestido de
grossa lã escura e aquela adolescente em traje de pensionista.
— Ridícula, mas bonita — disse uma das damas, abanando-se com o leque.
Angélica perguntou a si mesma se seria dela que falavam. Por que a chamavam ridícula? Olhou com
mais atenção as luxuosas roupas, de cores vivas, guarnecidas de rendas, e começou a achar que seu
vestido cinza não era apropriado para a ocasião.
O Barão Armando não partilhava o mal-estar de sua filha. Estava ansioso pela entrevista que pensava
em solicitar ao Marquês du Plessis. Obter a isenção total de direitos para a quarta parte de uma produção
muar e de uma mina de chumbo poderia ser coisa extremamente fácil para um nobre de alta linhagem,
como de fato o era o atual Barão de Ridoué de Sancé de Monteloup. Mas o pobre gentil-homem percebia
que, vivendo longe da corte, ficara tão desazado como um camponês, entre aquelas personagens cujas
cabeleiras empoadas, hálito perfumado e exclamações papa-gaiais o perturbavam. Acreditava recordar
que nos tempos de Luís XIII fazia-se gala de mais simplicidade e mais rudeza. Não foi Luís XIII quem,
escandalizado com o decote excessivo de uma jovem beldade do Poitiers, cuspiu sem cerimônia naquele
ninho indiscreto... e tentador?...
Testemunha, em seu tempo, daquele impulso régio, Armando de Sancé o evocava com saudade,
enquanto, seguido de Angélica, abria passagem entre a multidão enfitada.
Músicos sobre um pequeno estrado tocavam instrumentos de sons encantadores: sanfonas, alaúdes,
flautas, oboés. Em um salão repleto de espelhos, Angélica viu jovens que dançavam. Perguntou a si
mesma se seu primo Filipe estaria entre eles.
Nesse ínterim, Armando de Sancé, havendo atravessado os salões, inclinava-se, tirando seu velho
chapéu de feltro adornado de modesta pluma. Angélica se afligia. "Em nossa pobreza", pensava,
"somente a arrogância nos assenta." Em lugar de curvar-se na reverência que Pulquéria lhe havia feito
ensaiar três vezes, parou tesa como um boneco de madeira, olhando firme para a frente. Os rostos que a
cercavam mantinham um ar sério, mas ela sabia que todos os circunstantes morriam de desejo de rir. Um
silêncio entrecortado de risotas sufocadas produziu-se bruscamente quando o criado anunciou:
— O Sr. Barão de Ridoué de Sancé de Monteloup.
O rosto da Marquesa du Plessis enrubesceu por trás de seu leque e seus olhos brilharam de contida
hilaridade. O Marquês du Plessis procurou salvar a situação, adiantando-se afavelmente.
— Querido primo — exclamou —, lisonjeia-nos ter vindo tão depressa e trazendo-nos vossa
encantadora filha. Angélica, você está ainda mais bonita que da última vez que a vi. Não é verdade? Não
parece um anjo? — perguntou, voltando-se para sua mulher.
— Realmente — concordou a marquesa, que tinha recuperado a serenidade. — Com outro vestido
estará divina. Sente-se neste tamborete, querida, para que melhor possamos observá-la.
— Meu primo — disse Armando de Sancé, cuja voz áspera soou estranhamente naquele salão precioso
—, desejaria falar-lhe sem tardança de assuntos importantes.
O marquês ergueu as sobrancelhas, surpreso.
— Deveras? Estou pronto a ouvi-lo.
— Lamento-o, mas são coisas de que só podemos tratar em particular.
O Sr. du Plessis dirigiu aos presentes um olhar a um tempo resignado e trocista.
— Está bem, está bem, meu primo. Vamos ao meu escritório. Senhoras, desculpem-nos. Até já...
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Angélica, em seu tamborete, era alvo dos olhares de um grupo de curiosos. A penosa emoção que a
tinha colhido esvaneceu-se um pouco. Ela agora distinguia todos os semblantes que a rodeavam. A
maioria deles eram desconhecidos, mas, perto da marquesa, encontrava-se uma mulher muito formosa,
que reconheceu pelo colo branco e nacarado.
"A Sra. de Richeville", pensou.
O vestido recamado de ouro da condessa e o plastrão ornado de diamantes faziam-na perceber como
era feio o seu vestido cinza. Todas aauelas damas cintilavam da cabeça aos pés. Carregavam na cintura
estranhos berenguendéns: espelhinhos, pentes de tartaruga, relógios e caixinhas com amêndoas
açucaradas. Nunca poderia Angélica vestir-se daquela maneira. Nunca poderia olhar os outros com
tanta sobranceria. Nunca seria capaz de conversar com aquela voz alta e afetada de pessoa que parece
estar permanentemente chupando confeitos.
— Querida — dizia uma —, ela tem os cabelos sedutores, mas nunca receberam qualquer trato.
— Tem pouco peito para quinze anos.
— Mas, querida, tem apenas treze!
— Quer que lhe diga o que penso, Henriqueta? É muito tarde para burilá-la.
"Sou uma mula que querem comprar?", perguntava Angélica a si própria, mais estupefata que
ofendida.
— Que querem vocês? — exclamou a Sra. de Richeville. — Ela tem os olhos verdes, e os olhos verdes
trazem má sorte, como as esmeraldas.
— É uma cor rara — observou uma delas.
— Mas sem encanto. Veja que expressão dura tem esta garota. Não, na verdade não gosto de olhos
verdes.
"Vão tirar-me até meus únicos bens, meus olhos e meus cabelos?", pensou a adolescente.
— Concordo, senhora — disse bruscamente em voz alta. — Não duvido que os olhos azuis do abade de
Nieul tenham mais doçura... e lhe dêem boa sorte — acrescentou em voz mais baixa.
Houve um silêncio mortal. Estralejaram algumas risadas, que se extinguiram logo. As damas olharam
em torno, espantadas, como se lhes parecesse impossível ter ouvido tais palavras pronunciadas por
aquela menina impassível.
Uma cor púrpura espraiou-se pelo rosto da Condessa de Richeville e foi-lhe descendo até o peito.
— Eu a estou reconhecendo! — exclamou. Depois arrependeu-se.
Todos olhavam Angélica com assombro. A Marquesa du Ples-
sis, que tinha uma língua viperina, voltou a ocultar seu riso por trás do leque. Mas agora era de sua
vizinha que tentava esconder a hilaridade.
— Filipe, Filipe! — chamou, para sair da entalada. — Onde está meu filho? Sr de Barre, qi er ter a
bondade de fazer vir o coronel?
E, quando se aproximoi o jovem coronel de dezesseis anos, sua mãe lhe disse:
— Filipe, aqui está sua prima de Sancé. Leve-a para dançar. A companhia dos jovens distraí-la-á
melhor do que a nossa.
Sem esperar, Angélica se pusera de pé. Sentia pular o coração. O jovem olhava para sua mãe com visível
indignação. "Como", parecia dizer, "se atreve a jogar-me nos braços uma pequena tão mal vestida?"
Mas logo compreendeu, pela expressão dos circunstantes, que alguma coisa anormal havia ocorrido e,
estendendo a mão a Angélica, murmurou com desdém:
— Venha, minha prima.
Angélica levou à palma aberta seus dedos miúdos, que ignorava serem tão lindos. Em silêncio, o
jovem a conduziu até a entrada de uma galeria, onde os pajens e as pessoas jovens tinham o direito de se
divertir à sua maneira.
— Abram alas, abram alas! — gritou subitamente. — Amigos, apresento-lhes minha prima, a Baronesa
do Triste Vestido!
Houve risadas e todos se precipitaram para os dois. Os pajens usavam curiosos calçôezinhos
abalonados que desciam à altura das coxas e, com suas longas e magras pernas de adolescentes, empo-
leirados em tacões altos, pareciam aves pernaltas.
"Afinal de contas", pensava Angélica, "não estou mais ridícula com meu 'triste vestido' do que eles
com essas morangas nas cadeiras."
Teria sacrificado seu amor-próprio para ficar perto de Filipe. Mas um dos jovens perguntou-lhe:
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— Sabe dançar, senhorita?
— Um pouco.
— De verdade? Que danças?
— A bourrée, o rigodão, a ronda...
— Ah, ah, ah! — riram estrondosamente os jovens. — Filipe, que passarinho nos trouxe! Vamos,
vamos, senhores, tiremos a sorte! Quem vai dançar com a camponesa? Onde estão os apreciadores da
bourrée? Puf! Puf! Puf!
Num gesto brusco, Angélica retirou sua mão da de Filipe e fugiu.
Atravessou os grandes salões repletos de criados e senhores, o vestíbulo mosaicado, onde dormiam os
cães sobre almofadas de veludo. Procurava seu pai, e, principalmente, não queria chorar. Tudo aquilo
não valia a pena. Seria uma recordação que teria de apagar da memória, como um sonho um tanto louco
e grotesco. Não fica bem para a codorniz sair de seu mato. Por haver obedecido com um pouco de boa
vontade aos ensinamentos da tia Pulqueria, Angélica dizia a si mesma que tinha recebido o justo castigo
Ja vaidade inspirada pelo convite lisonjeiro da Marquesa du Plessis.
Ouviu, finalmente, vinda de uma salinha afastada, a voz um tanto aguda do marquês.
_- Mas não, de maneira alguma! Não está no caminho certo, meu pobre amigo — dizia em
aflitivo crescendo. — Engana-se pensando que nos é fácil a nós, nobres sobrecarregados de
despesas, obter isenções. Além disso, nem eu nem o Príncipe de Conde estamos capacitados para
concedê-la a você.
— Peço-lhe unicamente que seja meu advogado ante o superintendente de Finanças, o Sr. de
Trémant, que você conhece pessoalmente. O negócio não deixa de ter interesse para ele. Isentar-
me-ia de impostos e direitos de trânsito exclusivamente sobre o que fosse do Poitou ao oceano. Tal
isenção, aliás, só se aplicaria à quarta parte de minha produção de muares e de chumbo. Em
compensação, a intendência militar do rei poderá reservar-se a compra do restante ao preço
corrente, e do mesmo modo o Tesouro Real terá exclusividade semelhante sobre o chumbo e a
prata pela tarifa oficial. Não é mau para o Estado contar com alguns produtores certos de matérias
diversas no país, ao invés de comprá-las no estrangeiro. Por exemplo, para puxar os canhões tenho
belíssimos animais, impetuosos e resistentes.
— Suas palavras cheiram a estéreo e suor — replicou o marquês, tapando o nariz. — Pergunto-me
até que ponto rebaixa sua condição de gentil-homem, lançando-se a um empreendimento que se
parece muito, permita que lhe diga, a um comércio.
— Comércio ou não, preciso viver — retrucou Armando de San-cé, com uma persistência que
reconfortou Angélica.
— E eu — exclamou o marquês erguendo os braços —, pensa que não tenho as minhas
dificuldades? Pois bem, saiba que até o último de meus dias não me entregarei a nenhum trabalho
plebeu que possa prejudicar minha qualidade de gentil-homem.
— Meu primo, seus rendimentos não são comparáveis aos nossos. De fato, vivo em estado de
mendicância relativamente ao rei, que me nega auxílio, em relação aos usurários de Niort, que me
devoram.
— Já sei, já sei, meu bom Armando. Mas você já se perguntou como é que eu, cortesão e com dois
cargos reais importantes, posso equilibrar meu orçamento? Tenho certeza de que não! Pois bem,
saiba que minhas despesas ultrapassam inevitavelmente minhas rendas. É certo que, contando com
as rendas do meu domínio do P!es. sis e as de minha mulher na Touraine, meu cargo de oficial-
camareiro do rei — umas quarenta mil libras — e de mestre-de-campo-de-brigada do Poitou, tenho
uma renda média bruta de cento e sessenta mil libras...
— Eu — disse o barão — me contentaria com a décima parte.
— Um instante, meu primo. Tenho cento e sessenta mil libras de renda. Mas saiba que as despesas de
minha mulher, o regimento de meu filho, meu palácio em Paris, meu pavilhão de Fontai-nebleau, meus
deslocamentos com a corte, os juros que tenho de pagar por empréstimos diversos, as recepções, as
roupas, as carruagens e cavalos, a criadagem, etc, somam cerca de trezentas mil libras de despesas.
— Quer dizer que lhe faltariam mais de cento e quarenta mil libras por ano?
— Você diz apenas a verdade, meu primo. E se me permiti fazer-lhe esta enfadonha exposição, foi
para que compreendesse meu ponto de vista quando lhe digo que no momento não posso falar ao Sr. de
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Trémant, superintendente das Finanças.
— Mas você o conhece.
— Conheço-o, mas já não tenho relações com ele. Estou cansado de dizer-lhe que o Sr. de Trémant
está a serviço do rei e da regente, e que é mesmo ardoroso partidário de Mazarino.
— Pois bem, precisamente...
— Precisamente por esta razão não nos encontramos. Não sabe que o Sr. Príncipe de Conde, ao qual
sou fiel, está brigado com a corte?
— Como havia de sabê-lo? — disse confuso Armando de Sancé. — Faz poucos meses que os vi, e
naquela época a regente não tinha melhor servidor que o senhor príncipe.
— Ah, desde então correu muita água! — suspirou o Marquês du Plessis. — Não posso contar-lhe a
história detalhadamente. Saiba somente que, se a rainha, seus dois filhos e esse diabo vermelho, o
cardeal, puderam voltar ao Louvre, em Paris, devem-no ao Sr. de Conde. Em recompensa, tratam esse
grande homem de maneira indigna. Há várias semanas que houve a ruptura. Ao príncipe pareceram
interessantes algumas propostas da Espanha, e veio a minha casa para estudá-las.
— Propostas espanholas? — repetiu o Barão Armando.
— Isso mesmo. Entre nós, e pela nossa honra de gentis-homens, imagine que o Rei Filipe IV chega a
oferecer ao nosso grande general bem como ao Sr. de Turenne, um exército de dez mil homens a cada
um.
__ Para fazerem o que? .
___ para submeterem a regente e, principalmente, esse cardeal ladrão! Graças aos exércitos espanhóis
comandados pelo Sr. de Condé este entraria em Paris, e Gastào d'Orléans, isto é, Monsieu, irmão do
finado Rei Luís XIII, seria proclamado rei. A monarquia estaria salva e finalmente livre de mulheres, de
crianças e de e um estrangeiro que a desonra. Com todos esses belos projetos, pergunto-lhe: que devo
eu fazer? Para manter o nível de vida que acabo de lhe expor, não posso dedicar-me a uma causa
perdida. Pois bem, o povo, o Parlamento, a corte, todo mundo odeia Ma-zarino. A rainha continua a se
agarrar a ele e não cederá nunca. É indescritível a existência que há dois anos levam a corte e o pe-
queno rei. Só pode ser comparada com a dos ciganos do Oriente: fugas, retornos, disputas, guerras, etc.
Assim é demais. A causa de Luís XIV está perdida. Acrescento-lhe que a filha de Gastão d'Orléans, a
Srta. de Montpensier — essa ilustre moça de verbo inflamado —, é uma ferrenha partidária da Fronda.
Já lutou ao lado dos rebeldes, há um ano. Só deseja combater de novo. Minha mulher adora-a, e ela lhe
retribui. Mas desta vez não consentirei que Alice se comprometa com outro partido que não o meu.
Cin-gir o torso com uma faixa azul e prender no chapéu uma espiga de trigo não seria grave se a
separação entre esposos não acarretasse outros transtornos. Ora, Alice, por sua natureza, é francamente
do "contra". Contra as ligas e a favor dos laços de seda; contra a franja de cabelos e a favor da fronte
descoberta, etc. É uma original. Agora está contra Ana d'Áustria, a regente, porque esta lhe observou
que as pastilhas que ela usava para o trato da boca lhe recordavam certo purgante. Não haverá força
humana que faça Alice voltar à corte, onde acha que se aborrece entre as devoções . da rainha e as
traquinagens de seus pequenos príncipes. Seguirei, pois, minha mulher, já que minha mulher não quer
seguir-me. Tenho o fraco de achar nela certa graça e algumas habilidades amorosas que me agradam...
— Mas... mas não quer dizer que o Sr. de Turenne, também ele...? — balbuciou Armando de Sancé,
que estava a ponto de desfalecer.
— Oh! O Sr. de Turenne! O Sr. de Turenne! É como todo mundo... Não gosta que se menosprezem os
seus serviços. Pediu Sedan para sua família. Recusaram-lha. Aborreceu-se, como é natural.
Dir-se-ia até que já aceitou as propostas do rei da Espanha. O Sr. de Conde é menos apressado. Aguarda
primeiro as notícias de sua irmã de Longueville, que foi com a Princesa de Conde sublevar a
Normandia. Aqui, é preciso que eu lhe diga, entra a Duquesa de Beaufort, cujos encantos não lhe são
indiferentes... Desta vez, nosso grande herói se mostra menos ansioso de partir para a guerra. Desculpa-
lo-á quando tiver encontrado a referida deusa... Tem uma pele, meu amigo!...
Angélica, que se encostara ao tapiz de uma parede, viu de longe que seu pai puxava seu enorme lenço
e enxugava a fronte.
"Nada conseguirá", pensou, com o coração apertado. "Que lhes importam nossas histórias de muares e
de chumbo argentífero?"
Um angústia intolerável constringia-lhe a garganta. Afastou-se e desceu para o parque, sobre o qual já
começavam a descer as sombras. Do fundo dos salões continuava a chegar o som dos violinos e das
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guitarras. Os lacaios, em filas, traziam candelabros. Outros, trepados em escabelos, acendiam as velas de
castiçais fixados às paredes, cujos espelhos lhes refletiam as luzes.
"Quando penso", dizia Angélica consigo mesma, caminhando devagarinho pelas alamedas, " que meu
pobre pai sentia escrúpulos por algumas bestas que Molines queria vender à Espanha em tempo de
guerra! Traição?... Bem indiferente a todos esses príncipes, que, entretanto, só vivem graças à
monarquia. E possível que pensem realmente em fazer guerra ao rei?"
Havia contornado o castelo e agora se achava ao pé da parede que tantas vezes havia escalado para
contemplar os tesouros do aposento encantado. O lugar estava deserto, pois os pares que não fugiam da
bruma crepuscular, muito fresca naquele anoitecer de outono, permaneciam de preferência na relva da
frente.
Um instinto familiar fê-la tirar os sapatos, e, com agilidade, a despeito de sua saia comprida, subiu até
a cornija do primeiro andar. Já tinha anoitecido completamente. Ninguém que passasse por ali poderia
vê-la, encolhida, além do mais, à sombra de uma toninha que ornava a ala direita.
A janela estava aberta e Angélica inclinou-se para a frente. Adivinhava que, pela primeira vez, o
aposento estaria habitado, porque a luz dourada de uma lamparina de azeite o iluminava. O mistério dos
belos móveis e da tapeçaria acentuava-se ainda mais. Via-se luzirem como cristais de neve os nácares de
uma pequena secretária de ébano.
De repente, olhando em direção do alto leito adamascado, Angélica teve a impressão de que o quadro
do deus e da deusa se animava.
Dois corpos brancos e nus estreitavam-se em meio à desordem Jos lençóis rejeitados, cujas rendas se
arrastavam no chão. Eles se c0nfundiam de tal maneira que ela acreditou, à primeira vista, estar
assistindo a um combate de adolescentes, a uma luta entre pa-jens batalhadores e impudicos, antes de
distinguir que ali havia um homem e uma mulher.
A cabeleira escura e anelada do participante masculino cobria quase inteiramente o rosto da mulher,
que seu longo corpo parecia querer esmagar inteiramente. Entretanto, o homem se movia com doçura,
ritmadamente, animado de uma espécie de tenacidade voluptuosa, e os reflexos da lamparina revelavam
o jogo de seus músculos magníficos.
Da mulher, Angélica não percebia senão detalhes meio apagados na penumbra: uma perna delgada,
erguida contra o corpo masculino, um seio ressaltando de entre os braços que a envolviam, uma mão
delicada e branca, que ia e vinha, qual uma borboleta, acariciando maquinalmente a ilharga do parceiro,
para se afastar subitamente, a palma distendida, pendente da beira da cama, enquanto um profundo
gemido se perdia entre as cortinas de seda.
Durante os momentos de silêncio, Angélica ouvia duas respirações a se confundirem, cada vez mais
aceleradas, semelhando o vento de uma tempestade. Depois um súbito repouso os aquietava. Novamente
os queixumes da mulher ascendiam na sombra, enquanto sua mão tombava vencida sobre o alvo lençol,
como uma flor cortada.
Angélica achava-se a um só tempo extremamente perturbada e vagamente maravilhada. Por haver
muitas vezes contemplado o quadro do Olimpo, apreciado sua frescura e seu arrojo prenhes de
majestade, teve finalmente uma impressão de beleza que se desprendia daquela cena e que ela, como
camponesa sagaz que era, compreendia em todo o seu sentido.
"E isso então o amor!", disse ela consigo mesma, enquanto a percorria um frêmito de medo e de
prazer.
Separaram-se finalmente os dois amantes. Repousavam agora um ao lado do outro, como pálidos
mortos na obscuridade de uma cripta. Seus hálitos se enlanguesciam numa beatitude sonolenta. Nenhum
dos dois falava. Foi a mulher quem se moveu primeiro.
Esticando o braço muito branco, apanhou sobre o consolo, junto ao leito, um frasco em que brilhava o
rubi de um vinho escuro. Teve um pequeno riso.
— Oh! querido, eu estou exausta — murmurou ela. — É preciso que repartamos entre nós este vinho
do Roussillon que seu previdente criado colocou aqui. Quer um copo?
O homem, do fundo da alcova, respondeu com um grunhido que podia ser tomado por assentimento.
A dama, cujas forças pareciam restauradas, encheu dois copos, estendeu um a seu amante, e bebeu o
outro com alegria gulosa. Repentinamente, Angélica pensou que adoraria estar lá, naquele leito, assim
inteiramente nua e estirada, saboreando o vinho quente do Midi.
"E o chaudaut dos príncipes", pensou.
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Não percebia o incômodo de sua posição. Agora ela enxergava completamente a mulher, admirava
seus seios redondos, acentuados por um bico arroxeado, seu ventre flexível, suas pernas longas, que ela
havia cruzado.
Sobre a bandeja havia frutas. A mulher escolheu um pêssego e mordeu-o gostosamente.
— Ao diabo os importunos! — exclamou de repente o homem, saltando do leito por cima da
companheira.
Angélica, que não tinha ouvido baterem à porta do quarto, julgou-se descoberta e agachou-se a um
canto da torrinha, mais morta que viva.
Quando olhou de novo, viu que o deus se havia envolvido em um amplo chambre escuro, atado por
um cordão de prata. Seu rosto, de jovem de uns trinta anos, era menos belo que seu corpo, pois tinha o
nariz comprido e olhos duros, mas brilhantes, que lhe davam certa aparência de ave de rapina.
— Estou em companhia da Duquesa de Beaufort — gritou, voltado para a porta.
CAPITULO IX
O cofrezinho e a grande conspiração
Apesar dessa advertência, um criado apareceu no umbral.
— Perdoe-me, Vossa Alteza. Acaba de apresentar-se no castelo um monge que insiste em ser recebido
pelo Sr. de Conde. O Marquês du Plessis achou conveniente mandá-lo imediatamente à presença de
Vossa Alteza.
— Pois que entre! — resmungou o príncipe, depois de pensar um instante.
Aproximou-se da secretária de ébano que se achava perto da janela e abriu umas gavetas.
O criado introduziu na alcova a outra personagem: um monge encapuzado que se aproximou,
inclinando-se várias vezes com notável flexibilidade.
Ao erguer-se, mostrou um rosto moreno, onde cintilavam grandes olhos negros e lânguidos.
A chegada do eclesiástico não pareceu constranger de maneira alguma a mulher estendida sobre o
leito. Ela continuou mordendo despreocupadamente suas belas frutas. Apenas cobriu-se com um xale, no
lugar onde começam as pernas.
O homem de cabelo escuro, inclinado sobre a secretária, tirava dela grandes envelopes chancelados de
vermelho.
— Meu padre — disse sem se voltar —, foi o Sr. Fouquet quem o enviou?
— Ele mesmo, monseigneur.
O monge acrescentou uma frase num idioma cantante, que Angélica supôs ser italiano. Quando se
exprimia em francês, sua pronúncia ceceava um pouco e tinha qualquer coisa de infantil, que não
deixava de ter encanto.
— Seria inútil dar a senha, Signor Exili — disse o Príncipe de Conde —; eu o teria reconhecido por
seus sinais particulares e por essa pinta azul que tem no canto do olho. E então o mais hábi] artista da
Europa na difícil e sutil ciência dos venenos?
— Vossa Alteza me honra. Não fiz mais do que aperfeiçoar algumas receitas herdadas de meus
antepassados florentinos.
— Os italianos são artistas em todos os gêneros! — exclamou Conde.
Soltou uma gargalhada semelhante ao relinchar de um cavalo, e depois sua fisionomia subitamente
readquiriu a expressão dura.
— Traz a coisa convosco?
— Ei-la aqui.
Tirou das largas mangas do hábito um cofrezinho cinzelado. Ele mesmo o abriu, comprimindo uma
das molduras de madeira preciosa.
— Veja, monseigneur, basta introduzir a unha na base do pescoço desta pequena personagem que traz
uma pomba sobre o punho.
A tampa se havia fechado de novo. Sobre uma pequena almofa-da de cetim cintilava um frasquinho de
vidro cheio de um líquido esmeralda. O Príncipe de Conde tomou-o com cautela e o mirou contra a luz.
— Vitríolo romano — disse calmamente o Padre Exili. — E uma composição de efeito lento, mas
seguro. Preferi-a ao sublimado corrosivo, que pode provocar a morte em algumas horas. Segundo as
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indicações que recebi do Sr. Fouquet, acreditei compreender que nem o senhor, monseigneur, nem seus
amigos quereriam que se provocassem suspeitas demasiado certas entre as pessoas que rodeiam a
criatura visada. Ela será acometida de languidez, resistirá talvez uma semana, mas sua doença mortal
não terá senão a aparência de uma inflamação intestinal causada por um prato de caça deteriorada ou
qualquer outro alimento não muito fresco. Será mesmo conveniente fazer servir à mesa dessa pessoa
mexilhões, ostras, ou outros mariscos cujos efeitos por vezes são perigosos. Fazê-los responsáveis por
uma morte tão súbita será brincadeira de criança.
— Agradeço seus excelentes conselhos, meu padre.
Conde continuava a fixar o frasco verde-pálido, e seus olhos tinham um brilho odiento. Angélica
experimentou uma aguda decepção: o deus do amor descido sobre a terra perdera sua beleza C lhe metia
medo. _ Tome cuidado, monseigneur — continuou o Padre Exili —, este veneno deve ser ministrado
com infinitas precauções. Para concentrá-lo, eu próprio fui obrigado a usar uma máscara de vidro. Uma
gota caída sobre sua pele poderia desenvolver um mal niie não cessaria de corroer um de seus membros.
Se não lhe for possível derramar o senhor mesmo este líquido nos alimentos da pessoa, recomende ao
criado a quem encarregar da tarefa que proceda com cautela e habilidade.
— Meu criado que o introduziu é homem de toda a confiança, por uma manobra pela qual me felicito,
a pessoa em questão não o conhece. Creio que será fácil colocá-lo junto dela.
O príncipe lançou um olhar zombeteiro ao monge, a quem dominava com sua alta estatura.
— Suponho que uma vida consagrada a tal arte não o tornou muito escrupuloso, Signor Exili. E que
pensaria se eu lhe dissesse que este veneno se destina a um de seus compatriotas, um italiano dos
Abruzos?
Um sorriso distendeu os lábios flexíveis de Exili, que se inclinou de novo.
— Considero compatriotas apenas aqueles que dão aos meus ser viços o justo valor, monseigneur. E,
no momento, o Sr. Fouquet, do Parlamento de Paris, mostra-se mais generoso para comigo do que certo
italiano dos Abruzos que também conheço.
Estalou de novo o riso cavalar de Conde.
— Bravo, bravíssimo, signorl Gosto de ter comigo pessoas da sua espécie.
Com extrema cautela o príncipe recolocou o frasco sobre o seu coxim acetinado. Houve um breve
silêncio. Os olhos do Signor Exili contemplavam sua obra com uma satisfação que não estava isenta de
vaidade.
— Acrescento, monseigneur, que este licor tem o mérito de ser inodoro e quase sem sabor. Não altera
os alimentos aos quais é misturado, e quando muito a pessoa, supondo-se que preste muita atenção ao
que come, poderá culpar seu cozinheiro de ter sido um tanto exagerado nos temperos.
—" O senhor é um homem precioso — repetiu o príncipe, que estava agora pensativo.
Um tanto nervosamente empilhou sobre a prateleira do móvel os envelopes chancelados.
Eis o que devo, em troca, entregar-lhe para o Sr. Fouquet. Esta sobrecarta contém a declaração do
Marquês d'Hocquincourt. Aqui estão as do Sr. de Charost, do Sr. du Plessis, da Sra. du Plesiss, da Sra.
de Richevillie, da Duquesa de Beaufort, da Sra. de LonguevilJe. Como vê, as damas são menos
preguiçosas... ou menos escrupuiosas que os cavalheiros. Faltam-me ainda as cartas do Sr. de Maupéou,
do Marquês de Créqui e de alguns outros...
— E também a sua, monseigneur.
— Tem razão. Acabo, aliás, de terminá-la, mas ainda não assinei.
— Terá Vossa Alteza a extrema gentileza de ler-me seu texto, a fim de que eu possa verificar, ponto
por ponto, as suas disposições? O Sr. Fouquet tem como essencial que não seja esquecido nenhum
termo.
— Como queira — disse o príncipe, encolhendo levemente os ombros.
Pegou a folha e leu em voz alta;
"Eu, Luís II, Príncipe de Conde, assumo perante Monseigneur Fouquet o compromisso de jamais
subordinar-me a outra pessoa que não ele, de não obedecer a nenhuma outra pessoa, sem exceção, e de
lhe entregar minhas praças, fortificaçòes e outras obras de defesa, todas as vezes que ele o ordenar.
"Para garantia do quê, dou-lhe a presente declaração escrita e assinada de meu próprio punho, por
minha própria vontade, sem que ele o tenha desejado, tendo a bondade de confiar em minha palavra.
"Feita no Plessis-Bellière, a 20 de setembro de 1649".
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— Assine, monseigneur — disse o Padre Exili, cujos olhos brilhavam na sombra do cabelo.
Rapidamente e como com pressa de terminar, Conde tomou de sobre a secretária uma pena de ganso,
que aparou. Enquanto ele assinava a carta, o monge acendeu um pequeno aquecedor de prata dourada.
Conde derreteu o lacre e sinetou a missiva.
— Todas as outras declarações estão feitas segundo este modelo e assinadas — concluiu ele. — Creio
que seu amo se mostrará satisfeito e no-lo provará.
— Esteja certo disso, monseigneur. Entretanto, não posso deixar este castelo sem levar comigo as outras
declarações que me prometeu.
Esforçar-me-ei por obtê-las antes do meio-dia de amanhã. " permanecerei então sob este teto até esse
momento. _ Nossa amiga, a Marquesa du Plessis, providenciará sua aco-odação, signor. Avisei-a da
sua chegada.
_. Enquanto espero, creio que seria prudente guardar estas caras no cofrezinho que acabo de lhe
entregar. A abertura é invisí-vel e em nenhum outro lugar estariam mais a salvo.
__ Tem razão, Signor Exili. Ouvindo-o, compreendo que a conspiração é também uma arte que exige
experiência e prática. Quanto a mim, sou apenas um guerreiro, e não o escondo.
— Guerreiro glorioso! — exclamou o italiano inclinando-se.
— Lisonjeia-me, meu padre. Mas confesso que me agradaria que o Sr. Mazarino e Sua Majestade,
arainha, participassem da sua opinião. Seja como for, acredito, entretanto, que a tática militar, embora
mais rude e mais ampla, aproxime-se um pouco de suas manobras sutis. É preciso sempre prever as
intenções do inimigo.
— Monseigneur, fala como se o próprio Maquiavel tivesse sido seu mestre.
— O senhor me lisonjeia — repetiu o príncipe.
Exili explicou-lhe a maneira de levantar a almofadinha de cetim para esconder debaixo dela os
envelopes comprometedores. Depois, o cofrezinho foi guardado na secretária.
Tão logo se retirou o italiano, Conde, como uma criança, tornou a tirar o pequeno cofre e novamente o
abriu.
— Mostre — sussurrou a mulher, estendendo o braço para ele.
Durante a conversa, ela não interviera, contentando-se em recolocar os numerosos anéis nos dedos.
Mas, obviamente, não tinha perdido uma só das palavras trocadas.
Conde aproximou-se do leito e os dois se inclinaram sobre o frasquinho verde.
— Acredita que seja tão terrível quanto ele disse? — murmurou a Duquesa de Beaufort.
— Fouquet assegura que não existe boticário mais hábil do que esse florentino. E, de qualquer maneira,
temos de valer-nos de Fouquet. Foi ele quem teve a idéia da intervenção espanhola no Parlamento de
Paris, em abril passado. Intervenção que desagradou a todos mas que o pôs em contato com Sua
Majestade Muito Católica. Não conseguirei meu exército senão por seus bons ofícios.
A dama reclinara-se novamente nas almofadas.
— Quer dizer que Mazarino está morto! — disse ela lentamente.
— É como se estivesse, pois tenho a morte dele em minhas mãos.
— Não consta que a rainha-mãe às vezes toma sua refeição com iquele a quem ama apaixonadamente?
— Assim dizem — afirmou Conde após um momento de silên-;io. — Mas não apoio o seu projeto,
minha amiga. Penso em ou-:ro plano mais hábil e mais eficaz. Que seria da rainha-mãe sem ;eus
filhos?... À espanhola não restaria outro remédio senão retirar-;e para um convento a fim de chorá-los...
— Envenenar o rei? — disse a duquesa estremecendo.
O príncipe relinchou alegremente. Voltou à secretária e guardou o cofre.
— Assim são as mulheres! — exclamou. — Sempre o rei! Enternece-se porque se trata de um belo
menino, todo agitado pelas perturbações da adolescência e que, desde há algum tempo, na corte, lhe lan-
}2L olhares de cão fiel. O rei, para você, é isso. Para nós, é um obstáculo perigoso em todos os nossos
projetos. Quanto a seu irmão, o Petit Monsieur,,menino transviado que se compraz em vestir-se de
menina e fazer-se acariciar pelos homens, eu o acho ainda menos habilitado para ò trono que o seu régio
amiguinho. Não, acredite-me, com o Sr. d'Orléans, muito menos austero que seu irmão Luís XIII, tere-
mos um rei como nos convém. Ele é rico e de caráter frouxo. Que mais haveremos de querer? Querida
— continuou Conde, que tinha tornado a fechar a secretária e posto a chave no bolso de seu roupão —,
creio que deveríamos apresentar-nos aos nossos anfitriões. A ceia não tardará. Quer que mande chamar
Manon, sua camareira?
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— Ser-lhe-ia agradecida, meu caro senhor.
Angélica, que começava a sentir-se cansada, retrocedeu um pouco sobre a cornija. Pensava que seu pai
devia estar à sua procura, mas não se decidia a abandonar seu posto de observação. No interior do
aposento, o príncipe e sua amante, ajudados pelos domésticos, começaram a vestir seus atavios, com
grande rumor de tecido e algumas imprecações de monseigneur, que não era paciente. Quando Angélica
desviava os olhos da tela de luz formada pela janela aberta, não via em torno de si senão a noite opaca,
da qual subia o murmúrio da floresta próxima, agitada pelo vento do outono.
Afinal percebeu que o quarto estava deserto. A lamparina continuava brilhando, mas o aposento
retomara o seu silêncio.
Muito de manso, a adolescente aproximou-se da janela e passou para o interior.
O cheiro dos cosméticos e dos perfumes confundia-se de maneira estranha com o que vinha da noite
carregada de aromas do bosque úmido, de musgo, de castanhas maduras.
Angélica na verdade não sabia ainda o que ia fazer. Poderiam surpreendê-la, mas não o receava. Tudo
aquilo não passava de um sonho. Era como a partida para as Américas, a dama louca de Mon-teloup, os
crimes de Gil de Retz...
Num gesto repentino, tirou do bolso do chambre abandonado sobre uma cadeira a pequena chave da
secretária, abriu-a e retirou o cofrezinho. Era feito de sândalo e desprendia um odor penetrante. Fechou
de novo a secretária, pôs a chave no bolso do roupão e voltou para a cornija com o cofre debaixo do
braço. Sentiu-se logo extremamente alegre. Imaginava a cara do Sr. de Conde quando desse pelo
desaparecimento do veneno e das cartas comprometedoras.
— Isto não é roubar — disse com os seus botões. — Trata-se de evitar um crime.
Já sabia em que lugar esconderia o seu furto. As torrinhas com que o arquiteto italiano tinha
guarnec.ido os quatro cantos do gracioso Castelo do Plessis não serviam senão de ornamentos, mas
tinham sido providas de ameias e balestreiros em miniatura, que imitavam a decoração guerreira dos
edifícios medievos. Além do mais, eram ocas e adornadas por uma pequenina trapeira. Angélica
introduziu o cofrezinho no interior da mais próxima. Seria muito sagaz quem o fosse procurar ali!
Desceu, depois, ao longo da fachada e reencontrou-se em terra firme. Somente então percebeu que
seus pés descalços estavam gelados.
Calçou seus velhos sapatos e voltou ao castelo.
Todos agora estavam reunidos nos salões. Aquela noite, demasiado sombria e brumosa, não seduzia a
ninguém.
Penetrando no vestíbulo, o nariz de Angélica foi acariciado por eflúvios culinários muito apetitosos.
Viu passar uma série de pequenos criados de libre que transportavam, com muita gravidade, enormes
salvas de prata. Faisões e galinholas adornados com suas penas, um leitão coroado de flores feito uma
noiva, vários pedaços de um belo cabrito montes, colocados sobre camadas de alca-chofras e ramos de
funcho, desfilaram diante dela.
Ruídos de faianças e cristais entrechocados vinham das salas e das galerias, onde toda a companhia
estava reunida em torno de pequenas mesas guarnecidas de toalhas de renda e espalhadas com muito
gosto. Em volta de cada uma sentavam-se dez pessoas.
Angélica, que se detivera à entrada do salão maior, avistou o Príncipe de Conde, rodeado pela Sra. du
Plessis, a Duquesa de Beaufort e a Condessa de Richeville. O Marquês du Plessis e seu filho Filipe
também partilhavam a mesa do príncipe, bem como algumas outras damas e jovens senhores. O burel do
italiano Exili punha uma nota insólita no meio de tantas rendas, fitas, tecidos preciosos recamados de
ouro e prata. Se o Barão de Sancé estivesse presente, estaria correndo parelhas com a austeridade
monástica. Mas Angélica, embora tivesse olhado com atenção, não viu seu pai em nenhum lugar.
De repente, um dos pajens que passava conduzindo uma garrafa de prata dourada a reconheceu. Fora
ele quem a motejara grosseiramente a propósito da bourrée.
— Oh! Eis a Baronesa do Triste Vestido! — chasqueou. — Que quer beber, Nanon? Aguapé de maçã
ou uma boa coalhada?
Ela pôs a língua para o pajem, e, deixando-o meio confuso, continuou caminhando nas proximidades
da mesa do príncipe.
— Senhor, que é aquilo que vem ali? — exclamou a Duquesa de Beaufort.
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A Sra. du Plessis seguiu a direção de seu olhar, descobriu Angélica, e mais uma vez chamou o filho
em seu socorro:
— Filipe! Filipe! Meu filho, tenha a bondade de conduzir sua prima de Sancé à mesa das donzelas de
honor.
O rapaz lançou a Angélica seu olhar aborrecido.
— Eis um tamborete — disse indicando um lugar vazio ao seu lado.
— Aqui não, Filipe, aqui não! Tinha reservado esse lugar para a Srta. de Senlis.
— A Srta. de Senlis podia ter-se apressado. Quando ela se juntar a nós, verá que foi substituída...
vantajosamente — concluiu com um sorriso irônico.
Seus vizinhos de mesa puseram-se a rir de maneira ruidosa.
Entrementes, Angélica se sentara. Tinha ido muito longe para retroceder. Não ousava perguntar onde
estava seu pai, e os raios luminosos refletidos pelos copos, frascos, argentaria e diamantes das damas a
deslumbravam a ponto de entontecê-la. Reagindo, ela se entesou, estufou o peito, lançou para trás sua
abundante cabeleira dourada. Pareceu-lhe que alguns homens lhe dirigiam olhares que não eram
destituídos de interesse. Quase defronte dela, os olhos de ave de rapina do Príncipe de Conde a
examinaram por um instante com arrogante atenção.
— Pelo diabo, o senhor tem estranhos parentes, Sr. du Plessis. Quem é essa patinha cinzenta?
— Uma jovem prima de província, monseigneur. Ah! Sou digno de pena: durante duas horas, esta
tarde, em lugar de escutar os nossos músicos e a encantadora conversa das damas, tive de suportar o
requisitório do barão seu pai, cujo hálito ainda faz que eu me sinta indisposto — como exclamaria nosso
cínico poeta Argenteuil:
"Digo-lhes, sem mentir, que o hálito de um morto Ou o odor de uma sentina não cheiram tão
forte".
Uma gargalhada servil agitou a reunião.
— E sabe o que me pedia? — continuou o marquês, enxugando as pálpebras num gesto afetado. —
Não adivinharia. Queria que eu lhe conseguisse isenção de impostos para alguns muares de sua
estrebaria e para a produção — saboreie a palavra — de chumbo que pretende encontrar já fundido em
lingotes debaixo dos canteiros de sua horta. Jamais ouvi tamanhos disparates.
— Ao diabo esses mendigos! — resmungou o príncipe. — Eles ridicularizam nossos brasões com suas
maneiras camponesas.
As damas perdiam o fôlego de tanto rir.
— Viram a pluma de seu chapéu?
— E os seus sapatos, que ainda tinham palha aderida aos tacões!...
O coração de Angélica batia tão violentamente que lhe dava a
impressão de que seu vizinho Filipe o ouvia. Ela lançou-lhe um olhar e surpreendeu os olhos azuis e
frios do belo rapaz pregados nela com uma expressão indefinível.
"Não posso consentir que insultem assim meu pai", pensava ela.
Angélica devia estar muito pálida. Recordou o rubor da Sra. de Richeville, algumas horas antes,
quando sua própria voz se havia erguido num silêncio glacial. Tinha, pois, algo que aquelas pessoas
impertinentes temiam...
A "pequena De Sancé" aspirou profundamente.
— Pode ser que sejamos pobres — disse em voz muito alta e clara mente —, mas nós, ao menos, não
buscamos meios de envenenar o rei!
Como da outra vez, os risos morreram nas faces. Pouco a pouco as conversas foram perdendo a
animação, a alegria dos comensais foi-se extinguindo; todos olhavam para o Príncipe de Conde.
— Quem... quem... quem?... — balbuciou o Marquês du Ples-sis. E não disse mais nada.
— Eis palavras curiosas — disse enfim o príncipe, que se dominava com dificuldade. — Esta jovem
não tem prática do mundo. Ainda ouve histórias da carochinha...
"Daqui a pouco, ele vai me ridicularizar e vão expulsar-me da mesa prometendo-me uma sova", pensou
Angélica. Inclinou-se um pouco e olhou para a cabeceira da mesa.
— Disseram-me que o Signor Exili é o maior perito do reino na arte dos venenos.
Aquela nova pedra atirada no charco produziu ondas violentas. Houve um murmúrio de espanto.
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— Oh, esta menina está possessa do Demônio! — exclamou a Sra. du Plessis, mordendo com raiva seu
lencinho de renda. — É a segunda vez que ela me cobre de vergonha. Fica aí como uma boneca de olhos
de vidro e de repente abre a boca e diz coisas terríveis!
— Terríveis? Por que terríveis? — discordou calmamente o príncipe, cujo olhar não se apartava de
Angélica. — Sê-lo-iam se fossem verdadeiras. Mas não passam de fantasias de garota que não sabe estar
calada.
— Calar-me-ei quando quiser — disse Angélica com clareza.
— E quando vai querer, senhorita?
— Quando cessar de insultar meu pai e lhe houver concedido os modestos favores que solicita.
O rosto do Sr. de Conde ensombreceu-se bruscamente. O escândalo havia chegado ao auge. No fundo
da galeria convidados trepavam em cadeiras.
— Ao diabo... Ao diabo... — murmurou o príncipe.
Ergueu-se de repente, o braço estendido como se lançasse suas
tropas ao assalto às trincheiras espanholas.
— Acompanhe-me! — rugiu.
"Vai matar-me", pensou Angélica. E o aspecto daquele grande senhor a dominou, fazendo-a tremer de
medo e de prazer.
Entretanto, ela o seguiu, pequena pata cinzenta atrás daquele grande pássaro enfitado.
Observou que ele tinha debaixo dos joelhos grandes folhos de rendas engomadas, e sobre seus calções
uma espécie de saia curta enfeitada com inúmeros galões. Nunca ela havia visto um homem trajado de
maneira tão extravagante. No entanto, admirava sua anda-dura, o modo pelo qual ele pisava com seus
altos e arqueados tacões.
— Eis-nos a sós — disse bruscamente Conde, voltando-se. — Não quero, senhorita, zangar-me com
você, mas é preciso que responda a minhas perguntas.
Esta voz adocicada assustou mais Angélica do que o teria feito um ímpeto de cólera. Ela estava num
aposento deserto, sozinha com aquele homem poderoso cujas intrigas ela acabava de transtornar, e com-
preendeu que se havia enredado e perdido nelas como numa teia de aranha. Recuou, balbuciou, fingindo
ser uma camponesa meio pateta.
— Não pensava estar dizendo alguma coisa que não devia.
— Por que inventou semelhantes insultos à mesa de um tio que respeita?
Ela compreendeu o que ele queria fazê-la confessar, hesitou, pesou os prós e os contras. Dado o que
sabia, um protesto de total ignorância da sua parte não seria crido.
— Não inventei... apenas repeti coisas que me disseram — murmurou ela: — que o Signor Exili era
um homem muito hábil em preparar venenos... Mas, acerca do rei, eu inventei. Não deveria fazê-lo, mas
estava com raiva.
Ela enrolava canhestramente o pano da cintura.
— Quem o disse a você?
A imaginação de Angélica trabalhava ativamente.
— Foi um... um pajem. Não sei seu nome.
— Poderia mostrar-mo?
— Posso.
O príncipe conduziu-a à entrada dos salões. Ela indicou o pajem que a tinha escarnecido.
— Ao demo esses malandros que escutam às portas! — rosnou o príncipe. — Como se chama,
senhorita?
— Angélica de Sancé.
— Escute, Srta. de Sancé. Não é bom repetir levianamente palavras que uma jovem da sua idade não
pode compreender. Isso pode prejudicar-lhe, a você e à sua família. Passarei uma esponja sobre este
incidente. Examinarei mesmo o caso de seu pai e verei se é possível fazer alguma coisa em seu favor. Mas
que garantia terei do seu silêncio?
Ela ergueu para ele seus olhos verdes.
— Eu sei tão bem calar quando satisfazem aos meus desejos como falar quando me injuriam.
— Pelo diabo, quando for mulher, já estou prevendo que haverá homens que se enforcarão por tê-la
encontrado — disse o príncipe.
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Mas um vago sorriso flutuava em seu rosto. Ele não parecia suspeitar que ela pudesse saber mais do
que lhe havia dito. Impulsivo e, por outro lado, irrefletido, Conde era falho em psicologia e atenção.
Passada a primeira agitação, ele decidiu que não havia mais do que tricas de corredor.
Como homem habituado à lisonja e sensível aos encantos femininos que era, a emoção daquela
adolescente de uma beleza já notável ajudava a abrandar-lhe a cólera. Angélica insistia em dirigir-lhe
um olhar de cândida admiração.
— Gostaria de perguntar-lhe uma coisa! — disse ela, exagerando sua ingenuidade.
— Que é?
— Por que veste uma pequena saia?
— Uma pequena saia?... Mas, minha menina, trata-se de uma rhingrave. E não é de uma suprema
elegância? A rhingrave dissimula o calção desgracioso, que não assenta bem senão nos cavaleiros. Pode
ser guarnecida de galões e de fitas. É muito cômoda. Nunca a tinha visto em sua terra?
— Não. E esses grandes folhos que usa sob os joelhos?
— São canons. Valorizam a barriga da perna, que aparece fina e arqueada.
— É verdade — aprovou Angélica. — Tudo isso é maravilhoso. Jamais vi traje tão belo!
— Ah! Fale de trapos às mulheres e aplacará a mais perigosa fúria — disse o príncipe, encantado com
o seu sucesso. — Mas devo voltar aos meus anfitriões. Promete-me ser discreta?
— Prometo, monseigneur — disse ela com um sorriso encantador, que descobriu seus dentinhos
nacarados.
O Príncipe de Conde retornou aos salões, abrandando com um gesto a emoção dos presentes.
— Comam, comam, amigos. Não tem nenhuma importância. A pequena insolente vai desculpar-se.
De moto-próprio, Angélica inclinou-se diante da Sra. du Plessis.
— Apresento-lhe minhas desculpas, senhora, e peço-lhe licença para me retirar.
Alguns riram do gesto da Sra. du Plessis, que, incapaz de falar, indicou a porta. Mas, diante da porta,
formava-se outro grupo.
— Minha filha, onde está ela? — clamava o Barão Armando.
— O senhor barão pergunta por sua filha? — exclamou um lacaio em tom chocarreiro.
Entre os hóspedes elegantes e os criados de libre, o pobre fidalgo parecia um grande moscardo negro
prisioneiro. Angélica precipitou-se para ele.
— Angélica — suspirou —, você me põe louco. Faz mais de três horas que a procuro pelas trevas da
noite, entre Sancé, o pavilhão de Molines e o Plessis. Que dia, minha filha! Que dia!
— Vamos, pai, vamos depressa — disse ela.
Já estavam na escada quando a voz do Marquês du Plessis os chamou.
— Um instante, meu primo. O senhor príncipe desejaria conversar com você. E a propósito dos
direitos alfandegários de que me falou...
O resto se perdeu quando os dois homens tornaram a entrar.
Angélica sentou-se no último degrau e esperou seu pai. De repente, pareceu-lhe que ela estava
inteiramente vazia de qualquer pensamento, de qualquer vontade. Um cachorrinho branco veio farejá-la.
Ela o acariciou maquinalmente.
Quando o Sr. de Sancé reapareceu, segurou sua filha pelo pulso.
— Receava que houvesse escapado de novo. Você tem mesmo o diabo, no corpo, menina. O Sr. de
Conde me dirigiu a seu respeito cumprimentos tão estranhos que eu não sabia se convinha desculpar-me
por havê-la trazido ao mundo.
Um pouco mais tarde, quando seus cavalos marchavam a passo no meio das trevas, o Sr. de Sancé
voltou a falar, sacudindo a cabeça.
— Não consigo compreender essas pessoas. Zombam de mim quando me ouvem. O marquês, de
algarismos em punho, procura provar-me que sua situação financeira é mais precária que a minha.
Deixam-me partir sem mesmo oferecer-me um copo de vinho para molhar meu gasnete e depois, de
repente, saem a me buscar, prometem-me tudo que eu queira. Segundo monseigneur, a isenção de meus
direitos aduaneiros me será concedida no mês vindouro.
— Tanto melhor, pai — murmurou Angélica.
Ela escutava, vindo da noite, o coaxar dos sapos, que indicava a aproximação dos pântanos e do velho
castelo fortificado. Subitamente sentiu desejos de chorar.
— Acredita que a Sra. du Plessis vá tomá-la como donzela de honor? — perguntou ainda o barão.
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— Oh! não creio — respondeu suavemente Angélica.
CAPITULO X
Poitiers e o convento — Encontro com o Sr. Vicente de Paulo
Da viagem que fez para alcançar Poitiers, Angélica só conservou uma lembrança desordenada e
sobretudo desagradável. Haviam consertado para a ocasião uma velhíssima carruagem, na qual ela
tomou lugar com Hortensia e Madelon. Um criado guiava as mulas que a puxavam. Raimundo e
Gontran montavam belos cavalos de raça, que seu pai lhes ofertara. Diziam que os jesuítas, em seus
novos colégios, tinham cocheiras reservadas para as mon-tarias dos jovens nobres.
Dois robustos cavalos de carga completavam a caravana. Cavalgava um deles o velho Guilherme,
encarregado de escoltar seus jovens amos. Inúmeras notícias de agitações e de guerras circulavam na
região. Dizia-se que o Sr. de Ia Rochefoucauld sublevava o Poitou por conta do Sr. de Conde. Recrutava
exércitos e levava parte das colheitas para alimentá-los. Quem diz exércitos diz fome e miséria, bandidos
e vagabundos nas encruzilhadas.
Ali estava pois o velho Guilherme, com sua lança apoiada no estribo e sua velha espada à cintura.
Entretanto, a viagem foi calma. Ao atravessarem uma floresta, viram vultos suspeitos que se
dispersavam entre as árvores. Mas, sem dúvida, a lança do velho mercenário, a menos que fosse a po-
breza da carruagem, desencorajou os bandoleiros.
Passaram a noite em um albergue, numa encruzilhada sinistra, onde não se ouvia senão o sibilar do
vento na floresta desfolhada.
O estalajadeiro concordou em servir aos viajantes uma água clara batizada com o nome de caldo e
alguns queijos que comeram à luz de uma ordinária vela de sebo.
— Todos os donos de albergues são cúmplices de bandidos — confiou Raimundo a suas jovens
irmãs aterrorizadas. — É nos albergues das estradas que se cometem a maioria dos assassinatos. Em
nossa última viagem dormimos numa estalagem onde, um mês antes, haviam degolado um rico
capitalista que não tinha pratica do outro mal senão viajar sozinho.
Lamentando haver-se entregue a reflexões demasiado profanas acrescentou:
— Esses crimes cometidos pelos homens do povo são conseqüência do desregramento das pessoas
altamente colocadas. Todo mundo perdeu a crença em Deus.
Tiveram ainda um dia de viagem. Sacudidas como nozes ensaca-das por caminhos cobertos de gelo e
sulcados de carris, as três irmãs sentiam-se fatigadas. Só raramente encontravam trechos da estrada
romana com suas grandes lajes antigas e regulares. O comum eram caminhos de pura argila, revolvidos
pela passagem incessante de cavaleiros e carruagens. A entrada das pontes permaneciam às vezes horas
inteiras até ficarem gelados, visto que o portageiro era quase sempre um funcionário pouco ativo e taga-
rela, que aproveitava cada viajante para uns dedos de palestra. Somente passavam sem deter-se os
grandes senhores, que com mão desdenhosa lançavam, pela portinhola, uma bolsa aos pés do servidor.
Madelon chorava, transida de frio e agarrada a Angélica. Contraindo os lábios, Hortênsia dizia:
— É inadmissível!
As três estavam alquebradas e soltaram um suspiro de alívio, quando, ao entardecer do segundo dia,
surgiu Poitiers, escalonando seus telhados de um rosa pálido na falda de uma colina cercada por
aprazível rio: o Clain.
Era um dia límpido de inverno. Dir-se-ia uma paisagem do Midi, do qual o Poitou é aliás o limiar, tal a
doçura do céu sobre as casas. Os sinos repicavam tocando as trindades.
Aqueles sinos, dali em diante, iriam marcar as horas de Angélica durante quase cinco anos. Poitiers era
uma cidade de igrejas, de conventos e de colégios. Os sinos regulavam a vida de toda aquela multidão
de batinas, daquele exército de estudantes, tão estrepitosos quanto cochichadores os seus mestres.
Sacerdotes e bacharéis abalroavam-se nas esquinas das ladeiras, na sombra dos pátios, nas inúmeras
praças, que aqui e ali ofereciam repouso aos peregrinos da cidade.
Os pequenos viajantes separaram-se diante da catedral. O convento das ursulinas era um pouco à
direita e dominava o Clain. O colégio dos padres jesuítas encontrava-se bem no alto. Com o natural
desazo da adolescência, apartaram-se quase sem trocar palavra, e Madelon, em lágrimas, abraçou seus
dois irmãos.
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As portas do convento fecharam-se por trás de Angélica. Tardou a compreender que a sufocação que a
oprimia provinha dessa brusca rotura com o espaço. Paredes e mais paredes, e grades nas janelas. Suas
companheiras não lhe pareciam simpáticas: ela sempre brincara com rapazes, pequenos camponeses que
a admiravam e seguiam. Agora, aqui, entre moças de alta linhagem e de sólida fortuna, Angélica de
Sancé não podia estar senão nos últimos lugares. Também foi necessário submeter-se à tortura do
espartilho, atado fortemente, que obrigava as jovens a se manterem eretas, dando-lhes através da vida e
em qualquer circunstância o porte de uma rainha desdenhosa. Angélica, de músculos flexíveis, graciosa
por instinto, poderia prescindir de tal tormento. Mas tratava-se de uma instituição que ultrapassava
largamente os limites do convento. Ouvindo as conversas das maiores, não podia duvidar de que o
espartilho ocupasse importante lugar em tudo o que concernia à moda. Também era objeto das palestras
uma espécie de plastrão em bico de pato que se conservava rígido graças a um papelão forte ou varetas
de ferro e que se bordava e rebordava e se guarnecia de laços e jóias. Destinava-se a sustentar os seios,
fazendo-os subir sob a renda, a ponto de sempre parecerem prestes a saltar daquela prisão. Naturalmente,
as maiores falavam de tais detalhes em segredo, embora o convento estivesse especialmente encarregado
de preparar as jovens para o casamento e para a vida mundana.
Era preciso aprender a dançar, saudar, tocar alaúde e cravo, manter com duas ou três colegas
conversações sobre determinado assunto, e até manejar o leque e fazer a pintura do rosto. Também se
dava importância aos afazeres domésticos. Por causa dos reveses que o céu poderia enviar, as alunas
deviam sujeitar-se aos trabalhos mais humildes. Alternadamente, elas trabalhavam nas cozinhas e nas
lavanderias, acendiam e conservavam as lâmpadas, varriam e esfregavam os ladrilhos. Por fim,
ministravam-lhes alguns rudimentos intelectuais: história e geografia, sumariamente expostas, mitologia,
cálculo, teologia, latim. Dispensava-se muito tempo aos exercícios de estilo, pois a arte epistolar era
essencialmente feminina, e a troca de cartas com amigos e namorados representava uma das ocupações
mais absorventes de uma mulher de sociedade.
Sem ser uma aluna indócil, Angélica não deu grande satisfação a suas professoras. Executava o que
lhe mandavam, mas parecia não compreender por que era obrigada a fazer tantas coisas estúpidas. Por
vezes, nas horas das lições, procuravam-na em vão; encontravam-na, por fim, na enorme horta, situada a
cavaleiro de ruelas quentes e pouco freqüentadas. Aos mais severos reproches ela respondia sempre que
não tinha consciência de estar fazendo alguma coisa censurável ao ver crescer as eouves.
No verão seguinte a cidade foi assolada por uma epidemia bastante grave, que denominaram peste
porque muitos ratos subiam de suas tocas para morrer nas ruas e nas casas.
A Fronda dos príncipes, dirigida pelos Srs. de Conde e Turen-ne, levava a miséria e a fome àquelas
regiões do oeste até então poupadas pelas guerras estrangeiras. Não se sabia mais quem estava a favor
do rei e quem era contra, mas inúmeros camponeses cujas aldeias tinham sido incendiadas
encaminhavam-se para as cidades. Formavam um exército de miseráveis, que se dirigiam a todas as
portas-cocheiras, estendendo a mão. Dentro em pouco, havia mais mendigos do que padres e estudantes.
As pequenas pensionistas das ursulinas davam esmolas a certas horas de certos dias aos pobres que
estacionavam diante do convento. Ensinou-se-lhes que isso também fazia parte de sua; futuras
atribuições de consumadas grandes damas.
Pela primeira vez Angélica viu diante de si a miséria desesperançada, a miséria andrajosa, a verdadeira
miséria de olhos lúbricos e rancorosos. Não se comoveu nem se alterou, como algumas de suas
companheiras, que choravam ou contraíam os lábios com aflição. Parecia-lhe distinguir uma imagem
impressa em seu interior, como o pressentimento do que lhe reservaria um estranho destino.
A 'peste teve origem naquela escória que obstruía as augustas ladeiras em que um ardente mês de julho
secava todas as fontes.
Houve vários casos entre as alunas. Certa manhã, no pátio de recreio, Angélica não viu Madelon.
Perguntou por ela, e disseram-lhe que a tinham levado para a enfermaria. Madelon morreu poucos dias
depois. Diante do pequeno corpo lívido e como dessecado, Angélica não chorou. Até censurou
intimamente Hortênsia por suas lágrimas espetaculares. Por que chorava aquela magricela de dezessete
anos? Nunca havia gostado de Madelon. Só gostava de si mesma.
— Ah! Minhas queridinhas — disse-lhes suavemente uma velha religiosa —, é a lei de Deus! Muitas
crianças morrem. Disseram-me que sua mãe teve dez filhos e só perdeu um. Com esta são dois. Não é
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muito. Conheço uma senhora que teve quinze filhos e já perdeu sete. Como vêem, é assim. Deus dá os
filhos, Deus os leva. I Há muitas crianças que morrem. E a lei de Deus!...
Após a morte de Madelon, Angélica tornou-se ainda mais insociá-vel e chegou até a ser indisciplinada.
Não fazia senão o que lhe dava I na veneta. Ficava horas inteiras em recantos ignorados da vastíssima
casa. Haviam-lhe proibido o acesso ao jardim e à horta. Encontrava, todavia, meios de ir lá. Pensaram
em desligá-la, mas o Barão de Sancé, não obstante as dificuldades que lhe causava a guerra civil, pagava
regularmente a pensão de suas duas filhas, e muitas pensionistas não faziam o mesmo. Além do mais,
Hortênsia prometia tornar-se das jovens mais adiantadas de sua classe. Por consideração à mais velha,
conservaram a mais nova, mas puseram-na de lado.
Num dia de janeiro de 1652, Angélica, que acabava de completar quinze anos, achava-se mais uma
vez empoleirada no muro da horta, distraindo-se com o movimento dos transeuntes e aquecendo-se ao
fraco sol de inverno.
Naqueles primeiros dias do ano havia grande animação em Poitiers porque a rainha, o rei e seus
partidários acabavam de instalar-se na cidade. Pobre rainha, pobre reizinho, afugentados de rebelião em
rebelião! : Haviam-se dirigido antes à Guyenne, para combater o Sr. de Conde. De regresso detiveram-
se no Poitou, a fim de negociar com o Sr. de Turenne, que tinha em suas mãos aquela província, desde
Fontenay-le-Comte até o oceano. Châtellerault e Luçon, antigas praças fortes protestantes, haviam
aderido ao general huguenote, mas Poitiers, que não esquecia que, cem anos antes, tinham sido
saqueadas as suas igrejas, sendo o maíre enforcado pelos hereges, abrira suas portas ao monarca.
Agora só se via junto ao rei adolescente o vestido negro da Espanhola. O povo, a França inteira, havia
gritado tanto: "Fora, Ma-zarino!", que o homem de vermelho acabara por se curvar. Havia deixado a
rainha, a quem amava, exilando-se na Alemanha. Mas \ sua partida não bastara para acalmar as
paixões...
Apoiada ao muro do convento, Angélica escutava o murmúrio da cidade agitada, cuja excitação
repercutia até aquele bairro distante.
As pragas dos cocheiros, cujas carruagens se embaraçavam nas tortuosas ruelas, misturavam-se com
os risos e a gritaria dos pa-jens e criados e com os relinchos dos cavalos.
Sobre o alarido propagava-se o repique dos sinos. Angélica já econhecia todos os carrilhões: o de Santo
Hilário, o de Santa Ra-desunda, o bordão de Nossa Senhora Maior, os graves sinos da Torre de São
Porchaire.
De repente, ao pé do muro, a moça viu um grupo de pajens que nassavam como um bando de pássaros
exóticos, com suas roupas de cetim e seda.
Um deles se deteve para ajeitar o laço do sapato. Ao erguer-se, levantou a cabeça e deu com Angélica,
que o contemplava do alto do paredão.
Com uma barretada galante, o pajem espalhou a poeira.
— Salve, senhorita! Não parece muito alegre nessas alturas.
Parecia-se com os pajens que ela havia visto no Plessis e usava,
como eles, um curto calção abalonado, apanágio do século XVI, que lhe figurava pernas imensas de
garça.
Afora isso, era simpático, com um rosto sorridente, tostado pelo sol, e belos cabelos castanhos e
anelados.
Angélica perguntou-lhe sua idade. Ele respondeu que tinha dezesseis anos.
— Mas não se inquiete, senhorita — acrescentou. — Sei fazer a. corte às damas.
Dirigia-lhe olhares requebrados e de repente lhe estendeu os braços.
— Venha comigo!
Uma agradável sensação invadiu Angélica. O cárcere cinzento e triste onde seu coração murchava
pareceu abrir-se. Aquele riso alegre prometia-lhe algo indefinido, mas suave e saboroso, de que tinha
fome, como depois do grande jejum da quaresma.
— Venha — sussurrou ele. — Se quiser, levá-la-ei até o palácio dos duques da Aquitânia, onde se
alojou a corte, e mostrar-lhe-ei o rei.
Ela não hesitou muito e ajeitou o manto de lã negra com capuz.
— Atenção, vou saltar! — gritou.
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O moço recebeu-a quase nos braços. Puseram-se a rir. Num gesto decidido, tomou-a pela cintura e
a levou.
— Qué vão dizer as freirinhas do seu convento?
— Estão acostumadas a meus caprichos.
— E como se arranjará para entrar?
— Tocarei a campainha e pedirei esmola.
O pajem soltou uma gargalhada.
Angélica sentia-se meio embriagada pelo torvelinho em que subitamente mergulhara. Entre senhores e
damas cujos formosos atavios maravilhavam os provincianos, passavam mercadores. A um deles o
pajem comprou duas varetas enfiadas em coxas de rã fritas. Tendo vivido sempre em Paris, achava
extremamente ridículo aquele manjar. Os dois comeram com bom apetite. O pajem disse que se
chamava Henrique de Roguier e que estava a serviço do rei. Alegre companheiro, deixava de lado, vez
por outra, os graves senhores do seu conselho para ir arranhar um pouco a guitarra com seus amigos. As
encantadoras bonecas italianas, sobrinhas do Cardeal Maza-rino, continuavam na corte, apesar da
partida forçada- de seu tio. Com essa conversa o rapaz conduziu insidiosamente Angélica para
quarteirões menos movimentados. Ela o percebeu, mas não disse nada. Seu corpo, subitamente desperto,
esperava algo que prometia a mão do pajem a estreitar-lhe a cintura. Ele se deteve e impeliu-a
levemente para o canto de uma porta. Em seguida começou a beijá-la com ardor. Dizia coisas banais e
divertidas.
— Você é formosa... tem as faces como boninas e olhos verdes como as rãs... as rãs de sua terra... Não se
mexa. É o seu corpete que eu quero
, abrir... Deixe... Eu sei pegar... Oh! Nunca vi seios tão brancos e tão mimosos... E firmes como maçãs...
Gosto de você, minha amiguinha...
Ela deixou-o divagar, acariciar. Reclinou a cabeça um pouco para trás, contra a pedra musgosa, e seus
olhos contemplavam maquinalmente o céu azul à beira de um telhado festonado.
Agora o pajem estava calado e sua respiração tornava-se mais rápida. Inquietou-se e olhou várias
vezes em torno de si, com irritação. A rua estava bastante calma. No entanto, algumas pessoas
transitavam. Passou até uma cavalgada de estudantes, que gritaram "Ei! Ei!" ao descobrirem o jovem
casal à sombra da fachada.
O rapaz recuou e bateu com os pés no chão.
— Oh! Que raiva! As casas estão repletas nesta maldita cidade de província. Os próprios grandes
senhores têm de receber suas amantes nas antecâmaras. Pergunto-lhe, pois, onde poderemos estar um
pouco tranqüilos?
— Estamos bem aqui — murmurou ela.
Mas ele não estava satisfeito. Lançou um olhar à pequena esmo-leira que tinha à cintura, e seu
semblante se iluminou.
— Venha comigo! Tenho uma idéia! Encontraremos um lugar digno de nós.
Tomou-a pela mão e levou-a correndo pelas ruas, até a praça de Nossa Senhora Maior. Embora já
estivesse havia dois anos em Poitiers, Angélica nada conhecia da cidade. Olhou com admiracão a
fachada da igreja, lavrada como um cofrezinho hindu e flanaueada de pequenas torres em forma de
pinha. Dir-se-ia que a própria pedra florescera sob o cinzel mágico dos escultores.
Henrique disse então à sua companheira que ficasse no pórtico e o esperasse. Voltou pouco depois, todo
contente, com uma chave na mão.
_ O sacristão me alugou o púlpito por uns momentos.
__ O púlpito? — repetiu Angélica estupefata.
.— Ora essa! Não é a primeira vez que ele presta este serviço aos pobres enamorados.
Retomou-a pela cintura e desceu os degraus que conduziam ao santuário, cujo pavimento estava um
pouco afundado.
Angélica viu-se envolvida pelas trevas e pela frescura das abóbadas. As igrejas do Poitou são as mais
sombrias da França. Sólidos edifícios, assentados sobre enormes pilares, dissimulam em sua sombra anti-
gas decorações murais, cujos tons vivos vão aparecendo pouco a pouco aos olhos surpresos. Os dois
adolescentes avançavam em silêncio.
— Estou com frio — murmurou Angélica, envolvendo-se no manto.
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O jovem pôs-lhe um braço protetor sobre os ombros, mas sua exaltação tinha diminuído e ele parecia
intimidado.
Abriu a primeira porta do enorme púlpito; depois, subindo os degraus, penetrou na rotunda destinada
ao pregador. Angélica o seguiu um tanto maquinalmente.
Sentaram-se os dois nas tábuas do chão, cobertas por um tapete de veludo. Aquela igreja, aquela noite
profunda com cheiro de incenso pareciam ter acalmado o temperamento afoito de Henrique. Ele pôs
novamente o braço em torno das espáduas de Angélica e a beijou suavemente na fronte.
— Como você é bela, minha amiguinha — suspirou —, e como eu a prefiro a todas essas grandes
damas que me provocam e zombam de mim! Nem sempre me agrada, mas eu devo comprazer-lhes. Se
você soubesse...
Tornou a suspirar. Seu rosto havia recobrado toda a sua puerilidade.
— Vou mostrar-lhe uma coisa linda, excepcional — disse ele, remexendo a esmoleira.
Tirou dela um pano branco orlado de renda e não muito limpo. ~~ Um lenço? — disse Angélica.
— Sim. O lenço do rei. Deixou-o cair esta manhã. Apanhei-o e guardei-o como talismã. Olhou-a
demoradamente, concentrado.
— Posso dá-lo a você, como prova de amor?
— Oh! Sim — disse Angélica, estendendo logo a mão.
O braço bateu na balaustrada de madeira maciça e a pancada produziu enorme eco sob as abóbadas.
Imobilizaram-se, inibidos e um tanto inquietos.
— Creio que vem alguém — murmurou Angélica. O rapaz confessou com ar desconsolado:
— Esqueci-me de fechar a porta do púlpito ao pé da escada. Calaram-se,.escutando os passos que se
aproximavam. Alguém
galgou os degraus de seu refúgio, e a cabeça de um velho sacerdote, coroada de um solidéu negro,
apareceu acima deles.
— Que fazem aqui, meus filhos? — perguntou.
O pajem tinha já uma história na ponta da língua:
— Eu quis ver minha irmã, que é pensionista em Poitiers, mas não sabia onde conversar com ela.
Nossos pais...
— Não fale assim tão alto na casa de Deus — disse o padre. — Levante-se, e sua irmã também, e siga-
me.
Levou-os para a sacristia e sentou-se num mocho. Depois, com as mãos apoiadas nos joelhos, olhou
sucessivamente os dois. Os cabelos brancos surgindo de seu solidéu eclesiástico aureolavam um rosto
que, apesar da velhice, conservava sadias cores camponesas. Tinha um grande nariz, pequenos olhos
vivos e penetrantes e curta barba branca. Henrique de Roguier, subitamente, pareceu assustado e calou-
se com um embaraço que não era fingido.
— Ele é seu amante? — perguntou de chofre o padre a Angélica, indicando o jovem com um
movimento de cabeça.
O rubor cobriu as faces da moça e o pajem exclamou prontamente:
— Senhor, eu o desejaria, mas ela não é dessa espécie.
— Tanto melhor, milha filha. Se tivesse um belo colar de pérolas, divertir-se-ia em lançá-lo em seu
pátio cheio de estéreo, onde os porcos viriam farejá-los com seus focinhos asquerosos? Hein? Responda-
me, menina! Fá-lo-ia?
— Não. Eu não o faria.
— Não se devem dar pérolas aos porcos. Não deve malbaratar o tesouro de sua virgindade, que deve
ser guardada para o seu casamento. E você, leviana personagem — continuou ele calmamente, voltando-
se para o rapaz —, como teve a idéia sacrílega de trazer sua amiga ao púlpito da igreja para fazer-lhe
madrigais?
— Aonde poderia levá-la? — retrucou o pajem, de mau humor. — Não se pode conversar
tranqüilamente nas ruas desta cidade, mais estreitas que corredores. Sabia que o sacristão de Nossa
Senhora Maior costuma alugar o púlpito e os confessionários, para que se possa dizer algum segredo
longe de ouvidos indiscretos. Nestas cidades de província, o senhor sabe, Sr. Vicente, há muitas moças
severamente guardadas por um pai ranzinza e uma genitora intratável e que nunca teriam oportunidade
de ouvir uma palavra doce se...
— Como você me instruir, meu pequeno!
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_ Q púlpito custa trinta libras, e os confessionários, vinte. É muito para minha bolsa, acredite-me, Sr.
Vicente.
— Acredito sem dificuldade — disse o Sr. Vicente —, mas é mais caro ainda na balança onde o Diabo
e o Anjo pesam os pecados no átrio de Nossa Senhora Maior.
Seu semblante, que até então conservava uma expressão serena, tornou-se duro. Estendeu a mão.
— Dê-me a chave que lhe entregaram.
E, quando o rapaz a devolveu:
— Vai confessar-se, não é? Esperá-lo-ei amanhã ao anoitecer, nesta mesma igreja. Dar-lhe-ei
absolvição. Sei muito bem em que meio vive, pobre pajenzinho! E para você é mais vantajoso brincar de
homem com uma menina da sua idade do que servir de brinque do para as maduras damas que lhe
arrastam a suas alcovas para corrompê-lo... Sim, eu o vejo enrubescer. Envergonha-se diante dela, tão
fresca, tão nova, dos seus turvos amores.
O jovem baixou a cabeça, seu aprumo desapareceu. Balbuciou afinal:
— Sr. Vicente de Paulo, por favor, não conte este caso a Sua Majestade, a rainha. Se ela me devolver a
meu pai, ele não saberá o que fazer de mim. Tenho sete irmãs que ele precisa dotar, e eu sou o quarto
filho da família. Não consegui este imenso favor de entrar para o serviço do rei senão graças ao Sr. de
Lorraine, que me... a quem eu agradava — concluiu com embaraço. — Ele comprou o posto para mim.
Se me mandam embora, ele exigirá, sem dúvida, que meu pai o reembolse, e isso é impossível.
O velho eclesiástico olhava-o com gravidade.
— Não direi nada. Mas convém que mais uma vez recorde à rainha as torpezas de que se acha rodeada.
Ai! É mulher piedosa e consagrada às boas obras, mas que pode ela contra tanta podridão? Não se
modificam as almas com decretos...
O ruído da porta da sacristia interrompeu-o. Entrou um homem jovem, de cabelos compridos e
encaracolados, vestido com esmerado traje negro. O Sr. Vicente ergueu-se e lançou-lhe um olhar severo.
— Senhor vigário, quero acreditar que ignore o comércio a que se entrega seu sacristão. Acaba de
cobrar trinta libras a este jovem cavaleiro para que possa encontrar-se livremente com sua amiga no
púlpito de sua igreja. Seria bom que vigiasse com um pouco mais de cuidado os seus auxiliares.
A fim de recompor-se, o vigário despendeu muito tempo fechando a porta. Quando se voltou, a
penumbra da sacristia dissimulava mal o seu desconcerto. Como calava, o Sr. Vicente continuou:
— Observo, além disso, que usa peruca e roupas seculares, o que é proibido aos sacerdotes. Serei
obrigado a denunciar tais faltas
ao beneficiário de sua paróquia.
O vigário teve dificuldade em disfarçar um encolher de ombros.
— O qual não se preocupará com isto, Sr. Vicente. Meu beneficiário é um cônego parisiense. Comprou
o cargo há três anos ao cura anterior, que se retirava para suas terras. Nunca veio aqui, e, como tem casa
canonical sobre a abside de Nossa Senhora de Paris, aposto que Nossa Senhora Maior de Poitiers deve
parecer-lhe muito pequena.
— Ah! — exclamou bruscamente o Sr. Vicente. — Receio que este abominável tráfico de curatos e
paróquias, vendidos como as-nos e cavalos no mercado, arraste a Igreja à sua perdição. E a quem
nomeiam agora bispos neste reino? Grandes senhores guerreiros e libertinos, que às vezes nem sequer
receberam as sagradas ordens, mas que, tendo fortuna bastante para adquirir um bispado, permitem-se
vestir a sotaina e os paramentos dos ministros de Deus. Ah! O Senhor nos ajude a derribar tais
instituições!
Contente ao ver que os raios se desviavam dele, arriscou-se o vigário a dizer:
— Minha paróquia não está abandonada. Ocupo-me com ela e dedico-lhe todo o meu desvelo. Dê-nos
a honra, Sr,. Vicente, de assistir esta noite à nossa bênção do Santíssimo Sacramento. Verá a nave
repleta de fiéis. Poitiers foi preservada da heresia pelo zelo de seus sacerdotes. Não é como Niort,
Châtellerault e...
O ancião lançou-lhe um olhar fulminante.
— Os vícios dos sacerdotes foram a causa primária das heresias! — exclamou com rudeza.
Levantou-se e, tomando pelos ombros os dois jovens, levou-os para fora. Apesar de sua idade e de
suas espáduas curvadas, parecia estar cheio de vigor e vivacidade.
Descia a noite sobre a praça fronteira à igreja, onde pálida luz do inverno animava as flores de pedra.
— Meus cordeiros — disse o Sr. Vicente —, filhinhos de Deus, vocês intentaram provar o fruto verde
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do amor. Eis por que seus dentes se embotaram e têm os corações cheios de tristeza. Deixem, pois,
amadurecer ao sol da vida aquilo que sempre esteve destinado a sazonar. Quando se procura o amor, é
preciso não se transviar, porque, do contrário, talvez ele nunca seja encontrado. Que castigo mais cruel
para a impaciência e a fraqueza do que estar condenado a vida inteira a não morder senão frutos amargos
e sem aroma! Agora, vão cada um para seu lado. Você, moço, para o seu serviço, que deve fazer com
consciência. Você, menina, para suas religiosas e seus trabalhos. E, quando romper o dia, não se
esqueçam de orar a Deus, que é pai de nós todos.
Deixou-os ir. Seu olhar seguiu as silhuetas graciosas dos dois jovens até se separarem na esquina da
praça.
Angélica não virou a cabeça até chegar à porta do convento. Sentia uma grande paz e guardava a
lembrança de uma velha e cálida mão pousada em seu ombro.__
"O Sr. Vicente", pensou. "É este, então, o Sr. Vicente? Aquele que o Marquês du Plessis denomina 'A
consciência do reino? O que obriga os nobres a servir os pobres? O que fala diariamente com a rainha e
o rei? Como tem o ar simples e doce!"
Antes de erguer a aldrava, lançou um olhar sobre a cidade, mergulhada na noite.
— Sr. Vicente, abençoe-me! — murmurou.
Angélica aceitou sem rebeldia os castigos que lhe impuseram por esta nova fugida. A partir daquele dia
suas maneiras intratáveis se transformaram. Aplicou-se aos estudos, mostrou-se amável com as com-
panheiras. Parecia ter-se adaptado, finalmente, à severidade do claustro.
No mês de setembro sua irmã Hortênsia deixou o convento. Uma parenta afastada quis tê-la em Niort
como donzela de companhia. Na realidade, a dama em questão, que era de baixa nobreza e tinha se
casado com um magistrado rico mas de origem obscura, desejava que seu filho, aliando-se a uma jovem
de alta linhagem, desse um pouco de lustre aos seus escudos. O rapaz acabava de conseguir por
intermédio de seu pai um cargo de procurador do rei em Paris, e era preciso que ele se sentisse à
vontade entre os brasões. A ocasião era inesperada para^ambas as partes. O matrimônio foi realizado
sem demora.
Simultaneamente, o jovem Rei Luís XIV entrava como vencedor em sua bela capital.
A França saía exangue de uma guerra civil em cuja duração seis exércitos haviam torvelinhado sobre
seu solo, buscando-se uns aos outros e nem sempre se encontrando. Havia o exército do Príncipe de
Conde; o do rei, dirigido por Turenne, que de súbito resolveu não trair o soberano; o de Gastão
d'Orléans, aliado dos ingleses e indisposto com os príncipes franceses; o do Duque de Beaufort, brigado
com todo o mundo, mas ao qual os espanhóis ajudavam; o do Duque de Lorena, que operava por conta
própria; e, por fim, o de Mazarino, que da Alemanha enviara reforços à rainha. Estiveram a ponto de
nomear general a Srta. de Montpensier, por sua iniciativa de fazer disparar, certo dia, o canhão da
Bastilha sobre as tropas de seu próprio primo, o rei. Proeza que a Grande Made-moiselle pagou muito
caro, pois assustou inúmeros pretendentes à sua mão entre os príncipes da Europa.
— Mademoiselle acaba de "matar" seu marido — murmurou com o suave acento dos Abruzos o
Cardeal Mazarino, quando lhe contaram o sucedido.
Este último ficava como grande vencedor de uma crise atroz e louca. Menos de um ano depois, tornou-
se a ver sua batina vermelha nos corredores do Louvre, mas não houve mais "mazari-nadas". Todo
mundo tinha as forças exauridas.
Angélica estava com dezessete anos quando soube da morte de sua mãe. Rezou muito na capela, mas
não chorou. Custava-lhe conceber que nunca mais veria aquela silhueta passando com seu vestido cinza
e um lenço preto na cabeça, a qúe sobrepunha no verão um chapéu de palha fora de moda. Enamorada
da horta e do pomar, a Sra. de Sancé havia talvez prodigalizado mais carinho e cuidados às pereiras e às
couves do que a seus numerosos filhos.
Por ocasião da morte de sua mãe, Angélica voltou a ver seus irmãos Raimundo e Dionísio, que lhe
foram fazer a participação. A jovem recebeu-os no locutório, por trás das frias grades que eram exigidas
pela ordem das ursulinas.
Dionísio estava agora no colégio. Ao crescer, assemelhara-se tanto a Josselino que Angélica supôs por
um momento que tornava a ver o irmão mais velho tal como o conservava na lembrança, com seu
uniforme preto de colegial. Tão surpreendida estava que, depois de ter saudado o clérigo que
acompanhava Dionísio, não lhe prestou atenção, e ele se viu obrigado a dizer-lhe quem era.
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— Sou Raimundo, Angélica. Não me reconhece?
Sentiu-se meio assustada. Em seu convento, extremamente ri-orista comparado com muitos outros, as
religiosas consideravam os sacerdotes com devota servilidade, não isenta da instintiva submissão
feminina ao homem. Ouvir um deles tratá-la por "você"
perturbava. E era ela agora quem baixava os olhos, enquanto Raimundo lhe sorria. Com muito tato
este a pôs a par da desgraça nue os feria a todos e falou com muita simplicidade do acatamento que se
deve à vontade de Deus. Alguma coisa havia mudado em seu longo rosto de tez mate e olhos claros e
ardentes.
Disse também que seu pai sentira muito que sua vocação religiosa se mantivesse durante os últimos
anos que havia passado entre os jesuítas. Tendo-se ido embora Josselino, esperava sem dúvida que
Raimundo desempenhasse o papel de herdeiro do título. Mas o jovem, depois de renunciar à herança em
favor dos outros irmãos, havia proferido seus votos. Gontran também decepcionava o pobre Barão
Armando. Longe de querer ingressar no exército, havia ido para Paris estudar não se sabia o quê. Era
mister, pois, aguardar que Dionísio, agora com treze anos, conquistasse para o nome de Sancé o brilho
militar, tradicional nas famílias de alta prosápia.
Enquanto falava, o padre jesuíta olhava a irmã, que, a fim de escutá-lo, apoiava contra os frios varões
seu rosto rosado e cujos olhos estranhos tomavam na obscuridade do parlatório uma lim-pidez de água-
marinha. Havia uma espécie de compaixão em sua /oz, quando perguntou:
— E você, Angélica, que vai fazer?
A jovem sacudiu seus longos cabelos com reflexos de ouro, e respondeu com indiferença que não
sabia.
Um ano mais tarde chamaram Angélica de Sancé novamente ao locutório.
Ali encontrou o velho Guilherme, um pouco mais encanecido do que quando o havia deixado. Sua
inseparável lança estava cuidadosamente encostada na parede.
Disse que vinha buscá-la para reconduzi-la a Monteloup. Tinha terminado sua educação. Agora era
uma perfeita moça e tinham encontrado um marido para ela.
CASAMENTO EM TOULOUSE (1656-1660)
CAPITULO XI
Um conde toiosano pede a mão de Angélica
O Barão de Sancé olhava sua filha com indisfarçável satisfação.
— Essas freiras fizeram de você uma jovem perfeita, minha sel-vagenzinha.
— Oh! Perfeita! Isto se verá na prática — retrucou Angélica, sacudindo, como outrora, seus cabelos
anelados.
Os ares de Monteloup, com o cheiro característico de seus pântanos, faziam-na fruir de novo sua
independência. Erguia-se como uma flor estiolada sob uma deliciosa bátega.
Mas a vaidade paternal do Barão Armando não se deixava abater.
— De qualquer maneira, está mais bonita do que eu esperava. Sua pele me parece mais escura do que
seria necessário para hàrmonizar-se com seus olhos e seus cabelos. Mas o contraste não deixa de ter o
seu encanto. Observei, aliás, que a maior parte de meus filhos têm a mesma cor. Receio que seja o
último resquício de alguma gota de sangue árabe que os naturais do Poitou, de um modo geral,
conservaram. Viu seu irmãozinho João Maria? Parece um verdadeiro mouro.
E acrescentou abruptamente:
— O Conde de Peyrac de Morens pediu-a em casamento.
— A mim? — disse Angélica. — Mas se nem o conheço!
— Isso não tem importância. Molines o conhece, e é o principal. Garante-me que eu não poderia ter
sonhado com melhor aliança para qualquer das minhas filhas.
O Barão Armando estava radiante. Com a ponta da bengala cortava as primaveras do talude, à beira da
funda trilha por onde pasmava com sua filha naquela tépida manhã de abril.
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Angélica tinha chegado a Monteloup na véspera, de noite, em companhia de Guilherme e de seu irmão
Dionísio. Como se admirasse de ver o colegial em férias, ele lhe disse que tinha obtido permissão para
assistir ao seu casamento.
"Que história de casamento é essa?", pensou a moça.
Ainda não levava a sério o assunto, mas agora o tom de segurança do barão começava a inquietá-la.
Ele não havia mudado muito nos últimos anos. Apenas alguns fios cinzentos se viam em seus bigodes
e na mosca que usava, à Luís XIII. Angélica, que esperava encontrá-lo abatido e indeciso após a morte
de sua mulher, surpreendia-se de vê-lo muito bem-humorado e sorridente.
Ao chegarem a um prado em declive que dominava os pântanos esgotados, ela procurou desviar a
conversa, que ameaçava gerar um conflito entre ambos quando mal acabavam de se reencontrar.
— O senhor me escreveu, pai, que tinha sofrido grandes perdas de gado pelas requisições e pilhagens
do exército, durante os anos dessa terrível Fronda?
— É verdade. Molines e eu perdemos pouco mais ou menos metade dos animais, e, se não fosse ele, eu
estaria no cárcere por dívidas, após a venda de todas as nossas terras.
— Será que lhe deve ainda muito? — perguntou, inquieta.
— Ai de mim! Das quarenta mil libras que me emprestou há tempos, em cinco anos de trabalho
ininterrupto não pude devolver-lhe mais de cinco mil, e mesmo essas ele não queria receber, pretextando
que mas havia dado e que eram minha parte no negócio. Tive de zangar-me para conseguir que as
aceitasse.
Angélica fez notar com simplicidade que, se o administrador achava que não era necessário
reembolsá-lo, seu pai fazia mal em obstinar-se na sua generosidade
— Se o tal Molines lhe propôs esse negócio, é porque saía ganhando. Não é homem capaz de dar
presentes. Mas tem certa retidão, e se lhe deixa essas quarenta mil libras, é porque acha que o trabalho a
que o senhor se entregou e os serviços que lhe prestou valem bem essa quantia.
— A verdade — respondeu o barão — é que o nosso pequeno comércio de muares e de chumbo com a
Espanha, isento de impostos até o oceano, tem marchado sofrivelmente. Nos anos sem saques, vendendo
o resto da produção ao Estado, cobrimos as despesas...
.Lançou a Angélica um olhar perplexo.
_ Mas com que prática você me fala, filha! Pergunto a mim mesmo se tal linguagem assenta bem a
uma jovem que acaba de sair do convento.
Angélica pôs-se a rir.
__ Parece que em Paris são as mulheres que dirigem tudo: a política, a religião, as letras, até as
ciências. Chamam-nas "as preciosas". Reúnem-se todos os dias na residência de uma delas com os
homens de gênio, com os sábios. A dona da casa fica estendida em seu leito; os convidados agrupam-se
na alcova e ali discutem. Pergunto-me se, quando eu for a Paris, não criarei também uma sessão na qual
se falará de comércio e de negócios.
_ Que horror! — exclamou o barão, escandalizado. — Angélica não foram as ursulinas de Poitiers que
lhe inculcaram semelhantes idéias...
— Diziam que eu era excelente em cálculo e raciocínio. Até demasiado... Em compensação,
deploravam muito não haverem podido fazer de mim uma devota exemplar... e hipócrita, como minha
irmã, Hortênsia, que lhes fez acalentar a esperança de que entraria para a sua ordem. Mas,
decididamente, os atrativos do procurador foram mais fortes.
— Minha filha, não sinta inveja de sua irmã, pois esse Molines, que você julga tão severamente,
encontrou-lhe um marido que é sem dúvida muito superior ao de Hortênsia.
A jovem bateu com o pé, impaciente.
— Acho que o tal Molines exagera! Quem quer que o ouvisse diria que sou filha dele e não sua, visto
tomar tanto interesse pelo meu futuro.
— Faz muito mal em queixar-se, tolinha — disse seu pai, sorrindo. — Escute-me um pouco. O Conde
Joffrey de Peyrac é um descendente dos antigos condes de Toulouse, cujos quartéis de nobreza são
anteriores aos de nosso rei Luís XIV. Além disso, é o homem mais rico e influente do Languedoc.
— E possível, pai; mas, em resumo, não me posso casar assim sem mais nem menos com um homem
que eu não conheço e que o senhor mesmo nunca viu.
— Por quê? — surpreendeu-se o barão. — Todas as jovens de qualidade se casam desse modo. Não
são elas nem o acaso que devem decidir sobre as alianças que convém às suas famílias, e nas quais
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empenham não só o seu porvir, mas também o seu nome.
— Ele é... ele é jovem? — perguntou Angélica, vacilante.
— Jovem? Jovem? — resmungou o barão, contrariado. — Ei$| uma pergunta ociosa para uma pessoa
prática. E verdade que seul futuro esposo tem doze anos mais do que você. Mas trinta anos I em um
homem, é a idade da força e da sedução. O céu podei conceder-lhe numerosos filhos. Terá um palácio
em Toulouse, cas-l telos em Albi e em Béarn, carruagens, vestidos caros...
O Sr. de Sancé deteve-se, carecente de imaginação.
— De minha parte — concluiu —, julgo que o pedido de casamento feito por um nobre que também
nunca a viu é uma sorte
inesperada, extraordinária...
Deram alguns passos em silêncio.
— Precisamente — murmurou Angélica —, essa sorte me parece excessivamente extraordinária. Por
que motivo esse conde, que tem todo o necessário para escolher uma rica herdeira para esposa, vem
buscar no fundo do Poitou uma moça sem dote?
— Sem dote? — repetiu Armando de Sancé, cujo rosto se iluminou. — Venha comigo até casa,
Angélica, e vista-se para sair. Iremos a cavalo. Quero mostrar-lhe algo.
No pátio do castelo, um criado, por ordem do barão, tirou da estrebaria dois cavalos e prestemente os
arreou. Intrigada, a jovern já não fazia perguntas. Enquanto montava, dizia a si própria que, afinal de
contas, estava destinada ao casamento e que a maior parte de suas companheiras se casavam assim, com
candidatos escolhidos por seus pais. Por que a revoltava tanto esse projeto? O homem que lhe
destinavam não era um ancião. Ela seria rica...
Angélica percebeu que de repente a invadia uma agradável sensação física e levou algum tempo para
compreender-lhe a causa. A mão do criado que a tinha ajudado a montar no animal acariciara-lhe
suavemente o tornozelo, num gesto que a melhor boa vontade deste mundo não podia tomar por
distração.
O barão tinha entrado no castelo para trocar as botas e pôr uma volta limpa.
Angélica teve um gesto nervoso e o cavalo deu alguns passos.
— Enlouqueceu, vilão?
Sentia-se enrubescida e furiosa contra si própria, porque reconhecia que um delicioso estremecimento
a percorrera durante aquela breve carícia.
O criado, um hércules de largos ombros, ergueu a cabeça. Mede cabelos escuros caíam-lhe sobre os
olhos castanhos, que brilhavam com malícia conhecida.
Nicolau! — exclamou Angélica, enquanto lutavam dentro dela tisfação de rever o antigo companheiro
de folguedos e a confusão proveniente do gesto que ele se atrevera a fazer.
— Ah! Reconheceu Nicolau? — disse o Barão de Sancé, que volva a largos passos. — É o pior diabo da
região e ninguém pode ele. Nem o trabalho nem os muares lhe interessam. Preguiço-o e conquistador,
eis aí seu belo companheiro de amanho, Angélica! O jovem não pareceu envergonhar-se do julgamento
de seu amo. Ele continuava a olhar Angélica com um riso que mostrava seus dentes brancos, e com
atrevimento quase insolente. Sua camisa aberta descobria-lhe o peito musculoso e bronzeado.
— Olá, rapaz, pega um mulo e acompanhe-nos — disse o barão,
que não percebia nada.
_ Está bem, senhor.
As três cavalgaduras atravessaram a ponte levadiça e tomaram o caminho à esquerda de Monteloup.
— Aonde vamos, pai?
— À antiga mina de chumbo.
— Aqueles fornos derruídos perto das terras da abadia de Nieul?
— Isso mesmo.
Angélica recordou o convento dos frades libertinos, a louca aventura de sua infância, quando tinha
querido seguir para as Américas, e as explicações de Frei Anselmo sobre o chumbo e a prata e os
trabalhos realizados na mina durante a Idade Média.
— Não vejo que interesse pode ter esse pedaço de terra inculto...
— Esse pedaço de terra, que já não é inculto e agora se chama Argentière, representa simplesmente o
seu dote. Lembre-se de que Molines tinha me pedido que revalidasse o direito de exploração por minha
família e solicitasse isenção de impostos para a quarta parte do que se produzisse. Obtido isso, trouxe
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trabalhadores sa-xoes. Vendo a importância que ele dava a esse terreno até então abandonado, disse-lhe
um dia que o daria a você como dote. Creio que naquele instante germinou em sua fértil cabeça a idéia
de um casamento com o Conde de Peyrac, porque, de fato, esse senhor tolosano queria adquiri-lo. Não
compreendi bem a espécie de transação que mantém com Molines; creio que ele é o consignatário no
negocio dos muares e metais que enviamos por mar com destino a Espanha. Isso demonstra que há mais
gentis-homens que se entregam ao comércio do que geralmente se acredita. Eu pensava entretanto, que o
Conde de Peyrac possuísse propriedades e terras suficientes para não precisar recorrer a processes
plebeus. Talvez o comércio lhe sirva de passatempo. Dizem que é muito original, Sim, compreendi bem
— disse lentamente Angélica. — O senhor sabia que ele cobiçava a mina, e deu a entender que era pre-
ciso levar também a filha.
— Você apresenta as coisas de um ângulo bem extravagante, Angélica! Parece-me que esta solução de
dar-lhe a mina como dote é excelente. O desejo de ver minhas filhas bem situadas tem sido minha
principal preocupação, como foi a de sua pobre mãe. Ora, entre nós, as terras não se vendem. Com todas
as nossas dificuldades, conseguimos conservar o patrimônio intato, apesar de Du Ples-sis, por mais de
uma vez, haver posto a mira em meus famosos terrenos dos pântanos esgotados. Mas casar minha filha,
não só honrosamente mas também ricamente, isso, sim, me enche de satisfação. A terra não sai da
família, não passa para estranhos, mas para um novo ramo, para uma nova aliança.
Angélica ia um pouco atrás de seu pai, de maneira que este não podia ver a expressão de seu rosto.
Seus dentinhos brancos mordiam os lábios com uma raiva impotente. Não podia explicar a seu pai quão
humilhante era para ela o modo como se havia apresentado aquela proposta de matrimônio, pois ele
estava persuadido de que preparara muito habilidosamente a felicidade de sua filha. Não obstante,
procurou ainda lutar.
— Se bem me lembro, o senhor havia arrendado esta mina por dez anos. Ainda restam, pois, quatro
anos de arrendamento. Como é possível dar como dote uma coisa que está arrendada?
— Molines não somente está de acordo que seja assim, mas continuará a exploração por conta do Sr.
de Peyrac. Além disso, o trabalho começou já faz três anos, como você verá. Estamos chegando.
Em uma hora de trote haviam chegado ao destino. Em outro tempo Angélica acreditava que a negra
pedreira e as aldeias protestantes estavam situadas no fim do mundo. Mas agora pareciam muito
próximas. Um caminho bem tratado confirmava aquela novi impressão. Construíra-se uma pequena
aldeia para os trabalhadores.
O pai e a filha apearam e Nicolau aproximou-se para segurar as rédeas dos cavalos.
O lugar, cujo desolado aspecto Angélica recordava muito bem, inha mudado completamente.
Uma canalização trazia água corrente e punha em movimento várias mós verticais. Pilões de ferro
fundido trituravam as pedras
um ruído surdo, enquanto grandes blocos de rocha eram desprendidos a malho.
Ardiam os fornos, cujas chamas eram atiçadas por enormes foles de couro. Montanhas negras de
carvão de lenha jaziam junto aos fornos e o resto do terreno da mina estava tomado por montões de
pedras.
Em calhas de madeira por onde a água corria, alguns trabalhadores jogavam com a pá a rocha triturada
que saía das mós. Outros, com enxadas, raspavam contra a corrente o interior das canalizações.
Um vasto edifício, erguido a pouca distância, mostrava portas com grades e barras de ferro, fechadas
com grossos cadeados. Dois homens armados de mosquetes montavam-lhe guarda.
— O depósito de lingotes de prata e chumbo — disse o barão.
Muito orgulhoso, acrescentou que pediria a Molines, qualquer dia, que o mostrasse por dentro a
Angélica.
Levou-a depois para ver a pedreira contígua. Enormes degraus, de quatro varas de altura cada um,
delineavam agora uma espécie de anfiteatro romano. Aqui e acolá, escuros subterrâneos se apro-
fundavam na rocha, de onde surgiam carrocinhas puxadas por jumentos.
— Existem aqui dez famílias saxãs de mineiros profissionais, fundidores e cavouqueiros. Foram eles e
Molines que montaram a exploração.
— E quanto produz por ano o negócio? — perguntou Angélica.
— Esse, confesso, é um assunto que nunca me ocorreu — disse um tanto confuso Armando de Sancé.
— Você compreende: Molines me paga com pontualidade o arrendamento. Fez todas as despesas de
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instalação. Trouxe da Inglaterra, e também sem dúvida da Espanha, os tijolos para os fornos,
introduzidos por caravanas de contrabandistas do Languedoc.
— Provavelmente por intermédio daquele que o senhor me desuna para esposo, não é verdade?
— É possível. Parece que se ocupa de mil coisas diferentes. Aliás, e um sábio, e foi ele quem desenhou
o projeto desta máquina a vapor.
O barão conduziu a filha até a entrada de uma das baixas galerias da montanha.
Mostrou-lhe uma espécie de enorme caldeira de ferro sob a qual se produzia fogo, e da qual saíam dois
grossos tubos enfaixados que mergulhavam num poço. Dali jorrava água intermitentemente à superfície
do solo.
— É uma das primeiras máquinas a vapor construídas até agora no mundo. Serve para extrair a água
subterrânea das minas. É uma invenção que o Conde de Peyrac aperfeiçoou em uma de suas viagens à
Inglaterra. Veja, pois, como mulher que quer converter-se m "preciosa", que vai ter um marido tão sábio
quanto eu sou ignorante e tão engenhoso quanto eu sou obtuso — acrescentou, com uma visagem
lastimosa. — Olá! Bom dia, Fritz Hauer.
Um dos obreiros, que se encontrava junto à máquina, tirou o gorro e inclinou-se profundamente. Tinha
o rosto azulado pelo pó de rocha que se lhe havia incrustado na pele no transcurso de uma longa
existência de trabalhos mineiros. Faltavam-lhe dois dedos em uma das mãos. Atarracado e giboso, dir-
se-ia que tinha os braços demasiadamente compridos. Mechas de cabelos caíam-lhe sobre os olhos
pequenos e brilhantes.
— Acho que se parece um pouco com Vulcano, deus dos infernos — disse o Sr. de Sancé. — Creio
não haver homem que conheça melhor as entranhas da terra do que este operário saxão. Talvez pór isso
tenha aspecto tão curioso. Essas questões de minas nunca me pareceram muito claras e não sei se com
elas não se mistura um pouco de bruxaria. Dizem que Fritz Hauer conhece um processo secreto para
transformar chumbo em ouro. Isto, sim, seria extraordinário. Trabalha há vários anos com o Conde de
Peyrac, que o enviou ao Poitou para instalar Argentière.
"O Conde de Peyrac! Sempre o Conde de Peyrac!", pensou Angélica, enfadada. E disse em voz alta:
— Talvez por isso seja tão rico o tal Conde de Peyrac. Transforma em ouro o chumbo que lhe envia
este Fritz Hauer. Não vá querer transformar-me em rã...
— Verdadeiramente, causa-me desgosto, minha filha. Por que esse tom de mofa? Acha que estou
tramando a sua infelicidade? Nada existe neste projeto que possa justificar sua desconfiança. Esperava
de você exclamações de alegria e ouço apenas sarcasmos.
— É verdade, pai; perdoe-me — disse Angélica, confusa e desolada ante a decepção que lia no honrado
rosto do fidalgo. — As
jjgiosas diziam amiúde que eu não era como as demais, que tinha reações desconcertantes. Não lhe
ocultarei que, ao invés de reiubilar-me, este pedido de casamento me é extremamente desagradável. Dê-
me tempo para refletir, para acostumar-me.
Assim falando, tinham voltado para onde se achavam os cavalos. Angélica montou apressadamente
para evitar a ajuda demasiado solícita de Nicolau, mas não pôde evitar que a mão morena do moço
roçasse na sua, ao entregar-lhe as rédeas.
"É muito confiado", pensou aborrecida. "Será preciso pô-lo em seu lugar."
Nos profundos caminhos floresciam os espinheiros. Seu aroma esquisito, recordando-lhe os dias de
sua infância, acalmou um pouco o seu nervosismo.
— Pai — disse de súbito —, creio que o senhor gostaria de uma rápida decisão minha acerca do Conde
de Peyrac. Acabo de ter uma idéia. Permita-me que vá ver Molines. Quisera ter com ele uma conversa
séria.
O barão olhou o sol para calcular as horas.
— Já é quase meio-dia. Mas acho que Molines terá muito prazer em recebê-la à sua mesa. Vá, minha
filha. Nicolau a acompanhará.
Angélica esteve a ponto de recusar a escolta, mas não quis demonstrar que dava qualquer importância
ao camponês, e, depois de dar um alegre adeus a seu pai, lançou-se a galope. O moço, montado em um
mulo, deixou que ela tomasse a dianteira.
Meia hora mais tarde, Angélica, ao passar em frente à grade do Castelo do Plessis, inclinou-se
procurando descobrir, no fim da avenida de castanheiros, a branca aparição.
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"Filipe", pensou. E admirou-se de que esse nome lhe houvesse voltado à memória como para
aumentar sua .melancolia.
Mas os Du Plessis continuavam em Paris. Embora velho partidário do Sr. de Conde, o marquês
soubera recobrar as graças da rainha e do Cardeal Mazarino, enquanto o Sr. Príncipe, o vencedor de
Rocroi, um dos mais gloriosos generais da França, ia vergonhosamente servir ao rei da Espanha em
Flandres. Angélica perguntou a si própria se a desaparição do pequeno cofre com o veneno havia
desempenhado algum papel no destino do Sr. de Conde. Em todo caso, nem o Cardeal Mazarino nem o
rei nem seu jovem irmão tinham sido envenenados. E dizia-se que o Sr. Fou. quet, alma da conspiração
contra Sua Majestade, acabava de ser nomeado superintendente das Finanças.
Era divertido pensar que uma pequena camponesa obscura hou-vera por acaso mudado o curso da
história. Qualquer dia teria de certificar-se se o cofrezinho continuava em seu esconderijo. E o pajem a
quem tinha acusado, que teriam feito dele? Que idéia! Isso não tinha nenhuma importância.
Angélica ouviu o galope do mulo de Nicolau, que se aproximava. Retomou sua carreira e logo chegou
à casa do administrador.
Depois do almoço, o intendente Molines fez entrar Angélica no escritório onde alguns anos antes
havia recebido o seu pai. Ali tivera origem o negócio dos muares e a jovem recordou prontamente a
ambígua resposta que o administrador havia dado à sua pergunta de menina prática:
— "E a mim, que me darão?"
— "Dar-lhe-ei um marido."
Pensaria já numa aliança com aquele estranho Conde de Tou-louse? Não era impossível, pois Molines
era um homem de larga visão, um espírito penetrante que concebia mil projetos. Na realidade, o
intendente do vizinho castelo não lhe era antipático. Sua atitude um tanto matreira era inerente à sua
qualidade de subalterno. Um subalterno que tinha consciência de ser mais inteligente que seus patrões.
Para a família do pobre castelão vizinho sua intervenção tinha sido uma verdadeira providência, mas
Angélica sabia que só o interesse pessoal do intendente estava na origem de suas liberalida-des e de sua
ajuda. Isso lhe agradava, livrando-a do escrúpulo de se considerar agradecida e lhe dever uma gratidão
humilhante. Admirava-se, no entanto, da real simpatia que lhe inspirava aquele huguenote plebeu e
calculista.
"É porque está empenhado em criar algo novo e talvez sólido pensou prontamente.
Mas, por outro lado, não achava graça em estar envolvida nos planos do administrador, como se fosse
uma burrica ou um lingote de chumbo.
— Sr. Molines — disse claramente —, meu pai me falou cominsistência de um matrimônio que o
senhor teria planejado para mim com, um certo Conde de Peyrac. Dada a influência muito erande que o
senhor adquiriu sobre meu pai nestes últimos anos, não posso duvidar de que dê muita importância,
também o senhor, a esse casamento, isto é, que sou chamada a desempenhar um papel em suas
combinações comerciais. Desejaria saber qual é. Um frio sorriso dilatou os lábios finos de seu
interlocutor.
— Dou graças ao céu por tornar a vê-la tal como prometia ser quando em toda a região a chamavam de
pequena fada dos pântanos. Com efeito, prometi ao Conde de Peyrac uma mulher bela e inteligente.
_ Comprometeu-se demas;ado. Eu poderia ter-me tornado feia e idiota, o que o teria deixado mal em
seu ofício de casamenteiro.
_ Nunca me comprometo baseado em simples presunção. Conhecidos meus de Poitiers me falaram
várias vezes de você, e eu próprio a vi no ano passado numa procissão.
— De modo que me tinha sob vigilância — exclamou Angélica, furiosa —, como um melão que está
amadurecendo sob sua redoma!
A imagem pareceu-lhe tão cômica que ela se pôs a rir e passou-lhe a raiva. No fundo queria ter um
argumento a que se aferrasse, antes de se deixar apanhar na armadilha como um passarinho inocente.
— Se eu quisesse falar a linguagem de seu mundo — disse Molines gravemente —, poderia
entrincheirar-me por trás de conside
rações tradicionais: üma donzela, tão jovem ainda, não precisa saber por que seus pais escolhem para ela
este ou aquele marido. Os negócios de chumbo e prata, as transações comerciais, não são dacompetência
das mulheres, e principalmente das damas nobres...
Muito menos os assuntos de criação de gado. Mas creio conhecê-la, Angélica, e não lhe falarei assim.
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Ela não se ofendeu com o tom familiar.
— Por que pensa que pode falar-me diferentemente do modo como fala a meu pai?
— E difícil explicar, senhorita. Não sou iilósofo e meus estudos consistiram sobretudo em experiências
de trabalho. Perdoe-me o ser demasiado franco. Mas dir-lhe-ei uma coisa: as pessoas uo seu mundo
nunca poderão compreender o que me anima: é o trabalho. Os camponeses trabalham mais ainda,
parece-me.
— Labutam, o que não é a mesma coisa. São estúpidos, ignonorantes e inconscientes de seu próprio
interesse, tanto quanto as pessoas da nobreza, que não produzem nada. Estas últimas são seres inúteis,
exceto para conduzir guerras destruidoras. Seu pai começa a fazer algo, mas, permita que lhe diga,
jamais compreenderá o trabalho.
— Acredita que não conseguirá nada? — disse, assustada, a jovem. — Eu acreditava, entretanto, que
seu negócio ia para frente, e a prova está em que o senhor se interessa por ele.
— A prova seria principalmente produzirmos vários milhares de animais por ano e, mais ainda, que
isso nos desse uma renda considerável e crescente. Esse é o verdadeiro sinal de que um negócio
progride.
— Está bem; e não é a isso que chegaremos algum dia?
— Não, porque uma criação de gado, embora seja importante e tenha reservas de dinheiro para os
momentos difíceis, de enfermidades ou guerras, continua sendo sempre uma criação de gado. É, como o
cultivo da terra, uma coisa muito demorada e de pouco lucro. Aliás, nunca as terras nem os animais
enriqueceram verdadeiramente os homens. Recorde o exemplo dos imensos rebanhos dos pastores da
Bíblia, cuja vida era, contudo, tão frugal.
— Se está convencido disso, não compreendo, Sr. Molines, que o senhor, tão prudente, tenha-se
dedicado a tal negócio, demorado e pouco lucrativo.
— É aí, senhorita, que seu pai e eu vamos necessitar de você.
— No entanto, não posso ajudá-los a fazer as jumentas parirem mais depressa.
— Pode ajudar-nos a dobrar o lucro.
— Não vejo absolutamente de que maneira.
— Compreenderá facilmente a minha idéia. O que importa em um negócio lucrativo é prosperar
depressa, mas, como não podemos mudar as leis de Deus, vemo-nos forçados a explorar a fraqueza dos
homens. Assim, pois, os muares representam a fachada do negócio. Cobrem as despesas correntes e nos
põem em bons termos com a Intendência Militar, à qual vendemos couros e animais. Permitem,
sobretudo, circular livremente, com isenções de direitos aduaneiros e peagens, e lançar pelos caminhos
recuas pesadamente carregadas. Deste modo expedimos, com uma tropa de muares, chumbo e prata para
a Inglaterra. Na volta, os animais nos trazem sacos de escórias negras, que batizamos com o nome de
"fundentes", produtos necessários para os trabalhos da mina e que são, na realidade, ouro e prata, que
vêm da Espanha em guerra, passando por Londres.
— Não posso compreendê-lo, Molines. Por que enviam prata a Londres para trazê-la de volta depois?
— Trago-a de volta em quantidade dobrada ou triplicada. Quanto ouro, o Conde Joffrey de Peyrac possui
no Languedoc uma jazida aurífera. Quando tiver a mina de Argentière, as operações de câmbio que eu
fizer para ele com esses dois metais preciosos não poderão parecer suspeitas de maneira alguma, pois
tanto o ouro como a prata procederão oficialmente das duas minas de sua oropriedade. É aí que reside o
nosso verdadeiro negócio. Porque, compreenda-me, o ouro e a prata que se podem explorar na Franca
representam, repito, muito pouca coisa; em compensação, sem enganar o fisco, nem a alfândega,
fazemos entrar grande quantidade de ouro e prata espanhóis. Os lingotes que ofereço aos cambistas não
falam. Não podem confessar que, em vez de provirem de Argentière ou do Languedoc, chegam dá
Espanha via Londres. Assina ao mesmo tempo que damos um lucro legal ao Tesouro Real, podemos
passar, como se fossem produtos necessários a mineração, quantidades importantes de metais preciosos
sem pagar mão-de-obra nem direitos aduaneiros, e sem nos vermos arruinados por instalações
caríssimas, pois ninguém pode suspeitar quanto produzimos aqui, e têm de acreditar nas cifras que
declaramos.
— Mas, se descobrirem esse tráfico, não correrão o risco de ir para as galés?
— Não fabricamos nenhuma moeda falsa. Não temos, aliás, a menor intenção de fabricá-la. Ao
contrário, provemos regularmente o Tesouro Real de ouro legítimo e bom, de prata em lingotes que ele
contrasta e sela, e com os quais baterá a moeda. Somente valendo-nos dessas mínimas extrações
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nacionais, poderemos, quando as minas do Languedoc e de Argentière estiverem reunidas sob um
mesmo nome, conseguir um rápido lucro dos metais preciosos da Espanha. Aquele país está cheio de
ouro e prata procedentes das Américas; com isso perdeu o amor ao trabalho e não vive senão da troca de
suas matérias-primas com outras nações. Os bancos de Londres lhe servem de intermediários. A
Espanha é simultaneamente o país mais rico e o mais miserável do mundo. Quanto a França, essas
relações comerciais, que uma péssima administração econômica impede de realizar às claras, enriquecê-
la-ão quase contra sua vontade. E a nós, antes, pois as somas que tivermos investido nos serão
devolvidas mais rapidamente e com mais proveito do que com a venda de uma jumenta que fica prenhe
dez meses e não pode render mais de uns dez por cento do capital empregado.
Angélica não podia deixar de interessar-se por aquelas engenho-sas combinações.
— E o chumbo, que pensam fazer com ele? Serve unicamente de disfarce ou pode ser utilizado
comercialmente?
— O chumbo dá muito bons lucros. É necessário para a guerra e a caça. E valorizou-se mais ainda nos
últimos anos, depois que a rainha-mãe fez vir engenheiros florentinos para completar a instalação de
banheiros em todas as suas habitações, como já o havia feito sua sogra, Maria de Médicis. Você deve ter
visto uma reprodução desses aposentos no Plessis, com sua banheira romana e seus canos de chumbo.
— E o marquês seu amo está no corrente de tantos projetos?
— Não — disse Molines, com um sorriso indulgente. — Não entenderia nada disto, e o mínimo que
faria seria demitir-me do cargo de intendente de seus domínios, que ainda exerço a contento dele.
— E meu pai, que sabe ele de suas traficâncias?
— Achei que só o fato de saber que por suas terras passariam metais espanhóis lhe seria desagradável.
Não é melhor fazê-lo acreditar que os pequenos lucros que lhe permitem viver são frutos de um labor
honesto e tradicional?
Angélica ofendeu-se com o tom irônico e um tanto desdenhoso de Molines. Retrucou secamente:
— E por que tenho eu direito a que me conte seus planos que a dez léguas cheiram a galés?
— Não se trata de galés, e, ainda que chegasse a haver dificuldades com os funcionários da Fazenda,
alguns escudos as aplanariam. Veja Mazarino e Fouquet: personagens que têm mais crédito que os
príncipes de sangue e que o próprio rei. Isso porque possuem uma fortuna imensa. Quanto a você, sei
que se debaterá entre os varais enquanto não compreender por que a atrelaram. O problema, na
realidade, é simples. O Conde de Peyrac precisa de Argen-tière. E seu pai não a cederá senão como dote
de uma das suas filhas. Você bem sabe como ele é teimoso. Não venderá jamais nenhuma parcela de
seu patrimônio. E como De Peyrac deseja casar-se com uma jovem da alta nobreza, achou vantajosa a
combinação.
— E se eu me negasse a compartilhar essa opinião?
— Você não deseja que seu pai venha a sofrer a prisão por dívidas — disse lentamente o administrador.
— Bastaria muito pouco para que vocês voltassem a cair todos numa penúria maior que a que
conheceram no passado. E, para você mesma, que seria o futuro? Envelhecerá, como suas tias, na
pobreza... Para seus irmãos e irmãzinhas, seria a carência de educação e, mais tarde, a partida para o
estrangeiro...
Vendo que os olhos de Angélica lançavam chispas, acrescentou em tom submisso:
— Mas por que me obriga a esboçar tão negro quadro? Supus
aue você fosse de uma tempera diferente da desses nobres que consideram seus brasões a maior riqueza
e vivem das esmolas do rei... Não se consegue sair das dificuldades sem enfrentá-las corajosamente e
sem se arriscar um pouco. Em resumo: é preciso agir. Por isso não lhe ocultei nada, para que pudesse
saber como deve
cooperar.
Nenhuma palavra podia atingir Angélica mais diretamente. Ninguém lhe havia falado em linguagem
tão afim com o seu caráter. Ergueu-se como se houvesse recebido uma chicotada. Revia Mon-teloup em
ruínas, seus irmãos e irmãs rolando no estéreo, sua mãe com os dedos vermelhos de frio, e seu pai
sentado à pequena secretária, escrevendo ao rei uma súplica que não ia ter resposta...
O intendente os livrara da miséria. Agora era preciso pagar.
— Está bem, Sr. Molines — disse friamente. — Desposarei o Conde de Peyrac.
Op. Ricardo — Hl — Disco Fonte: 1
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CAPÍTULO XII
Casamento por procuração
Angélica regressava pelos fragrantes caminhos, mas não reparava em coisa alguma, profundamente
imersa em seus pensamentos.
Nicolau a seguia montado no mulo. A jovem não prestava mais atenção ao rapaz. Procurava
não precisar o vago tremor que continuava a agitar-se dentro dela. Sua resolução estava tomada;
houvesse o que houvesse, não voltaria atrás. O melhor, portanto, era olhar para a frente e
rechaçar decididamente tudo o que pudesse fazê-la vacilar na execução daquele programa tão
bem traçado.
De repente, uma voz varonil a chamou:
— Senhorita! Srta. Angélica!
Maquinalmente puxou as rédeas, e o cavalo, que vinha a passo, deteve-se logo. Ao voltar a
cabeça, viu que Nicolau havia desmontado e lhe fazia sinais para que se aproximasse.
— Que aconteceu? — perguntou Angélica. O jovem, com ar de mistério,
murmurou:
— Desça. Quero mostrar-lhe uma coisa.
A moça obedeceu, e o criado, depois de prender as rédeas dos animais ao tronco de uma
bétula, encaminhou-se para um bos-quete. Ela acompanhou-o. A luz primaveril, através das
folhas novas, era da cor da angélica. Um tentilhão cantava sem descanso entre os arbustos.
Com a cabeça curvada, Nicolau caminhava, olhando em torno com atenção. Ajoelhou-se, por
fim, e, ao levantar-se, ofereceu a Angélica, em suas palmas abertas, alguns frutos vermelhos e
perfumados.
— Os primeiros morangos — murmurou, enquanto a malícia de seu sorriso fazia brilhar seus olhos
castanhos.
Oh Nicolau, isso não fica bem! — protestou Angélica. Mas sua emoção fez aflorar-lhe à ponta dos
cílios súbitas lágripois, com aquele gesto, o rapaz lhe devolvia todo o encanto de sua infância, o
encanto de Monteloup, das correrias pelos bosques dos sonhos embriagados pelo aroma dos
espinheiros, do frescor dos canais em que Valentim a acompanhava, e dos arroios onde scavam
caranguejos; Monteloup, que não se parecia com nenhum lugar da terra, porque nele se misturavam o
suave mistério dos pântanos e o aterrador mistério das florestas.
— Recorda — murmurou Nicolau — como a chamávamos? Marquesa dos Anjos...
_ Você é um tolo — disse ela com voz débil. — Não deveria, Nicolau...
Mas, já com um gesto familiar, ia apanhando das mãos que se lhe estendiam as frutas miúdas e
deliciosas. Nicolau se encontrava muito perto dela, como antigamente, mas agora o jovem magro e ágil,
com cara de esquilo, elevava-se muito acima de sua cabeça, e pela abertura da camisa desabotoada ela
aspirava o cheiro rústico daquela carne de homem, tostada e coberta de pêlos negros. Via respirar
compassado o peito forte e isso a perturbava a ponto de não se atrever a levantar a cabeça, tão certa
estava de que encontraria um olhar atrevido e ardente.
Continuou saboreando os morangos e absorvendo-se naquele prazer, ao qual, na verdade, concedia
valor infinito.
"Monteloup pela última vez!", pensava. "A última vez que o saboreio! Tudo o que de melhor existe
para mim está contido nessas mãos, nas mãos morenas de Nicolau."
Quando terminou, cerrou bruscamente os olhos e apoiou a cabeça no tronco de um carvalho.
— Escute, Nicolau...
— Estou escutando — respondeu ele em patoá.
Ela sentiu nas faces sua respiração quente, que cheirava a sidra. Estava tão próximo, quase encostado
nela, que a envolvia toda na lrradiaçãó de sua maciça presença. Entretanto, não lhe tocava. De súbito, ao
olhá-lo, viu que ele tinha posto as mãos nas costas para resistir à tentação de agarrá-la e estreitá-la.
Recebeu o choque do olhar temível, destituído de qualquer sorriso, ensombrado por uma suplica que não
dava lugar a nenhum equívoco. Nunca havia Angélica sentido assim a atração do macho, nunca ouvira
confissão mais clara sobre os desejos que sua beleza inspirava. O capricho do pajem de Poitiers não
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tinha sido mais que uma brincadeira uma inconseqüente experiência de ferazinhas que ensaiam suas
garras.
Agora tratava-se de outra coisa, forte, imperiosa, velha como o mundo, como a terra, como a
tempestade.
A jovem teve medo. Se fosse menos inocente, não teria podido resistir a semelhante atração. Sua
carne se arreitava, as pernas lhe tremiam, mas recuou como a cerva assustada diante do caçador. O
desconhecimento do que a aguardava e a contida violência do camponês a atemorizaram.
— Não me olhe assim, Nicolau! — disse ela, procurando firmar a voz. — Quero dizer-lhe...
— Já sei o que me quer dizer — interrompeu ele com voz surda. — Leio-o em seus olhos e na sua
maneira de erguer a cabeça. Você é a Srta. de Sancé e eu sou um criado... e agora já se acabou para nós
olharmo-nos face a face. Quanto a mim, devo estar sempre de cabeça baixa! "Está bem, senhorita...
sim, senhorita..." E quanto a você seus olhos passarão por cima de mim sem ver-me... Não mais que
um tronco, menos que um cão. Há marquesas que em seus castelos se fazem lavar por seus lacaios,
porque não tem importância nenhuma ficar nua diante deles... Um lacaio não é um homem, é um
móvel, um simples utensílio... Não é assim que me tratará agora?
— Cale-se, Nicolau!
— Está bem, eu me calarei.
Respirava violentamente, mas com a boca cerrada, feito um animal doente.
— Vou dizer-lhe uma última coisa antes de me calar — prosseguiu ele —: é que só você existia em
minha vida. Não o compreendi senão quando você partiu, e durante vários dias fiquei como louco. É
verdade que sou preguiçoso e namorador e tenho aversão à terra e aos animais. Sou como uma coisa
que não está em seu lugar e que andará sempre de um lado para outro sem saber. Meu único objeto era
você. Desde que voltou não pude esperar para saber se continuava minha ou se a havia perdido. Sim,
sou atrevido e nada me acanha. Se houvesse querido, tê-la-ia possuído ai sobre o musgo, nesse
bosquete que é nosso, sobre esta terra de Monteloup que é nossa, somente de nós dois, como outrora!
— exclamou.
Os pássaros, assustados, tinham-se calado na ramagem.
— Você divaga, meu pobre Nicolau — disse brandamente Angélica.
— Isso não! — protestou ele, empalidecendo.
Éla sacudiu seus longos cabelos, que ainda usava soltos sobre as espáduas, e uma ponta de cólera a
animou.
__ Que linguagem deseja que eu empregue? — disse ela. — Quer queira quer não, já não sou hvre para
escutar os galanteios de um pastor. Devo casar-me brevemente com o Conde de Peyrac.
— O Conde de Peyrac! — repetiu Nicolau com assombro.
Recuou alguns passos e contemplou-a em silêncio.
— Então é verdade o que diziam na região? — bufou ele. — O Conde de Peyrac. Você!... Você!...
Você vai casar com esse homem?
— Vou.
Ele não quis perguntar mais nada; ela tinha dito "vou", e isso era bastante. Ela diria "vou",
obstinadamente, até o fim.
Ela tomou a vereda que levava de volta à estrada, e seu chicote ia abatendo um tanto nervosamente as
plantas novas à beira do caminho.
O cavalo e o mulo pastavam junto da orla do bosque. Nicolau desatou-os. Com os olhos baixos, ajudou
Angélica a sentar-se na cela. Subitamente ela reteve a rude mão do criado.
— Nicolau... diga-me, você o conhece?
Ele levantou os olhos para a jovem e ela viu brilhar neles uma ironia perversa.
— Conheço... já o vi... Esteve na região várias vezes. È um homem tão feio que as moças fogem
quando ele passa montado em seu cavalo negro. É coxo como o Demônio, malvado como ele... Dizem
que no seu castelo de Toulouse atrai as mulheres por meio de filtros e cantos estranhos... Aquelas que o
seguem não voltam mais ou tornam-se loucas. Ah! ah! Um belo esposo, Srta. de Sancé!
— Você diz que ele é coxo? — repetiu Angélica, sentindo as mãos geladas.
— Sim coxo! Coxo! Pergunte a qualquer um e todos lhe responderão: é o Grande Coxo do Languedoc.
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Pôs-se a rir e dirigiu-se para seu mulo capengando exagera-darnente. Angélica chicoteou sua
cavalgadura, fazendo-a disparar. Através da brenha de espinheiros ela fugia à voz zombeteira que repe-
tia: "Coxo! Coxo!"
Chegava ao pátio de Monteloup quando um cavaleiro, atrás dela, transpunha a velha ponte levadíça.
Por seu rosto suado e poeirento e por seu culote reforçado de couro via-se logo que era uni mensageiro.
A princípio, ninguém entendeu nada do que ele perguntava, porque sua pronúncia era tão estranha que
precisaram de muito tempo para perceber que ele falava francês.
Ao Sr. de Sancé, que se apresentara logo, entregou uma carta que trazia em sua pequena caixa de ferro.
— Meu Deus, é o Sr. d'Andijos, que chega amanhã! — exclamou o barão, muito agitado.
— Quem é este agora? — interrogou Angélica.
— E um amigo do conde. O Sr. d Andijos deve casar com você...
— Como?! Também este?
— ...por procuração, Angélica. Deixe-me terminar minhas frases, filha. As vezes pergunto a mim
mesmo que foi que lhe ensinaram as religiosas, se nem ao menos lhe inculcaram o respeito que me
deves. O Conde de Peyrac envia seu melhor amigo para representá-lo na primeira cerimônia nupcial,
que se realizará aqui, na capela de Monteloup. A segunda bênção será em Toulouse. A essa, que pena!
sua família não poderá assistir. O Marquês d'Andijos irá escoltá-la em sua viagem para o Languedoc.
Essa gente do sul é expedita. Eu sabia que ele estava a caminho, mas não o esperava tão cedo.
— Vejo que era hora de aceitar — murmurou Angélica com amargura.
No dia seguinte, pouco antes do meio-dia, o pátio encheu-se de um ruído de carruagens, relinchos de
cavalos, exclamações enfáti-, cas e conversas frívolas.
O Midi da França desembarcava em Monteloup. O Marques d'Andijos, muito moreno, com o bigode
em ponta de punhal e olhar penetrante, vestia uma rhingrave de seda amarela e alaranja-da, que
dissimulava com graça sua gordura de vivente alegre. Apresentou seus companheiros que seriam
testemunhas do casamento, o Conde de Carbon-Dorgerac e o pequeno Barão Cerbalaud.
Foram levados para a sala de refeições, onde, sobre mesas de cavaletes, a família de Sancé havia
disposto suas melhores riquezas: mel de abelhas, frutas, coalhada, gansos assados, vinhos da colina de
Chaillé.
Os recém-chegados morriam de sede. Mas, depois de haver bebido o Marquês d'Andijos voltou-se e
cuspiu sobre o lajedo.
__ por São Paulino, barão, seus vinhos do Poitou me destroem
língua! O que me acaba de servir é um carrascão dos mais desagradáveis. Olá, gascões, tragam os
barris!
Sua simplicidade sem rodeios, seu acento cantante, o cheiro de alho que desprendia, longe de
desgostar o Barão de Sancé, encantaram-no.
Quanto a Angélica, não tinha forças nem para sorrir. Desde a véspera estivera tão atarefada, com a tia
Pulquéria e a ama, para dar ao velho castelo um aspecto apresentável, que se sentia der-reada e
ancilosada. Era melhor assim; pois já não podia pensar. Havia trajado o vestido mais elegante, feito em
Poitiers, ainda desta vez cinzento, mas com lacinhos azuis no çorpete: a patinha cinzenta entre os
senhores cobertos de fitas flamejantes. Não sabia que seu cálido rosto, firme e delicado como um fruto
recém-amadurecido, surgindo de uma grande gola de renda engomada, era, por si mesmo, seu mais
deslumbrante adorno. Os olhares dos três senhores voltavam-se sem cessar para ela, com uma admira-
ção que seu temperamento não lhes permitia dissimular. Começaram a fazer-lhe numerosos
cumprimentos. Angélica não os entendia bem, porquanto falavam em linguagem muito rápida, com
aquele acento inverossímil que fazia a palavra mais inexpressiva ressaltar num feixe de luz.
"Terei de ouvir falar assim por toda a minha vida?", perguntava a si mesma com tédio.
Nesse meio tempo, os lacaios rolavam na sala grandes barris, que puseram sobre cavaletes e
perfuraram em seguida. Feito o orifício, introduziram nele uma torneira de pau: o primeiro jorro deixou
no solo grandes poças de transparência rosa ou vermelho-escura com reflexos dourados.
— Saint-Emilion — dizia o Conde de Carbon-Dorgerac, que era bordelês -, Sauternes, Médoc...
Acostumados à aguapé de maçãs ou ao suco de abrunhos, os habitantes do Castelo de Monteloup
provavam com circunspecção
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os diferentes vinhos anunciados. Bem depressa Dionísio e os três garotos mais novos tornaram-se
demasiadamente alegres. Os vapores do vinho subiam-lhes à cabeça. Angélica sentiu-se invadida de
bem-estar. Via seu pai, risonho, desabotoar o casaco fora de moda sem se importar que lhe vissem a
camisa surrada. Já os Senhores do sul desabotoavam também suas curtas véstias sem mangas. Um deles
tirou a peruca para enxugar a fronte e tornou a pô-la meio torta.
Maria Inês, agarrada ao braço de sua irmã mais velha, gritava lhe ao ouvido, com voz aguda:
— Venha, Angélica, venha! Venha ver em cima, no seu quarto que maravilhas!
Ela deixou-se levar. No vasto aposento que tanto tempo havial partilhado com Hortênsia e Madelon,
haviam posto grandes malas de ferro e couro que então se chamavam garde-robe. Criados e criadas
haviam-nas aberto e estavam estendendo o conteúdo sobre o solo e algumas poltronas velhas. Sobre o
enorme leito, Angélica viu um vestido de tafetá verde do mesmo tom de seus olhos. Uma renda de
extraordinária finura adornava o espartilho, e o plastrão do corpete era inteiramente recamado de
diamantes e esmeraldas, reunidos em forma de flores. O mesmo desenho floral se reproduzia no veludo
lavorado do manto, que era de cor negra. Broches de diamantes mantinham-no erguido de cada lado da
saia.
— Seu vestido de núpcias — disse o Marquês d'Andijos, que havia acompanhado as jovens. — O
Conde de Peyrac procurou por muito tempo, entre os tecidos que mandou trazer de Lyon, uma. cor que
combinasse com os seus olhos.
— Ele nunca os viu — retrucou Angélica.
— O Sieur Molines descreveu-os cuidadosamente: são da cor do mar, disse-lhe, tal como se vê da
praia quando o sol mergulha em suas profundezas.
— Maldito Molines! — exclamou o barão. — Não me fará acreditar que ele seja poeta a esse ponto.
Suspeito, marquês, que enfeite a verdade para ver alegres os olhos de uma jovem noiva, hsonjeada por
tal atenção da parte de seu futuro marido.
— E isto! E isto! Olhe, Angélica! — exclamava Maria Inês, cuja carinha de camundongo esperto
brilhava de excitação.
Com seus dois irmãos mais novos, Alberto e João Maria, levantava as finas roupas e abria caixas onde
se viam fitas e adornos de renda, ou ainda leques de pergaminho e de plumas. Havia um encantador
estojo de viagem, de veludo verde forrado de damasco branco e com guarnições de prata dourada,
provido de duas escoum estojo de ouro com três pentes, dois espelhinhos italia-oS' uma alfineteira, duas
coifas e uma camisola de finíssima Jbraia, um castiçal de marfim e um saco de cetim verde com 5eis
velas de cera virgem.
Também havia vestidos mais simples, porém muito elegantes, luvas, cintos, um reloginho de ouro e
inúmeras outras coisas de cllja utilidade Angélica nem sequer suspeitava, como uma caixa de nácar na
qual se encontrava uma coleção de "moscas" de veludo preto sobre tafetá engomado.
__ É de bom-tom — explicou o Conde de Carbon — colocar este sinal de beleza em qualquer lugar do
rosto.
— Não tenho a cútis suficientemente branca e não é preciso acentuar isso — disse Angélica, fechando
a caixa.
Cumulada de presentes, hesitava entre uma alegria infantil e um arrebatamento de mulher que, tendo o
gosto instintivo do adorno e da beleza, toma consciência disso pela primeira vez.
— E isto? — perguntou o Marquês d'Andijos. — Sua cútis se nega também a partilhar seu brilho?
Abriu um escrínio chato. No aposento, onde se amontoavam criadas, lacaios e trabalhadores do campo,
ressoou um grito, seguido de murmúrios de admiração.
Sobre o cetim branco havia um tríplice colar de pérolas de brilho puríssimo, um pouco dourado. Nada
podia convir melhor a uma jovem noiva. Completavam o jogo dois brincos e duas cadeias de pérolas
menores, que Angélica pensou fossem braceletes.
— São adornos de cabelo — explicou o Marquês d'Andijos, que, apesar de seu ventre e de seus modos
guerreiros, parecia muito entendido em assuntos de elegância. — Com isso levantará a sua cabeleira.
Para dizer a verdade, não saberia explicar-lhe como.
— Vou penteá-la, senhora — interveio uma criada alta e forte, aproximando-se.
Embora mais moça, parecia-se dè maneira estranha com a ama Fantina Lozier. O mesmo sangue
sarraceno, trazido pelas antigas invasões, havia-lhe tostado a pele. Uma e outra já trocavam relances
hostis com seus olhos igualmente escuros.
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— É Margarida, irmã de leite do Conde de Peyrac. Esteve a serviço das grandes damas de Toulouse e
muitas vezes acompanhou seus amos a Paris. Será de agora em diante vossa aia.
Com habilidade, a criada levantou a longa cabeleira dourada e segurou-a com laçadas de pérolas. Sem
interrupção, retirou das orelhas de Angélica as modestas pedrinhas que seu pai lhe havia ofertado para a
primeira comunhão e nelas prendeu os magníficos brincos. Por último, pôs-lhe o colar.
— Ah! Seria bom descobrir um pouco mais o peito — exclamou o pequeno Barão Cerbalaud, cujos
olhos, negros como as amoras do bosque depois da chuva, procuravam adivinhar as graciosas formas da
jovem.
O Marquês d'Andijos deu-lhe sem cerimônia uma bengalada na cabeça.
Um pajem precipitou-se trazendo um espelho.
Angélica se mirava em seu novo esplendor. Tudo nela parecia fulgir, até sua pele lisa, levemente
tingida de rosa nas faces. Um prazer súbito fê-la abrir os lábios num sorriso feiticeiro.
"Sou formosa", pensou.
Mas tudo se nublou ante seus olhos, e, oriunda do espelho, pareceu-lhe ouvir a terrível zombaria:
"Coxo! Coxo! E mais feio que o Diabo! Ah! ah! ah! Que belo esposo vai ter, Srta. de Sancé!"
O matrimônio por procuração realizou-se oito dias depois, e as festas duraram três dias. Dançou-se em
todas as aldeias da vizinhança, e na noite das bodas dispararam-se petardos e foguetes em Mon-teloup.
No pátio do castelo e nos prados vizinhos havia grandes mesas providas de jarras de vinho e sidra e de
todas as espécies de vian-das e frutas que os camponeses vinham comer, uns após outros, assombrados
ante aqueles gascões e tolosanos ruidosos, cujos pandeiros, alaúdes, violinos e vozes de rouxinol
mofavam do rabequista da aldeia e do tocador de flauta campestre.
Na última tarde anterior à partida da noiva para as distantes terras do Languedoc, houve um grande
festim no pátio do castelo, que reuniu todos os castelões e pessoas importantes dos arredores. O Sieur
Molines esteve presente, com sua mulher e filha.
Na grande câmara onde tantas vezes, à noite, Angélica tinha ouvido ranger os enormes cata-ventos do
velho castelo, a ama a ajudava a vestir-se. Depois de haver escovado com carinho seus formosos
cabelos, apresentou-lhe o corpete turquesado e acolchetou o plastrão ornado de jóias.
— Como está linda! Ah! Como está linda, meu tesouro! — susrrava com ar desconsolado. — Seus
seios são tão firmes que você não teria necessidade de usar esses duros corpetes. __ Não estou
demasiado decotada, minha bá?
— Uma grande dama tem de mostrar o busto. Como está formosa! E para quem, santo Deus! —
suspirou com voz sufocada.
Angélica viu que o rosto de sua Fantina estava inundado de lágrimas.
— Não chore, babá, que assim me tira o ânimo.
— E vai fazer-lhe falta, ai, minha filha!... Baixe a cabeça para que possa fechar seu colar. As pérolas
do cabelo deixaremos para Margarida pôr; não entendo nada destes enredamentos!... Ai, meu tesouro,
que desgosto o meu! Quando penso que essa mulherona, que fede a alho e a demônio a meia légua de
distância, é quem vai lavá-la e rapar-lhe os pêlos no dia de suas núpcias! Ai, que desgosto!
Ajoelhou-se para ajeitar no chão a cauda do manto. Angélica ouviu-a soluçar. Não podia imaginar tão
grande desespero, e sentiu crescer a ansiedade que lhe apunhalava o coração.
Ainda de joelhos, Fantina Lozier murmurou:
— Perdoe-me, filha, por não haver sabido defendê-la, eu que a alimentei com o meu leite. Mas, desde
que, há muitos dias, comecei a ouvir falar desse homem, não pude pregar olho nem uma só noite.
— Que dizem dele?
A ama se levantou; recuperava já seu olhar sombrio e fixo de profetisa.
— Falam de ouro, ouro... Tem o castelo cheio de ouro...
— Ter ouro não é pecado, minha bá. Olhe quantos presentes me fez. Estou encantada com eles.
— Não se engane, filha. Esse ouro é maldito. Ele o fabrica em suas retortas, com seus filtros. Um dos
pajens, aquele que toca tão bem o tamborim, Enrico, contou-me que em seu palácio de Toulouse, um
palácio rubro como o sangue, existe uma ala inteira em que ninguém pode entrar. Quem guarda a porta é
um homem completamente negro, tão negro como o fundo de minhas panelas. Um dia em que o guarda
estava ausente, Enrico viu pela porta entrea-berta uma grande sala cheia de balões de vidro, retortas e
tubos. E tudo silvava, e tudo fervia! De súbito produziu-se uma chama e um forte estrondo. Enrico fugiu.
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— Esse rapaz tem muita imaginação, como todas as pessoas do sul.
— Ai! Ele falou com um tom de sinceridade que não engana. Esse Conde de Peyrac é um homem que
conseguiu poder e riqueza aliado ao Capeta! Um Gil de Retz, é o que ele é! Um Gil de Retz que nem ao
menos é do Poitou!
— Não diga tolices! — replicou Angélica, com dureza. — Ninguém jamais contou que ele come
crianças.
— Atrai as mulheres — cochichou a ama — com estranhos encantamentos. Em seu palácio há
verdadeiras orgias. Parece que o Arcebispo de Toulouse o denunciou do púlpito, dizendo que é um
escândalo, uma coisa do Demônio. E o danado do pajem que me contou tudo ontem na cozinha, rindo-se
como um louco, disse que depois do sermão o Conde de Peyrac deu ordem aos seus homens de
esbordoar os pajens e criados do arcebispo, e que houve luta até na catedral. Você acredita que tais
abominações poderiam ocorrer entre nós? E todo esse ouro que possui, aonde o foi buscar? Seus pais
não lhe deixaram senão dívidas e terras hipotecadas. E um nobre que não freqüenta o rei nem os grandes.
Dizem que quando o Príncipe d'Orléans, que é governador do Languedoc, foi a Toulouse, o conde se
negou a dobrar o joelho diante dele, sob o pretexto de que se fatigava. E como monsieur o fez saber, sem
zangar-se, que podia conseguir-lhe grandes benefícios em alto posto, o Conde de Peyrac respondeu-lhe
que...
A velha Fantina interrompeu-se e começou muito solícita a prender alfinetes aqui e ali, na saia de
Angélica, onde nenhum fazia falta.
— Respondeu-lhe o quê?
— Que... que o ter o braço longo não lhe fazia a perna menos curta. Que insolência!
Angélica mirava-se no espelhinho redondo do seu estojo de viagem e alisava cuidadosamente as
sobrancelhas depiladas por Margarida.
— Então é verdade o que me contaram, é verdade que ele é coxo? — disse, esforçando-se por dar à sua
voz uma inflexão indiferente.
— É verdade, meu tesouro. Ai, Jesus! Você, tão formosa!
— Cale-se, babá. Aborrece-me com tantos suspiros. Vá chamar Margarida para me pentear e não torne
a falar do Conde de Peyrac como acaba de fazê-lo. Não esqueça que, de agora em diante, ele é meu
marido.
No pátio, ao chegar a noite, haviam acendido fachos. Os músicos, agrupados na escada e formando
uma pequena orquestra de duas sanfonas, um alaúde, uma flauta e um oboé, acompanhavam ern
surdina as ruidosas conversações. Angélica ordenou de repente que fossem buscar o rabequista da
aldeia que tocava para os camponeses dançarem no grande prado junto ao castelo. Seus ouvidos não
estavam acostumados àquela outra música sem vida, feita para a corte e as reuniões dos senhores
cobertos de rendas. Uma vez mais queria escutar as doces gaitas do Poitou e o som alegre da
charamela marcando o embate surdo dos tamancos camponeses. O céu estava estrelado, mas coberto
por ligeira névoa, que punha um halo dourado em redor da lua. As viandas e os bons vinhos
desfilavam sem cessar. Alguém colocou uma cesta com pãezinhos redondos ainda quentes diante de
Angélica, e ali a deixou até que a jovem levantasse os olhos para quem a ofertava. Viu um homem
alto, vestido de rico pano cinzento-claro, da cor que usam os moleiros. Tinha os cabelos
abundantemente empoados, à moda dos nobres, e seus ornatos eram de fazenda fina.
— Aqui está Valentim, o filho do moleiro, que traz sua homenagem à noiva — exclamou o Barão
Armando.
— Valentim — disse Angélica sorrindo —, ainda não o havia visto desde meu regresso à terra. Você
continua indo aos canais com seu barco em busca de angélicas para os monges de Nieul?
O rapaz inclinou-se profundamente, sem responder. Esperou que Angélica se servisse e, depois,
erguendo a cesta, passou-a em redor. Finalmente, perdeu-se na multidão, no meio da noite.
"Se toda esta gente se calasse, ouviria nesta hora coaxar as rãs do pântano", pensou Angélica. "Se eu
voltar daqui a alguns anos, talvez já não as ouça, porque as águas terão recuado diante de novas obras."
— Prove isto; é absolutamente necessário — disse-lhe ao ouvido a voz do Marquês d'Andijos.
Apresentava-lhe um prato de aspecto não muito tentador, mas de cheiro apetitoso.
— É um guisado de trufas verdes, minha senhora. Vieram frescas do Périgord. Saiba que a trufa é
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divina e mágica. Não há manjar que melhor prepare o corpo de uma jovem esposa para receber as
homenagens de seu marido. A trufa dá calor às entranhas, ativa o sangue e torna a pele mais sensível às
carícias.
— Pois não vejo necessidade de comê-la esta noite — disse friamente Angélica, recusando a terrina de
prata. — Não encontrarei meu marido senão daqui a semanas.
— Mas tem de preparar-se, minha senhora. Acredite-me, a trufa é a melhor amiga do himeneu. Com
este delicioso regime, será toda ternura na noite de vossas núpcias.
— Em minha terra — disse Angélica olhando-o de frente com um leve sorriso —, antes do Natal
cevam-se os gansos com fun-cho para que sua carne fique mais saborosa na noite em que serão comidos
assados...
O marquês, meio ébrio, soltou uma gargalhada.
— Ah, como eu gostaria de ser o que há de trincar essa gansinha! — disse, inclinando-se tanto para ela
que seu bigode lhe roçou a face. — Deus que me condene — acrescentou, erguendo-se e pondo uma das
mãos sobre o coração — se for levado a proferir outras inconveniências! Ai de mim! A culpa não é toda
minha, pois vim enganado. Quando meu amigo Joffrey de Peyrac me pediu que desempenhasse junto a
você o papel de um marido sem seus encantadores direitos, fi-lo jurar que você era corcunda e zarolha,
mas vejo que uma vez mais não se deu ao trabalho de poupar-me a tormentos. Verdadeiramente não quer
provar as trufas?
— Não, obrigada.
— Então eu as comerei — disse com um trejeito que noutra ocasião teria divertido a jovem —, embora
seja um falso marido e, além do mais, solteiro. Espero que a sorte me seja favorável e ponha em meu
caminho, nesta noite festiva, algumas damas menos cruéis que você.
Angélica esforçou-se por sorrir ante aquelas loucuras. Archotes e candelabros desprendiam um calor
insuportável. Não havia nem a mais leve aragem. Cantavam e bebiam. O forte cheiro dos vinhos e dos
molhos dificultavam a respiração.
Angélica passou um dedo sobre as têmporas e viu que estavam úmidas.
"Que é que eu tenho?", pensou. "Parece-me que vou explodir, que vou gritar a todos palavras de ódio.
Por quê?... Meu pai é feliz. Casa-me quase principescamente. Minhas tias estão jubilosas. O Conde de
Peyrac enviou-lhes grandes colares de rochas dos Pireneus e toda sorte de bugigangas. Meus irmãos e
irmãs poderão receber boa educação. E eu, por que me queixo? Sempre nos preveniram no convento
contra os sonhos romanescos. Um esposo fico e de boa casa não é o fim primacial para uma jovem de
qualidade?"
Um tremor semelhante ao dos cavalos aguados a invadiu. No entanto, não estava cansada. Era uma
reação nervosa, uma revolta física de todo o seu ser, que no momento mais inesperado cedia.
"Será medo? Sempre essas malditas histórias de minha bá, que acredita ver o Demônio por toda parte.
Por que hei de crer nela? Certamente exagerou. Nem Molines nem meu pai me ocultaram que o Conde
de Peyrac é um sábio. Mas daí a imaginar semelhantes orgias demoníacas há enorme distância. Se a
babá acreditasse verdadeiramente que vou cair nas mãos de semelhante ser, não me deixaria partir. Não,
disso não tenho medo. Não creio nisso."
A seu lado, o Marquês d'Andijos, guardanapo ao queixo, levantava com uma das mãos uma sucosa
trufa e com a outra o copo de bordeaux. Declamava com voz ligeiramente rouca, que de vez em quando
se perdia num soluço satisfeito:
— Ó trufa divina, benfeitora dos enamorados! Introduz em minhas veias o alegre fogo do amor!
Acariciarei minha amada até o amanhecer!...
"A isso, a isso é que me nego", pensou subitamente Angélica. "Isso é que nunca poderei suportar."
Teve a visão do senhor espantoso e deforme a quem ia dentro em pouco ser entregue. No silêncio das
noites daquele distante Languedoc, o homem desconhecido teria sobre ela todos os direitos. Poderia
chamar, bradar, suplicar. Ninguém lhe acudiria. Ele a tinha comprado; haviam-na vendido. E assim seria
o fim de sua vida!
"Eis o que todos estão pensando e ninguém diz, o que talvez se cochiche nas cozinhas, entre lacaios e
criadas. É por isso que vejo uma espécie de compaixão estampada nos olhos desses músicos do sul, nos
do lindo Enrico de cabelos crespos, que tão bem toca o tamborim. Mas a hipocrisia é maior que a
piedade. Uma so pessoa sacrificada e tantas contentes! O ouro e o vinho correm a rodo. Que lhes
importa o que vai suceder entre seu senhor e mim. Ah, eu juro, nunca me porá as mãos em cima!..."
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Levantou-se, invadida por uma cólera terrível, e o esforço que azia Para dominar-se a punha quase
enferma. No alarido da festa ninguém reparou em sua saída.
Ao dar com o mordomo que seu pai havia contratado em Niort, de nome Clemente Tonnel,
perguntou-lhe onde estava o criadQl Nicolau.
— Está no celeiro, enchendo as garrafas, minha senhora.
Angélica seguiu avante, movendo-se como um autômato. Não sabia por que procurava Nicolau, mas
queria vê-lo. Após a cena do bosque, Nicolau não havia voltado a erguer os olhos para a moça,
limitando-se a fazer seu serviço de lacaio com um misto de esmero e aversão. Achou-o na adega
ocupado em encher de vinho os cântaros e garrafòes que os pequenos criados e os pajens lhe traziam
sem cessar. Vestia uma libre amarela ornada de galões que o Sr. de Sancé havia alugado para a
ocasião. Longe de parecer ridículo com aquela roupa, o jovem camponês não era falto de elegância.
Ergueu-se ao ver Angélica e fez a profunda reverência que o mordomo Clemente havia ensinado
durante horas inteiras a todos os criados da casa.
— Estava procurando você, Nicolau.
— Senhora condessa...
Angélica lançou um olhar aos criadinhos que esperavam com suas vasilhas na mão.
— Ponha um moço em seu lugar por alguns instantes e acompanhe-me.
Já fora, passou a mão sobre a testa. Na verdade, não sabia exatamente o que ia fazer, mas a exaltação a
invadia com o cheiro em-briagante das poças de vinho espalhadas pelo chão. Empurrou a porta de um
celeiro vizinho: ali também flutuava o capitoso aroma do vinho, pois lá estiveram criados enchendo
garrafas durante uma parte da noite. Agora os barris estavam vazios e o celeiro, deserto. Fazia calor.
Angélica pôs as mãos no forte peito de Nicolau. Subitamente agarrou-se a ele, sacudida por soluços.
— Nicolau — gemia —, meu companheiro, diga-me que não e verdade. Que não vão levar-me, que
não vão entregar-me a ele. Tenho medo, Nicolau. Aperte-me, aperte-me com força!
— Senhora condessa...
— Cale-se! — gritou. — Ah! Não seja mau também você!
E acrescentou com voz rouca e ofegante que ela própria quase não reconheceu como sua:
— Aperte-me! Aperte-me com força! É tudo o que lhe peço!
Ele pareceu vacilar. Depois seus robustos braços de lavrador cingiram o delgado talhe.
O celeiro estava às escuras. O calor da palha amontoada produzia uma espécie de tensão vibratória,
semelhante à da tempestade. Angélica, enlouquecida, embriagada, rolava a fronte no ombro de Nicolau.
De novo sentia-se envolvida pelo selvagem desejo do homem mas desta vez se lhe abandonava.
— Ai! — suspirava. — Você é bom! Você é meu amigo! Quisera me amasse... Só uma vez... Só uma
vez quero ser amada por um homem jovem e belo. Compreende?
Passou os braços em torno da nuca maciça do rapaz e obrigou-o a inclinar o rosto para ela. Ele havia
bebido, e seu hálito tinha o aroma do vinho ardente.
Nicolau suspirou:
— Marquesa dos Anjos...
— Ame-me — balbuciou ela, os lábios contra seus lábios. — Só uma vez. Depois partirei... Não quer?
Será que já não me ama?
Ele respondeu com um rugido surdo e, carregando-a nos braços, titubeou na sombra e foi cair com ela
sobre o montão de palha.
Angélica sentia-se a um tempo estranhamente lúcida e como liberta de todas as contingências
humanas. Acabava de penetrar em outro mundo: flutuava por cima do que havia sido sua vida até então.
Aturdida pela obscuridade total do celeiro, pelo calor e pelo cheiro confinado, pelo inédito daquelas
carícias ao mesmo tempo brutais e experientes, procurou antes de tudo dominar seu pudor, que a fazia
retrair-se a contragosto. Desejava, ardentemente, que aquilo fosse feito, e depressa, porque podiam
surpreendê-los. Cerrando os dentes, repetia para si mesma que não haveria de ser o outro quem a
possuiria primeiro. Assim se vingaria, essa seria sua resposta ao ouro que acreditava poder comprar
tudo.
Atenta às injunções do homem, cuja respiração se acelerava, ela cedia, tudo aceitava dele, abria-se
documente sob o peso daquele corpo, que parecia esmagá-la.
Subitamente brilhou a luz de uma lanterna através do celeiro, eda porta veio um grito de mulher
horrorizada. Nicolau, de um salto, atirou-se para um lado. Angélica viu um homem forte precipitar-se
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sobre o criado. Reconheceu o velho Guilherme e impediu-lhe a passagem, agarrando-se a ele com todas
as suas forças. Agilmente Nicolau já tinha alcançado as vigas do teto e aberto uma trapeira. Ouviram-no
saltar para fora e correr.
A mulher, na soleira, continuava a berrar. Era a tia Joana, um cântaro na mão e a outra espalmada
sobre o amplo seio palpitante.
Angélica soltou Guilherme para se lançar sobre ela, e enterrou lhe as unhas no braço.
— Cale-se, velha louca!... Deseja que rebente um escândalo e que o Marquês d'Andijos se retire com
seus presentes e suas promessas? Então acabar-se-iam suas pedras dos Pireneus e suas gulosemas. Cale-
se, se não quer que lhe enterre o punho nessa velha boca desdentada!
Dos celeiros vizinhos acudiam criados e camponeses. Angélica viu aproximar-se a ama e, atrás dela,
seu pai, que, não obstante as copiosas libações e o andar inseguro, continuava a zelar pela boa ordem do
festim.
— É você, Joana, que lança esses gritos?
— Ai, Armando, eu morro! — exclamou a solteirona, perdendo o fôlego.
— E por quê, mana?
— Vim aqui buscar um pouco de vinho, e vi nesse palheiro... vi...
— Tia Joana viu um bicho, não sabe se uma serpente ou uma fuinha — interrompeu Angélica —, mas
na verdade, tia, não é caso para se perturbar... Faria melhor em voltar para a mesa, e ali lhe levariam seu
vinho.
— Isso, isso — aprovou o barão com voz pastosa. — Pela primeira vez, Joana, que procurou ser útil,
acabou assustando todo mundo.
"Ela não procurou ser útil", pensava Angélica. "Espiava-me, seguia-me. Vive há tanto tempo no
castelo, sentada diante de sua tapeçaria como uma aranha em sua teia, que nos conhece a todos melhor
do que nós mesmos; fareja, adivinha os nossos pensamentos. Veio me seguindo. Pediu ao velho
Guilherme que a acompanhasse com a lanterna."
Seus dedos continuavam enterrados nos antebraços gelatinosos da gorda mulher.
— Compreendeu bem? — cochichou. — Nem uma palavra sobre o que viu, do contrário, juro que a
enveneno com umas ervas que conheço.
Tia Joana soltou um último cacarejo e revirou os olhos. Mas a alusão a seu colar, mais ainda que a
ameaça, a havia subjugado. Contraindo os lábios, seguiu o irmão.
Uma rude mão deteve Angélica. Com ar severo, o velho soldado tirou-lhe dos cabelos e do vestido as
palhas penduradas. Angélica levantou os olhos para ele e buscou decifrar a expressão de seu rosto
barbado.
— Guilherme — murmurou —, quero que compreenda...
— Não necessito compreender, senhora — respondeu em alemão com uma altivez que foi para ela
como uma bofetada. — Basta-me o que vi.
Ergueu o punho na sombra e rosnou uma injúria. Angélica levantou a cabeça e volveu ao festim. Ao
sentar-se à mesa procurou com a vista o Marquês d'Andijos e o viu por terra, debaixo de seu mocho,
dormindo como um justo. Alguns dos convidados haviam ido embora ou estavam dormindo, mas no
prado ainda continuava o baile.
Empertigada, Angélica continuou presidindo, sem sorrir, o seu banquete de núpcias. A irritação que
sentia por causa daquele ato inacabado, por aquela vingança que não tinha podido consumar, enchia-a de
dor até a ponta das unhas, a cólera e a vergonha disputavam-lhe o coração. Tinha perdido o velho
Guilherme. Mon-teloup a repelia. Não lhe restava outro caminho senão ir juntar-se ao marido coxo.
CAPÍTULO XIII
Chegada a Toulouse — O marido de Angélica é o "Grande Coxo do Languedoc"
No dia seguinte, quatro coches e duas pesadas viaturas tomavam o caminho de Niort. Angélica tinha
dificuldade em acreditar que toda aquela ostentação de cavalos e postilhões, aqueles gritos e rangidos de
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eixos fossem em sua honra. Tanta poeira revolvida para a Srta. de Sancé, que jamais conhecera outra
escolta que não um velho mercenário com sua lança, era inimaginável.
Lacaios, criadas e músicos amontoavam-se nas grandes viaturas com as bagagens. Ao sol da manhã,
entre vergéis floridos, via-se passar aquele cortejo de rostos morenos. Risos, canções, dedilhados de
guitarras deixavam após si, como o cheiro do estéreo, um traço de despreocupação. Os filhos do sul
voltavam ao seu Midi fagulhento, perfumado de alho e de vinho.
O mordomo Clemente Tonnel era o único que, no meio de tão alegre bando, assumia ares de
gravidade. Contratado para a semana das bodas, havia pedido que o reconduzissem depois a Niort, o que
lhe poupava a despesa com uma escolta. Mas logo na primeira parada veio falar com Angélica.
Propunha-lhe ficar a seu serviço, fosse como mordomo, fosse como criado-grave. Explicou que havia
servido, em Paris, em casa de importantes senhores, cujos nomes citou; mas, tendo ido a Niort, de onde
era natural, para adir a herança de seu pai açougueiro, um criado intrigante havia-lhe tomado o último
emprego. Desde então procurava uma casa honrada e de boa linhagem para nela exercer suas funções.
Discreto e inteligente, havia conquistado a simpatia da criada Margarida. Esta lhe assegurou que um
novo criado, tão hábil em seu ofício, seria bem acolhido no palácio de Toulouse. O senhor conde estava
rcado de domésticos de vários tipos e cores, que não desempenhavam um serviço decente. Todos
folgavam ao sol, e o mais preguiçoso era sem dúvida alguma o intendente Afonso, encarregado de dirigi-
los.
Angélica, pois, contratou o mordomo Clemente. Sentia-se atemorizada, sem saber por quê, mas
agradava-lhe que ele falasse como
cornum dos mortais, sem aquele insuportável acento que começava a exasperá-la. Aquele homem frio,
dócil, quase demasiado servil em suas demonstrações de respeito e em suas atenções, aquele criado
ontem desconhecido, representaria para ela a sua província.
Ao deixar para trás Niort, a capital dos pântanos, com o seu pesado torreão negro como ferro, a
equipagem da Sra. de Peyrac precipitou-se para a luz. Quase sem o perceber, Angélica se achou em
meio a uma paisagem inusitada, sem sombras, raiada por vinhedos em todos os sentidos. Passaram não
longe de Bordéus. Depois, os verdes milharais alternavam com as vinhas. Nas cercanias do Béarn os
viajantes foram recebidos no castelo do Sr. Antonino de Cau-mont, Marquês de Péguilin, Duque de
Lauzan. Angélica olhou com atenção aquele homenzinho cuja graça e talento faziam dele, afirmava
Andijos, "o moço mais adulado da corte". O próprio rei, que se esforçava por assumir um ar de seriedade
em sua adolescência, não resistia às facécias de Péguilin, que o faziam rebentar de riso em pleno
conselho. Justamente Péguilin estava naquele momento em suas terras, com certeza purgando algum
remoque excessivo para com Mazarino. Mas não parecia pesaroso e contava mil histórias.
Angélica, pouco habituada à gíria da galanice então em voga na corte, não compreendia metade de
suas narrações, mas a estada naquele sítio foi alegre e animada e serviu para lhe relaxar os nervos. O
Duque de Lauzan extasiou-se ante sua beleza e a saudou em versos improvisados.
— Ah, meus amigos! — exclamava. — Fico pensando se a Voz de Ouro do Reino não irá perder sua
nota mais alta.
Assim foi que Angélica ouviu falar pela primeira vez na Voz de Ouro do Reino.
— É o maior cantor de Toulouse — explicaram. — Desde os grandes trovadores medievais, o
Languedoc não conheceu outro igual!
Ouvi-lo-á, minha senhora, e não poderá resistir ao seu encanto.
Angélica procurava não desiludir seus hospedeiros, mantendo um semblante alegre. Todas aquelas
pessoas eram simpáticas, e às vezes triviais, mas tratavam-na sempre com gentileza. O ar superaquecido,
as coberturas de telhas, as folhas dos plátanos tinham a cor do vinho branco, dando uma sensação de
leveza.
Mas, à medida que ia chegando o término da viagem, Angélica sentia que o coração se lhe tornava
mais pesado.
Na véspera da entrada em Toulouse, alojaram-na em uma das habitações do Conde de Peyrac, formoso
castelo de pedras claras em estilo renascentista. Angélica fruiu o conforto de uma das peças, aquela
onde se encontrava a piscina de mosaico. Margarida a atendia com solicitude. Receava que o pó e o
calor dos caminhos houvessem escurecido ainda mais o rosto de sua senhora.
A criada ungiu-a com substâncias aromáticas e, depois de fazê-la deitar sobre um diva, fez-lhe
massagens com força e depilou-a completamente. Angélica não ficou surpreendida com aquele costume,
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que, outrora, nos tempos em que havia termas romanas em todas as cidades, era praticado até pela gente
do povo. Agora, somente as jovens da alta sociedade se submetiam a isso. Era de muito mau gosto que
uma grande dama conservasse pêlos supérfluos. Mas enquanto sua aia tanto se empenhava em conseguir
que ela tivesse um corpo perfeito, Angélica não podia senão sentir uma espécie de horror.
"Ele não me tocará", pensava. "Jogar-me-ei antes pela janela."
Mas nada podia já deter a corrida louca, o torvelinho que a arrastava.
Na manhã seguinte, cheia de apreensões, subiu pela última vez para o coche que em poucas horas a
levaria a Toulouse. O Marquês d'Andijos sentou-se ao seu lado. Estava contentíssimo, cantarolava,
tarameleava.
Mas Angélica não o ouvia. Após alguns minutos, viu o posti-lhão diminuir o tiro dos animais. A
pequena distância do coche, um grupo de pessoas a pé e a cavalo obstruía o caminho. Quando o carro se
deteve, ouviram-se melhor os cantos e os gritos marcados pelo toque ritmado dos tamborins.
— Por São Severino! — exclamou o marquês, dando um salto. — Creio que é seu esposo que vem ao
nosso encontro.
Angélica sentiu-se empalidecer. Os pajens abriram as portinho-las. Teve de pisar a areia da estrada,
sob um sol implacável. O céu estava azul-escuro. Uma multidão cintilante se aproximava. Vestidos com
trajes estranhos, de grandes losangos rubros e verdes, uma nuvem de meninos saltavam fazendo
cabriolas incríveis, e vinham esbarrar nos cavalos, cujos ginetes usavam vestimentas extravagantes de
cetim rosa e plumas brancas.
—Os príncipes dos amores! Os cômicos da Itália! — exultou o marquês, abrindo os braços com um
gesto de entusiasmo perigoso para aqueles que o rodeavam. — Ah, Toulouse, Toulouse!
A multidão abriu alas. Um grande vulto desengonçado e bam-boleante apareceu vestido de veludo
púrpura e apoiando-se numa bengala de ébano.
A medida que tal personagem avançava coxeando, podia-se distinguir, emoldurado por ampla
cabeleira negra, um rosto tão desagradável como o conjunto de sua figura. Duas profundas cicatrizes
riscavam-lhe a fronte e a face esquerda e lhe repuxavam a pálpe-bra. Tinha os lábios grossos e não
usava bigode, o que era contrário à moda e acrescia o aspecto insólito do curioso espantalho.
"Que não seja ele", rezou Angélica. "Meu Deus, que não seja ele!"
— Seu esposo, o Conde de Peyrac, minha senhora — disse o Marquês d'Andijos.
Angélica curvou-se na reverência que havia aprendido. Seu espírito conturbado ia reparando em
pormenores ridículos: o laço de diamantes dos sapatos do conde, o tacão de um deles um pouco mais
alto que o outro para atenuar sua coxeadura, as meias franzidas com baguettes de seda bordadas, o traje
luxuoso, a espada, a enorme gola de rendas brancas.
Ele falou-lhe. Angélica respondeu qualquer coisa. Sentia-se atordoada pelo som dos tambores e pelo
toque estridente dos clarins.
Ao voltar ao coche, caíram-lhe no regaço uma braçada de rosas e buquês de violetas.
— As flores, ou "gozos primiciais" — disse uma voz. — Elas reinam sobre Toulouse.
Angélica percebeu que já não era o Marquês d'Andijos, mas o outro, quem estava a seu lado. Para não
ver o espantoso semblante, inclinou-se para as flores.
Pouco depois surgiu a cidade, eriçada de torres e campanários vermelhos. O cortejo avançou através
de ruelas estreitas, profundos corredores fracamente alumiados por uma luz purpúrea.
No palácio do Conde de Peyrac enfiaram rapidamente em Angélica um magnífico vestido de veludo
branco, incrustado de cetim da mesma cor. Atilhos e laços eram adornados de diamantes. Enquanto a
vestiam, as aias serviam-lhe bebidas geladas. Ao meio-dia repicaram os sinos e ao seu alegre compasso o
cortejo se dirigiu para a catedral, onde o arcebispo esperava os noivos no átrio.
Após a bênção, Angélica, segundo o costume dos príncipes, percorreu a nave sozinha. O claudicante
senhor a precedia, e aquela figura vermelha e agitada pareceu-lhe subitamente tão extraordinária, sob
aquelas abóbadas nubladas de incenso, como a do próprio Diabo.
Lá fora, dir-se-ia que toda a cidade estava em festa. Angélica não chegava a conciliar todo aquele
estrépito com o acontecimento pessoal que representava seu casamento com o Conde de Peyrac. In-
conscientemente, buscava em outra parte o espetáculo que punha nos rostos da multidão sorrisos tão
abertos. Mas todos os olhos estavam voltados para ela. Diante dela é que se inclinavam aqueles senhores
com olhares ardentes e aquelas damas luxuosamente ataviadas.
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Para voltar da catedral ao palácio, os novos esposos montaram em dois cavalos magnificamente
ajaezados. O caminho, seguindo as margens do Garonne, estava juncado de flores, e os cavaleiros com
trajes cor-de-rosa, a quem o Marquês d'Andijos havia chamado "os príncipes dos amores", continuavam
a derramar-lhe cestas inteiras de pétalas. A esquerda cintilava o rio dourado e os bar-queiros gritavam
sonoros "vivas".
Angélica sorria quase maquinalmente. O céu, de um azul puríssimo, e o cheiro das flores trilhadas a
embriagavam. Subitamente conteve um grito: ia escoltada por pajenzinhos cujas caras, cor de alcaçuz,
acreditou de início que estivessem mascaradas. Mas logo percebeu que tinham a pele negra. Era a
primeira vez que via negros.
Decididamente, o que ia vivendo tinha algo de irreal. Sentia-se extremamente só naquele sonho
impreciso, do qual, talvez, ao despertar, procuraria recordar-se.
Continuava ao seu lado o perfil grotesco do homem que chamavam seu marido e a quem aclamavam.
Moedinhas de ouro tilintavam sobre as pedras. Os pajens lançavam-nas por entre a multidão, que
lutava na poeira para recolhê-las.
Nos jardins do palácio haviam sido dispostas à sombra longas mesas brancas. Corria o vinho das
fontes, diante das portas, para que as pessoas da rua pudessem beber. Os nobres e os grandes burgueses
tinham acesso ao interior.
Angélica, sentada entre o arcebispo e o homem de vermelho, incapaz de comer, viu desfilar um
número incalculável de serviços e pratos: terrinas de perdiz, filés de pato, romãs sangüíneas, codornizes
fritas, trutas, coelhinhos, saladas, tripas de cordeiro, foie gras. Eram incontáveis as sobremesas: creme
frito ornado com filhós de pêssego, tortas de mel, doces de todas as espécies, pirâmides de frutas tão
altas quanto os negrinhos que as levavam. Sucediam-se vinhos de todos os matizes, desde o mais escuro
vermelho até o ouro mais pálido.
Angélica notou junto a seu prato uma espécie de forquilha de ouro. Olhando em derredor, viu que a
maioria dos comensais a utilizavam para espetar a carne e levá-la à boca. Procurou imitá-los, mas depois
de alguns ensaios infrutíferos preferiu voltar à sua colher. Deixaram-na à vontade, ao verem que não
sabia usar aquele pequeno e curioso instrumento, a que todo mundo chamava "garfo". Esse ridículo
incidente aumentou seu desconcerto.
Nada é mais difícil de suportar do que os regozijos alheios em que não toma parte o nosso coração.
Empertigada em sua apreensão e seu desgosto, Angélica sentia-se fatigada de tanto ruído e tanta
abundância. Altiva por natureza, não deixava transparecer nada, sorria e encontrava sempre uma palavra
amável para cada um. A férrea disciplina do convento das ursulinas permitia-lhe manter-se ereta e em
atitude serena, a despeito do cansaço. A única coisa de que não era capaz era de voltar-se para o Conde
de Peyrac. Como compreendera que tal atitude poderia parecer estranha, dedicou toda a sua atenção ao
outro vizinho de mesa, o arcebispo. Era este um belo homem, nos seus quarenta anos. Tinha muita un-
ção, graça mundana e olhos azuis muito frios. Era o único da reunião que não parecia compartilhar a
alegria geral.
— Que profusão! Que profusão! — suspirava, olhando em torno. — Quando penso nos pobres que
todos os dias se amontoam à porta do arcebispado, nos enfermos sem amparo, nas crianças das aldeias
heréticas, que não podemos arrancar às suas crenças por falta de dinheiro, meu coração se dilacera.
Interessam-lhe as obras pias, minha filha?
— Acabo de sair do convento, mo.nsenhor, mas seria feliz se me pudesse consagrar à minha paróquia
sob o seu patrocínio.
O arcebispo pousou sobre ela seu olhar lúcido e teve um leve sorriso enquanto erguia o queixo um
tanto gordo.
— Agradeço-lhe sua docilidade, minha filha. Mas sei como é cheia de novidades a vida de uma jovem
dona de casa, e como requerem toda a sua atenção. Não a arrebatarei a elas antes que manifeste o desejo
disso. A obra maior de uma mulher, aquela a que deve dedicar todos os seus cuidados, não é, em
primeiro lugar, a influencia que deve exercer sobre seu marido? Uma mulher amorosa, há bil, tem em
nossos dias todo o poder sobre o espírito de seu esposo.
Inclinou-se para ela, e os cabochões de sua cruz episcopal despediram uma cintilação cor de malva.
— Uma mulher pode tudo — repetiu —; mas, aqui entre nós, a senhora escolheu um singular marido...
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"Escolhi...", pensou Angélica com ironia. "Terá visto meu pai, ao menos uma vez, este medonho
bonifrate? Duvido. Meu pai queria-me sinceramente. Por nada deste mundo haveria desejado fazer
minha infelicidade. Mas seus olhos queriam ver-me rica e eu desejava ser amada. Madre Sant'Ana me
repetiria que não se deve ser romanesca... Este arcebispo parece um bom homem. Terá sido com as
pessoas de sua escolta que se bateram os pajens do Conde de Peyrac na própria catedral?..."
Com o cair da tarde, o intenso calor começava a ceder. Ia começar o baile e Angélica suspirou.
"Dançarei a noite inteira", pensava, "mas em nenhum momento consentirei em ficar sozinha com
ele..."
Nervosamente olhou para seu marido. Cada vez que o fazia, o aspecto daquele rosto cicatrizado, em
que brilhavam pupilas negras como carvão, produzia-lhe mal-estar. A pálpebra esquerda, meio fechada
pelo rebordo de uma cicatriz, dava ao Conde de Peyrac uma expressão de ironia perversa.
Repimpado em sua poltrona estofada, acabava de levar à boca um pequeno rolo escuro. Um criado
aproximou-se conduzindo numa pinça uma brasa, que aplicou à extremidade do rolete.
— Ah, conde, seu exemplo é deplorável! — exclamou o arcebispo, franzindo as sobrancelhas. — O
tabaco é a sobremesa do inferno. Que seja utilizado em pó para atuar sobre os humores do cérebro, e
sempre por conselho médico, já o admito com dificuldade, pois parece-me que os rapezistas
experimentam nisso um gozo malsão e amiúde alegam a saúde como pretexto para sorver rape a cada
instante. Mas os fumadores de cachimbo são a escória de nossas tabernas, onde se embrutecem durante
horas inteiras com essa planta maldita. Até agora eu nunca tinha ouvido dizer que um gentil-homem
consumisse tabaco desse modo grosseiro.
— Não tenho cachimbo e não sorvo tabaco. Fumo a folha enrolada, tal como vi fazerem alguns nativos
da América. Ninguém pode acusar-me de ser vulgar como um mosqueteiro ou amanei-rado como um
petimetre da corte...
— Quando há dois modos de fazer uma coisa, sempre é preciso que se encontre um terceiro — disse o
arcebispo com acrimônia. — Também acabo de reparar em outra singularidade sua. Não põe em seu
copo nem pedra-de-sapo nem pedaço de licorne. Todos sabem que são esses os melhores processos de
evitar o veneno que uma mão inimiga sempre é capaz de verter em seu vinho. Até sua jovem esposa
adotou este prudente costume. A pedra-de-sapo, com efeito, e o chifre de licorne mudam de cor ao
contato de bebidas perigosas. O senhor nunca os utiliza. Crê-se invulnerável ou... sem inimigos? —
acrescentou o prelado com um brilho nos olhos que impressionou Angélica.
— Não, monsenhor — respondeu o Conde de Peyrac. — Penso unicamente que o melhor meio de
alguém se preservar do veneno é não pôr nada no copo, mas no corpo inteiro.
— Que quer dizer?
— Apenas isto: absorva cada dia de sua vida uma dose ínfima de algum veneno temível.
— O senhor o faz? — exclamou o arcebispo, horrorizado.
— Desde a mais tenra idade, monsenhor. O senhor sabe que meu pai foi vítima de certa bebida
florentina, e no entanto a pedra-de-sapo que punha em seu copo era do tamanho de um ovo de pomba.
Minha mãe, que era mulher sem preconceitos, procurou o verdadeiro meio de me resguardar a mim. De
um mouro escravo trazido de Narbonne, aprendeu o método de defender-se do veneno com o veneno.
— Suas observações têm sempre algo de paradoxal que me alarma — replicou o arcebispo. — Dir-se-
ia que deseja reformar tudo, e ninguém ignora quantas desordens produziu na Igreja e no reino a palavra
"reforma". Pergunto-lhe uma vez mais: por que empregar um método de cuja eficiência não se tem
certeza alguma, quando outros provaram ser bons? Evidentemente, é necessário possuir verdadeiras
pedras e verdadeiros chifres de licorne. Inúmeros charlatães se fizeram comerciantes de tais objetos e
vendem não sei o que em seu lugar. Mas, por exemplo, meu Monge Bé-cher, um recoleto de grande
saber, que se entrega por minha conta a experiências de alquimia, poderia conseguir-lhe excelentes.
O Conde de Peyrac inclinou-se um pouco para olhar o arcebispo e, no movimento, seus abundantes
cachos roçaram a mão de Angélica, que recuou. Viu, então, que seu marido não usava peruca, mas que
aquele velo negro era natural.
— O que me intriga — declarou o conde — é saber como ele os arranja. Quando menino, matei por
curiosidade muitíssimos sapos. Jamais encontrei em seu cérebro a famosa pedra protetora que, ao que
parece, deve encontrar-se nele. Quanto ao chifre de licorne, dir-lhe-ei que percorri o mundo e formei
minha própria convicção. O licorne é um animal mitológico, imaginário; enfim, um animal que não
existe.
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— Essas coisas não se afirmam, senhor. É necessário deixar sua parte aos mistérios e não pretender
saber tudo.
— O que é um mistério para mim — disse lentamente o conde — é que um homem de sua inteligência
possa acreditar seriamente em tais... fantasias...
"Meu Deus!", pensou Angélica. "Nunca ouvi falar a um digni-tário da Igreja com tamanha insolência."
Olhava alternadamente as duas personagens, cujas pupilas se enfrentavam. Seu marido, o primeiro que
pareceu perceber a emoção que ela experimentava, dirigiu-lhe um sorriso que pregueou estranhamente
seu rosto, mas descobriu seus dentes muito brancos.
— Perdoe-nos, senhora, o discutirmos assim em sua presença. Monsenhor e eu somos inimigos
íntimos!
— Nenhum homem é meu inimigo! — exclamou o arcebispo, indignado. — Que é feito da caridade
que deve habitar o coração de um servo de Deus? Se o senhor me odeia, eu não o odeio. Mas sinto em
sua presença a inquietação do pastor pela ovelha que se extravia, e, se não fizer caso das minhas
palavras, saberei separar o joio do trigo.
— Ah! — exclamou o conde com um riso espantoso. — Bem sei que o senhor é o herdeiro daquele
Foulques de Neuilly, bispo e braço direito do terrível Simão de Montfort, que ergueu as fogueiras para
os albigenses e reduziu a cinzas a primorosa civilização da Aquitânia! O Languedoc, depois de quatro
séculos, continua chorando seus esplendores destruídos e treme ao relato desses horríveis crimes. Eu,
que sou da mais antiga cepa tolosana, que tenho sangue lígure e visigodo nas veias, estremeço quando
meu olhar encontra seus olhos azuis de homem do norte. Herdeiro de Foulques, herdeiro dos bárbaros
que implantaram entre nós o sectarismo e a intolerância, isso é o que leio em seus olhos!
— Minha família é uma das mais antigas do Languedoc — re-torquiu o arcebispo, erguendo-se um
pouco. Naquele instante sua pronúncia meridional se tornava quase ininteligível para Angélica. — Sabe
muito bem, monstro insolente, que metade de Tou-louse me pertence por herança. Há séculos que nossos
feudos são tolosanos.
— Quatro séculos! Apenas quatro séculos, monsenhor! — gritou Joffrey de Peyrac, que também se tinha
levantado. — O senhor veio nos carros de Simão de Montfort, com os abomináveis cruzados... É um
invasor! Homem do norte, que faz à minha mesa?
Angélica, horrorizada, começava a se perguntar se não ia declarar-se a luta, quando uma gargalhada
dos convivas sublinhou as últimas palavras do conde tolosano. O sorriso do arcebispo foi menos sincero.
No entanto, quando o grande corpo de Joffrey de Peyrac bamboleou para ir inclinar-se diante do prelado,
em sinal de desculpa, estendeu-lhe com amabilidade o anel pastoral, para que o beijasse.
Angélica estava demasiado desconcertada para que participasse francamente de tal exuberância. As
frases que aqueles dois homens acabavam de trocar não eram fúteis, mas é certo que para as pessoas do
sul o riso é, muitas vezes, o brilhante prelúdio das mais negras tragédias. Subitamente Angélica
reencontrou a exaltação ardente de que a ama Fantina havia cercado sua infância. Graças a isso, não se
sentiria estranha naquela sociedade impulsiva.
— Senhora, incomoda-lhe a fumaça do tabaco? — perguntou bruscamente o conde, inclinando-se para
ela e procurando surpreender seu olhar.
Ela sacudiu a cabeça negativamente. O aroma sutil do tabaco acentuava sua melancolia, fazendo-a
evocar a presença de Guilherme ao lado do fogão e a grande cozinha de Monteloup. O velho Guilherme,
a ama, as coisas familiares haviam-se distanciado repentinamente.
Entre o arvoredo começaram a tocar os violinos. Embora estivesse morta de cansaço, Angélica aceitou
com presteza o convite do Marquês d'Andijos. Os dançarinos se tinham reunido em um grande pátio
lajeado, refrescado por um repuxo. No convento, Angélica tinha aprendido suficientes passos da moda
para não se ver em apuros entre senhores e damas de uma província mundana, cuja maior parte passava
longas temporadas em Paris. Era a primeira vez que dançava assim numa verdadeira recepção, e come-
çava a gostar, quando se produziu um tumulto. Os pares eram deslocados ao empuxo da multidão que
corria para o lugar do banquete. Houve protestos, mas alguém gritou:
— Ele vai cantar!
E outros repetiram:
— A Voz de Ouro! A Voz de Ouro do Reino.
CAPÍTULO XIV
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Horror de Angélica por seu marido — Descobre que ele se ocupa com alquimia
Naquele momento uma mão tocou discretamente no braço desnudo de Angélica.
— Senhora — cochichou a criada Margarida —, é chegado o momento de se eclipsar. O
senhor conde encarregou-me de conduzi-la ao pavilhão do Garonne, onde deverá passar a
noite.
— Mas eu não quero ir! — protestou Angélica. — Desejo escutar esse cantor de que tanto se
fala. Ainda não o ouvi.
— Ele cantará para a senhora, cantará para a senhora em particular, o senhor conde lhe
promete — afirmou a serva. — Mas a cadeirinha a espera.
Enquanto falava, tinha posto aos ombros de sua senhora um manto com capuz e entregou-lhe
depois uma máscara de veludo negro.
— Cubra o rosto — cochichou. — Assim ninguém a reconhecerá. Do contrário, os jovens
brincalhões seriam capazes de correr até o pavilhão para perturbar sua noite de núpcias com o
barulho de suas caçarolas — acrescentou Margarida, disfarçando o riso com a mão. — É
costume em Toulouse. Os recém-casados que não podem fugir como se fossem ladrões têm de
se resgatar com um bom punhado de escudos ou suportar a algazarra desses demônios.
Monsenhor e a polícia já tentaram em vão suprimir essa prática... Assim, o melhor é sair da
cidade.
Introduziu Angélica na cadeirinha, que dois robustos criados ergueram prontamente. Alguns
cavaleiros, saindo da sombra, formaram escolta. Após percorrer um labirinto de ruelas, o
pequeno grupo atingiu o campo.
O pavilhão era uma casa modesta rodeada de jardins que desciam até o rio. Ao pôr os pés em
terra, Angélica surpreendeu-se com o silêncio, perturbado unicamente pelo cricrilar dos grilos.
Margarida, que havia montado à garupa de um dos ginetes, apeou e fez entrar a recém-casada
na moradia deserta.
Com os olhos a brilhar e um sorriso nos lábios, a serva parecia divertir-se com todos aqueles mistérios
amorosos. Angélica se achou num aposento ladrilhado de mosaico. Uma lamparina ardia perto da
alcova, mas sua luz era inútil, pois o luar penetrava tanto na peça que dava um brilho de neve aos
lençóis rendados do enorme leito.
Margarida lançou um último olhar apreciativo à jovem esposa, depois tirou de sua bolsa um frasco de
água-de-colônia para purificar-lhe a pele.
— Deixe-me — protestou Angélica com impaciência.
— Senhora, seu esposo vai chegar. É preciso...
— Não é preciso nada. Deixe-me!
— Está bem, senhora.
A criada fez uma reverência.
— Desejo-lhe uma doce noite, senhora.
— Deixe-me! — gritou pela terceira vez Angélica, irritadíssima. Ficou só, furiosa por não ter sabido
conter seu agastamento diante
de uma criada. Mas Margarida lhe era antipática. Suas maneiras resolutas e hábeis a intimidavam, e
receava a mofa de seus olhos negros.
Ficou imóvel longo tempo, até que o sossego do quarto se lhe tornou insuportável.
O medo, que a agitação e as conversas haviam adormecido, novamente despertava. Cerrou os dentes.
"Não tenho medo", disse consigo mesma quase em voz alta. "Sei o que devo fazer. Morrerei, mas ele
não me tocará!"
Deu uns passos para a porta-janela que se abriu sobre o terraço. Angélica não tinha visto senão no
Plessis aqueles balcões elegantes que a arquitetura da Renascença havia posto em voga. Um diva forrado
de veludo verde convidava-a a sentar-se e a contemplar a paisagem cheia de majestade. Dali não se
avistava Toulouse, escondida por um cotovelo do rio. Não existiam senão jardins e a água
resplandecente, e, mais além, plantações de milho e vinhedos.
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Angélica sentou-se na beira do diva e apoiou a fronte na balaus-trada. Seu penteado, com aquela
complicação de pérolas e alfinetes de diamantes, incomodava-a profundamente. Começou em seguida a
desfazê-lo, não sem dificuldade.
"Por que não ficou aqui essa idiota para me despir e despen-tear?", pensou. "Julga que meu marido é
quem vai encarregar-se disso?"
E teve para si própria um risinho zombeteiro e triste.
"Madre Sant'Ana não deixaria de fazer-me um discursinho sobre a docilidade que as esposas devem
mostrar ante todos os desejos do marido. E quando ela dizia esse todos, revirava os olhos e nós
rebentávamos de rir, compreendendo bem o que ela estava pensando. Mas eu não tenho propensão para
a docilidade. Moli-nes tem razão quando diz que eu não me inclino diante do que não compreendo.
Obedeci para salvar Monteloup. Que mais podem pedir-me? Argentière já é do Conde de Peyrac. Ele e
Molines poderão prosseguir o seu tráfico. E meu pai continuará criando muares para transportar o ouro
espanhol... Se eu me jogasse do alto deste balcão, nada mudaria. Todos tiveram o que desejavam..."
Conseguiu por fim desatar os cabelos, que se espalharam sobre seus ombros nus, e sacudiu-os com o
movimento de cabeça um pouco selvagem de sua infância.
De repente ouviu um leve ruído. Ao voltar-se, conteve um grito de espanto. Apoiado à ombreira da
porta-janela, o coxo a contemplava.
Já não vestia seu traje vermelho. Envergava uns calções e um gibão de veludo negro muito curto, que
deixava expostas a cintura e as mangas de uma fina camisa de cambraia.
Avançou com seu passo desigual e fez uma profunda reverência.
— Permite-me que me sente a seu lado, minha senhora?
Angélica inclinou a cabeça em silêncio. Ele se seníbu, pôs o cotovelo no corrimão de pedra e olhou para
a frente com displicência.
— Faz vários séculos — disse —, sob estas mesmas estrelas, damas e trovadores subiam aos
caminhos-de-ronda dos castelos e ali se realizavam as cortes de amor. Já ouviu falar, minha senhora, dos
trovadores do Languedoc?
Angélica não previra aquela espécie de conversação. Estava inteiramente preocupada em se defender e
balbuciou com certo esforço:
— Creio que já ouvi... Chamavam assim a uns poetas da Idade Média.
— Os poetas do amor. Língua d'oc! Língua suave! Tão diferente do rude falar do norte, a língua d'oil!
Em Aquitânia aprendia-se aIte de amar, porque, como disse Ovídio muito antes dos pró-orios
trovadores, "o amor é uma arte que se pode ensinar e na nual pode alguém aperfeiçoar-se estudando
suas leis". Já a interessou esta arte, minha senhora?
Angélica não sabia o que responder. Era bastante arguta para perceber a leve ironia da voz. Tal como lhe
fora feita a pergunta, um "sim" ou um "não" teria sido igualmente ridículo. Não estava acostumada a
gracejos. Aturdida por inúmeros acontecimentos a habilidade para replicar a tinha abandonado. Não
soube senão volver a cabeça e olhar maquinalmente a planície adormecida. Percebeu que o homem se
havia acercado dela, mas não se movia.
— Veja — disse ele — lá embaixo, no jardim, aquele pequeno lago de água verde em que a lua
mergulha como uma pedra-de-sapo num copo de anis... Pois bem, essa água tem a cor de seus olhos,
minha amiga. Nunca, através do mundo, vi pupilas tão estranhas nem tão sedutoras. E veja essas rosas
que se unem formando guirlandas em nosso balcão. Têm o mesmo colorido dos seus lábios. Não,
verdadeiramente, jamais encontrei lábios tão rosados...
e tão fechados. Quanto à doçura... vou julgar...
Subitamente duas mãos a sujeitaram pelo torso. Angélica sentiu-se dobrada para trás por uma força
que não havia presumido naquele homem alto e magro. Viu-se com a nuca tombada num braço que a
constringia e paralisava. O espantoso rosto inclinava-se sobre ela até roçar-lhe a face. Gritou apavorada
e começou a debater-se, movida pela aversão. Quase imediatamente achou-se livre. O conde a tinha
largado e a olhava rindo.
— O que eu imaginava. Causo-lhe um medo horrível. Preferiria lançar-se do alto deste balcão a
entregar-se. Não é verdade?
Angélica fitava-o com o coração aos pulos. Ele pôs-se de pé e sua longa silhueta se estendeu sob o céu
enluarado.
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— Não a violarei, pobre virgenzinha. Não está nas minhas predileções. Então, entregaram-na toda
inexperiente a este Grande
Coxo do Languedoc? Coisa terrível!
Inclinou-se, e ela sentiu raiva do seu sorriso escarninho.
— Saiba que possuí muitas mulheres em minha vida: brancas, negras, amarelas e vermelhas, mas
nunca pela força, e a nenhuma atrai com dinheiro. Vieram por sua própria vontade e você também virá
um dia, uma noite...
— Jamais!
A réplica havia brotado violenta. O sorriso não se apagou no curioso semblante.
— E uma jovem selvagem, mas isso não me desgosta. Uma conquista fácil desvaloriza o amor; uma
conquista difícil aumenta-lhe o valor. Assim fala André le Chapelain, o mestre de A Arte de Amar.
Adeus, minha bela. Durma bem em seu grande leito, a sós com a graça de seus membros, com o encanto
de seus pequenos seios, tristes por não terem carícias. Adeus!
No dia seguinte, ao despertar, Angélica viu que o sol já ia alto no Armamento. Os pássaros calavam
nas sombras do jardim, atormentados pelo calor.
Não se lembrava bem de como se havia despido e deitado naquela cama cujos lençóis armoriados
tinham um perfume de violeta. Havia chorado de fadiga e desgosto, talvez de solidão. Agora sentia-se
mais lúcida. A garantia que lhe dera seu estranho marido de que não a tocaria sem que ela o desejasse
tranqüilizava-a por algum tempo.
"Imagina que acabarei por achar sedutores seu rosto queimado e sua perna curta?"
Acariciou o plano de uma existência agradável, perto de um esposo com quem viveria em boa
amizade. Afinal de contas, a vida poderia não ser destituída de encantos. Toulouse oferecia tantas
distrações...
Margarida, discreta e impassível, veio vesti-la. Ao meio-dia Angélica voltou para a cidade. Clemente
apresentou-se e disse-lhe que o senhor conde o havia encarregado de avisar a senhora condessa de que
estava trabalhando em seu laboratório e de que não devia esperá-lo para a refeição. Sentiu alívio. O
homem acrescentou que o senhor conde o havia contratado para mordomo, pelo que estava muito
contente. Os domésticos eram barulhentos e preguiçosos, mas cordiais. A casa parecia-lhe rica e faria o
possível para agradar a seus novos amos.
Angélica lhe agradeceu o pequeno discurso no qual se mesclava certo ar de presunção com servilismo.
A ela também não desgostava conservar a seu lado aquele rapaz cujas maneiras faziam contraste com a
exuberância de quantos a rodeavam.
Nos dias seguintes Angélica notou que o palácio do Conde de Peyrac era certamente o lugar mais
freqüentado da cidade. O dono da casa participava ativamente de todas as reuniões. Seu vulto
claudicante passava de um grupo para outro, e Angélica se admirava da animação que a presença dele
provocava.
Foi se acostumando ao seu aspecto, e já não sentia tanta aversão marido. Sem dúvida, a idéia da
submissão carnal que lhe devia tinha sido um fator importante na violência de sua repulsa e também no
medo que ele lhe inspirava. Agora que estava tranqüila quanto a esse ponto, via-se forçada a reconhecer
que aquele homem de palavra brilhante e caráter jovial despertava simpatias.
Em relação a ela o conde afetava grande indiferença, conquanto lhe prodigalizasse as atenções devidas
à sua prosápia. Saudava-a todas as manhãs e ela presidia em frente a ele às refeições, nas quais quase
sempre tomavam parte no mínimo dez pessoas, o que lhes evitava um colóquio a sós.
No entanto, não se passava um dia sem que ela encontrasse em seu aposento uma lembrança: um
adorno ou uma jóia, um vestido novo, um móvel e até doces ou flores. E tudo de um gosto perfeito, de
um luxo que a deixava deslumbrada, encantada... e também desconcertada. Não sabia como testemunhar
ao conde o prazer que lhe davam seus presentes. Cada vez que se via na obrigação de dirigir-lhe a palavra
diretamente, não podia decidir-se a levantar os olhos para seu rosto desfigurado; sentia-se desazada e
balbuciava.
Um dia encontrou, junto à janela ante a qual tinha o costume de sentar-se, um escrínio de marroquim
vermelho com ornamentos estampados. Ao abri-lo, deparou-se-lhe o adereço de diamantes mais formoso
que poderia imaginar. Com as mãos trêmulas, contemplava-o, pensando que com certeza a rainha não
tinha um semelhante, quando ouviu os característicos passos de seu marido.
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Num impulso, correu para ele com os olhos brilhantes...
— Que maravilha! Como agradecer-lhe, senhor?
Seu entusiasmo a tinha aproximado dele muito depressa. Quase lhe deu um esbarro. Sua face tocou o
yeludo do gibão, enquanto um braço de ferro a deteve prontamente. O rosto que a aterrava pareceu-lhe
tão próximo que seu sorriso se apagou, e Angélica jogou-se para trás num incoercível estremecimento de
pavor. Jof-irey de Peyrac deixou cair o braço e disse com displicência um tanto desdenhosa:
— Agradecer-me? Por quê?... Não esqueça, querida, que é a mulher do Conde de Peyrac, último
descendente dos ilustres condes de Toulouse. Deve, portanto, ser a mais bela, a mais adornada.
aqui em diante não se julgue obrigada a me agradecer.
As obrigações de Angélica eram, assim, muito leves, e teria podido considerar-se uma das convidadas
do palácio, mais livre ainda que as demais para dispor do tempo a seu bel-prazer.
Joffrey de Peyrac não lhe recordava o título de marido senão em muito raras ocasiões. Por exemplo,
quando um baile em casa do governador ou de algum dos altos funcionários da cidade exigia que a Sra.
de Peyrac fosse justamente a mulher mais bela e mais bem ataviada da cidade. Então chegava sem se
fazer anunciar, sentava-se junto à penteadeira e olhava com atenção o toucado da jovem, orientando as
hábeis mãos de Margarida e das aias. Nenhum pormenor lhe passava despercebido. O adorno feminino
não tinha segredos para ele. Angélica maravilhava-se do acerto de suas observações e do seu
refinamento. Como desejava chegar a ser uma grande dama de qualidade, não perdia uma palavra de
suas lições. Nesses momentos esquecia seus pesares e seus receios.
Mas, uma noite em que se mirava num grande espelho, deslumbrante em um vestido de cetim cor de
marfim com alta gola de rendas guarnecida de pérolas, viu a seu lado o sombrio vulto do Conde de
Peyrac, e um súbito desespero caiu-lhe sobre os ombros como um manto de chumbo.
"Que importam a riqueza e o luxo", pensava, "diante deste terrível destino: estar amarrada pela vida
inteira a um marido capenga e horroroso?"
O conde percebeu que era a ele que Angélica olhava no espelho, e afastou-se bruscamente.
— Que lhe sucede? Não se acha formosa?
A jovem dirigiu à própria imagem um olhar melancólico.
— Acho, senhor — respondeu documente.
— Então?... Ao menos poderia sorrir... E suspirou mansamente.
Durante os meses que se seguiram, Angélica pôde observar que Joffrey de Peyrac dispensava muito
mais atenções às outras mulheres que a ela. Sua galanteria era espontânea, risonha, refinada, e as
damas o procuravam com evidente prazer.
Faziam-se de "preciosas", como era moda em Paris.
— Este é o Palácio da Gaia Ciência — disse-lhe um dia o conde.
— Tudo o que fizeram a raça e a cortesia da Aquitânia e, portanto, da França deve reviver entre estas
paredes. Toulouse acaba de assistir aos famosos Jogos Florais. A violeta de ouro foi conferida a um
jovem poeta do Roussillon. De todos os rincões da França até do mundo vêm a Toulouse os autores de
rondós, para se fa-Verem julgar sob a égide de Clemência Isaura, a luminosa inspira-dora dos
trovadores do passado. Não se assombre, portanto, A ngéüca, de ver tantos rostos desconhecidos que vão
e vêm em meu palácio. Se a incomodam, pode retirar-se para o pavilhão do Garonne.
Mas Angélica não sentia desejo de isolar-se. Pouco a pouco deixava-se vencer pelo encanto daquela
vida festiva. Depois de a terem desdenhado, algumas damas perceberam que não lhe faltava espírito e
acolheram-na em sua roda. Diante do êxito das recepções que o conde oferecia naquela morada que,
apesar de tudo, era a sua, a jovem passou a dirigir de bom grado os serviços da casa. Era vista a correr
das cozinhas para os jardins e da cobertura às adegas, seguida por seus três negrinhos, a cujos alegres
semblantes se tinha acostumado.
Na cidade havia muitos mouros escravos, porque os portos de Aigues-Mortes e Narbonne se abriam
para aquele Mediterrâneo que não era senão um grande lago de pirataria. Ir por mar de Nar-bonne a
Marselha representava uma verdadeira expedição! Em Toulouse riram-se muito, àquela época, das
desventuras de um nobre gascão que durante uma viagem fora aprisionado pelas galeras árabes. O rei da
França o resgatou imediatamente ao sultão dos ber-beres, mas ele regressou muito enfraquecido e não
ocultava que entre os mouros havia passado maus momentos.
Só Kuassi-Ba impressionava um pouco Angélica. Quando via erguer-se diante de si aquele colosso
negro com olhos muito brancos, sentia uma ponta de temor. Não obstante ele parecia muito manso. Não
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se separava do Conde de Peyrac, e era quem guardava no fundo do palácio a porta de um apartamento
misterioso. Para ali o conde se retirava todas as noites e, às vezes, durante o dia. Angélica estava certa
de que naquele domínio reservado se achavam as retortas e garrafinhas de que Enrico tinha falado à
ama. Gostaria de poder entrar ali, mas não se atrevia. Foi um dos visitantes do Palácio da Gaia Ciência
quem lhe permitiu descobrir aquele novo aspecto da estranha personalidade de seu marido.
CAPÍTULO XV
Discussões físico-matemáticas
O visitante estava coberto de poeira. Viajara a cavalo e vinha de Lyon por Nímes.
Era homem bastante alto, de uns trinta e cinco anos. Começou falando em italiano, passou depois para
o latim, que Angélica compreendia mal, e acabou expressando-se em alemão.
Foi nesta última língua, familiar a Angélica, que o conde lhe apresentou o viajante:
— O Professor Bernali, de Genebra, dá-me a grande honra de vir tratar comigo de problemas
científicos sobre os quais há muitos anos vimos mantendo farta correspondência.
O forasteiro inclinou-se com galanteria italiana e se desmanchou em protestos. Com certeza ia
importunar com seus discursos abstratos e suas fórmulas uma dama encantadora cujas preocupações [
eram, sem dúvida, menos graves.
Um pouco por exibição e um pouco por curiosidade, Angélica pediu para assistir à conversa. No
entanto, para não ser indiscreta, foi sentar-se no canto de uma alta janela que deitava para o pátio.
Era um dia de inverno, mas de frio seco e sol brilhante. Subia dos pátios o cheiro dos braseiros de
cobre em torno dos quais se . aqueciam os domésticos.
Angélica, com um trabalho de bordado na mão, escutava a palestra dos dois homens, sentados frente a
frente junto à lareira, onde se mantinha sem muito empenho um pequeno fogo de lenha.
De início falaram de personalidades que lhe eram totalmente desconhecidas: do filósofo inglês Bacon,
do francês Descartes, do engenheiro francês Blondel, contra o qual os homens estavam indignados
porque, diziam, considerava as teorias de Galileu como estéreis paradoxos.
De tudo isso acabou a jovem por deduzir que o recém-chegado partidário ferrenho do chamado
Descartes, que seu marido, ao contrário, combatia.
Sentado no fundo de uma poltrona estofada, em uma das negligentes posturas que lhe agradavam,
Joffrey de Peyrac parecia pouco mais sério do que quando discutia com as damas as rimas de um soneto.
Sua atitude desenvolta fazia contraste com a do interlocutor empertigado na beira de seu tamborete pela
paixão que lhe inspirava o diálogo.
— Seu Descartes é certamente um gênio — dizia o conde —, mas isso não quer dizer que tenha razão
em tudo e por tudo.
O italiano acalorava-se.
— Gostaria de saber como se poderia pilhá-lo em erro. Vejamos! Foi o primeiro homem que opôs à
escolástica e às idéias abstratas e religiosas seu método experimental. Doravante, em vez de julgarem as
coisas como se fazia antes, segundo os princípios absolutos, julgá-las-ão efetuando medidas e
experiências, para depois deduzir-lhes as leis matemáticas. Isso devemos a Descartes. Como é que o
senhor, que se gaba de possuir o espírito realista tão caro aos homens da Renascença, pode não aderir a
este sistema?
— Adiro a ele, creia-o, amigo. Estou convencido de que, sem Descartes, nunca haveria a ciência
podido romper a crosta de ne-cedades em que a envolveram os últimos séculos. Mas o que lhe censuro é
carecer de franqueza para com seu próprio gênio. Suas teorias estão inquinadas de erros flagrantes. Mas
não quero contrariá-lo se está convencido.
— Vim de Genebra, e atravessei neves e rios para aceitar seu desafio acerca de Descartes. Estou
escutando-o.
— Tomemos, se quiser, o princípio da gravitação, isto é, o da atração recíproca dos corpos* e, portanto,
da queda dos mesmos rumo ao solo. Descartes afirma que, quando um corpo se choca com outro, não
pode imprimir-lhe movimento se não tiver massa superior a ele. Assim, uma bola de cortiça que se
choque com uma bola de ferro não poderá deslocá-la.
— É a evidência mesma. E permita-me citar a fórmula de Descartes: "A soma aritmética das
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quantidades em movimento das
diversas partes do universo permanece constante".
— Não! — exclamou Joffrey de Peyrac, levantando-se tão bruscamente que fez Angélica tremer. —
Não! Isso não passa de uma falsa evidência, e Descartes não fez a experiência. Ter-lhe-ia bastado, para
perceber seu erro, tomar uma pistola e disparar uma bala de chumbo de uma onça contra uma bola de
trapos comprimidos com o peso de duas libras. A bola de trapos sairia do lugar.
Bernalli olhou o conde com estupefação.
— Confesso que o senhor me confunde, mas seu exemplo esta, rá bem escolhido? Nessa experiência
do tiro de pistola entra talvez um elemento novo... Como chamá-lo? A violência, a força,
— É simplesmente a velocidade. Mas não é um elemento espe. cífico do tiro. Cada vez que um corpo
se desloca, esse elemento' entra em jogo. O que Descartes denomina a quantidade de movi. mento é a lei
da velocidade e não uma soma aritmética das coisas,
— E se a lei de Descartes não é boa, que outra o senhor encontra?
— A de Copérnico, quando fala da atração recíproca dos cori pos, dessa propriedade invisível,
semelhante à do ímã, que não se pode medir, mas tampouco se pode negar.
Bernalli, com o punho cerrado sobre os lábios, meditava.
— Já pensei um pouco em tudo isso e discuti-o com o próprio Descartes quando o encontrei em Haia,
antes de sua partida para a Suécia, onde, coitado, iria morrer. Sabe o que me respondeu? Disse-me que
essa lei da atração devia ser posta de lado porque nela existia "alguma coisa de oculto" e ela parecia
apriori herética e suspeita.
O Conde de Peyrac soltou uma gargalhada.
— Descartes era um pulha, e sobretudo não queria perder os; mil escudos de pensão que o Sr. de
Mazarino lhe dava. Recordava-se do pobre Galileu, que teve de retratar, sob as torturas da Inquisição, a
sua "heresia do movimento da Terra" e que mais tarde morreu suspirando: "E, no entanto, ela se move!...
" Também quando Descartes, em seu Tratado do Mundo, adotou a teoria do polonês Copérnico De
Revolutionibus Orbium Coelestium, absteve-se de afirmar o movimento da Terra. Limitou-se a dizer: "A
Terra nâo se move, mas é arrastada por um turbilhão". Não é uma hipérbo-le encantadora?
— Vejo que o senhor não é muito benévolo para com o pobre Descartes — disse o genebrino —, e, no
entanto, o considera um gênio.
— Detesto os grandes espíritos quando se mostram mesquinhos. Descartes, infelizmente, preocupava-
se demasiado em salvar a pele e assssegurar o pão cotidiano, que devia às liberalidades dos
granAcrescentarei que, em minha opinião, se se revelou um gênio nas matemáticas puras, não era
forte em dinâmica nem em física em geral. Suas experiências sobre a queda dos corpos, se é que na
verdade tentou verdadeiras experiências materiais, são embrionárias. Teria sido preciso, para
completá-las, que avançasse um fato extraordinário, mas que no meu entender, nao e impossível, e e
que o ar não está vazio. __ Que quer dizer? Seus paradoxos me enlouquecem!
— Digo que o ar em que nos movemos não seria em realidade senão um elemento denso, algo como a
água que respiram os peixes: elemento com certa elasticidade, certa resistência; em suma, um elemento
invisível a nossos olhos, mas real.
_ O senhor me espanta — repetiu o italiano.
Levantou-se e pôs-se a caminhar agitado pelo aposento. Deteve-se abriu várias vezes a boca como um
peixe, sacudiu a cabeça e voltou a sentar-se junto à lareira.
— Às vezes quase o considero louco e, no entanto, existe dentro de mim mesmo algo que prova o que
o senhor diz. Sua teoria seria o remate dos meus estudos sobre os líquidos em movimento. Ah! Não me
arrependo desta perigosa viagem, que me proporciona o gozo insigne de falar com um grande sábio!
Mas tenha cuidado, meu amigo. Se eu, que nunca pronunciei palavras com a audácia das suas, fui
considerado herege e obrigado a exilar-me na Suíça, que não poderá suceder-lhe?
— Ora essa! — disse o conde. — Eu não procuro convencer ninguém, a não ser a espíritos iniciados e
capazes de compreender-me! Nem sequer tenho a ambição de registrar e publicar o resultado de meus
trabalhos. Entrego-me a eles por prazer, assim como me divirto versejando algumas canções com
amáveis damas. Estou tranqüilo em meu palácio tolosano, e quem virá procurar querela comigo?
— O olho do poder está em toda parte — disse Bernalli lançando em derredor um olhar desencantado.
Naquele mesmo instante Angélica percebeu, não longe de si, um levíssimo rumor, e pareceu-lhe que
um reposteiro se havia movido. Sentiu uma impressão desagradável. Daquele momento em diante
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seguiu distraidamente a conversa dos dois homens. Seu olhar fitava inconscientemente o rosto de
Joffrey de Peyrac. A penumra que ia invadindo a habitação, no prematuro crepúsculo do inverno,
atenuava as desfiguradas feições do gentil-homem, e somente sobressaíam seus olhos negros e
brilhantes e a brancura de sem dentes no sorriso que acompanhava com desenvoltura as suas palavras
mais graves. A perturbação apoderou-se do espírito de Angélica.
Quando Bernalli se retirou a fim de se preparar para a refeição! Angélica fechou a janela. Os criados
estavam pondo candelabros sobre as mesas, enquanto uma criada reavivava o fogo. Joffrey de Peyrac
ergueu-se e aproximou-se do lugar em que se encontrava sua mulher.
— Está muito silenciosa, minha amiga. É, aliás, seu costume. Dormiu escutando nossa palestra?
— Não, ao contrário, interessou-me muitíssimo — disse lentamente Angélica, e pela primeira vez
seus olhos não repeliram o olhar de seu marido. — Não pretendo haver compreendido tudo, mas
confesso-lhe que sinto mais atração para esse gênero de discussões do que para as poesias das damas
ou de seus pajens.
Joffrey de Peyrac pôs um pé sobre o degrau do peitoril e inclinou-se para olhar Angélica com
atenção.
— Você é uma curiosa rnulherzinha. Creio que começa a ceder, mas não cessa de me assombrar.
Empreguei inúmeras e diversas seduções para conquistar a mulher que desejava, mas nunca pensei em
pedir auxílio às matemáticas.
Angélica não pôde deixar de rir, enquanto um rubor lhe subia às faces. Baixou os olhos, um tanto
confusa, sobre o seu trabalho, e, para mudar de assunto, perguntou:
— E então a experiências de física que você se entrega nesse misterioso laboratório que Kuassi-Ba
guarda com tanto zelo?
— Sim e não. Tenho alguns aparelhos para medições, mas o laboratório me serve principalmente para
trabalhos químicos sobre metais como o ouro e a prata.
— A alquimia! — repetiu Angélica emocionada, e a visão do castelo de Gil de Retz repassou ante
seus olhos. — Por que procura sempre ouro e prata? — perguntou de repente. — Dir-se-ia que o busca
por toda parte, não só em seu laboratório, mas também na Espanha, na Inglaterra e até nessa pequena
mina de chumbo que minha família possuía no Poitou... E Molines me disse que você também tem uma
mina de ouro nos montes Pireneus. Para que quer tanto ouro?
— E preciso muito ouro e prata para ser livre, minha senhora. E veja o que diz mestre André le
Chapelain no começo de seu manuscrito A Arte de Amar. "Para alguém se ocupar de amor, é oreciso não
ter preocupações com a vida material".
_ Não creia que me renderei com presentes e riquezas — disse Angélica, reagindo violentamente.
_ Não creio nada, querida. Apenas a espero e suspiro por você, Todo amante deve empalidecer em
presença de sua amada. Eu enlpalideço. Parece-lhe que ainda não empalideço o bastante? Sei muito bem
que se aconselha aos trovadores que se ajoelhem diante de suas damas, mas é um movimento que minha
perna não me permite fazer. Desculpe-me. Ah! Fique certa de que posso dizer como Bernardo de
Ventadour, o divino poeta: "Os tormentos do amor que me inspira esta bela de quem sou um submisso
escravo serão a causa de minha morte!" Sinto-me morrer, minha senhora.
Angélica sacudiu a cabeça, rindo.
— Não acredito em você. Não tem cara de moribundo... Encerra-se em seu laboratório ou percorre os
palácios dessas preciosas damas tolosanas para orientá-las em suas composições poéticas.
— Sente a minha falta, senhora?
Angélica hesitou, com um sorriso nos lábios, querendo conservar o tom de gracejo.
— São as distrações que me faltam, e você é a Distração e a Variedade personificadas.
E voltou ao seu trabalho de bordado. Ela já não sabia se lhe agradava ou a intimidava a expressão com
que Joffrey de Peyrac a olhava às vezes durante as justas alegres que a vida mundana multiplicava entre
eles. Subitamente ele deixava de ironizar e, no silêncio, ela tinha a impressão de estar dominada por um
estranho império que a envolvia e queimava. Sentia-se nua, seus pequenos seios palpitavam sob as
rendas do corpete. Tinha desejo de fechar os olhos.
"Aproveita-se do entorpecimento de minha desconfiança para fazer-me um feitiço", pensou aquela
noite com um pequeno tremor de medo e prazer.
Joffrey de Peyrac atraía as mulheres. Angélica não podia negá-lo, e o que nos primeiros dias havia sido
para ela motivo de estupefação agora se lhe tornava compreensível. Certas expressões desordenadas,
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certos estremecimentos de suas belas amigas quando nos corredores se aproximava com passo vacilante
o gentil-homem
oxo não lhe tinham passado despercebidos. Logo que ele apareça urna corrente de excitação
atravessava a assembléia feminina. Sabia falar às mulheres. Tinha frases mordentes e suaves, conhecia a
palavra que dá àquela que a recebe a impressão de ter sido notada entre as outras. Angélica empinava-se
como um cavalo re-belão ante a voz lisonjeira. Com uma sensação de vertigem recordava as
confidencias da ama: "Atrai as jovens com estranhas canções..."
Quando Bernalli reapareceu, Angélica se levantou para ir ao seu encontro. Roçou no Conde de Peyrac
e sentiu-se despeitada por não ter ele estendido a mão para abraçar-lhe a cintura.
CAPITULO XVI
A vulcânica Carmencita
Um riso histérico estalou através da galeria deserta. Angélica, que enveredara por ela, deteve-se e
olhou em derredor. O riso se prolongava, subindo até as notas mais altas e caindo em uma espécie de
soluço para tornar a elevar-se. Era uma mulher quem ria. Angélica não a via. Aquela ala do palácio, na
qual se tinha aventurado na hora mais quente do dia, estava tranqüila. Abril, com os primeiros calores,
entorpecia o Palácio da Gaia Ciência. Os pa-jens dormiam nas escadas. Angélica, que não costumava
fazer a sesta, havia decidido percorrer sua morada, que ainda não conhecia inteiramente. As escadas, as
salas, os corredores cortados de loggie eram inumeráveis. Pelas janelas e trapeiras avistava-se a cidade,
seus altos campanários, através de cujos vãos se divisavam nesgas do firmamento azul, seus grandes cais
vermelhos às margens do Garonne.
Tudo dormia. A longa saia de Angélica produzia sobre as lajes um rumor de folhas.
De repente, feriu o ar aquela nervosa gargalhada. Angélica viu no fundo da galeria uma porta
entreaberta. Ouviu um breve ruído de água jogada e o riso interrompeu-se bruscamente. Uma voz
masculina disse:
— Agora que você já se acalmou, estou aqui, pronto para escutá-la.
Era a voz de Joffrey de Peyrac.
Angélica acercou-se devagarinho e olhou pela fresta da porta. Seu marido estava sentado. Ela via
apenas as costas da poltrona e uma das suas mãos, que segurava um daqueles roletes de tabaco que ele
chamava charutos.
Diante dele, ajoelhada no lajedo sobre uma poça de água, estava uma bela mulher que Angélica não
conhecia. Trajava um rico vestido negro, que parecia ensopado até a camisa. Perto dela um vaso de
bronze vazio indicava claramente para que havia servido a água que continha, habitualmente destinada a
refrescar as garrafas de vinhos finos.
A mulher, com os longos cabelos negros colados às têmporas, olhava com espanto seus punhos de
renda amarrotados.
— A mim! — dizia, com voz abafada. — A mim você trata assim?
— Era preciso, minha bela — respondeu Joffrey em tom de leve repreensão. — Não podia deixar por
mais tempo que você perdesse sua dignidade perante mim. Não me perdoaria isso jamais. Vamos,
levante-se, Carmencita. Com este calor sua roupa secará rapidamente. Sente-se nessa poltrona à minha
frente.
Ela levantou-se com dificuldade. Era uma mulher alta, e sua opulenta beleza igualava as que tinham
sido celebradas pelos pintores Rembrandt e Rubens.
Sentou-se na poltrona que lhe fora indicada. Seus olhos negros, muito dilatados, olhavam para a frente
com expressão feroz.
— Que há? — inquiriu o conde.
Angélica estremeceu, porque aquela voz, emitida por uma personagem invisível, tinha um encanto que
ela nunca imaginara.
— Vamos, Carmencita, faz mais de um ano que você partiu de Toulouse. Ia para Paris com seu esposo,
cujo elevado posto era para você penhor de vida brilhante. Levou a ingratidão para com a nossa pequena
sociedade provinciana a ponto de não nos enviar jamais uma única notícia. E agora cai de súbito no
Palácio da Gaia Ciência gritando, reclamando... Que quer, afinal de contas?
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— Amor! — respondeu a dama com voz rouca e anelante. — Não posso mais viver sem você. Ah, não
me interrompa! Não sabe o que foi o meu suplício nesse ano interminável. Sim, acreditei que Paris
saciaria minha sede de prazeres e divertimentos. Mas ate nas mais belas festas da corte sentia-me
entediada. Evocava Toulouse, este palácio rosa da Gaia Ciência. Falava dele com os olhos brilhantes, e
as pessoas mofavam de mim. Tive amantes. Sua grosseria dava-me asco. Compreendi então que o que
me faltava era você. Passava a noite com os olhos abertos, e via você. Via esses seuss olhos incendiados
pelo fogo de sua fráguas, tão ardentes que me faziam desfalecer; via suas mãos brancas e sábias...
— Meu andar gracioso! — disse ele rindo.
Levantou-se e aproximou-se dela, exagerando a coxeadura.
Ela o encarou.
— Não tente afastar-me com o seu desdém — disse ela. — Sua claudicação, suas cicatrizes que
importância têm para as mulheres que amou, diante da dádiva que lhes outorga?
A mulher estendeu as mãos para ele.
— Dá-lhes a voluptuosidade — cochichou. — Antes de conhecê-lo, eu era fria. Você acendeu em mim
um fogo que me devora.
O coração de Angélica batia violentamente. Receava não sabia o quê, talvez que seu marido pusesse a
mão naquele belo ombro dourado, oferecido com impudor.
Mas o conde, apoiado numa mesa, fumava com ar impassível. Ela o via de perfil, e o lado desfigurado
de seu rosto estava invisível. De repente Angélica descobriu ali outro homem, cujas feições tinham uma
pureza de medalha sob as ondas dos bastos cabelos negros.
— Quem possui uma luxúria demasiado grande não sabe amar verdadeiramente — disse o conde,
enquanto lançava uma nuvem de fumo azul. — Recorde as lições de amor cortês que recebeu no Palácio
da Gaia Ciência. Volte a Paris, Carmencita; é o refúgio das pessoas da sua espécie.
— Se me repele, entrarei para um convento. Aliás, meu marido quer encerrar-me em um.
— Excelente idéia, querida. Ouço dizer que estão sendo fundados em Paris inúmeros asilos piedosos
nos quais a devoção está em moda. Não acaba de comprar a Rainha Ana d'Áustria o belíssimo convento
do Val-de-Grâce para alojar beneditinas? E a Visitação de Chaillot também é muito procurada.
Os olhos de Carmencita faiscavam.
— Então é esse todo o efeito que lhe causo? Estou disposta â enterrar-me sob um véu e você nem
sequer se compadece de mim?
- Minhas reservas de piedade são escassas. Se há alguém que mereça compaixão em toda esta história, é
o Duque de Mérecourt, seu marido, que teve a imprudência de trazê-la de Madri nos carros de sua
embaixada. E não procure misturar-me de novo à sua existência vulcânica, Carmencita. Mais uma vez
lhe recordarei ou- P tros preceitos de amor galante: "Um homem só deve amar urna mulher de cada
vez". E também este outro: "Amor novo desaloja o antigo".
— Fala por mim ou por você? — interrogou ela.
Sob seus cabelos negros, vestida de preto, seu rosto adquiria a brancura do mármore.
— E por causa dessa mulher, da sua mulher, que você fala assim? Pensei que tinha casado com ela
para satisfazer sua cobiça. Questão de um terreno, você me disse. No entanto, escolheu-a para
amante! Ah, não duvido de que, entre suas mãos, chegue a ser uma discípula ; notável! Como foi
levado a amar uma jovem do norte?
— Ela não é do norte, é do Poitou. Conheço o Poitou: viajei por lá. É uma doce região que em
outros tempos pertenceu ao reino da Aquitânia. A língua d'oc encontra-se no patoá de seus
camponeses, e Angélica tem a cor das filhas de nossa terra.
— Vejo que já não me quer! — exclamou subitamente a mulher. — Ah! Compreendo-o mais do
que imagina.
Caiu de joelhos, agarrando-se ao gibão de Joffrey.
— Ainda é tempo. Ame-me! Tome-me em seus braços! Sou sua!
Angélica não pôde ouvir mais. Fugiu. Atravessou correndo a galeria e desceu a escada em caracol
da torre. No último degrau esbarrou em Kuassi-Ba, que arranhava uma guitarra e cantarolava com
a grossa voz aveludada um refrão de sua terra. Sorriu-lhe com todos os dentes e gorjeou:
— Bonzou, médême...
Ela não respondeu e seguiu seu caminho. O palácio despertava. Na grande sala algumas damas já
estavam reunidas e sorviam bebidas frescas. Uma delas chamou:
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— Angélica, coração, ache-nos seu marido. Com este calor, nossa imaginação enlanguesce e,
para conversar...
Angélica não parou, mas teve ânimo para sorrir às "preciosas" e-dizer-lhes:
— Conversem, conversem. Volto já.
Chegou, por fim, à sua alcova e tombou sobre o leito. "Isto e demais", repetia. Mas pouco a
pouco teve de confessar a si mesma que não sabia por que estava tão transtornada. Ocorria-lhe
algo intolerável, e não podia continuar assim.
Mordeu com raiva seu lencinho de renda e olhou em redor com ar tristonho. Amor em demasia,
era isso que a exasperava. Todo mundo falava de amor, discorria sobre o amor, naquele palácio,
ela cidade, onde o arcebispo troava do alto do púlpito ameaçando com as fogueiras do inferno, à
falta das da Inquisição, os Hevassos, os libertinos e suas amantes, cobertas de jóias e ricos
atavios. Sermões que eram particularmente dirigidos contra o Palácio da Gaia Ciência.
Gaia Ciência! Que queria dizer isso? Gaia Ciência! Alegre Ciência! Aquele segredo fazia brilhar
formosos olhos e gorjear belas gargantas, inspirava os poetas, animava os músicos. E o grande maestro
daquele espetáculo terno e louco era o aleijado, às vezes burlão e às vezes lírico, o mago que tinha
avassalado Toulouse pela riqueza e pelo prazer! Nunca, desde o tempo dos trovadores, havia Toulouse
conhecido igual fulgor, igual triunfo... Sacudia o jugo dos homens do norte, reencontrava seu verdadeiro
destino...
— Oh, detesto-o, odeio-o! — exclamava Angélica, batendo com os pés.
Agitou violentamente uma campainha de prata dourada, e quando apareceu Margarida ordenou-lhe que
mandasse trazer uma cadei-rinha e uma escolta. Queria voltar imediatamente para o pavilhão do
Garonne.
Quando desceu a noite, Angélica ficou longo tempo no terraço de seu aposento. Pouco a pouco a
calma da paisagem tranqüilizou-lhe os nervos.
Naquela noite houvera sido incapaz de permanecer em Toulouse, de ir passear de coche pela feira a
fim de escutar os cantores e de presidir depois o grande banquete que o Conde de Peyrac ofereceria nos
jardins iluminados por lanternas venezianas. Esperava que seu marido a fizesse regressar à força para
receber os convidados, mas nenhum mensageiro veio da cidade reclamar a fugitiva. Isso era prova de
que não necessitavam dela. Era uma estranha.
Vendo que Margarida estava decepcionada por não assistir à festa, mandou-a de volta ao palácio,
ficando unicamente com uma jovem aia e alguns guardas, visto que os arredores de Toulouse onde as
nobres faziam construir suas casas de campo não estavam resguardados contra os ladrões e os desertores
espanhóis.
Solitária, Angélica procurou recolher-se e ver claro dentro de si.
Rolou a fronte na balaustrada. "Eu nunca conhecerei o amor", pensou com melancolia.
CAPÍTULO XVII
A "Voz de Ouro do Reino" — Primeiro beijo
Quando, afinal, cansada e aborrecida, ia retirar-se para seu quarto, uma guitarra preludiou sob as suas
janelas. Angélica inclinou-se, mas não conseguiu divisar ninguém entre as sombras das árvores.
"Terá Enrico me seguido? É simpático esse rapaz. Talvez queira distrair-me."
O músico invisível começou a cantar. Sua voz grave e máscula não era a do pajem.
Desde as primeiras notas a jovem sentiu que aquela voz lhe tocava o coração. O timbre, com inflexões
alternativamente aveludadas e sonoras e uma dicção perfeita, era de uma qualidade que os cantores
galantes, que invadiam Toulouse quando chegava a noite, nem sempre possuíam. No Languedoc não
escasseiam as boas gargantas. A melodia nasce espontaneamente nos lábios acostumados ao riso e às
declamações. Mas desta vez impunha-se o artista. Sua voz tinha uma potência excepcional. Parecia
invadir todo o jardim e fazer vibrar a lua. Ele cantava uma antiga lamentação, nessa velha língua d'oc
cuja finura tão amiúde o Conde de Peyrac enaltecia. Angélica não compreendia todas as palavras, mas
uma voltava sem cessar: Amore! Amore!
Amor!
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Uma convicção tomou vulto no seu espírito. "É ele, é o último dos trovadores, é a Voz de Ouro do
Reino!" Nunca havia ouvido cantar assim. Às vezes lhe diziam: — Ah, se ouvisse a Voz de Ouro do
Reino! Ele não tem cantado. Quando voltará a cantar? — E olhavam-na com malícia, lamentando que
ela não conhecesse aquela celebridade da província.
__ Ouvi-la uma vez e depois morrer! — dizia a Sra. Aubertré, mulher do Grand Capitoul da cidade e
cinqüentona muito arrebatada.
"É ele! E ele!", pensava consigo mesma Angélica. "Como pode estar aqui? Será para mim?"
Viu-se refletida no grande espelho de seu aposento. Tinha uma das mãos apoiada no peito e os olhos
dilatados. Troçou de si mesma: "Como sou ridícula! Talvez Andijos ou qualquer outro admirador me
tenha enviado um músico pago para me fazer uma serenata!..."
Não obstante, abriu a porta. Com as mãos juntas sobre o cor-pete, para conter as pulsações do coração,
atravessou as antecâma-ras, desceu as escadas de mármore branco e saiu para o jardim... Iria começar a
vida para Angélica de Sancé de Monteloup, Condessa de Peyrac? Porque o amor é a vida!
A voz provinha de um caramanchão situado à beira da água e que abrigava a deusa Pomona. Quando a
jovem se aproximava, calou-se o cantor, mas continuou a dedilhar em surdina as cordas da guitarra.
A lua, naquela noite, não estava cheia; tinha a forma de uma amêndoa. Sua claridade, entretanto,
bastava para iluminar o jardim, e Angélica viu no interior do caramanchão um vulto negro sentado na
base da estátua.
O desconhecido, ao vê-la, não se mexeu.
"E um negro", pensou Angélica, desapontada.
Mas logo percebeu que se enganara. O homem trazia uma máscara de veludo, mas suas mãos, muito
brancas, apoiadas no instrumento, não permitiam nenhuma dúvida sobre a sua raça. Um lenço de cetim
negro sobre a nuca, à italiana, ocultava seus cabelos. Pelo que se podia ver na obscuridade do
caramanchão, seu traje um tanto gasto era uma curiosa mistura de roupa de criado com a de comediante.
Usava grossos sapatos de pele de castor, como é costume entre as pessoas que andam muito: os carreiros
e os mascates; mas abaixo das mangas da jaqueta viam-se punhos de renda.
— O senhor canta maravilhosamente — disse Angélica, ao ver que não fazia nenhum movimento —,
mas eu gostaria de saber 0 nome de quem o enviou.
—Ninguém, minha senhora. Vim aqui sabendo que este pavilhão abriga uma das mulheres mais belas
de Toulouse.
O homem falava em voz baixa e muito lentamente, como se temesse ser ouvido.
— Cheguei a Toulouse esta noite e dirigi-me ao Palácio da Gaia Ciência, no qual havia numerosa e
alegre reunião, para fazer ouvir minhas canções. Mas, quando soube que a senhora não estava presente,
sai a buscá-la, pois sua reputação de formosura é tão grande em nossa província que há muito tempo eu
ansiava por encontrá-la.
— Sua reputação é igualmente grande. Não é aquele a quem chamam a Voz de Ouro do Reino?
— Sou eu, minha senhora, seu humilde servidor.
Angélica sentou-se num banco de mármore. O cheiro de madressilva era embriagador.
— Cante de novo! — disse.
A voz cálida ergueu-se novamente, porém mais doce. Não era mais um canto invitatório, mas um
canto de ternura, uma confidencia, uma confissão.
— Minha senhora — disse o músico interrompendo-se —, perdoe minha audácia: quisera traduzir-lhe
em língua francesa um refrão que me inspira o encanto de seus olhos.
Angélica inclinou a cabeça.
Perdera a noção do tempo decorrido. Já nada tinha importância. A noite lhes pertencia.
O músico preludiou longamente como se procurasse o fio da melodia, soltou um longo suspiro e
começou:
"Os olhos verdes têm a cor do mar.
As ondas se fecharam sobre mim
E, náufrago do amor,
Pervago no profundo oceano
De seu coração".
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Angélica tinha fechado os olhos. Mais ainda do que as palavras ardentes, a voz a embriagava de um
prazer que jamais havia experimentado.
"Quando ela abre os olhos verdes,
As estrelas se refletem neles
Como no fundo de um lago primaveril."
"Tem de acontecer agora", dizia consigo mesma Angélica, "pois este instante nãp poderá ser revivido.
Não se pode viver isto duas vezes. Parece-se tanto com as histórias de amor que se contavam no
convento!"
A voz calara-se. O desconhecido aproximou-se de Angélica. No braço firme que a enlaçou, na mão
que lhe ergueu o queixo com uma doçura imperiosa, o instinto de Angélica reconheceu um mestre que
certamente havia conseguido mais de uma vitória amorosa. Sentiu certo arrependimento. Mas, quando
os lábios do trovador tocaram os seus, uma vertigem a empolgou. Não sabia que uns lábios de homem
podiam ter aquele frescor de pétala, aquela ternura derretida. Um braço musculoso a esmagava, mas a
boca ainda fremia com palavras encantadoras, e esse encanto e essa força arrastavam Angélica num
torvelinho em que ela tentava em vão pôr em ordem os pensamentos.
"Não devo fazer isso... Não fica bem!... Se Joffrey nos surpreendesse..."
Depois tudo se confundiu. Os lábios do homem entreabriam os dela. Seu hálito ardente invadia-lhe a
boca, espalhando-lhe pelas veias um delicioso bem-estar. Com os olhos fechados, ela se abandonou ao
interminável beijo, voluptuosa posse que já prefi-gurava e sugeria outra. As vagas do prazer refluíam
nela, prazer muito novo para seu corpo de jovem donzela, a tal ponto que ela sentiu de súbito uma
espécie de irritação e de dor, que a fez recuar num estremecimento.
Parecia-lhe que ia desmaiar ou pôr-se a chorar. Viu que os dedos do homem lhe acariciavam as pomas
nuas, que ele tinha sorrateiramente despido de seu corpete enquanto a beijava.
Ela se afastou um pouco a fim de se compor.
— Perdoe-me — balbuciou —, deve achar-me bem nervosa, mas eu não sabia... não sabia...
— Que é que você não sabia, coração? Como ela não respondeu, ele cochichou:
— Que um beijo podia ser tão doce?
Angélica se levantou e foi apoiar-se na entrada do caramanchão. Lá fora, a lua tingia-se de ouro,
descendo na direção do rio. Fazia horas que Angélica devia estar naquele jardim. Sentia-se feliz, imen-
samente feliz. Nada tinha mais importância que poder reviver aquelas horas.
— Você foi feita para o amor — murmurou o trovador. — Percebe-se isto só em tocar sua pele. Aquele
que souber despertar seu corpo sedutor a levará ao cume do prazer.
— Cale-se! Não deve falar assim. Sou casada, bem o sabe, e o adultério é um pecado.
— Pecado bem maior é que tão bela dama aceite por marido um senhor coxo.
— Eu não o aceitei: ele me comprou.
Arrependeu-se logo daquelas palavras que perturbavam a serenidade daqueles momentos.
— Cante outra vez — suplicou. — Só uma vez, e depois nos se
pararemos.
Ele se levantou para pegar a guitarra, mas no movimento que fez uma coisa insólita despertou a
atenção de Angélica. Olhou-o melhor. Sem saber por quê, de repente sentiu medo.
Enquanto ele cantava em voz baixa um refrão de estranha nostalgia, ela o examinava atentamente. Um
momento antes, enquanto ele a beijava, ela havia tido, por um breve instante, a impressão de uma
presença familiar, e agora recordava: no hálito do cantor mesclava-se o perfume de violetas com o
aroma característico do tabaco... O Conde de Peyrac às vezes mascava pastilhas de violeta... E também
fumava. Uma terrível suspeita invadiu a jovem... Pouco antes, ao levantar-se para apanhar a guitarra, ele
havia tropeçado de maneira estranha...
Angélica soltou um grito de espanto, depois um grito de cólera, e pôs-se a arrancar as trepadeiras do
caramanchão batendo com os pés.
— Oh! E demais, é demais!... É monstruoso... Tire a máscara, Joffrey de Peyrac... Cesse sua farsa, ou
eu lhe arranco os olhos, eu o degolo, eu o...
Interrompeu-se a canção. A guitarra emitiu um decrescendo lú-gubre. Sob a máscara de veludo, os
dentes brancos do Conde de Peyrac brilhavam em um grande riso.
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Aproximou-se de Angélica com seu passo desigual. Angélica estava terrificada, mas sobretudo fora de
si.
— Arrancar-lhe-ei os olhos — repetia ela com os dentes cerrados. Ele a segurou pelos pulsos sem
deixar de rir.
— E que restará a este medonho coxo se lhe arrancar os olhos?
— Você mentiu com um descaramento inqualificável. Fez-me crer que era o... a Voz de Ouro do
Reino.
— Mas eu sou a Voz de Ouro do Reino.
E como ela o encarasse perplexa:
— Que tem isso de extraordinário? Eu tinha alguma vocação. Estudei com os maiores mestres da
Itália. Cantar é uma arte de sociedade que se pratica muito em nossos dias. Francamente, que rida, não
lhe agrada a minha voz?
Angélica deu meia-volta e enxugou as lágrimas indignadas que lhe desciam pelas faces.
— Como não adivinhei, não desconfiei de nada até agora?
— Eu havia pedido que não lhe falassem disto. E talvez você não pusesse muito empenho em descobrir
meus talentos.
— Oh! E demais! — repetiu Angélica.
Mas, passado o primeiro momento de furor, teve vontade de rir.
Dizer que ele tinha levado seu cinismo a ponto de encorajá-la a "traí-lo" com ele mesmo!
Verdadeiramente, aquele homem tinha o demônio no corpo!... Ele era o diabo em pessoa!
— Jamais lhe perdoarei esta odiosa comédia — disse ela, contraindo os lábios com a maior dignidade
que podia revelar.
— Adoro representar comédias. Veja, minha cara, a vida não foi sempre indulgente para comigo, e
tanto me têm escarnecido à minha passagem que eu sinto por meu turno uma infinita satisfação em
zombar dos outros.
Angélica fixou no rosto mascarado um olhar grave.
— Zombava de mim verdadeiramente?
— Não de todo, bem o sabe — respondeu ele. Sem uma palavra de despedida, Angélica se
retirou.
— Angélica! Angélica!
Ele a chamava em voz baixa.
De pé na soleira do caramanchão, na típica atitude de um arle-quim da Itália, ele punha um dedo sobre
os lábios.
— Rogo-lhe, minha senhora, que não conte esta história a ninguém, nem mesmo a sua aia preferida. Se
alguém souber que abandono meus convidados, que me disfarço e me mascaro para ir roubar um beijo a
minha própria esposa, serei ridicularizado.
— Você é insuportável! — gritou ela.
Arrepanhou as saias e subiu correndo a aléia saibrosa. Na escada, percebeu que ria. Tirou as vestes
arrancando os colchetes e espetando-se nos alfinetes em seu enervamento. Revolvia-se entre os lençóis,
ardente, sem poder conciliar o sono. O rosto mascarado, o rosto marcado, o perfil de traços puros
passavam e repassavam diante dela. Qual era o enigma daquele homem enganador? De súbito se
revoltou, mas a lembrança do prazer que sentira entre seus braços a fez enlanguescer.
"Foi feita para o amor, senhora..."
Finalmente adormeceu. Em seu sono, os olhos de Joffrey de Pey-rac apareciam-lhe "incendiados pelo
fogo de suas fráguas".
CAPÍTULO XVIII
A visita do Arcebispo de Toulouse
Angélica estava sentada na galeria de espelhos venezianos do palácio. Ainda não sabia o que ia fazer
nem que atitude tomaria. Depois de seu regresso do pavilhão do Garonne, naquele mesmo dia, não tinha
visto Joffrey de Peyrac. Clemente a informou de que o senhor conde se havia encerrado com o mouro
Kuassi-Ba nos aposentos da ala direita, onde costumava entregar-se a trabalhos de alquimia. Angélica
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mordia os lábios de despeito. Era possível que Joffrey levasse horas para reaparecer. Aliás, ela não
desejava vê-lo. Tudo viria a dar na mesma. Ainda estava zangada pela mistificação de que fora objeto
na noite anterior..
Resolveu dirigir-se às dependências onde estavam engarrafando os primeiros licores da estação. A
mesa da Gaia Ciência passava por ser a mais refinada da província. Joffrey de Peyrac cuidava em pessoa
dos cardápios que oferecia a seus visitantes, e como Clemente tinha nesse domínio habilidades
indiscutíveis, havia assumido importante papel nos serviços da casa.
Acabava Angélica de entrar nas cozinhas, perfumadas com o cheiro de laranjas, anis e especiarias,
quando um negrinho esbaforido veio avisá-la de que o Barão Benedito de Fontenac, Arcebispo de
Toulouse, desejava cumprimentá-la, bem como ao seu marido.
A manhã não era o momento azado para visitas, às quais se reservavam as horas frescas do entardecer.
Além disso, já fazia vá-nos meses que o arcebispo, por não se sabia que disputa acerca de precedência,
não tinha voltado a pôr os pés no palácio do Conde de Peyrac, a quem acusava de combater sua
influência sobre o espírito dos tolosanos.
Intrigada e um tanto inquieta, Angélica tirou o avental que acabara de pôr sobre o vestido, e acudiu
pressurosa arranjando os cabelos. Usava-os de acordo com a moda, bastante longos e caídos sobre os
ombros e a pala de rendas.
Quando chegou à galeria de entrada, viu no patamar da escadaria a alta silhueta do barão arcebispo.
Nos jardins, a escolta de monsenhor, seus lacaios de espada à cinta, seus pajens e os grandes senhores a
cavalo faziam excessivo barulho em torno da carruagem, puxada por seis cavalos baios.
Angélica ajoelhou-se para beijar o anel pastoral; mas, fazendo-a levantar-se, foi o arcebispo quem lhe
beijou a mão para dar-lhe a entender, com aquele gesto mundano, que sua visita não tinha nada de
solene.
— Por favor, minha senhora, não me faça perceber por suas reverências quanto sou velho em face da
sua juventude.
— Monsenhor, eu não procurava senão demonstrar o meu respeito a um homem ilustre e investido
numa dignidade sacerdotal que lhe vem de Sua Santidade, o papa, e do próprio Deus...
Cada vez que Angélica pronunciava palavras desse gênero, lembrava-se de Madre Sant'Ana, sua
professora de educação mundana no convento de Poitiers. Madre Sant'Ana haveria de sentir-se satisfeita
com uma aluna que fora tão indócil.
O prelado tirara o chapéu e as luvas e entregou-os a um jovem padre de seu séquito, a quem, com um
gesto, mandou que se afastasse.
— Meus acompanhantes esperarão lá fora. Gostaria de lhe fa
lar, minha senhora, longe de ouvidos frívolos.
Angélica lançou um olhar zombeteiro ao pequeno padre acusado de ter ouvidos frívolos e que
enrubesceu.
Passaram ao salão, e Angélica, após ordenar que trouxessem re-frescos, desculpou a ausência do
marido. Iria chamá-lo.
— Lamento tê-lo feito esperar. Estava fiscalizando a confecção de nossos licores. Mas abuso de seu
tempo, monsenhor, falando-lhe de tão mesquinhos detalhes.
— Nada é mesquinho perante Deus Nosso Senhor. Lembre-se de Marta, a solícita. É raro em nossos
dias ver uma grande dama ocupar-se dos serviços domésticos. E, contudo, a dona de casa e que dá o tom
de dignidade e atividade a seus criados. E quando se reúnem, como na senhora, condessa, a graça de
Maria e a prudência de Marta...
Mas a voz do arcebispo soava sem calor: as palestras mundanas não eram arte em que se comprazesse.
Apesar de sua postura digna e da firmeza de seus olhos azuis, havia nele algo de suspicaz que
impressionava sempre os seus interlocutores. Joffrey havia dito uma vez que ele era um homem que
sempre conseguia fazer as pessoas reconhecerem seus próprios erros.
Depois de esfregar as mãos pensativamente, repetiu que experimentava grande satisfação em tornar a
ver uma jovem cujas visitas ao arcebispado tinham sido demasiado escassas desde o dia, já distante, em
que a havia casado na Catedral de São Severino.
— Vejo-a nas cerimônias litúrgicas e não tenho senão elogios para a sua assiduidade ao culto
quaresmal. Mas digo-lhe, minha filha, que estou decepcionado por não tê-la ainda ouvido em confissão.
— Meu confessor é o capelão das visitandinas, monsenhor.
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— É um digno sacerdote, mas para a senhora, condessa, que tem uma posição de realce, parece-me...
— Monsenhor, perdoe-me — exclamou Angélica, soltando uma gargalhada —, mas vou explicar-lhe
meu ponto de vista. Cometo pecados muito pequenos para ir confessá-los a um homem importante como
vossa excelência; ficaria acanhada.
— Parece-me, minha filha, que se engana sobre a natureza mesma do sacramento da penitência. Não é
o pecador quem deve medir a extensão de suas faltas. E quando o eco da cidade faz chegar a meus
ouvidos os desregramentos de que este palácio é teatro, duvido muito que uma jovem tão bonita e
graciosa possa nele permanecer intata como no dia de seu batismo.
— Não tenho essa pretensão, monsenhor — murmurou Angélica baixando os olhos —, mas creio que o
eco exagera. É verdade que as festas aqui são alegres. Rima-se, canta-se, bebe-se, fala-se de amor e ri-se
muito. Mas nunca fui testemunha de abusos que pudessem intranqüilizar minha consciência.
— Acredito que seja mais ingênua do que hipócrita, minha filha. Puseram-na demasiado jovem nas
mãos de um esposo cujas palavras mais de uma vez roçaram pela heresia, e cuja habilidade e experiência
com as mulheres permitiram-lhe modelar sem dificuldade seu espírito ainda maleável. Tremo quando
evoco essas demasiado célebres cortes de amor que todos os anos promove em seu palácio e às quais
comparecem não só os senhores da cidade, mas também mulheres burguesas e todos os jovens nobres da
província, e quando verifico que mediante sua fortuna adquire cada dia maior influência na cidade. Já os
principais capitouls, magistrados austeros e íntegros, inquietam-se ao ver suas esposas recebidas no
Palácio da Gaia Ciência.
— Que pessoas complicadas! — disse Angélica, fingindo um ar ofendido. — Sempre ouvi dizer que a
ambição dos grandes burgueses era, precisamente, verem-se acolhidos pela alta nobreza, até o dia em
que um favor do rei lhes permitiu nobilitarem-se por seu turno. Meu marido não leva em conta nem o
brasão nem a antigüidade da família. Recebe os inteligentes e talentosos, homens ou mulheres.
Surpreende-me que esses senhores magistrados se me-lindrem tanto.
— A alma é o principal! — trovejou o arcebispo como se estivesse no púlpito. — A alma primeiro,
senhora; as honras depois!
— Crê deveras, monsenhor, que minha alma e a de meu marido se encontram em grave perigo? —
perguntou Angélica escan-celando os olhos límpidos.
Se se mostrava dócil às formas habituais de devoção que observavam todas as jovens e damas de sua
linhagem — assistência ao culto, jejuns, confissão, comunhão —, sentia despertar seu instinto rebelde,
quando o exagero vinha chocar-se contra seu natural bom senso. E, sem saber por quê, pressentia que o
arcebispo não era sincero.
Este, com os olhos baixos e a mão sobre a cruz de ametistas e diamantes, parecia recolher-se e buscar
no mais profundo de seu coração o eco da resposta divina.
— Como posso saber? — suspirou por fim. — Nada sei. O que ocorre neste palácio tem sido por muito
tempo um mistério para mim e sinto crescer cada dia a minha inquietação.
Bruscamente interrogou:
— Está ao corrente, minha senhora, dos trabalhos de alquimia de seu marido?
— Sinceramente, não — respondeu Angélica sem se perturbar. — O Conde de Peyrac tem o gosto das
ciências...
— Dizem mesmo que é que um grande sábio.
— Creio que sim. Ele passa longas horas em seu laboratório, mas nunca me introduziu ali. Certamente
julga que essas coisas não interessam às mulheres.
Abriu o leque e dele se serviu para dissimular um sorriso e talvez certo constrangimento que
começava a sentir ante o olhar penetrante do arcebispo.
__ Meu mister é sondar o coração humano — disse ele como se houvesse percebido o embaraço de
Angélica —, mas não se perturbe, minha filha. Vejo em seu olhar que é direita e que, malgrado sua
juventude, possui uma personalidade excepcional. Quanto a0 seu marido, talvez ainda seja tempo de
arrepender-se de suas faltas e abjurar sua heresia.
Angélica soltou um gritinho.
— Mas juro-lhe que labora em erro, monsenhor! Talvez meu marido não proceda como um católico
exemplar, mas absolutamente não se ocupa com a Reforma e outras crenças huguenotes. Eu própria já o
ouvi zombar desses "tristes heresiarcas de Genebra", que, dizia ele, tinham recebido do céu a missão de
tirar à humanidade inteira o gosto de rir.
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— Palavras enganosas — disse o prelado com ar severo. — Acaso não desfilam pela casa dele, que
também é a sua, minha senhora, protestantes notórios?
— São sábios com os quais ele trata de ciência, e não de religião.
— Ciência e religião estão intimamente ligadas. Recentemente fui informado de que o célebre italiano
Bernalli veio visitá-lo. Sabia que esse homem, depois de ter estado em conflito com Roma por causa de
escritos ímpios, refugiou-se na Suíça, onde se converteu ao protestantismo? Mas não insistamos sobre
esses indícios reveladores de um estado de espírito que eu deploro. Eis a questão que me intriga há
longos anos. O Conde de Peyrac é riquíssimo, e não cessam de acrescer os seus haveres. De onde lhe
vem tanto ouro?
— Mas, monsenhor, acaso não pertence ele a uma das mais antigas famílias do Languedoc, aparentada
mesmo com os velhos condes de Toulouse, que tinham tanto poder sobre a Aquitânia como os reis de
então na lie de France?
O prelado teve um risinho desdenhoso.
— E exato. Mas quartéis de nobreza não significam opulência. Os pais de seu esposo eram tão pobres
que o magnífico palácio em que hoje a senhora reina tombava em ruínas há uns quinze anos apenas. O
Sr. de Peyrac nunca lhe falou de sua juventude?
— N... não — murmurou Angélica, surpresa ela própria de sua ignorância.
— Ele era o caçula da família, e tão pobre, repito-lhe, que aos dezesseis anos embarcou para terras
distantes. Não mais foi visto durante longos anos, e já o supunham morto quando ele reapareceu. Seus
genitores e seu irmão mais velho tinham falecido, os credores partilhavam suas terras. Ele recomprou
tudo e depois sua fortuna não parou de crescer. Ora, ele é um gentil-homem que nunca foi visto na corte,
que procura mesmo viver longe dela e não frui nenhuma pensão real.
— Mas ele tem muitas terras — disse Angélica, que se sentia sufocada, talvez por causa do calor
crescente —, cria carneiros nas montanhas, dos quais extrai a lã, possui uma fábrica de tecidos,
olivais, criações de bichos-da-seda, minas de ouro e prata...
— Disse ouro e prata?
— Sim, monsenhor, o Conde de Peyrac possui numerosas minas na França, de onde afirma que tira
grandes quantidades de ouro e prata.
— Como a sua palavra é justa, minha senhora! — disse o prelado com voz adocicada. — De onde
ele afirma que tira ouro e prata!... era isso que eu queria ouvir. A espantosa suposição confirma-se.
— Que quer dizer, monsenhor? Vossa excelência me alarma.
O Arcebispo de Toulouse fixou novamente sobre ela aquele olhar demasiado límpido que às vezes
adquiria a dureza do aço. Pronunciou lentamente:
— Não duvido de que seu marido seja um dos maiores sábios da época e por isso creio, minha
senhora, que ele verdadeiramente descobriu a pedra filosofal, isto é, o segredo que Salomão possuía da
fabricação mágica de ouro. Mas que caminho ele tomou para o conseguir? Muito receio que tenha
adquirido esse poder por meio de algum negócio com o Diabo!
Uma vez mais Angélica imobilizou seu leque sobre os lábios para não mostrar o riso. Esperava uma
alusão ao negócio propriamente dito a que se dedicava o conde, segundo soubera pelas confidencias de
Molines e de seu próprio pai; tal comércio não deixava de inspirar-lhe temor, sabendo ela que
semelhantes atividades, por parte de um nobre, representavam uma nódoa que poderia lançar o
descrédito sobre sua casa. Mas a estranha acusação do arcebispo, que diziam homem de grande
inteligência, pareceu-lhe de inicio extremamente cômica. Estaria falando sério?
Subitamente, numa reviravolta do pensamento, Angélica lembrou-se de que Toulouse era a cidade
da França onde a Inquisição mantinha ainda o seu quartel-general. A terrível instituição rlieval contra
os hereges conservava em Toulouse prerrogativa que a autoridade do próprio rei nao ousava contestar.
Toulouse, cidade risonha, era também a cidade vermelha que fazia um século tinha chacinado o maior
número de huguenotes. Muito antes de Paris, ela havia tido sua cruenta São Bartolomeu. As cerimônias
religiosas eram ali mais numerosas do que noutros lugares. Ela era uma verdadeira "ilha sonora", com
seus sinos perpetuamente convocando os fiéis para os ofícios, uma cidade tão afogada em crucifixos,
imagens de santos e relíquias como em flores. A chama espanhola havia ofuscado ali o puro clarão de
latinidade trazido por antigos vencedores chegados de Roma. Ao lado das confrarias do prazer, como os
"Príncipes dos Amores" e os "Abades da Juventude", famosas por suas facécias, encontravam-se na ruas
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procissões de flagelantes, com os olhos abrasados de mística paixão, mortificando-se com varas e
espinhos até deixarem no solo trilhas sangrentas.
Angélica, arrastada no turbilhão de uma vida de prazeres, não chegara a familiarizar-se com aquele
aspecto de Toulouse. Mas não ignorava que era o próprio arcebispo, o homem que se achava sentado
diante dela, na alta poltrona estofada e levando aos lábios um copo de limonada, quem continuava grão-
mestre da Inquisição.
Foi, pois, com sincera humildade que ela murmurou:
— Monsenhor, não é possível que lance contra meu marido uma acusação de feitiçaria! Produzir
ouro não é coisa comum neste país ao qual Deus concedeu suas dádivas em profusão, espalhando ou ro
em estado nativo pela terra?
E ajuntou com finura:
—Ouvi dizer que vossa excelência mesmo tem um grupo de faiscadores lavando as areias do Garonne
e recolhendo, amiúde, ouro em-pó e em pepitas com o qual alivia muitas misérias.
—Sua objeção não é destituída de bom senso, minha filha. Mas, Precisamente porque conheço o
trabalho de pesquisa do ouro, posso «irmar-lhe isto: ainda que lavássemos todas as areias dos rios e
nachos do Languedoc, não recolheríamos nem metade do ouro que o Conde de Peyrac parece possuir.
Creia-me, estou bem informado.
Não o duvido", pensou Angélica, "e é verdade que há muito empo ele pratica o tráfico do ouro
espanhol com os muares..."
Os olhos azuis observavam sua hesitação. Ela fechou um tanto nervosamente o leque.
— Um cientista não é forçosamente um sócio do Demônio. Não dizem que na corte há sábios que
instalaram uma luneta para olhar os astros e as montanhas da Lua, e que o Sr. Gastão d'Orléans, tio do
rei, se entrega a tais observações guiado pelo Padre Picard?
— Com efeito, conheço de sobra o Padre Picard. Ele é não somente astrônomo, mas grande geômetra
do rei.
— Bem vê...
— A Igreja, minha senhora, tem largueza de espírito. Ela autoriza toda espécie de pesquisas, mesmo as
mais ousadas, como as do Padre Picard. E vou mais longe. Tenho sob minhas ordens, no arcebispado,
um religioso muito sábio, da ordem dos recole-tos, o Monge Bécher. Há vários anos que faz
experiências sobre a transmutação do ouro, mas com a minha autorização e a de Roma. Confesso que até
agora me saiu muito caro, sobretudo pelas despesas com substâncias especiais, que eu tenho de fazer vir
da Espanha e da Itália. Esse homem, que conhece as mais antigas tradições de sua arte, afirma que, para
conseguir o que desejamos, é preciso receber uma revelação superior, que não pode provir senão de
Deus ou de Satanás.
— E ele o conseguiu?
— Ainda não.
— Pobre homem! Então ele é malvisto por Deus e por Satanás, apesar da sua alta proteção.
Angélica mordeu os lábios, arrependendo-se de sua malícia. Tinha a impressão de que ia sufocar e que
era preciso dizer bobagens para livrar-se da indisposição. A conversa parecia-lhe tão tola quanto
perigosa.
Virou-se para a porta, na esperança de ouvir os passos de seu marido na galeria, e teve um pequeno
sobressalto.
— Oh! Você estava aí?
— Cheguei agora — disse o conde —, e não mereço perdão, senhor, por ter-lhe feito esperar tanto
tempo. Confesso que me informaram de sua visita há cerca de uma hora, mas era-me impossível
abandonar a operação delicadíssima de certa retorta.
Ainda vestia sua blusa de alquimistá, que lhe descia até os pés. Era uma espécie de bata em que os
signos do zodíaco, bordados, se misturavam com manchas coloridas de ácidos. Angélica compreendeu
que ele tinha conservado aquela vestimenta como uma espécie de provocação, como quando se
comprazia em chamar "senhor" ao Arcebispo de Toulouse, tratando assim de igual para igual o Barão
Benedito de Fontenac.
O Conde de Peyrac acenou a um criado que estava na antecâ-mara, o qual o ajudou a despir a bata.
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Depois avançou e inclinou-se. Um raio de sol fez brilhar ainda mais sua negra cabeleira de grandes
cachos reluzentes, da qual tratava com requintes e que podia competir em abundância com as perucas
parisienses cuja moda começava a difundir-se.
"Tem os cabelos mais belos do mundo", pensou Angélica.
Seu coração batia mais depressa do que ela desejava. Seus olhos reviram a cena da véspera.
"Não é verdade", repetia para si mesma, "foi um outro que cantou. Oh! Nunca lhe perdoarei!"
Entrementes, o Conde de Peyrac fazia trazer um alto tamborete e sentava-se perto de Angélica, um
pouco atrás.
Assim ela não o via, mas era atingida por um hálito cujo perfume lhe recordava um instante
embriagador. Além disso, percebeu que, enquanto trocava palavras triviais com o arcebispo, Joffrey de
Peyrac não deixava de acariciar com os olhos a nuca e as espá-duas de sua jovem mulher, mergulhando
mesmo com audácia na suave penumbra do corpete onde repousavam os jovens seios cuja perfeição
verificara na véspera.
Exagerava aquele procedimento por malícia, diante do prelado, cuja virtude passava por intransigente.
De fato, o Arcebispo de Toulouse, embora tivesse herdado o posto de um de seus tios, empenhara-se
em receber as ordens sacras e assumir não só as responsabilidades de administrador de uma das mais
importantes dioceses da França, mas também de pastor de almas. Sua vida exemplar, que não podia dar
margem a nenhuma crítica, tornava-o ainda mais temível.
Angélica teve ímpeto de se virar para o marido e suplicar-lhe que fosse mais prudente.
Ao mesmo tempo, gozava aquela muda homenagem. Sua pele virginal, privada de carícias, pedia algo
mais concreto, o contato de uns lábios experientes que a despertassem para a voluptuosida-de. Muito
reta e um pouco rígida, sentia que uma chama lhe subia as faces. Dizia consigo mesma que era ridícula
e que não havia flada em- tudo aquilo que pudesse irritar o arcebispo, pois afinal de contas era a esposa
daquele homem. Invadia-a o desejo de ser sua, de se abandonar, de olhos fechados, ao seu amplexo.
Com certeza sua perturbação estaria sendo notada por Joffrey de Pey-rac, e ele devia divertir-se
muitíssimo.
"Brinca comigo como o gato com o rato. Vinga-se do meu desdém", pensou Angélica,
desorientada.
Para dissipar seu constrangimento, chamou um dos negrinhos que dormitava sobre um coxim
num canto do salão, e ordenou-lhe que fosse buscar a confeiteira. Quando o menino trouxe a caixa
de ébano com incrustações de nácar, que continha nozes e frutas confeitadas, granjéias
aromatizadas e açúcar rosado, Angélica já havia recobrado o seu sangue-frio e acompanhava
atentamente a conversação dos dois homens.
— Não, senhor — dizia o Conde de Peyrac, roendo negligentemente algumas pastilhas de
violeta —, não creia que me tenha entregue às ciências com o fim de conhecer os segredos do
poder. Sempre tive natural inclinação para estas coisas. Por exemplo, se houvesse continuado
pobre, teria procurado fazer-me nomear engenheiro das Águas do rei. Não pode ter idéia do atraso
em que nos achamos nestas questões de irrigação, bombeamento de água e outras obras
semelhantes. Os romanos sabiam disto dez vezes mais do que nós, e quando visitei o Egito e a
China...
— Sei, efetivamente, que viajou muito, conde. O senhor foi aos países do Oriente, onde ainda se
conhecem os segredos dos Reis Magos?
Joffrey pôs-se a rir.
— Estive lá, mas não encontrei os<Reis Magos. A magia não me interessa. Deixo isso ao seu
bom e ingênuo Bécher.
— Bécher pergunta sempre quando terá o prazer de assistir a uma de suas experiências e tornar-
se seu discípulo em química.
— Senhor, eu não sou mestre-escola. E, se o fosse, deixaria de lado as pessoas pouco
inteligentes.
— No entanto, esse religioso tem reputação de grande engenho.
— Sem dúvida em escolástica, mas nas ciências de observação é nulo: não vê as coisas como são,
mas como crê que sejam. Considero isso falta de inteligência e estreiteza de visão.
— Seja. Esse é seu ponto de vista, e eu sou demasiado ignorante em ciências profanas para julgar
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se são bem ou mal fundamentas suas antipatias. Mas não se esqueça de que o Padre Bécher, a
quem o senhor tacha de ignorante, publicou em 1639 um livro notável sobre alquimia, para o qual,
aliás, custou-me conseguir o impfimatur de Roma.
— Uma obra científica não depende de aprovação ou desaprovação da Igreja — disse o conde um
pouco secamente.
— Permita-me que discorde. O espírito da Igreja não abrange o conjunto da natureza e dos fenômenos?
— Não vejo razão para ser assim. Lembre-se, monsenhor, do "Dai a César o que é de César" de Nosso
Senhor. César é o poder exterior dos homens, mas é também o poder exterior das coisas. Ao falar assim,
o Filho de Deus quis proclamar a independência do domínio das almas, do domínio religioso, em relação
ao domínio da matéria, e não duvido de que a ciência abstrata esteja incluída nisto.
O prelado abanou várias vezes a cabeça enquanto um sorriso distendia seus lábios finos.
— Admiro sua dialética. É digna da grande tradição e demonstra que o senhor assimilou bem os
ensinamentos teológicos que recebeu em nossa universidade. Todavia, é aí que intervém o juízo do alto
clero para decidir os debates, porque nada se parece mais com a razão do que a sem-razão.
— Monsenhor, eis uma frase que me encanta ouvir de seus lábios. Porque, de fato, a menos que se trate
estritamente das coisas da Igreja, isto é, do dogna e da moral, estou convencido de que, para a ciência,
devo extrair meu único argumento dos fatos observados e não de sofismas. Em outros termos, devo fiar-
me dos métodos de observação expostos por Bacon em seu Novnm Organum, publicado em 1620, bem
como das indicações dadas pelo matemático Descartes, cujo Discurso sobre o Método permanecerá
como um dos monumentos da filosofia e das matemáticas...
Angéiica percebeu que aqueles dois sábios eram quase desconhecidos para o prelado, que passava,
entretanto, por homem erudito. Receava que a discussão pudesse tornar-se mais áspera e que Joffrey
acabasse por destratar o arcebispo.
Que necessidade têm os homens de discutir os méritos respectivos de diferentes cabeças de alfinete?",
pensava. Mas o que mais temia era que as hábeis digressões do arcebispo tivessem por fina-Wade atrair
Joffrey de Peyrac a uma armadilha. Desta vez a suscetibilidade do príncipe da Igreja parecia ter sido
erida. Suas faces pálidas, cuidadosamente barbeadas, se coloriram, e ele fechou os olhos com uma
expressão de astúcia altaneira que assustou a jovem.
— Sr. de Peyrac — disse ele —, o senhor fala de poder: poder sobre os homens, poder sobre as coisas.
Nunca pensou que sua extraordinária prosperidade poderia parecer suspeita a muitos, e sobretudo
despertar a atenção vigilante da Igreja? Sua riqueza, que aumenta dia a dia, seus trabalhos científicos,
que atraem a sua casa sábios encanecidos no estudo... No ano transato conversei com um deles, o
matemático alemão Leibniz. Espantava-se de haver o senhor conseguido resolver brincando problemas
sobre os quais se debruçaram em vão os maiores cérebros destes tempos. Fala doze línguas...
— Pico delia Mirandola, no século passado, falava dezoito.
— Possui uma voz que fez empalidecer de inveja o grande cantor italiano Maroni, verseja
maravilhosamente e leva ao ponto mais alto... perdoe-me, minha senhora... a arte de seduzir as
mulheres...
— E que diz disto?
Angélica percebeu, com um aperto no coração, que Joffrey levara a mão à face marcada de gilvazes.
A confusão do arcebispo terminou por uma expressão de impaciência.
— Ora essa! Arranjou-se não sei como para fazê-lo esquecer. O senhor tem demasiados dotes, creia-
me.
— Seu requisitório me surpreende e perturba — disse lentamente o conde. — Ainda não tinha
percebido que despertava tanta inveja. Ao contrário, sempre me pareceu que levava comigo uma cruel
desvantagem.
Inclinou a cabeça e nesse momento seus olhos se iluminaram, como se lhe ocorresse fazer uma boa
pilhéria.
— Sabe, monsenhor, que eu sou, de certo modo, um mártir hu-guenote?
— O senhor, huguenote? — exclamou o arcebispo espantado.
— Eu disse "de certo modo". Vou contar-lhe a história. Quando eu nasci, minha mãe me confiou a uma
ama-de-leite, que ela escolheu não por causa de sua religião mas pelo tamanho de seus peitos. Acontece
que a ama era huguenote. Levou-me para sua aldeia das Cevenas, domínio de um pequeno senhor
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partidário da Reforma. Não distante dali havia, como é natural, outro pequeno senhor e algumas aldeias
católicas. Não sei como a coisa começou. Eu tinha três anos quando católicos e huguenotes se bateram.
Minha ama e as outras mulheres da aldeia refugiaram-se no castelo do gentil-homem protestante. Por
volta da meia-noite os católicos o tomaram de assalto. Todos foram degolados e o castelo, incendiado.
Quanto a mim, depois de me haverem lanhado o rosto com três golpes de sabre, jogaram-me por uma
janela, e eu caí do segundo andar em um pátio coberto de neve. A neve me salvou das fagulhas que
choviam em redor. Pela manhã, um dos católicos que voltava para saquear o castelo, e que me conhecia
como filho de nobres tolosanos, apanhou-me e colocou-me em sua cesta, junto com minha irmã colaça
Margarida, que era a única que havia escapado à carnificina. O homem enfrentou várias nevascas antes
de alcançar a planície. Quando chegou a Toulouse, eu estava vivo. Minha mãe me levou para um terraço
ensolarado, despiu-me e proibiu aos médicos que se aproximassem, porque, segundo dizia, acabariam
comigo. Assim passei vários anos estendido ao sol. Somente aos doze pude começar a andar. Aos
dezesseis embarquei para o exterior. Já viu como tive tempo para estudar tanto. Primeiro, graças à
enfermidade e à imobilidade; depois, às minhas viagens. Não há nisso nada de suspeito.
Depois de um instante de silêncio, o arcebispo disse com ar meditativo:
— Seu relato esclarece muitas coisas. Já não estranho sua simpatia aos protestantes.
— Não tenho simpatia aos protestantes.
— Digamos então sua antipatia aos católicos.
— Não tenho antipatia aos católicos. Sou um homem do passado, senhor, e não sei viver nesta época
de intolerância. Deveria ter nascido um ou dois séculos antes, nos tempos da Renascença, nome mais
doce que Reforma, quando os barões franceses descobriram a Itália e, depois dela, a herança luminosa
da Antigüidade: Roma, a Grécia, o Egito, as terras bíblicas...
Monsenhor de Fontenac teve um leve estremecimento, que não escapou a Angélica. "Trouxe-o", pensou,
"aonde queria trazê-lo."
— Falemos das terras bíblicas — disse suavemente o arcebispo.
—- Não reza a Escritura que Salomão foi um dos primeiros magos, e que enviou navios a Ofir, onde, a
salvo de olhares indiscretos, fez transformar pela transmutação metais vis em metais Preciosos? A
história diz que ele trouxe seus navios carregados de ouro.
— A história também diz que, depois de seu regresso, Salomão dobrou os impostos, o que prova que
ele não trouxe muito ouro, e sobretudo que não sabia bem quando poderia renovar a provisão. Se
realmente houvesse descoberto a fabricação do ouro, não teria majorado os tributos nem tido o trabalho
de enviar seus navios a Ofir.
— Talvez, em sua prudência, não haja querido inteirar seus súditos de segredos de que poderiam
abusar.
— Digo mais: Salomão não podia conhecer a transmutação dos metais em ouro, porque a transmutação
é um fenômeno impossível. A alquimia é uma arte que não existe, uma sinistra farsa que vem de séculos
perdidos em trevas e que, aliás, cairá no ridículo, pois ninguém poderá jamais operar a transmutação.
— Pois eu lhe digo — exclamou o arcebispo empalidecendo — que vi com meus próprios olhos
Bécher mergulhar uma colher de estanho em um líquido preparado por ele e retirá-la transformada em
ouro.
— Não estava transformada em ouro; estava recoberta de ouro. Se o bom homem houvesse tido o
pequeno trabalho de arranhar com uma punção aquela película dourada, encontraria imediatamente
debaixo dela o estanho.
— E exato, mas Bécher afirma que era um começo de transmutação, o princípio do próprio fenômeno.
Houve uma pausa. A mão de Joffrey de Peyrac deslizou sobre o braço da poltrona de Angélica e roçou o
pulso da jovem. Disse o conde displicentemente:
— Se estava persuadido de que seu monge encontrou a fórmula mágica, que veio pedir-me esta
manhã?
O arcebispo não pestanejou.
— Bécher acredita que o senhor conhece o supremo segredo que permite consumar a transmutação.
O Conde de Peyrac deu uma sonora gargalhada.
— Nunca ouvi uma afirmação tão cômica. Eu, lançar-me a essas pesquisas pueris? Pobre Bécher!
Deixo-lhe de bom grado todas as emoções e todas as esperanças da falsa ciência que pratica e...
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Um estrondo terrível, semelhante a um trovão ou a um canho-naço, o interrompeu. Joffrey se levantou e
empalideceu.
— É... é no laboratório. Meu Deus, contanto que Kuassi-Ba nãotenha morrido!
E dirigiu-se apressadamente para a porta.
O arcebispo tinha-se erguido como um juiz. Silencioso, encarava Angélica.
— Eu me vou, minha senhora — disse finalmente. — Parece-me que nesta casa Satanás já começa a
manifestar o seu furor só pelo fato da minha presença. Permita que me retire.
Distanciou-se a passos largos. Ouviu-se o estalo dos chicotes e os gritos do cocheiro, enquanto o
coche episcopal atravessava o grande pórtico.
Ficando só, Angélica, atordoada, passou o pequeno lenço pela fronte orvalhada de suor. Aquela
conversa, que ela havia escutado atentamente, deixava-a desconcertada. Dizia consigo mesma que
estava mais do que farta dessas histórias de Deus, de Salomão, de heresia e de magia. Depois,
percebendo a irreverência de seus pensamentos, fez um ato de contrição. Por fim deduziu que os ho-
mens eram insuportáveis com suas sutilezas e que, no fundo, o próprio Deus devia estar cansado de
aturá-los.
CAPÍTULO XIX
Conversação científica entre Angélica e o conde
Indecisa, Angélica não sabia o que fazer. Morria de desejo de ir à ala do palácio de onde viera aquele
estampido. Joffrey parecera seriamente alarmado. Haveria feridos?... Não obstante, ela não se mexia. O
mistério de que o conde cercava seus trabalhos tinha-lhe feito compreender que aquele era o único
domínio em que ele não admitia a curiosidade dos profanos. As explicações que havia dado ao bispo
não eram senão explicações pela metade e por consideração à personalidade do visitante. Tinham sido
insuficientes para acalmar as suspeitas do prelado.
Angélica tremeu. "Bruxaria!" Olhou em redor de si. Naquele ambiente encantador, a palavra parecia
um sinistro gracejo. Mas havia demasiadas coisas que Angélica ignorava.
"Vou ver o que houve", decidiu. "Se se aborrecer, pior para ele."
Ouviu os passos de seu marido, que pouco depois entrou no salão. Tinha as mãos negras de fuligem.
No entanto, sorria.
— Nada grave, graças a Deus. Kuassi-Ba só tem algumas escoriações. Escondeu-se tão bem debaixo
de uma mesa que por um momento pensei que a explosão o tivesse volatilizado. Em compensação, os
prejuízos materiais são grandes. Minhas mais preciosas retortas de vidro especial da Boêmia estão em
cacos; não sobrou nenhuma!
A um aceno dele, dois pajens aproximaram-se com uma bacia e um gomil de ouro. Lavou as mãos e
desamassou com piparotes os punhos de renda.
Angélica recobrou a calma.
—É necessário, Joffrey, que dedique tantas horas a esses trabalhos perigosos?
— É necessário ter ouro para viver — disse o conde, mostrando com gesto circular o magnífico salão,
cujo teto de madeira dourada havia feito repintar recentemente. — Mas a questão não é essa. Encontro
nesses trabalhos um prazer que nenhuma outra coisa me pode dar. São o alvo da minha vida.
Angélica sentiu uma pontada no coração, como se tais palavras a privassem de um bem precioso, mas,
percebendo que seu marido a observava com atenção, esforçou-se por assumir um ar indiferente. Ele
sorriu.
— São o único alvo de minha vida, afora o de conquistá-la — acrescentou com uma reverência
cortesã.
— Não me situo como rival de seus frascos e retortas — disse Angélica prontamente. — No entanto,
confesso-lhe que as palavras de monsenhor despertaram em mim certa inquietação.
— De verdade?
— Não sentiu nelas uma ameaça disfarçada?
O conde não respondeu imediatamente. Encostado à janela, olhava pensativo os telhados planos da
cidade, apertados uns contra os outros até formarem com suas telhas redondas um imenso tapete em que
se misturavam as cores do trevo e da papoula.
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A direita, a alta torre de Assézat, com sua lanterna, dizia da glória dos negociantes de pastel, cujos
campos se estendiam ainda pelos arredores. O pastel-dos-tintureiros, cultivado em abundância, havia
sido durante séculos a única matéria corante natural, e fizera a fortuna dos burgueses e dos comerciantes
de Toulouse.
Vendo que seu marido não falava, Angélica voltou a sentar-se na sua poltrona e um negrinho colocou
perto dela a cesta em que se misturavam os lustrosos fios de seda de sua tapeçaria.
O palácio estava agora calmo. Angélica esperava encontrar-se a sós com o Conde de Peyrac na
refeição do meio-dia, a não ser que o inevitável Bernardo d'Andijos se convidasse...
— Você observou — disse de súbito o conde — a arte do grande inquisidor? Começa por falar da
moral, sublinha, de passagem, as "orgias" da Gaia Ciência, faz alusão às minhas viagens e daí nos
conduz até Salomão. Em resumo, facilmente se percebe isto: que o Sr. Barão Benedito de Fontenac,
Arcebispo de Toulouse, me pede que divida com ele meu segredo de fabricação de ouro, e, se me nego,
me fará queimar como feiticeiro na Place des Salins.
— Essa é precisamente a ameaça de que suspeitei — disse Angélica, espantada. — Acredita que ele
imagina verdadeiramente que você tem trato com o Diabo?
— Ele? Não. Isso ele deixa ao seu ingênuo Bécher. O arcebispo tem uma inteligência bastante positiva
e me conhece muito bem. Mas está convicto de que possuo o segredo de multiplicar cientificamente o
ouro e a prata. Quer conhecê-lo para poder utilizá-lo.
— É um ser abjeto! — exclamou a jovem. — E no entanto parece tão digno, tão cheio de fé, tão
generoso...
— E realmente o é. Emprega sua fortuna em boas obras. Dá comida aos oficiais pobres, mantém o
serviço do fogo, a casa dos expostos e não sei mais o quê. Dedica-se ao bem das almas e sente a
grandeza de Deus. Mas tem o demônio da dominação. Sente saudade do tempo em que o único dono de
uma cidade e até de uma província era o bispo, de báculo na mão, que ministrava a justiça, castigava,
recompensava. E quando vê crescer diante de sua catedral o prestígio da Gaia Ciência, ele se revolta. Se
as coisas continuarem assim, dentro de alguns anos será o Conde de Peyrac, seu esposo, minha querida
Angélica, quem dominará Toulouse. O ouro e a prata dão poder, e o poder está caindo agora nas mãos
de um súdito de Satanás... Então monsenhor não vacila. Ou dividimos o poder ou então...
— Que sucederá?
— Não se assuste, minha amiga. Embora as intrigas de um arcebispo de Toulouse nos possam ser
nefastas, não vejo que seja preciso chegar a esse extremo. Ele descobriu seu jogo. Quer possuir o
segredo da fabricação do ouro. Entregar-lho-ei com muito prazer.
— Então você o possui? — murmurou Angélica, escancelando os olhos.
— Não confundamos as coisas. Não possuo nenhuma fórmula mágica para fazer ouro. Meu fim não é
fabricar riquezas, mas fazer trabalhar as forças da natureza.
— Mas isso não é, por si só, uma idéia um tanto herética, como diria monsenhor?
Joffrey soltou uma gargalhada.
— Vejo que a catequizou muito bem. Você começa a enredar-se na teia de suas argumentações
especiosas. Reconheço que nessas condições é difícil ver claro. A Igreja da Idade Média não exco-
mungava os moleiros que utilizavam o vento ou a água para fazer girar as aspas ou as rodas de seus
moinhos. Mas a Igreja de hoje se levantaria contra mim se eu procurasse construir numa elevação dos
arredores de Toulouse o mesmo modelo de bomba a vapor de água condensada que fiz instalar em sua
mina de Argentière! Ora, pelo simples fato de eu colocar sobre o fogo um recipiente de vidro ou de
barro, não iria Satanás introduzir-se nele...
— A explosão foi impressionante. Monsenhor pareceu-me vivamente perturbado. Você o fez de
propósito, para pô-lo fora de si?
— Não! Tive um descuido. Deixei secar demasiado uma preparação de ouro fulminante obtido por
meio de ouro laminado e água-régia e precipitado em seguida pelo amoníaco. Não havia nessa operação
nenhuma geração espontânea.
— O que é essa coisa a que chama amoníaco?
— Um produto que os árabes já fabricavam há séculos e que denominavam "álcalis volátil". Um sábio
monge espanhol, amigo meu, enviou-me não há muito um garrafão. Eu mesmo poderia fabricá-lo aqui,
mas o processo é demorado, e para adiantar minhas pesquisas prefiro comprar já preparados, quando
possível, os produtos de que necessito. A fabricação de ingredientes puros atrasa muito os progressos de
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uma ciência que os imbecis como o Frade Bécher designam pelo nome de química, por oposição à
alquimia, que é para eles a ciência das ciências, isto é, uma obscura mescla de fluido vital, de fórmulas
religiosas e não sei mais quê. Mas creio que a estou enfadando...
— Não, asseguro-lhe — disse Angélica com olhos brilhantes. — Passaria horas inteiras a escutá-lo.
Ele teve um sorriso cuja ironia era acentuada pelas cicatrizes.
— Que curiosa cabecinha! Nunca pensei em falar destas coisas com uma mulher. A mim também me
dá prazer falar-lhe sobre estes assuntos. Tenho a impressão de que pode compreender tudo. Entretanto...
você não esteve a ponto de atribuir-me poderes ocultos quando chegou ao Languedoc? Continuo
causando-lhe tanto medo?
Angélica ruborizou-se, mas retribuiu-lhe corajosamente o olhar.
— Não! Você continua sendo para mim um desconhecido, e isto, creio, porque não se parece com
ninguém, mas já não me causa medo.
O conde dirigiu-se para o assento que havia ocupado atrás dela durante a visita do arcebispo. Em
certos momentos, com insolente provocação, não temia erguer em plena luz seu rosto desfigurado, mas
em outros buscava a sombra e a noite. Nesses instantes, sua voz adquiria entonações novas, como se a
alma de Joffrey de Peyrac, desembaraçada de seu invólucro de carne, lograsse por fim exprimir-se
livremente.
Angélica sentia perto de si a invisível presença do "homem vermelho" que tanto a tinha horrorizado.
Certamente era o mesmo homem, mas a impressão da jovem havia mudado. Estava a ponto de lhe fazer
a ansiosa interrogação feminina: "Você me ama?"
Mas seu orgulho falou mais alto, pois não se esquecera das palavras que ele havia dito: "Você virá um
dia... Todas vêm..."
Para dissipar sua perturbação, voltou a conduzir a palestra para o terreno científico, no qual,
curiosamente, seus espíritos se tinham encontrado e sua amizade se havia firmado.
— Já que você não vê inconveniente em ceder seu segredo, por que se nega a receber esse Frade
Bécher que monsenhor tanto aprecia?
— Ora essa! E verdade que eu podia comprazer-lhe nesse ponto. O que me preocupa, entretanto, não é
revelar-lhe o meu segredo, mas chegar a fazê-lo compreender. Em vão me empenharei em provar que se
pode transformar a matéria, mas não transmutá-la. Os espíritos que nos rodeiam ainda não estão
maduros para tais revelações. E o orgulho desses falsos sábios é tão grande que ficariam escandalizados
se eu lhes dissesse que meus dois auxiliares mais preciosos são um mouro de pele negra e um rústico
mineiro saxão.
— Kuassi-Ba e Fritz Hauer, o velho corcunda de Argentière?
— Exatamente. Kuassi-Ba contou-me que, quando era menino e livre, em alguma parte do interior de
sua África selvagem, aonde se chega pela Costa das Especiarias, tinha visto trabalhar o ouro segundo
antigos processos aprendidos dos egípcios. Os faraós e o Rei Salomão tinham lá suas minas de ouro;
mas .pergunto-lhe, querida: que dirá monsenhor quando eu lhe confiar que quem guarda o segredo do
Rei Salomão é meu negro Kuassi-Ba? Realmente foi ele quem me orientou em meus trabalhos de
laboratório e quem me deu a idéia de tratar certas rochas que contêm ouro invisível. Quanto a Fritz
Hauer, é o mineiro por excelência, o homem das galerias, a toupeira que não respira senão no seio da
terra. Estes mineiros saxões transmitem de pai a filho suas receitas, e graças a elas pude por fim orientar-
me entre as caprichosas mistificações da natureza e distinguir os mais diversos ingredientes: chumbo,
ouro, prata, vitríolo, sublimado corrosivo e outros.
— Você chegou a fabricar sublimado corrosivo e vitríolo? — indagou Angélica, a quem estas palavras
recordavam vagamente alguma coisa.
— Precisamente, e isso me serviu para demonstrar a inanidade de toda a alquimia, pois do sublimado
corrosivo posso extrair à vontade quer o azougue, quer o mercúrio amarelo e vermelho, e estes últimos
corpos, por sua vez, eu posso voltar a transformá-los em azougue. O peso do mercúrio, tomado ao
iniciar-se a operação, não aumentará, mas, ao contrário, diminuirá, porque existem perdas por
evaporação. Mediante certos processos posso extrair prata do chumbo e ouro de algumas rochas
aparentemente estéreis. Mas, se à entrada de meu laboratório eu inscrevesse as palavras: "Nada se perde,
nada se cria", minha filosofia pareceria muito ousada e até em oposição ao espírito do Gênesis.
— Não é por um processo desse gênero que pode fazer chegar até Argentière os lingotes de ouro
mexicano que adquire em Londres?
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— Você é uma moça muito viva, e acho que Molines falou demais. Não importa! Se falou, é porque a
conhecia. É verdade, os lingotes espanhóis são refundidos numa forja com pirita ou gale-na. Adquirem
então o aspecto de uma escória pedrosa e cinzento-escura, da qual o mais exigente dos guardas
aduaneiros não pode absolutamente suspeitar. E esse minério é que os bons muares de seu pai
transportam da Inglaterra para o Poitou ou da Espanha para Toulouse, onde é de novo transformado por
mim ou pelo meu saxão Hauer em belo ouro cintilante.
— Isso é uma "fraude fiscal" — disse Angélica um tanto severamente.
— Você é adorável quando fala assim. Esta fraude não prejudica o reino nem Sua Majestade, e a mim,
enriquece-me. Além disso, dentro em pouco farei vir Fritz Hauer a fim de aparelhar a mina de ouro que
descobri num lugar chamado Salsigne, nos arredores de Narbonne. Então, com o ouro dessa montanha e
a prata do Poitou, não mais necessitaremos dos metais preciosos da América, nem, por conseguinte,
praticaremos esta fraude, como você diz.
— Por que você não procura interessar o rei em suas descobertas? Talvez haja outros terrenos na
França que possam ser explorados segundo seus processos, e o rei lhe ficaria agradecido.
— O rei está longe, minha bela, e eu não tenho nada de corte-são. Somente as pessoas dessa espécie
podem ter alguma influência sobre os destinos do reino. O Sr. de Mazarino é dedicado à coroa, não o
nego, mas é, acima de tudo, um intrigante internacional. Quanto ao Sr. Fouquet, encarregado de arranjar
dinheiro para o Cardeal Mazarino, é um gênio das finanças, mas creio que o enriquecimento do país por
uma exploração bem orientada de suas riquezas naturais lhe é indiferente.
— O Sr. Fouquet... — exclamou Angélica. — É isso! Agora me recordo onde ouvi falar de vitríolo
romano e de sublimado corrosivo. Foi no Castelo do Plessis.
Toda a cena revivia ante seus olhos: o italiano de burel, a mulher desnuda entre as rendas, o Príncipe
de Conde e o cofrezinho de sândalo onde brilhava um frasquinho verde.
"Meu padre", dizia o Príncipe de Conde, "é o Sr. Fouquet quem o envia?"
Angélica perguntava a si mesma se, ocultando aquele pequeno cofre, não haveria tolhido o braço do
destino.
— Em que está pensando? — interrogou o Conde de Peyrac.
— Em uma aventura estranha que me sucedeu certa vez.
E ela, que havia calado tanto tempo, contou-lhe a história do cofrezinho, cujos detalhes estavam todos
gravados em sua memória.
— A intenção do Sr. de Conde — acrescentou — era certamente envenenar o cardeal e talvez o
próprio rei e seu jovem irmão.
Mas o que não cheguei a compreender bem foram aquelas cartas, espécie de compromissos assinados,
que o príncipe e outros senhores deviam entregar ao Sr. Fouquet. Esqueci um pouco o texto... Era uma
coisa assim: "Comprometo-me a obedecer ao Sr. Fouquet, e pôr meus bens à sua disposição..."
Jofírey de Peyrac escutou-a em silêncio. Depois sorriu.
— Que boa gente! Quando se pensa que o Sr. Fouquet era então apenas um obscuro parlamentar! Mas
por sua aptidão financeira podia já pôr os príncipes a seu serviço. Agora é a personagem mais rica do
reino, com o Sr. Mazarino, entenda-se. O que prova que havia lugar para os dois ao bom sol de Sua
Majestade. Então, você levou sua audácia a ponto de apoderar-se do cofrezinho? Você o escondeu?
— Sim, es...
Uma prudência instintiva, fechou-lhe de repente os lábios.
— Não. Joguei-o no lago dos nenúfares do grande parque.
— E acredita que alguém tenha suspeitado de você por essa desaparição?
— Não sei. Não creio que tenham dado grande importância à minha insignificante pessoa. Todavia,
não deixei de fazer alusão ao cofre diante do Príncipe de Conde.
— Deveras? Mas foi uma loucura!
— Precisava obter para meu pai a isenção dos direitos de passagem para os muares. Oh! Até parece um
romance — disse rindo —, e agora sei que indiretamente você estava envolvido na história. Mas voltaria
de bom grado a praticar imprudências semelhantes, só para ver de novo as caras assustadas daquela
gente tão cheia de empáfia!
Depois que Angélica lhe contou o incidente que tivera com o Príncipe de Conde, seu marido abanou a
cabeça.
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— Quase me surpreendo de ainda vê-la viva a meu lado. Você deve ter parecido muito inofensiva, mas
é sempre perigoso misturar-se como comparsa nessas intrigas de cortesãos. Se fosse necessário, não
hesitariam em matar uma menina.
Enquanto falava, levantou-se, e Angélica o viu acercar-se de um reposteiro, que ele abriu de inopino.
Voltou com uma expressão de contrariedade.
— Não sou bastante lesto para surpreender os curiosos.
— Alguém nos escutava?
— Estou certo disso.
— Não é a primeira vez que tenho a impressão de que nos espreitam.
O conde tornou a ocupar seu posto atrás dela. O calor se tornara mais intenso, mas subitamente a
cidade começou a vibrar ao som dos mil sinos que tocavam o ângelus. A jovem persignou-se
devotamente e murmurou a oração à Virgem. Durante algum tempo Angélica e seu marido, sentados
perto da janela aberta, não puderam trocar palavra. Permaneceram silenciosos, e aquela intimidade entre
eles enterneceu profundamente Angélica.
"Não somente sua presença não me desgosta, como sou feliz", pensava admirada. "Se voltasse a
beijar-me, será que me desagradaria?"
Como durante a visita do arcebispo, sentia o olhar de Joffrey sobre sua nuca branca.
— Não, minha querida, eu não sou um mago — murmurou o conde. — Talvez haja recebido da
natureza algum dom; mas, sobretudo, quis aprender. Compreende? — continuou num tom meigo que a
encantou. — Tinha sede de conhecer todas as coisas difíceis: as ciências, as letras e também o coração
das mulheres. Curvei-me com deleite sobre esse mistério sedutor. Por trás dos olhos de uma mulher
supõe-se que não existe nada, e descobre-se um mundo. Ou então alguém imagina um mundo e não
descobre nada... a não ser um pequeno guizo. Que há por trás de seus olhos verdes, que evocam os
prados ingênuos e o oceano tumultuoso?
Angélica percebeu que ele se movia, e a esplêndida cabeleira negra desceu sobre seus ombros nus
como uma pelúcia morna e se-dosa. Estremeceu ao contato dos lábios que sua nuca inclinada esperava
inconscientemente. Com os olhos fechados, saboreando aquele beijo longo, ardente, Angélica sentia
chegar a hora de sua derrota. Então, tremente, ainda indócil, mas subjugada, ela viria, como as outras,
oferecer-se ao amplexo daquele homem misterioso.
CAPITULO XX
Conan Bécher, sobrevivente da Idade Média
Passado algum tempo, Angélica voltava de um passeio matinal pelas margens do Garonne. Gostava de
montar a cavalo e a isso dedicava sempre algumas horas do amanhecer, quando ainda estava fresco.
Joffrey de Peyrac raramente a acompanhava. Ao contrário da maioria dos nobres, não se interessava pela
equitação e pela caça. Poder-se-ia supor que ele temia os exercícios violentos, - se sua reputação de bom
esgrimista não fosse quase tão grande como a de cantor. Os golpes e paradas que executava, apesar de
sua perna aleijada, eram, dizia-se, prodigiosos. Exercitava-se todos os dias na sala de armas do palácio,
mas Angélica nunca o tinha visto esgrimir. Ignorava ainda muitas coisas a respeito dele, e, às vezes, com
súbita melancolia, recordava as palavras que o arcebispo lhe havia murmurado no dia de seu casamento:
"Aqui entre nós, a senhora escolheu um singular marido".
Assim, depois de uma aparente aproximação, o conde parecia haver voltado, com relação a ela, à
atitude respeitosa mas distante dos primeiros tempos. Via-o muito pouco e sempre na presença de
convidados, e perguntava a si mesma se a tumultuosa Carmen-cita de Mérecourt não seria a causa de
tal afastamento. De fato, depois de uma viagem a Paris, a dama espanhola tinha voltado a Toulouse,
onde sua exaltação punha todo mundo sobre brasas. Desta vez afirmava-se muito seriamente que o Sr.
de Mérecourt ia encerrá-la num convento. Se ainda não pusera em prática sua ameaça, era por motivos
diplomáticos. Continuava a guerra com a Espanha, mas o Sr. de Mazarino, que havia muito procurava
negociar a paz, recomendava que ninguém fizesse qualquer coisa que pudesse ferir os melindres
espanhóis. A bela Carmencita pertencia a uma grande família madrilenha. As flutuações de sua vida
conjugai tinham, pois, maior importância que as batalhas campais de Flandres, e em Madri sabia-se
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tudo, porque, apesar da rotura das relações oficiais, mensageiros disfarçados em monges, bufarinhei-
ros ou mercadores não cessavam de atravessar os Pireneus.
Carmencita de Mérecourt exibia, pois, em Toulouse, sua vida excêntrica, e Angélica estava inquieta e
magoada. Apesar do traquejo mundano adquirido no contato com aquela sociedade brilhante, no fundo
continuava simples como uma flor do campo, rústica e suspicaz. Não se sentia dotada para lutar contra
uma Carmencita, e às vezes dizia a si mesma, com o coração ralado de ciúmes, que a espanhola se
adaptava melhor do que ela ao caráter original do Conde de Peyrac.
Só no domínio das ciências sabia que era a primeira mulher aos olhos do marido.
Precisamente naquela manhã, ao aproximar-se do palácio com sua escolta de pajens, senhores galantes
e algumas jovens amigas de que gostava de cercar-se, avistou de novo, parada diante do pórtico, uma
carruagem com as armas do arcebispo. Viu descer uma alta e austera figura vestida de burel e depois um
senhor enfitado, espada à cinta, e que parecia ter uma voz retumbante, pois de muito longe já se lhe
ouviam as ordens e ofensas aos lacaios que o acompanhavam.
— A fé de quem sou — disse Bernardo d'Andijos, que continuava sendo um dos fiéis seguidores de
Angélica —, parece-me que temos aí o Cavaleiro de Germontaz, sobrinho de monsenhor. Livre-nos
Deus! É um bruto e o pior néscio que conheço. Se quer meu conselho, minha senhora, passemos pelos
jardins para evitar
encontrá-lo.
Angélica e seus acompanhantes obliquaram à esquerda e, depois de haverem deixado os cavalos na
estrebaria, dirigiram-se para o laranjal, que era um lugar muito aprazível, rodeado de repuxos.
Mal, porém, se sentaram para tomar uma colação de frutas e bebidas geladas, veio um pajem dizer a
Angélica que o Conde de Peyrac a chamava.
Na galeria de entrada encontrou seu marido em companhia do gentil-homem e do frade que acabavam
de chegar.
— Eis aqui o monge Bécher, o ilustre sábio de quem monsenhor nos falou — disse Joffrey. —
Apresento-lhe igualmente o Cavaleiro de Germontaz, sobrinho de Sua Excelência.
O monge era alto e seco. Suas sobrancelhas proeminentes ocultavam uns olhos muito juntos, de olhar
um tanto desigual, que ardiam com luz febril e mística. Um comprido e magro pescoço, de tendões
salientes, emergia da batina. Seu companheiro era o vivo contraste de sua figura. Tão alegre e apegado à
boa vida como consumido estava o outro pela maceração, o Cavaleiro de Germontaz tinha as faces
coradas e, para seus vinte e cinco anos, uma obesidade já muito respeitável. Uma opulenta peruca loura
caía sobre sua casaca de cetim azul ornada com fitas cor-de-rosa. Sua rhingrave era tão ampla e suas
rendas tão abundantes que em meio àquele excesso sua espada de gentil-homem parecia uma incongruên-
cia. Com a pluma de avestruz do seu largo chapéu de feltro, varreu o solo diante de Angélica e beijou-
lhe a mão, mas, ao endireitar-se, lançou-lhe uma olhadela tão atrevida que ela se indignou.
— Agora que minha mulher está aqui, podemos ir ao laborató
rio — disse o Conde de Peyrac.
O monge teve um sobressalto e deixou cair sobre Angélica um olhar de surpresa.
— Devo compreender que a senhora entrará no santuário e assistirá às conversações e experiências a
que o senhor houve por bem associar-me?
O conde fez uma visagem irônica e encarou seu convidado com insolência. Sabia quanto
impressionavam suas expressões a quem o via pela primeira vez, e divertia-se com isso.
— Meu padre, na carta que enviei a monsenhor, e na qual consenti em recebê-lo, segundo o desejo que
ele me havia expressado várias vezes, dizia-lhe que não se trataria, por assim dizer, senão de uma visita,
e que a ela poderiam assistir pessoas de minha escolha. E ele pôs ao seu lado o senhor cavaleiro, para o
caso de seus olhos não conseguirem ver tudo aquilo que é preciso.
— Mas, senhor conde, o senhor, um sábio, não ignora que a presença de uma mulher está em
contradição absoluta com a tradição hermética, a qual assegura que nenhum resultado pode ser
conseguido entre fluidos contrários...
— Acredite, meu padre, que na minha ciência os resultados são sempre fiéis e não dependem do humor
nem da qualidade das pessoas presentes...
— Isso me parece muito bom! — exclamou o cavaleiro com ar de regozijo. — Não escondo que sinto
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mais atração por uma bonita dama do que pelas garrafinhas e velhos potes. Mas meu tio empenhou-se
em que eu acompanhasse Bécher para que me vá enfronhando nos deveres de meu novo posto. Sim, meu
tio vai comprar para mim o cargo de vigário-geral de três bispados. Mas é um homem terrível. Faz-me
esse favor sob uma condição: que eu me ordene sacerdote. Confesso que me contentaria com os
benefícios.
O pequeno grupo dirigiu-se para a biblioteca, que o conde queria mostrar-lhe preliminarmente. O
monge Bécher, para quem esta visita era a realização, durante longo tempo esperada, de um antigo
desejo, fazia muitas perguntas a que Joffrey de Peyrac respondia com resignada paciência.
Angélica ia atrás, escoltada pelo Cavaleiro de Germontaz. Este não perdia ocasião de roçá-la e dirigir-
lhe olhares provocantes.
"E mesmo um bruto", pensou. "Parece um gordo leitão enfeitado de flores e rendas para a ceia do
Natal."
— O que não compreendo bem — disse Angélica em voz alta — é que relação pode ter uma visita ao
laboratório de meu marido com o seu novo posto eclesiástico.
— Eu também não, confesso-o, más meu tio explicou-me isso longamente. Parece qúe a Igreja é menos
rica e poderosa do que se crê, e, sobretudo, do que deveria ser. Meu tio queixa-se também da
centralização do poder real em detrimento dos Estados, como o Languedoc. Pouco a pouco vão retirando
atribuições às assembléias da Igreja e até ao Parlamento local, de que ele é, como a senhora sabe, o
presidente. Substituem-nas pela autoridade do intendente provincial e de seus esbirros da polícia, das
Finanças e do exército. A essa invasão dos delegados irresponsáveis do rei, meu tio quer opor a aliança
dos altos personagens da província. E como vê que seu marido vai acumulando uma fortuna colossal
sem que disso se beneficiem nem a cidade nem a Igreja...
— Mas, senhor cavaleiro, sempre auxiliamos o arcebispado.
— Isso não é suficiente. A aliança é o que ele deseja.
"Para um discípulo do grande inquisidor", pensou Angélica, "falta-lhe sutileza. A menos que esteja
recitando uma lição bem decorada!"
— Em resumo — disse ela —, monsenhor acha que todas as fortunas da província devem ser entregues
às mãos da Igreja?
— A Igreja deve ocupar o primeiro lugar.
— Com monsenhor à frente! O senhor predica muito bem, fique certo disso. Já não me admira que o
destinem à eloqüência sagrada. Apresente meus parabéns a seu tio.
— Assim o farei, amabilíssima senhora. Seu sorriso é encantador, mas creio que falta em seus olhos
ternura para comigo. Não esqueça que a Igreja ainda é a primeira força, mormente no Lan-guedoc.
— Vejo que o senhor é um convicto aprendiz de vigário, apesar de suas fitas e suas rendas.
— A riqueza é um meio convincente. Meu tio tem sabido empregá-la em relação a mim. Servi-lo-ei o
melhor que possa.
Angélica fechou abruptamente o leque. Já não se surpreendia de que o arcebispo confiasse em seu bem
nutrido sobrinho. Apesar de seus caracteres opostos, sua ambição era a mesma.
Na biblioteca, onde os contraventos mantinham a penumbra, alguém se mexeu e dobrou-se em dois à
aproximação do grupo.
— Que faz aqui, maitre Clemente? — perguntou Joffrey, surpreso. — Ninguém entra aqui sem minha
permissão, e não creio ter-lhe dado a chave.
— Desculpe-me, senhor conde. Estava fazendo eu mesmo a limpeza deste aposento, pois não queria
confiar o arranjo destes livros preciosos a um criado menos cuidadoso.
Juntou apressadamente esfregão, escova e banquinho e retirou-se esboçando algumas mesuras.
— Decididamente — suspirou o monge —, vejo aqui coisas muito estranhas: uma mulher em um
laboratório, um criado na biblioteca tocando com suas mãos impuras os livros que encerram todas as
ciências... Enfim, verifico que tudo isso não diminui de maneira alguma sua reputação. Vejamos o que o
senhor tem aí!
Reconheceu, ricamente encadernados, os clássicos da alquimia, tais como: Princípio da Conservação
dos Corpos ou Múmias, de Pa-racelso, Alquimia, do grande Alberto, Hermética, de Hermann Cou-
ringus, Explicatione 1572, de Tomás Erasto e, por fim, o que o encheu de contentamento, seu próprio
livro: Da Transmutação.
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Tranqüilo e confiante, acompanhou o anfitrião, que introduziu seus convidados na ala onde se
encontrava o laboratório.
Ao se aproximarem, viram fumegar sobre o telhado uma grande chaminé encimada por um cotovelo
de cobre que aparentava um bico de ave apocalíptica. Dai a pouco o aparelho se voltou para eles e, com
um ruído característico, deixou escapar de sua boca negra uma fumarada fuliginosa. O monge deu um
salto para trás.
— É apenas um cata-vento de chaminé para ativar a tiragem dos fornos — explicou o conde.
— Em meu forno, quando venta muito, a tiragem funciona mal.
— Aqui é ao contrário, pois utilizo a depressão causada pelo vento.
— E o vento se põe a seu serviço?
— Exatamente. Como quando faz funcionar um moinho.
— Em um moinho, senhor conde, o vento faz girar as mós.
— Em meu laboratório os fornos não giram, mas aspira-se o ar.
— O senhor não pode aspirar o ar, que é feito de vácuo.
— Vai ver, entretanto, que eu consigo uma tiragem infernal.
O frade benzeu-se três vezes antes de atravessar a soleira atrás de Angélica e do conde, enquanto o
negro Kuassi-Ba saudava solenemente com seu sabre curvo, que tornou a embainhar.
No fundo da vasta peça ardiam dois fornos. Um terceiro, idêntico, estava apagado. Diante dos fornos
havia estranhos aparelhos feitos de couro e ferro, bem como tubos de barro e cobre.
— São os foles que emprego quando preciso de um fogo muito
forte; por exemplo, quando tenho de fundir cobre, ouro ou prata
— explicou Joffrey de Peyrac.
Estantes de madeira corriam ao longo da sala principal. Estavam carregadas de potes e frascos que
traziam etiquetas marcadas com sinais cabalísticos e algarismos.
— Aqui tenho uma provisão de substâncias diversas: enxofre, cobre, ferro, estanho, chumbo, bórax,
ouro-pigmento, sulfureto de arsênico, vermelhão, mercúrio, pedra-infernal, vitríolo azul e verde.
Defronte, nestes garrafões, tenho ácido sulfúrico, água-forte e ácido clorídrico. Na estante mais alta
vêem meus tubos e vasos de vidro, de ferro, de barro envernizado, e, mais além, retortas e alambiques.
Na salinha do fundo podem ver fragmentos de rocha aurífera, minério arsenical e diversas pedras de
onde se obtém por fusão a prata. Aqui têm prata córnea do México, que consegui de um nobre espanhol
que voltava de lá.
— O senhor conde quer zombar da pobre ciência de um monge, afirmando que esta matéria cerosa é
prata, pois nela não vejo nada que o denuncie.
— Verá isto agora mesmo — disse o conde.
Apanhou um grande pedaço de carvão vegetal num monte que se encontrava perto dos fornos e tirou
uma vela de sebo de um vidro de b oca larga. Acendeu a vela na chama do forno cavou com uma ponta
de ferro um pequeno buraco no carvão, colocou nele um grão de "prata córnea", que era de um cinza-
amarelo sujo e semitranslúcido, e juntou-lhe um pouco de bórax, dizendo o que era. Depois, tomando
um tubo de cobre recurvado, aproximou-o da chama da vela e soprou-o diretamente sobre o bu-
raquinho cheio das duas substâncias salinas. Elas se fundiram, bo-lharam e mudaram de cor, e em
seguida apareceu uma série de glóbulos metálicos, que, soprando mais forte, o conde fundiu em um só
disco brilhante.
Afastou a chama e tirou com a ponta de uma faca o diminuto e cintilante lingote.
— Eis a prata fundida que extraí em sua presença desta rocha de estranho aspecto.
— O senhor faz com a mesma simplicidade a transmutação do ouro?
— Não faço nenhuma transmutação; apenas extraio os metais preciosos dos minerais que já os
contêm, mas em estado não-metálico.
O monge parecia pouco convencido. Tossiu fracamente e olhou em redor.
— Que são esses tubos e essas caixas pontudas?
— Um sistema chinês de adução para fazer ensaios de lavagem e captar o ouro por meio do mercúrio.
Abanando a cabeça, o religioso aproximou-se com circunspecção de um forno que roncava e no qual
fervia lentamente o conteúdo de vários crisóis.
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— E na verdade uma bela instalação — disse —, mas não se parece nem remotamente com o athanor
ou a célebre "casa do frango do sábio".
Peyrac estourou de riso; depois, já sossegado, desculpou-se.
— Perdoe-me, meu padre, mas a última coleção dessas veneráveis tolices foi destruída pela explosão
do ouro tonante de que monsenhor foi testemunha há poucos dias.
Bécher teve uma expressão deferente.
— Monsenhor, com efeito, me falou disso. De modo que o senhor consegue fazer um ouro instável e que
explode?
— Chego até a fabricar um mercúrio fulminante, para nada lhe ocultar.
— Mas e o ovo filosófico?
— Tenho-o na cabeça!
— Está blasfemando! — disse o frade, agitado.
. — Que história é essa de frango e de ovo? — exclamou Angélica. — Nunca me falaram sobre isso.
Bécher lançou-lhe um olhar depreciativo. Mas, vendo que o Conde de Peyrac dissimulava um sorriso e
que o Cavaleiro de Germontaz bocejava abertamente, contentou-se, à falta de melhor, com aquele
modesto auditório.
— É no ovo filosófico que se consuma a Grande Obra — disse, fitando seu olhar penetrante nos olhos
cândidos da jovem. — A produção da Grande Obra realiza-se sobre o ouro purificado, o Sol, e a prata
fina, a Lua, à qual se deve misturar azougue, Mercúrio. O hermetista submete-os, no ovo filosófico ou
matraz selado, aos ardores crescentes e decrescentes de um fogo bem regulado, Vulcano. Isso tem por
fim desenvolver no composto as potências geradoras de Vênus, das quais a espécie visível é a pedra
filosofal, substância regeneradora. Daí por diante as reações vão-se desenvolver no ovo segundo uma
certa ordem: elas permitem observar a cocção da matéria. O importante, sobretudo, é atentar para as
três cores: negro, branco e vermelho, que indicam respectivamente a putrefação, a ablação e a rubefação
da pedra filosofal. Em uma palavra, a alternância de morte e ressurreição pela qual, segundo a antiga
filosofia, deve passar, para reproduzir-se, toda substância que vegeta. O espírito do mundo, mediador
obrigatório da alma e do corpo universal, é a causa eficiente das gerações de toda espécie, aquela que
vitaliza os quatro elementos. Este espírito está contido no ouro, mas permanece nele inativo e
prisioneiro. Cabe ao sábio libertá-lo.
— E como se procede, meu padre, para libertar esse espírito que está na base de tudo e que é
prisioneiro do ouro? — perguntou mansamente o Conde de Peyrac.
Mas o alquimista era insensível à ironia, Com a cabeça lançada para trás, seguia seu velho sonho.
— Para libertá-lo precisa-se da pedra filosofal. E nem mesmo ela basta. É necessário dar-lhe impulso
com auxílio da pólvora de projeção, começo do fenômeno que transformará tudo em ouro puro.
Ficou silencioso por um instante, mergulhado em seus pensamentos.
— Depois de anos e anos de pesquisas, creio poder dizer que cheguei a certos resultados. Assim,
juntando o mercúrio de filósofos, princípio fêmea, com o ouro, que é macho, mas um ouro escolhido,
puro e em folhas, pus a mistura no athanor ou casa do frango do sábio, santuário ou tabernáculo que
todo laboratório de alquimista deve possuir. Esse ovo, que era uma retorta em forma oval perfeita e
hermeticamente fechada, para que nada da matéria pudesse evolar-se, foi colocado por mim num
tabuleiro cheio de cinzas e metido no forno. Desde então, esse mercúrio, graças ao calor e ao enxofre
interior excitado pelo fogo que eu mantinha continuamente no grau e na proporção necessários, esse
mercúrio chegou a dissolver o ouro sem violência e o reduziu ao estado de átomos. Ao fim de seis meses
obtive um pó negro que denominei "trevas cimérias". Com esse pó foi-me possível transformar certas
partes de objetos de metal vil em ouro puro, mas, ai de mim! O germe vital do meu purum aurum não
era ainda suficientemente forte, pois nunca pude transformá-las em profundidade e completamente!
— Mas o senhor procurou, meu padre, fortalecer esse germe moribundo? — indagou Joffrey de
Peyrac, enquanto um relâmpago divertido lhe brilhava nos olhos.
— Procurei, e em duas ocasiões creio ter estado muito perto da meta. Da primeira vez procedi assim:
fiz digerir, durante doze dias, sucos de mercurial, beldroega e celidônia em estéreo. Depois destilei o
produto e obtive um líquido vermelho, que voltei a derramar no estéreo. Nasceram vermes que se
devoraram uns aos outros, ficando um sozinho. Alimentei esse verme único com as três plantas
precedentes, até que engordasse. Então queimei-o e misturei suas cinzas com óleo de vitríolo e com pó
das trevas cimérias. Mas tudo isso foi de pobre resultado.
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— Que nojo! — exclamou o Cavaleiro de Germontaz.
Angélica lançou um olhar espantado a seu marido, mas este permanecia impassível.
— E da segunda vez?
— Da segunda vez tive uma grande esperança. Foi quando um viajante que havia naufragado em praias
desconhecidas me entregou terra virgem que nenhum homem antes dele havia pisado, segundo me
afirmou. Com efeito, a terra absolutamente virgem encerra a semente ou o germe dos metais, isto é, a
verdadeira pedra filosofal. Mas, sem dúvida, aquela porção de terra não era completamente virgem —
concluiu o sábio monge com ar lastimoso —, pois não obtive os resultados que esperava.
Agora também Angélica sentia desejo de rir. Um tanto precipitadamente, para mascarar sua hilaridade,
perguntou:
— Mas você mesmo, Joffrey, não me contou que uma vez nau
fragara em uma ilha deserta coberta de brumas e de gelo?
O monge Bécher estremeceu e com olhos iluminados segurou o Conde de Peyrac pelos ombros.
— Naufragou numa terra desconhecida? Eu bem que o suspeitava. O senhor é, pois, aquele de quem
falam os nossos escritos herméticos, o que volta da "parte posterior do mundo, onde se ouve rugir o
trovão, soprar o vento, cair o granizo e a chuva". É nesse lugar que se encontra a coisa.
— Havia ali um pouco do que descreveu — disse com indiferença o gentil-homem. — Acrescentarei
que também havia uma montanha de fogo no meio de gelos que me pareciam eternos. Nenhum
habitante. São as paragens da Terra do Fogo. Fui salvo por um veleiro português.
— Daria minha vida e até minha alma por um pouco dessa terra virgem! — exclamou Bécher.
— E pena, meu padre! Confesso que não me ocorreu trazê-la.
O monge lançou-lhe um olhar desconfiado, e Angélica viu muito bem que ele não acreditava.
Os olhos claros da jovem iam de um para outro dos três homens que se achavam diante dela naquele
estranho ambiente. Encostado ao suporte de tijolos de um de seus fornos, Joffrey de Peyrac, o Grande
Coxo do Languedoc, deixava cair sobre seus interlocutores um olhar altaneiro e irônico. Não se
esforçava por ocultar o pouco apreço em que tinha o velho Dom Quixote da alquimia e o Sancho Pança
enfitado. A vista daqueles dois grotescos, Angélica o achou tão grande, tão livre e tão extraordinário que
um sentimento excessivo dilatou seu coração até fazê-lo doer.
"Amo-o", pensou subitamente. "Amo-o e tenho medo. Ai, meu Deus! Que não lhe façam mal! Não
antes... Não antes..."
Receosa, não se atrevia a completar seu desejo: "Não antes de me haver estreitado em seus braços".
CAPITULO XXI
Corte de Amor no Palácio da Gaia Ciência
—O amor — disse Joffrey de Peyrac —, a arte do amor é a preciosíssima qualidade de nossa raça.
Viajei por muitos países, e em toda parte vi que nos concedem essa primazia. Rejubilemo-nos, senhores,
e vocês, senhoras, entonem a cabeça, mas tenhamos todos muito cuidado. Porque nada é mais frágil que
esta reputação se não a sustiverem um coração sutil e um corpo sábio.
Inclinou o rosto, mascarado de veludo muito negro na moldura de sua basta cabeleira, e viu-se brilhar
seu sorriso.
— E por isso que estamos reunidos neste Palácio da Gaia Ciência. Todavia, não lhes convidarei a
voltar ao passado. Evocarei, certamente, nosso mestre de A Arte de Amar, que antigamente despertou os
corações dos homens para o sentimento amoroso, mas não desprezaremos o que os séculos seguintes
ofereceram para o nosso aperfeiçoamento: a arte de conversar, de entreter, de fazer brilhar o próprio
espírito e também, gozo mais simples mas que tem sua importância, a arte da boa mesa, para se ter
disposição amorosa.
— Ah! Isso me agrada mais — berrou o Cavaleiro de Germon-taz. — O sentimento... Bolas! Eu como
meio javali, três perdizes e seis frangos, entorno uma garrafa de champanha, e vamos, minha bela, para
a cama!
— E quando a tal bela se chama Sra. de Montmaure, conta ela que o senhor sabe ressonar muito bem e
muito ruidosamente, mas que isso é tudo quanto faz no leito.
— Ela conta isso? Oh, traidora! É verdade que uma noite, por causa de uma indigestão...
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Uma cachinada geral interrompeu o gordo cavaleiro, que, fazendo boa cara ao mau tempo, levantou a
tampa de prata de uma das terrinas e pegou com dois dedos uma asa de ave.
— Eu, quando como, como. Não sou como vocês, que misturam tudo e procuram pôr refinamento onde
ele não faz falta alguma.
— Porquinho grosseiro — disse calmamente o Conde de Pey-rac —, com que prazer o contemplo!
Personifica muito bem tudo aquilo que desterramos de nossos costumes, tudo o que detestamos. Vejam,
senhores, e vocês, senhoras: aqui está o descendente dos bárbaros, daqueles cruzados que vieram à
sombra de seus bispos acender milhares de fogueiras entre Albi, Toulouse e Pau. Tão ferozmente
invejavam esta terra encantadora, onde se cantava o amor às damas, que a reduziram a cinzas e fizeram
de Toulouse uma cidade intolerante, desconfiada, com olhos duros de fanática. Não esqueçamos....
"Não deveria falar assim", pensou Angélica.
Porque, se muitos convivas riam, havia em certos olhos negros um fulgor cruel. Era uma coisa que
sempre a surpreendia, aquele ressentimento das pessoas do Midi por um passado de há quatro séculos.
Mas o horror dos albigenses à cruzada devia ter sido tal que ainda se ouvia nos campos as mães
ameaçarem as crianças de chamar o terrível Monfort.
Joffrey de Peyrac atiçava aquele ódio, menos por fanatismo provincial do que por aversão a toda
estreiteza de espírito, a toda grosseria e estupidez.
Sentada no outro extremo da imensa mesa, Angélica o via metido numa roupa vermelha constelada de
diamantes. Seu rosto mascarado e seus cabelos negros realçavam a brancura da alta gola de rendas de
Flandres, dos punhos da camisa e também de suas mãos longas e ágeis, com um anel em cada dedo.
Ela trajava de branco, e isso recordava-lhe singularmente o dia de seu casamento. Daquela vez, os mais
importantes senhores do Languedoc e da Gasconha estavam presentes e ocupavam as duas grandes
mesas do banquete, servido na galeria do palácio. Mas hoje não havia nem anciãos nem eclesiásticos
naquela brilhante sociedade. Agora que Angélica podia ligar um nome a cada rosto, reconhecia que a
maior parte dos casais que a rodeavam naquela noite eram ilegítimos. Andijos tinha levado sua amante,
uma vistosa parisiense; a Sra. de Saujac, cujo marido era magistrado em Montpellier, reclinava
ternamente a cabeça morena no ombro de um capitão de bigode louro. Alguns cavalheiros, que tinham
vindo sós aproximavam-se de damas bastante audaciosas e independentes para se dirigirem sem
acompanhante à célebre Corte de Amor.
Aqueles homens e mulheres, luxuosamente vestidos, davam uma impressão de juventude e beleza. Os
candelabros e as tocheiras faziam cintilar o ouro e as pedras preciosas. As janelas da sala estavam
abertas de par em par sobre a morna noite primaveril. Para afastar os mosquitos queimavam-se em
caçoilas folhas de citrone-la e incenso, e o aroma se misturava, capitoso, ao dos vinhos.
Angélica se sentia rústica e deslocada, como uma flor do campo em um canteiro de rosas.
No entanto, estava belíssima, e seu porte nada tinha que invejar ao das mais distintas damas.
A mão do pequeno Duque de Forba des Ganges roçou-lhe o braço nu.
— Que pena, minha senhora — cochichou —, que semelhante
dono a possua! Pois esta noite não tenho olhares senão para você.
Angélica bateu-lhe nos dedos com a ponta do leque.
— Não se apresse a pôr em prática o que aqui lhe ensinam. Escute primeiro as sensatas palavras da
experiência: "Ai daquele que se precipita e gira ao sabor dos ventos!" Ainda não observou que narizinho
travesso e que faces rosadas tem sua vizinha da direita? Disseram-me que é uma viuvinha que se
alegraria se a consolassem da morte de um marido muito velho e resmungão.
— Graças por seus conselhos, minha senhora.
— "Amor novo desterra o antigo", diz mestre Le Chapelain.
— Devo seguir todo ensinamento de sua boca encantadora. Permita-me que lhe beije os dedos, e
prometo-lhe ocupar-me da viuvinha.
Na outra extremidade da mesa havia surgido uma discussão entre Cerbalaud e o Sr. de Castel-Jalon.
— Sou pobre como um mendigo — dizia o último —, e não oculto que vendi uma jeira de vinha para
poder vestir-me decentemente e vir aqui. Mas acho que não é preciso ser rico para se fazer amar.
— Nunca será amado com ternura. No máximo, seu idílio será o de um infeliz que acaricia com uma
das mãos sua garrafa e com a outra sua amiga, pensando com tristeza nas moedas penosamente ganhas
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com que terá de pagar uma e outra.
— Afirmo que o sentimento...
O sentimento não se cultiva na pobreza...
Joffrey de Peyrac estendeu as mãos sorrindo.
— Paz, senhores! Escutem o antigo mestre cuja humana filosofia deve decidir todos os nossos debates.
Eis aqui as palavras com que abre seu tratado A Arte de Amar: "O amor é aristocrático. Para ocupar-se
de amor, é preciso não ter preocupações com a vida material, e não se deve estar premido por ela até o
ponto de contar o tempo de cada dia". Portanto, sejam ricos, senhores, e cumulem de jóias as suas belas.
O brilho de uns olhos femininos ante um adorno está muito próximo de transformar-se em relâmpago de
amor. Pessoalmente, adoro o olhar que uma mulher lança ao seu espelho. Senhoras, não protestem e não
sejam hipócritas.
Apreciam aquele que as desdenha a ponto de não procurar fazer mais deslumbrante a sua beleza?
As damas riram e murmuraram.
— Mas eu sou pobre! — exclamou Castel-Jalon em tom lamen-toso. — Não seja tão duro, Peyrac.
Devolva-me a esperança!
— Torne-se rico.
— Isso é fácil de dizer!
— Sempre é fácil de fazer para quem o quer. Pelo menos não seja avaro. "A avareza é o pior inimigo
do amor." Se é mendigo, não conte seu tempo nem suas proezas; faça mil loucuras e, sobretudo, faça rir.
"O tédio é o verme que rói o amor." Não é certo, senhoras, que preferem um bufão a um sábio solene?
Enfim, dou-lhe o último consolo: "Só o mérito faz alguém ser digno de amor".
"Que bela voz e como fala bem!", pensava Angélica.
O beijo do duquezinho deixara em seus dedos uma sensação de queimadura. Dócil, havia-se afastado
dela imediatamente e agora se inclinava sobre a viuvinha de faces coradas. Angélica estava só e, através
da longa mesa e do fumo azul das caçoilas, seu olhar não se apartava do vulto vermelho do dono da
casa. Ele a veria? Lançar-lhe-ia por ventura um olhar por trás daquela máscara com que velava seu rosto
desfigurado? Ou quem sabe, desenvolto e indiferente, não faria senão saborear, como consumado
epicurista, o amável duelo de palavras?
— Saiba que estou muito decepcionado! — exclamou o jovem Duque de Forba des Ganges, erguendo-
se um pouco. — É a primeira vez que assisto a uma Corte de Amor, e esperava, confesso, uma agradável
libertinagem, e não ouvir uma frase tão austera: "Só o mérito faz alguém ser digno de amor". Teremos
de converter-nos em santinhos para conquistar nossas damas?
— Deus o livre, senhor duque — respondeu a viuvinha rindo.
— O desafio é sério - disse Andijos. - Você me amaria coroado de uma auréola, minha querida?
— Claro que não.
— Por que confinam o mérito aos altares? — exclamou Joffrey de Peyrac. - O mérito é ser louco,
alegre fanfarrão, cavalheiro, verse-jador e, sobretudo... é o que lhes desejo, senhores... amante hábil e
sempre disposto. Nossos pais opunham o amor cortês ao amor sensual. Mas eu lhes direi:
aproveitemos o que é bom de um e do outro. É preciso amar verdadeira e completamente, isto é,
carnalmente.
Calou-se um instante e continuou em voz mais baixa:
— Mas não desprezemos a exaltação sentimental que, sem ser alheia ao desejo, o purifica e sublima.
Entendo que, quem quiser conhecer o amor deve submeter-se a esta disciplina do coração e dos
sentidos, que recomenda Le Chapelain: "Um homem deve amar uma só mulher de cada vez. Uma
mulher deve amar um só homem". Escolham-se, amem-se, separem-se quando chegar o cansaço, mas
não sejam desses amantes volúveis que se entregam à embriaguez das paixões, bebem em todos os
copos ao mesmo tempo e transformam as cortes dos reinos em lupanares.
— Por São Severino! — exclamou Germontaz emergindo de seu prato. — Se meu tio o arcebispo o
ouvisse, ficaria perplexo. O que diz não tem pé nem cabeça. Em toda a minha vida jamais me ensi-
naram tais coisas.
— Ensinaram-lhe tão poucas coisas, senhor cavaleiro!... Que há em minhas palavras que tanto o
choca?
— Tudo. O senhor prega a fidelidade e a libertinagem, a decência e o amor carnal. E logo, como se
estivesse no púlpito, censura a "embriaguez das paixões". Repetirei esta expressão a meu tio, 0
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arcebispo. Sem dúvida que a fará ressoar no próximo domingo, em plena catedral.
— Minhas palavras são de prudência humana. O amor é inimigo dos excessos. Nisto, como quando
se trata de comer bem, prefiramos a qualidade à quantidade. O limite do prazer está onde começam a
fadiga e a náusea da desvergonha. Mas será capaz de saborear um beijo sábio aquele que come feito
um porco e bebe como um tanque?
— Devo reconhecer-me nessa descrição? — grunhiu o Cavaleiro de Germontaz com a boca cheia.
Angélica pensou que, pelo menos, ele não tinha mau caráter.
Mas por que Joffrey se comprazia em provocá-lo? Ele próprio, entretanto, não ocultava o perigo daquela
presença desagradável.
— O arcebispo nos manda seu sobrinho como espião — dissera à sua mulher na véspera do festim.
E acrescentara:
— Sabia que a guerra está declarada entre nós?
— Que sucedeu, Joffrey?
— Nada. Mas o arcebispo quer o segredo da minha fortuna ou talvez minha própria fortuna. Não mais
me largará.
— Irá defender-se, Joffrey?
— Como for possível. Infelizmente ainda não nasceu quem possa eliminar a estupidez humana.
Os serviçais haviam retirado os pratos. Oito pequenos pajens entraram com cestas de rosas, outros com
pirâmides de frutas. Diante de cada conviva colocaram-se pratinhos com doces e confeitos.
— Muito me apraz ouvi-lo falar de maneira tão simples do amor carnal — disse o jovem Cerbalaud. —
Saiba que estou loucamente apaixonado e, no entanto, me encontro sozinho nesta reunião. Não creio que
faltasse ardor a minhas declarações, e, sem jactância, houve momentos em que tive a impressão de que a
minha chama era compartilhada. Mas, ai de mim! Minha amada é muito esquiva. Quando me permitia
um gesto atrevido, recebia em troca olhares cruéis e uma frieza significativa. Há meses que vivo neste
diabólico manejo: conquistá-la provando-lhe a minha paixão e perdê-la cada vez que procuro provar-lha!
A desventura de Cerbalaud divertiu os circunstantes. Uma dama abraçou-o amplamente e beijou-o na
boca. Quando o alarido se acalmou um pouco, Joffrey de Peyrac disse amavelmente:
— Tenha paciência, Cerbalaud, e lembre-se de que as jovens aris-cas são as que podem chegar às
maiores voluptüosidades. Mas precisam de um amante hábil que nelas dissolva não sei que escrúpulo
que as faz confundir o amor com o pecado. Desconfie também das donzelas que muito amiúde
confundem amor com casamento. Agora citar-lhe-ei alguns preceitos: "Ao se entregar aos prazeres do
amor, não ultrapasse o desejo de sua amada; quer lhe de, quer dela receba os prazeres do amor, observe
sempre certo pudor". E para terminar: "Fique sempre atento às ordens das damas.
— Acho que o senhor dá demasiadas vantagens às mulheres — protestou um nobre, que recebeu como
castigo uma sova de lequês. — Ao ouvi-lo, parece que estamos obrigados a morrer de amor a seus pés.
— Mas está certo! — aprovou a amante de Bernardo d'Andijos. — Sabe como chamamos em Paris
aos jovens que nos fazem a corte, a nós, as "preciosas"? "Moribundos."
— Eu não quero morrer — disse Andijos. — Meus rivais que morram.
— Será que devemos permitir às damas todos os seus caprichos?
— Evidentemente.
— Elas nos desprezarão...
— E nos enganarão...
— Deve alguém admitir que o enganem?
— Certamente que não — disse Joffrey de Peyrac. — Batam-se em duelo, senhores, e matem os
vossos rivais. "Quem não tem ciúme não pode amar." "Uma suspeita sobre minha amante, e o fogo do
amor aumenta!"
— Esse Chapelain do diabo pensou em tudo!
Angélica levou o copo aos lábios. Circulava-lhe o sangue mais depressa, e ela se pôs a rir. Divertia-se
com aqueles finais de banquete entre pessoas do sul, quando de repente estrepitavam as vozes,
trocavam-se motejos e desafios e um nobre puxava da espada, enquanto outro afinava a guitarra.
— Canta, canta! — gritaram de súbito. — A Voz do Reino!
Num dos balcões da galeria, os músicos começaram a tocar em surdina. Angélica viu que a viuvinha
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reclinava a cabeça no ombro de Germontaz. Com dedos ágeis, tirava pastilhas e levava-as à boca.
Sorriam um para o outro.
No céu sereno apareceu a lua redonda e límpida. Joffrey de Peyrac fez um sinal, e um criado foi de
candelabro em candelabro apagando as velas. Tudo ficou escuro, mas pouco a pouco os olhos se
acostumaram à suave claridade lunar. As vozes tinham baixado de tom, e na súbita tranqüilidade
ouviam-se os suspiros dos pares enlaçados. Já alguns se haviam erguido e passeavam pelos jardins ou
pelas galerias abertas às brisas embalsamadas da noite.
— Senhoras — voltou a dizer a voz grave e harmoniosa de Joffrey de Peyrac —, e vocês, senhores,
sejam, pois, bem-vindos ao Palácio da Gaia Ciência. Durante alguns dias palestraremos muito e
comeremos à mesma mesa. Têm aposentos preparados nesta Gorada. Aí encontrarão vinhos finos,
pastéis, sorvetes... e leitos confortáveis. Durmam sozinhos, se estiverem indispostos. Acolham o amigo
ou amiga de uma hora... ou de toda a sua vida, se assim o quiserem. Comam, bebam, amem, sejam,
porém, discretos, porque "o amor, para conservar todo o seu sabor, não deve ser divulgado". Um
conselho mais... e este é para vocês, senhoras. Saibam que a preguiça é também um dos grandes
inimigos do amor. Nos países em que a mulher ainda é escrava do homem, no Oriente e na África, a
ela é que incumbe, como regra, esforçar-se por levar seu dono ao prazer. Sob nossos céus civilizados é
verdade que lhes outorgaram demasiadas vantagens. Muitas vezes abusam delas correspondendo aos
nossos ardores com languidez... que não está muito longe do torpor. Aprendam, pois, a prodigalizar
suas carícias, do que serão recompensadas pelo mais intenso gozo: "Homem apressado, mulher
passiva, amantes sem prazer". Terminarei com uma confidencia de caráter gastronômico. Senhores,
lembrem-se de que o vinho da Champagne, algumas garrafas do qual encontrarão à sua cabeceira, tem
mais imaginação que constância. Por outros termos: para preparar-se para o combate não convém que
dele bebam demasiado. Mas nenhum vinho é mais glorioso para celebrar a vitória, reconfortar após
uma noite feliz e conservar ardor e força. Senhoras, eu as saúdo.
Fez recuar sua poltrona, cruzou os pés sobre a mesa, e, tomando a guitarra, pôs-se a cantar. Seu rosto
mascarado voltava-se para a lua.
Angélica sentiu-se horrivelmente só. Naquela noite, um mundo antigo renascia das próprias cinzas à
sombra da torre de Arsézat. Toulouse, a cálida, recuperava seu espírito. A volúpia tinha ali direito de
cidade, e aquela criatura, cheia de vigor e juventude, não podia permanecer insensível. Quase todos os
convidados tinham deixado a sala. Alguns, na reentrância das janelas, com um copo de licor na mão,
trocavam gracejos. A Sra. de Saujac beijava seu capitão. A longa e tépida soirée, tornada mais suave
pelos vinhos finos, manjares delicados, música e flores, terminava sua obra entregando o Palácio da
Gaia Ciência à magia do amor.
O homem vermelho continuava cantando, mas também ele estava só.
"Que espera ele?", pensava Angélica. "Que eu vá lançar-me a seus pés dizendo-lhe 'Sou sua!'?"
Presa de longo estremecimento, fechou os olhos.
Tudo nela era perturbação e contradições. Enquanto na véspera tinha estado prestes a ceder, nesta noite
rebelava-se contra a sedução: "Ele atrai as jovens com seus cantos". De longe, isso lhe havia parecido
tão terrível, e de perto era tão maravilhoso. Levantou-se e saiu, dizendo a si mesma que "fugia da
tentação". Mas, em seguida, lembrando-se de que aquele homem era seu esposo perante Deus, sacudiu a
cabeça desesperadamente. Estava desorientada. Havendo recebido uma educação das mais severas,
sentia-se temerosa ante uma vida demasiado livre. Era de uma época em que toda fraqueza se pagava
com remorsos.
Algumas das mulheres que nessa noite se lançariam, suspirando, nos braços de seus amantes iriam no dia
seguinte, em pranto, ajoelhar-se diante de um confessor, pedindo para serem internadas num convento, de
véu na cabeça, para expiar suas faltas. Angélica compreendia que Joffrey de Peyrac não queria escravizá-
la ao matrimônio, mas ao amor.
Tivesse ela casado com outro, ele procederia da mesma forma. Teria razão a ama Fantina quando
afirmava que aquele homem estava a serviço do Diabo?
Ao descer a escadaria, passou por um casal que se abraçava. A mulher murmurava queixosa uma
pequena súplica. Naquele palácio tão cheio de suspiros, Angélica, de vestido branco, vagava pelos
jardins. Viu Cerbalaud, também sozinho, caminhando através das aléias, imaginando, sem dúvida, as
frases com que tentaria conquistar sua bem-amada. Angélica sorriu.
"Pobre Cerbalaud! Continuará fiel ao seu amor ou o abandonará por outra jovem menos cruel?"
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Com passo inseguro, o Cavaleiro de Germontaz descia também a escada. Deteve-se junto de Angélica,
bufando ruidosamente.
— O diabo leve essas momices e melindres das pessoas do sul! Minha amiguinha, que até há pouco me
havia demonstrado sua .boa vontade, acaba de plantar-me uma bofetada. Parece que não. sou bastante
delicado para ela.
— Certamente é porque, entre um comportamento libertino e um comportamento eclesiástico, terá de
escolher. Talvez o que o faz sofrer é não haver decidido ainda sobre a sua vocação.
Muito vermelho, Germontaz aproximou-se tanto dela que seu hálito avinhado lhe alcançou o rosto.
— O que me faz sofrer é que me espetem bandarilhas, como a um touro, as delambidas de sua espécie.
Mulheres! Veja como as trato.
E, sem que Angélica pudesse esboçar um movimento de defesa, ele agarrou-a brutalmente e levou-lhe
aos lábios sua boca úmida e gorda. Ela se debateu repugnada.
CAPITULO XXII
Duelo do Conde de Peyrac com o sobrinho do arcebispo — Angélica, afinal, conhece o amor
— Sr. de Germontaz — disse de súbito uma voz.
Morta de medo, Angélica viu no alto da escada o vulto vermelho do Conde de Peyrac. Este arrancou a
máscara e jogou-a para trás. Ela viu, então, como um rosto podia tornar-se terrível a ponto de fazer
tremer os mais impassíveis. O conde foi descendo lentamente, acentuando a coxeadura, mas, ao chegar
ao último degrau, brilhou um relâmpago em seus olhos, enquanto ele puxava da espada.
Germontaz havia recuado, cambaleando um pouco. Atrás de Jof-frey de Peyrac desciam também
Bernardo d'Andijos e o Sr. de Castel-Jalon. O sobrinho do arcebispo olhou para o lado dos jardins e viu
Cerbalaud, que se aproximara. Soltou um bufido.
— É... é uma armadilha — balbuciou. — Querem assassinar-me!
— A armadilha está em você mesmo, porco! — respondeu An-dijos. — Quem o mandou desonrar a
mulher de seu anfitrião?
Tremendo, Angélica procurava cobrir o peito com o seu corpe-te rasgado. Não era possível! Não
deveriam bater-se! Era preciso intervir... Joffrey arriscava a vida com aquele homenzarrão em pleno
vigor!...
Joffrey de Peyrac continuou avançando. De repente, parecia que toda a flexibilidade de um
pelotiqueiro se havia apoderado de seu corpo disforme. Quando estava bem perto do Cavaleiro de Ger-
montaz, encostou-lhe no ventre a ponta da arma e disse:
— Defenda-se!
Obedecendo aos reflexos de uma educação militar, o outro de-sembainhou a espada e os ferros se
cruzaram. Por alguns instan tes a luta foi tão renhida que por duas vezes se chocaram as guardas e os
rostos dos duelistas estiveram a três ou quatro polegadas de distância um do outro.
Mas sempre o Conde de Peyrac arrancava com agilidade. Compensava, com aquela rapidez, a
desvantagem da sua perna mais curta. Quando Germontaz conseguiu acuá-lo ao pé da escada até obrigá-
lo a subir alguns degraus, pulou subitamente por cima do corri-mão, e o cavaleiro mal teve tempo de se
voltar para fazer-lhe frente de novo. Já começava Germontaz a fatigar-se. Conhecia a fundo todas as
sutilezas da esgrima, mas aquele jogo extremamente rápido o perturbava. A espada do conde rasgou-lhe
a manga direita e arranhou-lhe o braço. Era apenas uma ferida superficial mas sangrava
abundantemente. O braço atingido, que sustentava a espada, não tardou a entorpecer. O cavaleiro batia-
se com dificuldade cada vez maior. Em seus grandes olhos salientes via-se agora o pânico. Os de Peyr;rc
brilhavam sinistramente; não haveria perdão. Angélica leu neles uma sentença de morte.
Mordia os lábios até gritar de dor, mas não se atrevia a fazer um movimento. Subitamente, fechou os
olhos. Ouviu-se uma espécie de grito surdo e profundo, como o do lenhador ao golpear um tronco.
Quando olhou de novo, viu que o Cavaleiro de Germontaz estava estirado sobre o lajedo de mosaico e
que a guarda de uma espada lhe saía da ilharga. O Grande Coxo do Languedoc inclinava-se sobre ele
com um sorriso.
— Momices e melindres — disse calmamente.
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Retomou o punho da arma e puxou-a com um gesto amplo. Algo esguichou com um fraco ruído e
Angélica viu sobre seu traje branco alguns salpicos de sangue. Teve de apoiar-se à parede, meio
desfalecida. O rosto de Joffrey inclinava-se para o seu. Estava coberto de suor e, sob a roupa de veludo
vermelho, seu peito magro ia e vinha como um fole de fornalha. Mas seus olhos atentos conservavam o
brilho penetrante e alegre... Um lento sorriso disten-deu os lábios do conde ao encontrar os olhos verdes
turbados de emoção.
— Venha comigo! — disse imperiosamente.
O cavalo seguia lentamente à margem do rio, revolvendo o saibro do estreito e sinuoso caminho. A certa
distância, três lacaios armados formavam a guarda de seu senhor, mas Angélica não percebia a sua
presença. Pensou que estivesse absolutamente sozinha sob o céu estrelado, sozinha nos braços de Joffrey
de Peyrac. Ele a colocara atravessada na sela e agora a levava para o pavilhão do Garonne, a fim de nele
viverem sua primeira noite de amor.
No pavilhão do Garonne, os domésticos, adestrados por um senhor exigente, eram invisíveis. A alcova
estava pronta. No terraço uma colação de frutas tinha sido preparada junto ao diva, e num vaso de
bronze viam-se garrafas ali postas a gelar, mas tudo parecia deserto.
Angélica e seu marido nada diziam. Era a hora do silêncio. No entanto, quando ele a atraiu para si com
impaciência, mas ainda taciturno, ela murmurou:
— Por que não sorri? Continua zangado? Asseguro-lhe que não desejei o incidente.
— Eu sei, querida.
Respirou profundamente e continuou com voz surda:
— Não posso sorrir porque esperei demasiado este instante, e ele me constringe dolorosamente. Jamais
amei tanto uma mulher como a você, Angélica, e parece-me que eu a amava antes mesmo de conhecê-la.
E quando a vi... era quem eu esperava. Mas você passava por mim, altaneira, como uma sílfide dos
pântanos, impossível de alcançar. E eu lhe falava em tom de gracejo, por medo de um gesto de horror ou
de uma zombaria. Nunca esperei tanto tempo uma mulher, nem mostrei tanta paciência. E, no entanto,
você era minha. Vinte vezes estive prestes a usar de violência, mas não desejava somente o seu corpo;
queria o seu amor. Quando, pois, a vejo aqui, subitamente minha, enfim, não posso lhe perdoar os
tormentos que me infligiu. Não posso perdoá-la — repetiu com ardente paixão.
Angélica fitou valorosamente o rosto que já não a horrorizava e sorriu.
— Vingue-se! — murmurou.
Ele estremeceu e sorriu.
— Você é mais mulher do que eu pensava. Ah, não me provoque! Você pedirá clemência, minha bela
inimiga!
Naquele instante Angélica deixou de se pertencer. Ao reencontrar os lábios que já uma vez a tinham
embriagado, reencontrava também aquele turbilhão de sensações desconhecidas cuja lembrança havia
deixado no fundo de sua carne uma nostalgia indefinida. Tudo despertava nela e, com a promessa de um
pleno florescimento que nada viria entravar, seu prazer foi tomando pouco a pouco tal intensidade que
ela chegou a sentir medo.
Anelante, lançou-se para trás, procurando libertar-se daquelas mãos que em cada um de seus
movimentos lhe revelavam um novo manancial de gozo e então, como emergindo de um poço de
opressiva doçura, viu remoinhar em torno de si o firmamento estrelado e a planície brumosa em que o
Garonne estendia sua fita de prata.
De saúde exuberante, Angélica tinha sido feita para o amor. Mas a revelação súbita que tivera de seu
próprio corpo a transtornava, sacudida num violento assalto, mais interior que exterior. Só mais tarde,
com a experiência, foi que pôde avaliar quanto Joffrey de Peyrac havia refreado a violência de seu
próprio desejo, a fim de rendê-la inteiramente ao seu amor.
Quase sem que ela o percebesse, ele a despiu e a estendeu sobre o diva. Com incansável paciência,
Joffrey a atraía para si, cada vez mais submissa, ardente e queixosa, os olhos brilhando de febre. Ela
se debatia e se aconchegava, alternadamente, mas, quando essa emoção, que já não podia controlar,
alcançou o paroxismo, uma súbita calma se produziu nela. Sentiu que a invadia um bem-estar ao qual
se misturava uma excitação deliciosa e lancinante; pondo de lado todo o recato, ofereceu-se ela
própria às carícias mais atrevidas; com os olhos fechados, deixava-se levar, sem resistência, pela
corrente da volúpia. Não reagia contra a dor, pois agora cada parcela de seu corpo reclamava
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furiosamente a dominação do macho. Quando ele a penetrou, ela não gritou, mas suas pálpebras se
abriram desmesuradamente e as estrelas do céu primaveril se refletiram em seus olhos verdes.
— Já? — murmurou Angélica.
Estirada no diva, sentia-se reviver. Um macio xale da índia, jogado sobre ela, protegia-lhe o corpo
suado contra a brisa da noite. Ela olhava para Joffrey de Peyrac, que, de pé, muito negro ao luar,
despejava nos copos o vinho fresco. Ele se pôs a rir.
— Devagar, querida! Você é muito novata para que eu me permita levar mais longe a lição. Tempo
virá de prolongadas delícias.
Entrementes, bebamos! Porque fizemos os dois, esta noite, uma obra que merece recompensa.
Com o seu delicioso olhar fitado nele, dirigiu-lhe a jovem um sorriso cuja imensa sedução ela
própria ignorava, pois em alguns instantes nascera uma nova Angélica, desabrochada, libertada.
Ele cerrou os olhos, como deslumbrado. Ao reabri-los, viu uma expressão de angústia no rosto
encantador.
— O Cavaleiro de Germontaz — murmurou Angélica. — Oh, Joffrey! Eu tinha esquecido. Você
matou o sobrinho do arcebispo!
Ele a acalmou com uma carícia.
— Não pense mais nisso. A provocação teve testemunhas. Se a tivesse deixado sem castigo, sim,
haveriam de censurar-me. O próprio arcebispo, que é de sangue nobre, não poderá senão
conformar-se. Oh, querida — cochichou ele —, suas formas são ainda mais perfeitas do que eu supunha!
Com um dedo seguiu a curva branca e firme do ventre jovem. Ela sorriu e soltou um longo suspiro de
satisfação. Sempre ouvira dizer que os homens, após o amor, eram brutos indiferentes...
Mas, decididamente, Joffrey não se parecia com os outros homens.
Ele viera deitar-se ao lado da mulher, e ela ouviu-o rir baixinho.
— Quando penso que o arcebispo estará olhando do alto de sua torre do arcebispado para o Palácio da
Gaia Ciência e condenando ao inferno a minha vida libertina! Se ele soubesse que neste momento eu
fruo as "delícias culposas" com minha própria esposa, cujo casamento ele mesmo celebrou!...
— Você é incorrigível. Ele não pratica injustiça em olhá-lo com desconfiança, pois, quando há duas
maneiras de fazer uma coisa, você sempre inventa uma terceira. Você poderia, com efeito, ou cometer
um adultério ou cumprir cordatamente o seu dever conjugai. Não! E preciso que cerque sua noite de
núpcias de circunstâncias tais que eu experimente em seus braços uma impressão de culpabilidade.
— Impressão agradabilíssima, não acha?
— Cale-se! Você é o diabo em pessoa! Confesse, Joffrey, que, se você se livra do pecado com uma
pirueta, a maior parte de seus hóspedes, esta noite, não está no mesmo caso. Com que habilidade os
precipitou no que monsenhor denomina a desordem!... Não estou muito certa de que você não seja um
ser... perigoso!...
— E você, Angélica, é uma adorável conegazinha toda nua! Não duvido que entre suas mãos minha alma
encontrará o perdão. Mas não façamos cara feia às doçuras da vida. Muitos outros povos vivem
costumes diferentes, e não são menos generosos nem menos felizes. Em face da grosseria do coração e
dos sentidos que escondemos sob nossas belas vestes, sonhei ver homens e mulheres apurarem-se para
dar mais graça ao nome da França. Eu me alegro com isso, pois amo as mulheres, como tudo o que é
belo. Não, Angélica, minha jóia, nao sinto remorsos e não me confessarei!...
Angélica só poderia ser completamente ela própria depois de se haver tornado mulher. Antes, era
apenas uma rosa em botão, prisioneira em seu corpo, que uma gota de sangue mouro temperara com
uma tendência para o ardor carnal.
Nos dias seguintes, durante os quais se desenrolaram as festividades da Corte de Amor, sentiu-se como
transplantada para um mundo novo em que tudo era plenitude e descobrimentos encantados. Parecia-lhe
que o resto da existência se havia apagado, que a vida estava suspensa.
Tornava-se cada vez mais amorosa. Suas faces coloriam-se e o riso tinha um novo atrevimento. Cada
noite Joffrey de Peyrac a encontrava mais ávida, mais interessada, e suas bruscas recusas de jovem
Diana, quando ele procurava submetê-la a novas fantasias, logo cediam lugar a um alegre abandono.
Seus hóspedes pareciam viver no mesmo clima de liberdade e despreocupação. Deviam-no em parte a
um milagre de organização, pois o gênio do Conde de Peyrac não esquecia detalhe algum para o
conforto e o prazer de seus convidados. Estava em todos os lugares, parecendo nao cogitar noutra coisa,
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e no entanto Angélica tinha a impressão de que ele só pensava nela, que não cantava senão para ela. Às
vezes sentia uma ponta de ciúme, quando o via submergir o olhar nos olhos atrevidos de alguma dama
que lhe pedia conselho sobre uma sutileza da arte do amor. Ficava escutando, mas devia reconhecer que
seu marido se saía lealmente da situação com um daqueles gracejos hábeis envoltos num cumprimento, e
cujo segredo ele possuía.
Foi com uma mistura de alívio e decepção que, ao cabo de oito dias, ela viu os pesados coches
armoriados darem volta no pátio do palácio e retomarem o caminho de castelos distantes, enquanto belas
mãos carregadas de rendas se agitavam nas portinholas. Os cavaleiros saudavam com seus chapéus
emplumados. Angélica, do balcão, fazia amáveis gestos de despedida.
Estava satisfeita por encontrar um pouco de calma e ter dali em diante seu marido somente para si.
Mas, secretamente, entristecia-a o término daquela semana deliciosa. Não se podem viver duas vezes
numa existência tais momentos de felicidade. Jamais — e Angélica teve de repente o pressentimento —,
jamais voltariam aqueles dias deslumbrantes...
Logo na primeira noite, Joffrey de Peyrac trancou-se no laboratório, onde não havia entrado desde o
início da Corte de Amor. Tal pressa enraiveceu Angélica, que se revolvia furiosa em seu grande leito, no
qual o esperou em vão.
"Assim são os homens", pensou com amargura. "Dignam-se conceder-nos, de passagem, um pouco de
seu tempo, mas nada os retém quando estão em jogo suas manias pessoais. Para uns é o duelo; para
outros, a guerra. Para Joffrey são as retortas. Antes interessava-me que ele me falasse delas, porque me
parecia que assim me demonstrava amizade. Agora detesto esse laboratório."
Embora contrariada, conseguiu adormecer.
Acordou com a claridade súbita de uma vela e viu à sua cabeceira Joffrey, que acabava de se despir.
Ela se sentou bruscamente e cruzou os braços em redor dos joelhos.
— E muito necessária sua visita? — perguntou. — Já ouço despertarem os pássaros do jardim. Não
acha que faria melhor se ter minasse esta noite, tão bem começada em seu laboratório, estreitando ao
coração uma retorta de vidro bem bojuda?
Ele riu sem mostrar arrependimento.
— Estou desolado, minha amiga, mas tinha-me entregue a uma experiência que não podia abandonar.
Sabe que nosso terrível arcebispo tem parte da culpa? No entanto, aceitou muito dignamente a morte de
seu sobrinho. Mas preciso ter cuidado: o duelo é proibido. É mais um trunfo em seu jogo. Recebi um
ultimato para revelar ao idiota do frade meu segredo da fabricação de ouro. E como não posso explicar-
lhe decentemente o tráfico espanhol, decidi levá-lo a Salsigne, onde o farei assistir à extração e à
transformação da rocha aurífera. Antes disso vou chamar o saxão Fritz Hauer e também enviarei um
correio a Genebra. Bernalli sonhava ser testemunha de tais experimentos, e certamente virá.
— Nada disso me interessa — interrompeu Angélica, de mau humor. — Tenho sono.
Com os cabelos a velar-lhe metade do rosto e sua camisola cujos folhos de renda lhe caíam sobre o
braço nu, a jovem tinha consciência de que sua atitude não era tão rigorosa quanto as suas palavras.
Joffrey acariciou seu ombro suave e branco, mas com um movimento rápido ela lhe enterrou na mão
os dentes agudos. Ele deu-lhe um tapa e, com fingida cólera, derribou-a atravessada no leito. Lutaram
um momento. Mas logo ela sucumbiu ante a força de peyrac, a qual não cessava de surpreendê-la. Não
obstante, continuava rebelde e se debatia nos braços do marido. Seu sangue começou a circular mais
depressa. Uma chispa de desejo acendeu-se no mais fundo de seu ser e se espraiou por ela toda.
Continuava a se agitar, mas buscava, com anelante curiosidade, a surpreendente sensação que acabava
de experimentar. Seu corpo se abrasava. As ondas do prazer a arrastavam de cume em cume, num
delírio que jamais tivera até então. Com a cabeça meio tombada para fora da cama, os lábios
entreabertos, Angélica evocou subitamente as sombras de uma alcova dourada pela tênue luz de uma
lamparina. Tinha nos ouvidos um doce queixume, que ela percebia com extraordinária nitidez.
Reconheceu de repente sua própria voz. Por cima dela, na luz cinzenta da alvorada, via aquele rosto de
fauno sorridente, que, com os olhos brilhantes, semicerrados, escutava o canto que havia feito nascer.
— Oh, Joffrey! — suspirou —, parece-me que vou morrer! Por que é cada vez mais maravilhoso?
— Porque o amor é uma arte em que se procura a perfeição, bela amiga, e porque você é uma
discípula maravilhosa...
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Saciada, buscava agora o sono, aconchegando-se a ele. Como parecia'trigueiro o torso de Joffrey
entre as rendas da camisa!... E como era embriagador aquele cheiro de tabaco!
CAPITULO XXIII
A mina de ouro de Salsigne — Encontro com o Presidente Massenau
Uns dois meses mais tarde, um pequeno grupo de cavaleiros que acompanhavam um coche com as
armas do Conde de Peyrac subia um caminho ao longo de rochas escarpadas para o burgo de
Salsigne, no Aude.
Angélica, a quem a viagem tinha encantado a princípio, começava a sentir-se fatigada. Fazia forte
calor e havia muita poeira. O balanço da marcha de seu cavalo a tinha levado à meditação. Havia
observado sem complacência o monge Conan Bécher, que, montado em uma mula, deixava pender suas
longas pernas e seus pés calçados com sandálias. Refletira, depois, as conseqüências da pertinaz
animosidade do arcebispo. Por fim, pensava na carta de seu pai, que o saxão Fritz Hauer lhe havia
entregue ao chegar a Toulouse em seu carro, com sua mulher e os três filhos louros, os quais, apesar do
tempo passado no Poitou, falavam ainda um áspero dialeto germânico.
Angélica havia chorado muito ao receber a missiva, porque seu pai lhe comunicava a morte do velho
Guilherme Lützen. Escondida num canto, soluçara horas inteiras. Nem mesmo a Joffrey pudera explicar
o que sentia e por que o coração se lhe fazia em pedaços quando recordava aquele rosto barbado, com
seus olhos pálidos e severos, mas que sabiam ser tão doces para a menina Angélica. No entanto, de
noite, com as carícias de seu marido, que não lhe fez perguntas, seu pesar se atenuou um pouco. O
passado era o passado. Mas a carta do Barão Armando havia feito surgir pequenos fantasmas de pés
descalços e cabelos cheios de palha nos gelados corredores do velho Castelo de Monteloup, onde no ve-
rão as galinhas procuravam a sombra.
O barão lamentava-se também. A vida continuava difícil, embora todos tivessem o necessário, graças
ao comércio dos muares e às generosidades do Conde de Peyrac. Mas a região tinha sido assolada por
uma fome horrível, e isto, acrescentado às vexações dos cobradores do imposto sobre o sal, havia
causado a rebelião dos habitantes do pântano. Emergindo de seus caniçais, haviam saqueado vários
burgos, recusado o imposto e matado os agentes fazendários. Foi preciso enviar os soldados do rei para
persegui-los "em fuga, como enguias nos canais". Havia muitos enforcados nas encruzilhadas.
Angélica avaliou, de repente, o que significava "ser" uma das maiores fortunas da província. Tinha
esquecido aquele mundo oprimido, obsedado pelo temor das taxas e das exações. Será que, no
deslumbramento de sua felicidade e de seu luxo, não se teria tornado egoísta? Porventura o arcebispo se
teria mostrado menos incômodo se houvesse conseguido atraí-la para suas boas obras?
Ouviu suspirar o pobre Bernalli.
— Que caminho! E pior que os nossos Abruzos! E seu belo coche! Dele não restará senão lenha! É um
verdadeiro crime!
— Eu insisti com o senhor para que viajasse nele. Poderia ter servido para alguma coisa.
Mas o galante italiano protestou, não sem levar a mão aos doloridos rins.
— Por Deus, senhora, um homem digno de tal nome não saberia refestelar-se numa carruagem
enquanto uma jovem dama viaja a cavalo.
— Seus escrúpulos são antiquados, meu pobre Bernalli. Agora já não se fazem tantas cerimônias.
Afinal, creio que começo a conhecê-lo, e, se o senhor é como imagino, bastará que veja nossa
maquinaria hidráulica movendo-se e projetando água para que fique curado de suas dores.
O semblante do sábio iluminou-se.
— Verdadeiramente, senhora, lembra-se de minha loucura por essa ciência a que chamo hidráulica?
Seu marido não deixou de me atrair, fazendo-me saber que havia construído em Salsigne uma máquina
para elevar a água de uma torrente que corre por uma garganta profunda. Não foi preciso mais para
lançar-me de novo aos caminhos. Fico pensando se não terá descoberto o moto-contínuo.
— Engana-se, meu caro — disse atrás deles a voz de Joffrey de Peyrac. — Trata-se de um modelo que
imita os aríetes hidráulicos que eu vi na China e que podem elevar a água a cento e cinqüenta toesas, ou
mais. Ah! Veja lá embaixo. Estamos chegando.
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Bem depressa encontraram-se à margem de uma pequena torrente e puderam ver uma espécie de caixa
oscilante que girava subitamente em torno de um eixo, para projetar de quando em quando, em bela
parábola, um jorro de água a grande altura. Esse jato caía numa espécie de tanque elevado, e a água
descia depois, muito mansamente, através de canalizações de madeira.
Um arco-íris artificial nimbava o curioso engenho. Angélica achou muito lindo o aríete hidráulico, mas
Bernalli pareceu decepcionado e disse:
— Aí se perdem dezenove vigésimos do volume de sua torrente. Isso não tem nada que ver com o
moto-contínuo!
— Não me importo de perder água e força — observou o conde. — O que me interessa é jogar água lá
para cima, e esse pequeno rendimento me basta para concentrar minha rocha aurífera triturada.
Deixaram para o dia seguinte a visita à mina. Na aldeia encontraram alojamentos modestos mas em
número suficiente, preparados pelo capitoul local. Um carro de bagagens tinha trazido leitos e malas.
Peyrac pôs as casas à disposição de Bernalli, do monge Bécher e de Andijos, que, como era de esperar,
fazia parte do grupo. O conde preferia o abrigo de uma grande tenda, com teto duplo, que havia trazido
da Síria.
— Creio que herdamos dos cruzados o costume de acampar.
Com esse calor e nesta região, que é a mais seca de toda a França, você verá, Angélica, que estaremos
muito melhor aqui do que numa construção de pedra e barro.
Ao cair da tarde, o conde saboreou o ar fresco que descia das montanhas. Os panos da tenda,
levantados, deixavam ver o céu avermelhado, e chegavam das margens do rio os cantos tristes e solenes
dos mineiros saxões.
Joffrey de Peyrac, contra seu costume, parecia preocupado.
— Não gosto desse monge! — exclamou com violência. — Não só não compreenderá absolutamente
nada, como ainda interpretará tudo de acordo com a sua mentalidade tacanha. Preferiria explicar as
coisas ao próprio arcebispo, mas ele quer uma "testemunha científica". Ah! ah! ah! Que brincadeira!
Qualquer outro valeria joais que esse fabricante de camândulas.
— No entanto — protestou Angélica, meio escandalizada —, ouvi dizer que muitos sábios ilustres
eram também religiosos.
Joffrey conteve com dificuldade um gesto de irritação.
— Não o nego, e até vou mais longe. Direi que durante muitos séculos a Igreja conservou o patrimônio
cultural do mundo. Mas atualmente esteriliza-se na escolástica. A ciência está entregue a visionários
dispostos a negar os fatos mais evidentes, desde o instante em que não possam encontrar uma base
teológica para um fenômeno que não tem senão uma explicação natural.
Calou-se e, puxando de repente sua mulher contra o peito, disse-lhe uma frase que ela só iria
compreender mais tarde:
— A você também escolhi para testemunha.
Na manhã seguinte, Fritz Hauer apresentou-se para conduzir os visitantes à mina de ouro.
Esta consistia numa grande escavação em forma de pedreira no sopé do contraforte das Corbières.
Uma enorme porção de terreno com cinqüenta toesas de comprimento e quinze de largura tinha sido
removida, e sua massa cinzenta cortada, com o auxílio de cunhas de madeira e ferro, em blocos que
eram, em seguida, levados em carroças para as mós.
Outras máquinas hidráulicas feriram particularmente a atenção de Bernalli. Eram pilões de madeira,
revestidos de folhas de ferro, e oscilavam automaticamente quando um caixão se enchia de água e perdia
o equilíbrio.
— Que desperdício de energia — suspirou Bernalli —, mas que simplicidade de instalação, do ponto
de vista da economia de mão-de-obra! É outra de suas invenções, conde?
— Apenas imitei os chineses, entre os quais estas instalações existem, segundo me afirmaram, há três
ou quatro mil anos. Servem-se delas para descascar o arroz, seu alimento habitual.
— Mas onde está o ouro em tudo isso? — observou judiciosa-mente o monge Bécher. — Vejo apenas
um pó cinzento e pesado, que seus trabalhadores tiram dessa rocha triturada.
— Terá a demonstração daqui a pouco.
O pequeno grupo dirigiu-se a um telheiro onde estavam instalados alguns fornos catalães cobertos.
Foles acionados cada um por dois rapazes emitiam um sopro ardente e sufocante. Chamas lividas,
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exalando forte cheiro de alho 1 surgiam por instantes das bocas abertas dos fornos, liberando urna
espécie de vapor fuliginoso e pesado que se depositava em redor à semelhança de neve.
Angélica tomou um pouco daquela neve e quis levá-la a boca pois aquele odor de alho a intrigava.
Como um gnomo saído dos infernos, um monstro humano com ! avental de couro deu-lhe uma
pancada violenta na mão para deter-lhe o gesto. Antes que ela pudesse reagir, o gnomo exclamou em
alemão:
— Veneno, nobre senhora!
Indecisa, Angélica limpou a mão, enquanto o olhar do monge Bécher se fixava na jovem.
— Em nossos laboratórios — disse calmamente — os alquimistas trabalham de máscara.
Joffrey ouviu e interveio:
— Entre nós não há nenhuma alquimia, embora esses ingredien
tes não sejam para comer, nem mesmo para tocar. Tem feito regularmente a distribuição de leite a toda a
sua gente, Fritz? — indagou em alemão.
—- As seis vacas chegaram aqui antes de nós, Alteza!
— Muito bem; e não se esqueça de que não é para vender, e sim I para beber.
— Não estamos necessitados, Alteza, e, além disso, queremos viver o mais possível — disse o velho e
giboso contramestre.
— Posso saber, meu senhor, que matéria pastosa em fusão é essa que vejo nesse forno infernal? —
perguntou Bécher fazendo o sinal-da-cruz.
— È a mesma areia, lavada e depois seca, que viu extrair da mina.
— É esse pesado pó cinzento que, segundo o senhor, contém o ouro? Não vi brilhar nele até agora a
menor pepita.
— No entanto, é na realidade rocha aurífera. Traga um pouco, Fritz.
O alemão enterrou a pá em um grande monte de areia granulada, verde-cinza, de aspecto vagamente
metálico.
Bécher deitou pequena quantidade na palma da mão, cheirou, provou-o com a ponta dá língua e,
cuspindo com força, declarou:
— Vitríolo de arsênico, veneno violentíssimo. Nada tem que vercom ouro. Além disso, o ouro procede
do saibro, e nunca da rocha. E a pedreira que vimos há pouco não contém sequer um átomo de saibro.
— É exato, ilustre confrade — confirmou Joffrey de Peyrac, que acrescentou, dirigindo-se ao
contramestre saxão: — Se já está na hora, junte o chumbo!
No entanto, teve de esperar ainda muito tempo. A massa no forno tornava-se cada vez mais rubra,
derretia-se, fervia. Os pesados vapores continuavam a depositar-se em todos os lugares, em camadas
brancas e pulverulentas.
Quando diminuíram as chamas e decresceram os vapores, dois saxões com avental de couro
trouxeram numa carroça vários lingotes de chumbo e lançaram-nos na massa pastosa.
O banho se liqüefez de todo e parou de ferver. O saxão remexeu-o com uma comprida vara de
madeira verde. Apareceram borbulhas e depois subiu uma escuma. Fritz Hauer tirou-a com enormes
coadores e ganchos de ferro. Depois voltou a mexer o líquido.
Finalmente inclinou-se ao nível de uma abertura feita abaixo da cuba do forno. Retirou a rolha de
barro que a obstruía, e um fio prateado começou a escorrer para as lingoteiras de antemão preparadas.
Curioso, o monge se aproximou, depois disse:
— Mas tudo isso não passa de chumbo!
— Continuamos de acordo — assentiu Peyrac. Mas súbito o monge lançou um grito estridente:
— Estou vendo as três cores!
Ofegava e apontava as irisações de resfriamento do lingote. Tremiam-lhe as mãos e ele balbuciava:
— A Grande Obra! Eu vi a Grande Obra!
— O bom frade está ficando louco — observou Andijos sem respeito para com o homem de
confiança do arcebispo.
Com um sorriso indulgente, Joffrey de Peyrac explicou:
— Os alquimistas dão muito valor à aparição das "três cores"
na obtenção da pedra filosofal e da transmutação dos metais; é um fenômeno sem importância,
análogo ao do arco-íris após a chuva.
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De repente, o monge caiu de joelhos diante do marido de Angélica. Tartamudeando, dava-lhe graças
por haver lhe permitido assistir à "obra de sua vida".
Irritado com aquela manifestação ridícula, Peyrac disse secamente:
— Levante-se, padre. Ainda não viu absolutamente nada, mas em um minuto poderá julgar por si
mesmo. Aqui não existe nenhuma pedra filosofal, sinto muito.
O saxão Fritz Hauer seguia a cena com ar reticente em sua curiosa face impregnada de rocha em pó.
— Devo fazer a copelação diante desta gente? — perguntou em alemão.
— Faça como se apenas eu estivesse presente.
Angélica viu o lingote ainda quente ser empurrado com um tra-po úmido para uma carrocinha.
Transportaram-no para um pequeno forno instalado sobre uma forja. Os tijolos da cavidade central do
forno, constituindo uma espécie de crisol aberto, erani muito brancos, leves e porosos. Eram fabricados
com os ossos de animais cujos cadáveres, amontoados perto dali, exalavam um cheiro nauseabundo que,
misturado aos odores de alho e enxofre, tornava a atmosfera quase irrespirável.
De afogueado que se achava por causa do calor e da excitação, Bécher ficou lívido ao ver o montão de
ossos e começou a benzer-se e a murmurar exorcismos.
Joffrey não pôde conter o riso e disse a Bernalli:
— Veja o efeito que nossos trabalhos produzem neste moderno sábio. Quando penso que a copelação
sobre as cinzas de ossos era uma brincadeira de crianças no tempo dos romanos e dos gregos!
No entanto, Bécher não se esquivou do terrífico espetáculo. Muito pálido e correndo as contas do
terço, permaneceu com os olhos fixos nos preparativos do velho saxão e de seus ajudantes.
Um deles punha mais brasas na forja e outro movia o fole de pedal. O chumbo começou a derreter-se
no estranho cadinho. Completada a fusão, atiçaram ainda mais o fogo e o chumbo se pôs a fumegar.
A um sinal do velho Fritz, apareceu um rapazinho trazendo um fole cuja ponta estava introduzida em
um tubo de argila retrataria. Colocou esse bico na beira da cuba e começou a fazer vento frio à superfície
vermelho-escura da pesada massa líquida.
De repente, com um ruído sibilante, o ar soprado pelo fole se inflamou. A chama foi aumentando de
intensidade, passou ao branco refulgente e estendeu-se ao conjunto do metal.
Os jovens ajudantes retiraram apressadamente todas as brasas de sob o forno e os grandes foles
deixaram de funcionar.
A copelação prosseguiu sozinha: o metal fervia e deslumbrava. De quando em quando recobria-se de
um véu escuro, que se rasgava logo em placas que dançavam na superfície do líquido iluminado, e
quando uma dessas ilhas flutuantes chegava à orla do banho, como por magia, era atraída pelos tijolos e
a superfície aparecia mais limpa e mais brilhante.
Simultaneamente, o menisco de metal diminuía a olhos vistos.
— Depois reduziu-se ao tamanho de uma bolacha grande, ficou mais escuro e subitamente
relampagueou. Nesse instante Angélica viu nitidamente que o metal estremecia com violência e por fim
se solidificava e escurecia mais ainda.
— E o fenômeno do relâmpago descrito por Berzelius, que trabalhou muito em copelação — disse
Bernalli. — Sinto-me feliz por ' ter assistido a uma operação metalúrgica que só conhecia pelos livros.
O alquimista nada dizia. Seu olhar estava ausente e vago.
— Entrementes, Fritz pegava o disco de metal com uma pinça, mergulhava-o na água e apresentava-o
a seu patrão, amarelo e cintilante.
— Ouro puro — murmurou respeitosamente o monge alquimista.
— Não é absolutamente puro — disse Peyrac. — Do contrário, lão teríamos visto o fenômeno do
relâmpago, que denuncia a presença de prata.
— Gostaria de saber se este ouro resiste ao espírito de nitro e também ao espírito de sal.
— Evidentemente — respondeu Peyrac —, pois é ouro verdadeiro.
Refeito da emoção, o religioso perguntou se podia ter uma pequena amostra para entregá-la a seu
benfeitor, o arcebispo.
— - Leve para çle esse disco de ouro bruto, extraído das entralhas de nossas Corbières — disse o
Conde de Peyrac. — Faça-o
compreender que este ouro procede de uma rocha que já o contém, e que ele não precisa senão
descobrir em suas terras alguma jazida que o torne rico.
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Conan Bécher envolveu cuidadosamente em um lenço a preciosa bolacha, que pesava pelo menos
duas libras, e nada respondeu.
Durante a viagem de retorno, ocorreu um incidente insignificante em aparência, mas que depois
haveria de ter certa importância na vida de Angélica e de seu marido.
A meio caminho de Toulouse, no segundo dia de viagem, o cavalo baio que Angélica montava
começou a mancar, ferido por um calhau da pedregosa estrada. Não havia cavalo de reserva, a menos
que se tirasse um dos quatro que puxavam o coche. Mas Angélica não quis rebaixar-se a montar um
grosseiro animal de tiro. Subiu, pois, para o coche, onde Bernalli, mau cavaleiro, se havia instalado.
Vendo-o assim derreado por pequena excursão, Angélica o admirava ainda mais ao lembrar-se das
longas viagens que ele empreendia para vir contemplar um aríete hidráulico ou discutir a gravidade dos
corpos. Além disso, desterrado de vários países, o italiano era pobre e viajava sem criados, em
cavalgaduras de aluguel. Apesar dos solavancos da viatura, estava encantado com o que chamava
"notável conforto", e quando Angélica lhe pediu, sorrindo, um pequeno espaço, retirou confuso as
pernas que estendera sobre o assento.
O conde e Bernardo d'Andijos caracolearam durante algum tempo ao lado da carruagem, mas,
levantando esta muita poeira e sendo o caminho estreito, tiveram de acompanhá-la a distância. Dois
lacaios a cavalo precediam o coche.
O caminho tornava-se cada vez mais angusto e ziguezagueante. Ao sair de uma curva, a carruagem
parou com um chiado, e os seus ocupantes viram um grupo de cavaleiros que parecia barrar-lhes a
passagem.
— Não se inquiete, signora — disse Bernalli, que havia olhado pela portinhola. — São lacaios de
outro coche que vêm em sentido contrário.
— Mas neste caminho estreito não poderemos cruzar-nos! — exclamou Angélica.
Os criados de ambas as partes insultavam-se a valer. Os do outro lado, com muita insolência,
pretendiam fazer recuar o coche do Sr. de Peyrac, e, para bem mostrar que acreditavam ter direito a
passar primeiro, um deles começou a distribuir chicotadas que atingiram tanto os criados de Joffrey
como as bestas do carro. Estas se empinaram, a viatura oscilou e a jovem teve a impressão de que iam
precipitar-se no barranco. Apavorada, soltou um grito.
Joffrey de Peyrac chegava naquele momento. Fez uma cara terrível e, aproximando-se do lacaio que
empunhava o rebenque, fustigou-o com o seu em pleno rosto. Nesse instante chegou a segunda
carruagem. Dela saltou um homem gordo e apoplético, afogado num papo de rendas e em fitas, e tão
coberto de pó-de-arroz como de poeira. Agitou uma bengala com castão de marfim, adornada com uma
roseta de cetim, e gritou:
— Ousa agredir os meus criados! Ignora acaso, estúpido cavaleiro, que está diante do presidente do
Parlamento de Toulouse, Barão de Massenau, senhor de Pouillac e outros lugares?... Peço-lhe que se
afaste e nos deixe passar.
O conde voltou-se e disse em tom enfático:
— Que imenso prazer! É parente dum Sieur Massenau, escrevente de notário, do qual ouvi falar?
— Sr. de Peyrac! — exclamou o outro, um tanto desconcertado.
Mas sua cólera, exacerbada pelo ardor do sol a pino, não se acalmou ao reconhecer Joffrey, e seu rosto
tornou-se violeta.
— Embora muito recente, conde, fique sabendo que minha nobreza é tão legítima como a sua!
Poderia mostrar-lhe os recibos da câmara do rei, que certificam a minha nobilitação.
— Creio no que diz, Messire Massenau. A sociedade ainda chora por tê-lo elevado tanto.
— Quero que explique essa alusão. Que me reprova?
— Não acha que o lugar é impróprio para esta discussão? — perguntou Joffrey de Peyrac, que tinha
dificuldade em dominar seu cavalo, irritado pelo calor e por aquele homem gordo e vermelho
gesticulando de bengala na mão. Mas o Barão de Massenau não se dava por vencido.
— Fica-lhe muito bem falar da coisa pública, senhor conde! O senhor que nem sequer se digna
comparecer às sessões do Parlamento!
— Deixei de me interessar por um Parlamento sem autoridade. Nele só encontraria arrivistas e
homens que enriqueceram de uma hora para outra não se sabe como, ansiosos por comprar seus títulos
de nobreza ao Sr. Fouquet ou ao Cardeal de Mazarino. E isso, destruindo as últimas liberdades locais
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do Languedoc.
— Senhor, eu represento um dos mais altos funcionários da justiça do rei. O Languedoc é há muito
tempo território do Estado, unido à coroa. Não é decente falar perante mim das liberdades locais.
— Não é decente, pelo próprio termo liberdade, pronunciá-lo perante o senhor. É incapaz de
compreender-lhe o sentido. Só presta para viver dos subsídios do rei. Isso é o que chama servi-lo.
— É um modo como outro qualquer, enquanto o senhor...
— Eu nada lhe peço, mas envio-lhe sem nenhum atraso os impostos de minha gente, e os pago em
bom ouro puro, saído de minhas terras ou ganho no comércio. Sabia, Sr. Massenau, que do milhão de
libras que o Languedoc manda eu contribuo com a quarta parte? Aviso aos quatro mil e quinhentos
nobres e onze mil burgueses da província.,
O presidente do Parlamento só tinha retido uma coisa.
— Ganho no comércio! — exclamou escandalizado. — Então é verdade que comercia?
— Comercio e produzo. E muito me orgulho disso, pois não sinto prazer em estender a mão ao rei.
— Ah, Sr. de Peyrac, o senhor é muito desdenhoso! Mas lembre-se disto: a burguesia e os novos
nobres é que representam o futuro e a pujança do reino.
— O que muito me encantará — ironizou o conde, recuperando seu tom escarninho. — Que a nova
nobreza aprenda, pois, as boas maneiras da antiga e tenha a cortesia de arredar-se para deixar passar
este coche, onde a Sra. de Peyrac se impacienta.
Mas o novo barão, obstinado, batia com os pés na poeira e no estéreo.
— Nenhuma razão existe para que eu me aparte. Repito-lhe que minha nobreza vale tanto quanto a sua.
— Mas eu sou mais rico que o senhor, grande fantoche — disse Peyrac aos gritos —, e, se para os
burgueses o que importa é o dinheiro, afaste-se, Sr. Massenau, deixe passar a fortuna.
Lançou-se para a frente, dispersando os lacaios do magistrado. Este apenas teve tempo de se desviar
para o lado, evitando a carruagem armoriada de Joffrey. O cocheiro, que só esperava um sinal de seu
amo, sentia-se feliz ao triunfar sobre a lacaiada do barão.
Ao passar, Angélica entreviu a figura vermelha do Sieur Massenau, que, brandindo sua bengala
enfitada, rugia:
— Farei um relatório... Farei dois relatórios... Monsenhor d'Orléans, governador do Languedoc, será
avisado... e o Conselho do rei.
Certa manha, ao entrar com seu marido na biblioteca do palácio, Angélica viu Clemente Tonnel
ocupado em inscrever em ta-buinhas enceradas títulos de livros. Como da primeira vez que se deixara
surpreender, ficou embaraçado e procurou ocultar suas ta-buinhas e seu estilo.
— Parece que muito lhe interessa o latim! — exclamou o conde, que estava mais surpreso do que
contrariado.
— Sempre me atraíram os estudos, senhor conde. Minha aspiração era ser escrevente de notário, e é
para mim uma grande alegria pertencer à casa não só de um grande senhor, mas de um sábio ilustre.
— Meus livros sobre alquimia não poderão instruí-lo em matéria de direito — disse Joffrey de Peyrac
franzindo o sobrolho, pois as maneiras dissimuladas do mordomo nunca lhe haviam agradado. Tonnel
era o único de seus criados que o conde não tratava com intimidade.
Quando ele saiu, Angélica disse com enfado:
— Não tenho queixa do serviço desse Clemente, mas não sei por que sua presença me é cada vez mais
incômoda. Quando olho para ele tenho vaga lembrança de qualquer coisa desagradável. No entanto,
trouxe-o comigo do Poitou.
— Ora essa! — disse Joffrey, encolhendo os ombros — Falta-lhe um pouco de discrição, mas,
enquanto sua paixão pelo saber não o levar a ir mexer no laboratório...
Angélica ficou inexplicavelmente inquieta e, por várias vezes, durante o dia, o rosto bexigoso do
mordomo veio turbar-lhe os pensamentos.
Algum tempo depois, Clemente Tonnel pediu umas férias para voltar a Niort a fim de resolver algumas
questões de herança.
"Ele está sempre herdando", pensou Angélica.
Recordava que ele já se vira obrigado a deixar um emprego pelo mesmo motivo. Clemente prometeu
que estaria de volta no mês seguinte, mas, ao vê-lo preparar com muito cuidado os arreios de seu cavalo,
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Angélica teve o pressentimento de que não tornaria a vê-lo tão cedo. Desistiu por isso de lhe entregar
uma carta destinada a sua família.
Quando Tonnel partiu, foi presa de um irracional desejo de rever Monteloup e seus campos. No
entanto, seu pSi não lhe fazia falta. Embora ela chegasse a ser muito feliz, guardava-lhe certa mágoa por
seu matrimônio. Seus irmãos e irmãs andavam dispersos. O velho Guilherme tinha morrido e, a julgar
pelas cartas que recebia, suas tias mostravam-se caducas e rabugentas, e a ama cada vez mais autoritária.
Seu pensamento deteve-se um instante em Nicolau, mas Nicolau havia desaparecido da região após o
matrimônio de Angélica.
De tanto meditar, Angélica percebeu que era estimulada pela idéia de tornar ao Castelo do Plessis e
verificar se o famoso cofre-zinho com veneno continuava encerrado no esconderijo da toninha. Não
havia nenhuma razão para que lá não estivesse. Não o podiam descobrir a não ser demolindo o castelo.
Por que motivo aquela velha trama voltava subitamente a inquietá-la? Os antagonismos daquela época já
estavam muito distantes. O Sr. de Maza-rino, o rei e seu jovem irmão continuavam vivos. O Sr. Fouquet
tinha conseguido o poder sem crime. E já não se falava da volta do Príncipe de Conde ao favor real?
Sacudiu suas quimeras e logo recuperou a tranqüilidade.
CAPITULO XXIV
Nascimento de Florimond — Luís XIV em Toulouse
A alegria estava presente, tanto na casa de Angélica como no reino. E o Arcebispo de Toulouse,
ocupado com assuntos mais importantes, punha uma trégua à suspicaz vigilância de que cercava seu
rival, o Conde de Peyrac.
Com efeito, Monsenhor de Fontenac tinha sido designado, bem como o Arcebispo de Bayonne, para
escoltar o Cardeal de Maza-rino em sua viagem aos Pireneus.
Pela França inteira repercutia a nova: com um aparato capaz de fazer tremer o mundo, o senhor cardeal
dirigia-se a uma ilha do Bi-dassoa, no País Basco, para negociar a paz com os espanhóis. Terminaria,
pois, a eterna guerra que todos os anos renascia com as flores da estação primaveril. Mais ainda que
aquela notícia tão esperada, enchia de contentamento até o mais humilde artesão do reino um projeto
incrível: em penhor de paz, a altaneira Espanha oferecia sua infanta para esposa do jovem rei da França.
A despeito das reticências e dos olhares invejosos, todos se sentiam orgulhosos de um e do outro lado do
Pireneus, pois na Europa da época, entre a Inglaterra con-vulsionada, a multidão de pequenos
principados alemães e italianos ou os povos sem brasões a que chamavam "embarcadiços", flamengos e
holandeses, só aqueles dois príncipes eram dignos um do outro.
A que outro rei podia destinar-se a infanta, filha única de Filipe IV, casta jovem com pele de nácar,
idolatrada de seu povo e educada na sombra austera de escuros palácios? E para ser esposa daquele
príncipe de vinte anos, esperança de uma das maiores nações, que outra princesa oferecia tantas
garantias de nobreza e tantas vantagens de aliança?
As cortes provinciais comentavam apaixonadamente o acontecimento, e as damas de Toulouse diziam
que o jovem soberano chorava muito às escondidas, pois estava loucamente enamorado de sua
amiguinha de infância, a morena Maria Mancini, sobrinha do cardeal. Mas as razões de Estado eram
imperativas. O cardeal demonstrava de modo eloqüente que para ele a glória de seu régio pupilo e o bem
do reino estavam acima de tudo.
Queria a paz como resultado supremo das intrigas que suas mãos italianas teciam havia anos. Afastou
implacavelmente sua família. Luís XIV desposaria a infanta.
Assim, com oito coches para sua pessoa, dez carros para sua bagagem, vinte e quatro muares, cento e
cinqüenta criados de libre, cem cavaleiros e duzentos peões, o cardeal descia para as verdes margens de
Saint-Jean-de-Luz.
Durante a viagem, reclamou a presença dos arcebispos de Ba-yonne e Toulouse com os respectivos
séquitos, para aumentar o brilho da delegação. Entrementes, do outro lado da cordilheira, Dom Luís de
Haro, representante de Sua Majestade Muito Católica, opondo a tanto luxo uma altiva simplicidade,
atravessava as planuras de Castela, levando nas malas apenas rolos de tapetes cujas cenas recordariam, a
quem interessasse, a glória do antigo reino de Carlos V.
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Ninguém tinha pressa; nenhum dos dois queria chegar primeiro e submeter-se à humilhação de esperar
o outro. Acabaram por medir o terreno vara por vara, e, mercê de um milagre da etiqueta, o italiano e o
espanhol chegaram no mesmo dia e à mesma hora às margens do Bidassoa. Passou-se um longo tempo
em indecisão. Quem seria o primeiro que lançaria o barco à água para atingir a ilhota dos Faisões, no
meio do rio, onde devia realizar-se o encontro? Cada um supôs ter achado a solução que havia de
salvaguardar seu orgulho. O cardeal e Dom Luís de Haro mandaram dizer simultaneamente um ao outro
que estavam doentes. O estratagema falhou por excesso de concordância. Era preciso esperar que as
"enfermidades" terminassem, mas- nenhum dos dois queria restabelecer-se.
O mundo batia com os pés no chão. Far-se-ia a paz? Realizar-se-ia o matrimônio? O menor gesto era
motivo de comentário.
Em Toulouse, Angélica seguia de longe os acontecimentos. Estava alegremente absorvida por um
assunto pessoal que lhe parecia muito mais importante que o casamento do rei.
Como cada dia aumentava seu bom entendimento com Joffrey, tinha começado a desejar ardentemente
ter um filho. Só então, pensava, seria verdadeiramente sua esposa. Por muito que ele lhe assegurasse
nunca ter amado uma mulher a ponto de mostrar-lhe seu laboratório e conversar com ela sobre
matemáticas, continuava incrédula e tinha ataques de ciúme retrospectivos que o faziam rir e, por outro
lado, o encantavam secretamente.
Angélica havia aprendido a conhecer aquele caráter forte, a medir a coragem que ele havia
desenvolvido para dominar sua feiúra e sua deformidade. Ela o admirava por haver ganho a difícil bata-
lha. Parecia-lhe que, se fosse formoso e invulnerável, não teria podido amá-lo tão apaixonadamente.
Queria dar-lhe um filho para fazê-lo completamente feliz. Como os dias passavam, chegou a ter medo de
ser estéril.
Quando, finalmente, no princípio do inverno de 1658, se viu grávida, chorou de alegria.
Joffrey não ocultou seu entusiasmo e seu orgulho. Naquele inverno, enquanto tudo era agitação com os
preparativos das núp-cias reais, ainda não decididas, mas a que todos os nobres da província esperavam
assistir, a vida foi muito tranqüila no Palácio da Gaia Ciência. Entre seus trabalhos e sua jovem mulher,
o Conde de Peyrac interrompera a vida mundana que até então havia levado em sua morada. Finalmente,
e sem nada dizer a Angélica, aproveitava a ausência do arcebispo para voltar a manejar os negócios
públicos de Toulouse, com grande contentamento de uma parte dos magistrados municipais e da
população.
Para o parto, Angélica dirigiu-se a um pequeno castelo que o conde possuía em Béarn, nos contrafortes
dos Pireneus, onde fazia menos calor que na cidade.
Naturalmente, os futuros pais discutiram muito, por antecipação, o nome que haviam de dar ao filho,
herdeiro dos condes de Toulouse. Joffrey queria que se chamasse Cantor, homenagem ao célebre
trovador do Languedoc, Cantor de Marmont, mas, como ele nasceu em plena festa, quando os Jogos
Florais se estavam celebrando em Toulouse, pôs-lhe o nome de Florimond.
Era um menino moreno, com abundante cabelo negro. Durante alguns dias, Angélica lhe teve uma
vaga antipatia pela angústia e as dores que sentira. A parteira lhe afirmava, contudo, que, "para o
primeiro", até que as coisas haviam corrido bem. Mas Angélica muito poucas vezes havia estado doente
e desconhecia a dor física. Ao curso das longas horas de espera, sentia-se pouco a pouco submergida
naquele sofrimento elementar, e seu orgulho se rebelou. Estava só em um caminho onde nem o amor
nem a amizade podiam ajudá-la, governada pelo filho desconhecido que já a reivindicava inteiramente.
Aquela hora prefigurou para ela a solidão atroz que um dia teria de afrontar. Não o soube, mas seu ser
teve a premonição disso, e durante vinte e quatro horas Joffrey esteve inquieto por sua palidez, seu
mutismo e seu sorriso forçado.
Na noite do terceiro dia, ao inclinar-se por curiosidade sobre o berço em que dormia o filho, Angélica
reconheceu um semblante de traços cinzelados que às vezes lhe havia revelado o perfil intato de Joffrey.
Imaginou um sabre cruel caindo sobre aquela carinha de anjo, o corpo gracioso atirado por uma janela,
quebrado na neve sobre a qual choviam chamas. A visão foi tão nítida que ela deu um grito de horror.
Agarrando o recém-nascido, apertava-o convulsivamente contra o peito. Seus seios estavam doloridos,
pois o leite subia e a parteira os tinha enfaixado fortemente. As damas de qualidade não amamentavam
seus filhos. Uma jovem nutriz, robusta e sã, devia levar Florimond para as suas montanhas, onde ele
passaria os primeiros anos de sua existência.
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Mas, quando a obstetriz voltou de noite ao quarto da parturien-te, ergueu os braços para o céu, pois
Florimond estava mamando gulosamente em sua mãe.
— Está louca, senhora! Como vamos agora secar-lhe o leite? Vai ter febre e ficará com os seios
endurecidos.
— Eu mesma o aleitarei — disse Angélica ferozmente. — Não quero que o joguem por uma janela!
Falou-se com escândalo daquela nobre dama que se comportava como uma camponesa. Finalmente,
encontrou-se uma solução: a ama faria parte da casa da Sra. de Peyrac. Complementaria a lacta-ção de
Florimond, que tinha um apetite voraz.
Quando essa questão agitava até o magistrado da pequena aldeia bearnesa que dependia do castelo,
chegou Bernardo d'Andijos. O Conde de Peyrac havia-o nomeado o primeiro gentil-homem de sua casa,
e acabava de enviá-lo a Paris para que preparasse ali sua residência, em vista de uma viagem que
tencionava fazer à capital.
De volta, Andijos havia ido diretamente a Toulouse para representar o conde nas festividades dos
Jogos Florais.
Ninguém o esperava em Béarn, e ele parecia muito agitado. Jogando para um lacaio as rédeas de seu
cavalo, subiu de quatro em quatro os degraus e irrompeu na câmara de Angélica. Estava ela estendida
no leito, enquanto Joffrey de Peyrac, sentado na borda do peitoril, dedilhava a guitarra e cantarolava.
Andijos não reparou naquele quadro familial.
— O rei está para chegar! — exclamou, ofegante.
— Aonde?
— Ao seu palácio, a Gaia Ciência, em Toulouse! Depois deixou-se cair numa poltrona e enxugou o
rosto.
— Vamos com calma — disse Joffrey, depois de haver tocado um pouco para dar tempo a que Andijos
recobrasse o fôlego —, não nos perturbemos. Disseram-me que o rei, sua mãe e a corte haviam partido
para se reunirem ao cardeal em Saint-Jean-de-Luz. Por que passariam por Toulouse?
— É uma história comprida! Parece que Dom Luís de Haro e o Sr. de Mazarino consumiram tanto
tempo em cortesias que não chegaram a tratar do casamento. Por outro lado, diz-se que as relações entre
eles estão ficando tensas. Há dificuldades concernentes ao Sr. de Conde. A Espanha quer que ele seja
acolhido de braços abertos e também que esqueçam não só suas traições durante a guerra civil, mas
ainda o fato de que esse príncipe de sangue francês tenha sido durante vários anos um general espanhol.
A pílula é amarga e difícil de engolir. A chegada do rei nessas condições seria grotesca. Mazarino
aconselhou que viajasse. Ele viaja. A corte vai a Aix, onde a presença do rei aplacará sem dúvida a
revolta que acaba de estalar. Mas toda essa gente importante passa por Toulouse. E você não está ali! E
o arcebispo também não! Os magistrados municipais estão tontos!
— No entanto, não é a primeira vez que recebem uma grande personagem.
— É preciso que você esteja lá — suplicou Andijos. — Fiz questão, eu mesmo, de vir buscá-lo. Parece
que, ao saber que ia passar por Toulouse, o rei teria dito: "Enfim, vou conhecer esse Grande Coxo do
Languedoc de quem tanto me falam!"
— Oh! Quero partir para Toulouse! — exclamou Angélica, saltando no leito.
Mas voltou a deitar-se, com cara de dor. Estava na verdade demasiado ancilosada e enfraquecida para
que pudesse empreender uma viagem pelos péssimos caminhos das montanhas e suportar as fadigas de
uma recepção principesca. Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas de decepção.
— Oh! O rei em Toulouse, o rei na Gaia Ciência, e eu não posso vê-lo!
— Não chore, querida — disse Joffrey. — Prometo-lhe ser tão solícito e amável que não poderão
deixar de convidar-nos para as bodas. Verá o rei em Saint-Jean-de-Luz, e não como viajante em-
poeirado, mas em toda a sua glória.
Enquanto o conde saía para dar ordens relacionadas com a sua partida na madrugada seguinte, o bom
Andijos procurou consolá-la.
— Seu esposo tem razão, cara amiga. A corte! O rei! Que representa isso? Um simples banquete na
Gaia Ciência vale muito mais que uma festa no Louvre. Creia-me, eu estive ali e senti tanto frio na
antecâmara do Conselho que o pingo do meu nariz se congelava. Dir-se-ia que o rei da França não tem
bosques onde cortar lenha. Quanto aos oficiais da casa real, vi que usam calças com tantos furos que as
damas da rainha, que nada têm de tímidas, são obrigadas a baixar os olhos.
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— Dizem que o cardeal-preceptor não quis acostumar seu régio pupilo a um luxo que está fora de
proporção com os recursos do país.
— Não sei quais terão sido as intenções do cardeal, que nunca se privou, por seu turno, de comprar
diamantes brutos ou lapidados, quadros, livros, tapetes, estampas. Mas creio que o rei, sob sua aparência
tímida, está impaciente por livrar-se da tutela. Está farto de sopa de favas e dos sermões de sua mãe, e
cansado de arcar com as desditas de uma França saqueada, o que é compreensível em se tratando de um
belo moço, e rei, além do mais. Não está longe o dia em que sacudirá sua juba de leão.
— Como é ele? Descreva-mo! — solicitou Angélica, impaciente.
— Não está mal! Não está mal! Tem garbo e majestade. Mas, de tanto correr de cidade em cidade no
tempo da Fronda, ficou mais ignorante que um lacaio e, se não fosse rei, eu lhe diria que me parece um
tanto sonso. Além disso, teve bexigas e seu rosto é todo marcado.
— Oh! Você quer descorçoar-me! — exclamou Angélica —, e fala como esses diabos gascões,
bearneses ou albigenses que ainda se perguntam por que motivo a Aquitânia não permaneceu um reino
independente da coroa da França. Para você não há senão Toulouse e o seu sol. Mas eu morro por
conhecer Paris e ver o rei.
— Vê-lo-á em suas núpcias. Talvez a cerimônia assinale a verdadeira maioridade de nosso soberano.
Mas, se for a Paris, detenha-se em Vaux para saudar o Sr. Fouquet. É o verdadeiro rei no momento. Que
luxo, meus amigos! Que esplendor!
— Quer dizer que você também foi cortejar esse financista velhaco e sem educação? — indagou o
Conde de Peyrac, que vinha chegando.
— Era indispensável, meu amigo. Não só era necessário, para que todos recebam você em Paris, pois
os príncipes lhe são devotados, como ainda, confesso, me devorava a curiosidade de ver em sua moldura
o grande superintendente das finanças, que é certamente agora a primeira figura do país depois de
Mazarino.
— Atreva-se de todo e não tema dizer: acima de Mazarino... Todos sabemos que o cardeal não tem
nenhum crédito entre os pres-tamistas, mesmo quando se trata das necessidades do país, enquanto o tal
Fouquet goza da confiança geral.
— Mas o flexível italiano não tem ciúmes. Fouquet faz entrar o dinheiro no Tesouro Real para
sustentar as guerras; é tudo que se lhe pede... por enquanto. Ele não se preocupa em saber se esse di-
nheiro se consegue dos usurários a vinte e cinco e até cinqüenta por cento de juros. A corte, o rei, o
cardeal vivem dessas malversações. Não o deterão tão cedo! E continuará a ostentar seu emblema, o
esquilo, a sua divisa: Quo non ascendam? — Até onde não subirei?
Joffrey de Peyrac e Bernardo d'Andijos discutiram ainda um momento sobre o fausto insólito de
Fouquet, que havia começado como relator de petições e fora membro do Parlamento de Paris, mas não
se tornara menos filho de um simples corsário bretão. Angélica conservava-se pensativa, pois, quando
falavam de Fouquet, lembrava-se do cofrezinho com veneno, e aquela recordação sempre lhe era
desagradável.
Interrompeu-se a conversação com a entrada de um pequeno criado que trazia numa bandeja uma
colação para o marquês.
— Uf! — exclamou este, queimando os dedos com os brioches quentes que encerravam
milagrosamente uma noz defoie gr as gelado. — Só aqui se come dessas maravilhas. Aqui e em Vaux,
precisamente. Fouquet tem um cozinheiro excepcional, um tal Vatel.
Subitamente exclamou:
— Ah! Isto me recorda um estranho encontro. Adivinhem quem vi ali em conversa com Sieur Fouquet,
senhor de Belle-Isle e de outros lugares, e quase vice-rei da Bretanha... Adivinhem!
— É difícil. Ele conhece_ tanta gente...
— Procurem adivinhar. É alguém de sua casa... se se pode dizer.
Depois de muito pensar, Angélica disse que talvez se tratasse de seu cunhado, o marido de Hortênsia,
que era togado em Paris, como o havia sido outrora o célebre superintendente.
Mas Andijos sacudiu a cabeça negativamente.
— Ah! Se não tivesse tanto medo de seu marido, só trocaria a Informação por um beijo, pois não o
adivinhará jamais.
— Pois bem, tome o beijo, que é de bom-tom quando se vê pela irimeira vez uma jovem mãe, e diga-
me quem foi, pois morro de impaciência.
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— Já vai saber. Surpreendi seu antigo mordomo, esse Clemente Tonnel que esteve tanto tempo a seu
serviço em Toulouse, em grande conciliábulo com o superintendente.
— Certamente você se equivocou. Ele apenas tirou férias para ir ao Poitou — disse Angélica com
súbita precipitação. — E não tem qualquer motivo para freqüentar importantes personagens. A menos
que esteja procurando servir em Vaux.
— Foi o que acreditei deduzir da sua conversação. Falavam de Natel, o cozinheiro do superintendente.
— Já se vê — disse Angélica com uma sensação de alívio que não conseguiu explicar a si mesma —
que o que ele desejava era trabalhar sob as ordens desse Vatel, que dizem ser genial. Apenas jme parece
que ele deveria avisar-nos de que não voltaria ao Languedoc. Mas quem espera deferência dessas pessoas
da arraia, quando acham que já não lhes fazemos falta?
— Sim! Sim! — fez Andijos, que parecia estar pensando noutra teoisa. — Mas há um detalhe que me
pareceu curioso. Aconteceu-me entrar de supetão na sala onde o superintendente estava conversando
com esse famoso Clemente. Eu fazia parte de um grupo de senhores mais ou menos tocados pelo vinho.
Pedimos desculpas ao superintendente, mas notei que o nosso homem falava com o Sr. Fouquet de
modo bastante familiar e que, quando entramos, assumiu prontamente uma atitude muito mais servil. Ele
me reconheceu. Quando saíamos, vi que ele dizia precipitadamente algumas palavras a Fouquet. Este
fixou em mim um olhar frio de serpente e depois disse: "Não creio que isso tenha importância".
— Então era a você que ele julgava sem importância, meu amigo? — interrogou Peyrac, que
dedilhava a guitarra displicentemente.
— Parece-me que sim...
— É uma judiciosa opinião!
Andijos fez menção de puxar a espada, e a conversação recomeçou entre risos.
CAPITULO XXV
Um espião no Palácio da Gaia Ciência — Partida para o casamento do rei
"Preciso lembrar-me", disse consigo Angélica. "Está na minha cabeça, completamente enterrado no
fundo da memória. Mas sei que é muito importante. É preciso que o recorde!"
Apertava o rosto com as mãos, fechava os olhos, concentrava o pensamento. A coisa estava muito
distante. Havia ocorrido no Castelo do Plessis. Disso estava certa, mas depois tudo se confundia.
A chama da lareira esquentava-lhe a cabeça. Tomou um pára-fogo manual de seda pintada e protegeu-
se abanando-se maquinalmente. Lá fora, nas trevas, desabara a tempestade. Tormenta de primavera e de
montanha, sem relâmpagos, despedia granizos que saraivavam, por instantes, os vidros das janelas.
Incapaz de dormir, Angélica foi sentar-se em frente à chaminé. Doíam-lhe um pouco as costas e
zangava-se consigo mesma por não recuperar mais depressa as forças. A parteira não se cansava de
dizer-lhe que aquela fraqueza era devida à sua teimosia de amamentar o filho, mas Angélica fazia ou-
vidos de mercador. Quando levava o bebê ao peito e o via sugar o leite, seu júbilo era cada vez maior. A
cena a extasiava. Por outro lado sentia-se mais circunspecta. Já se via matrona solene e indulgente,
cercada de menores vacilantes. Por que pensava tão amiúde em sua infância, quando a pequena Angélica
estava prestes a desaparecer?... E não era um mal-estar vago, inexplicável. Pouco a pouco a questão se
precisava: "Existe algo que eu preciso recordar".
Naquela noite, esperava o retorno de seu marido. Ele tinha enviado um correio para anunciá-lo, mas
sem dúvida, por causa do temporal, só chegaria no dia seguinte. Estava tão decepcionada que chegou a
chorar. Esperava com tanta impaciência o relato da recepção do rei! Isso a teria distraído. Diziam que o
banquete e a festa haviam sido esplêndidos. Que lástima não haver podido assistir a eles, em lugar de
ficar ali quebrando a cabeça para trazer à superfície um retalho de lembrança, um pormenor que, sem
dúvida, não tinha a menor importância!
"Foi no Plessis. Na alcova do Príncipe de Conde... enquanto eu espiava pela janela. É preciso que eu
volte a recordar tudo, ponto por ponto, a partir desse momento..."
Ouviu o bater de uma porta e o ruído de vozes na entrada do pequeno castelo. Pôs-se de pé de um salto
e precipitou-se para fora do quarto. Reconheceu a voz de Joffrey.
— Oh, querido, é você, enfim! Como estou feliz!
Desceu correndo a escada, e ele a recebeu nos braços.
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Sentada a seus pés em um coxim, aconchegava-se a ele. Quando saíram os criados, ela pediu
impaciente:
— Agora conte!
— Correu tudo muito bem — disse Joffrey mordendo umas uvas. — A cidade portou-se à altura. Mas,
sem jactancia, creio que a recepção da Gaia Ciência foi superior ao resto. Consegui trazer a tempo de
Lyon um técnico de maquinaria que nos organizou uma festa belíssima.
— E o rei? E o rei?
— O rei é um belo rapaz que parece apreciar as homenagens que lhe prestam. Tem o rosto cheio, olhos
pardos e ternos e muita majestade. Creio que tem o coração ferido. A pequena Mancini abriu nele uma
chaga que não quer cicatrizar, mas, como faz uma idéia elevada do seu ofício de rei, inclina-se perante a
razão de Estado. Vi a rainha-mãe, bonita, triste e com uma discrição um tanto afetada. Vi também a
Grande Mademoiselle e o Petit Monsieur disputarem por questões de etiqueta. Que mais posso dizer-
lhe? Muitos belos nomes e muitas caras feias! Em verdade, nada me regozijou mais do que voltar a
encontrar o pequeno Péguilin, já sabeis, o Cavaleiro de Lauzun, sobrinho do Duque de Gramont,
governador do Béarn. Tive-o como pequeno pajem em Toulouse antes que ele fosse para Paris. Ainda o
vejo com sua cara de gato, no tempo em que encarreguei a Sra. de Vérant de fazer dele um homem.
— Joffrey!
— Mas ele cumpriu suas promessas e pôs em prática os ensinamentos de nossas cortes de amor.
Porque pude comprovar que ele era a coqueluche de todas aquelas damas. E seu espírito gran-jeou a
amizade do rei, que não pode dispensar suas bufonarias.
— E o rei? Fale-me do rei! Manifestou-lhe sua satisfação pelo modo como o recebeu?
— Com muita graça. E várias vezes lamentou sua ausência. O rei ficou satisfeito... muitíssimo
satisfeito.
— Por que diz "muitíssimo" satisfeito com seu sorriso mordaz?
— Porque vieram contar-me o seguinte: quando o rei voltava para o seu coche, um cortesão observou-
lhe que nossa festa competia em esplendor com as de Fouquet. Sua Majestade respondeu-lhe: "Sim, com
efeito, e estou pensando se já não será tempo de fazer essa gente vomitar". A boa rainha lançou uma
exclamação:'' Que idéia, meu filho, após uma festa promovida para agradar-lhe!" "Estou cansado",
respondeu o rei, "de ver os meus súditos esmagarem-me com a sua ostentação."
— Essa agora! Que rapaz invejoso! — exclamou Angélica, irritada. — Custa-me acreditar. Tem certeza
de que pronunciou tais palavras?
— Quem me contou foi meu fiel Afonso, que estava segurando a portinhola.
— O rei não pode ter por si mesmo sentimentos tão mesquinhos. Foram seus cortesaos que lhe
envenenaram o espírito e o puseram contra nós. Está bem certo de não ter sido insolente para com algum
deles?
— Fui todo açúcar e mel, asseguro-lhe. Dispensei-lhes as maiores considerações possíveis. Até deixei
uma bolsa cheia de ouro no quarto de cada um dos senhores que se alojaram no castelo. E juro-lhe que
nenhum deles se esqueceu de levá-la.
— Você os lisonjeia, mas também os despreza, e eles sentem isso — disse Angélica, sacudindo a
cabeça, pensativa.
Ergueu-se e sentou-se nos joelhos de seu marido. Lá fora continuava a tempestade.
— Cada vei que ouço o nome de Fouquet, eu estremeço — murmurou Angélica. — Vejo aquele
cofrezinho de veneno que me saíra do pensamento há tantos anos e é agora para mim uma obsessão.
— Está muito nervosa, meu bem! Será que daqui em diante vou ter uma esposa que se sobressalta com
a mais leve brisa?
— Preciso lembrar-me de uma coisa — gemeu a jovem, cerrando os olhos.
Esfregou a face na densa cabeleira do marido, perfumada de violeta e ainda encrespada pela chuva.
— Se você pudesse ajudar-me a recordá-la... Mas é impossível. Bastaria que eu pudesse lembrar-me
para saber de onde vem o perigo...
— Não há perigo, minha bela. O nascimento de Florimond a abalou.
— Vejo o quarto... — continuou Angélica com os olhos fechados. — O Príncipe de Conde pulou do
leito porque bateram à porta... Mas eu não tinha ouvido bater. O príncipe vestiu seu chambre e gritou:
"Estou com a Duquesa de Beaufort..." Mas no fundo da alcova o criado abriu a porta e introduziu o
monge encapuzado... Esse monge se chamava Exili...
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Interrompeu-se e de súbito olhou para a frente com uma fixi-dez que assustou o conde.
— Angélica! — exclamou.
— Agora me lembro — disse com voz surda. — Joffrey, eu me lembro... O criado do Príncipe de
Conde era... Clemente Tonnel.
— Está louca, querida — disse Joffrey, rindo. — Durante tanto tempo esse homem esteve a nosso
serviço e só agora você percebe essa semelhança?
— Apenas o entrevi rapidamente na penumbra. Mas aquele rosto bexiguento, aquelas maneiras
astutas... Sim, Joffrey, agora tenho certeza, era ele. É por isso que, durante o tempo que esteve em
Toulouse, nunca pude olhá-lo sem desagrado. Recorda-se de que um dia você disse: "O espião mais
perigoso é aquele de quem não se suspeita"? Você já havia começado a sentir que ele rondava a nossa
casa. O espião desconhecido era ele.
— É muito romantismo para uma mulher a quem interessam as ciências.
Acariciou-lhe a fronte.
— Não estará um pouco febril?
Angélica sacudiu a cabeça.
— Não zombe. Atormenta-me a idéia de que esse homem me espreita há anos. Por conta de quem? Do
Sr. de Conde? De Fouquet?
— Você nunca falou a ninguém desse assunto?
— A você... uma vez, e ele nos ouviu.
— Tudo isso é tão velho... Tranqüilize-sej meu tesouro. Creio que você anda imaginando coisas...
No entanto, alguns meses mais tarde, quando acabava de desma-mar Florimond, seu marido lhe disse
certa manhã com ar descuidado:
— Não gostaria de obrigá-la, mas ser-me-ia agradável saber que todas as manhãs você toma isto ao
desjejum.
Abriu a mão, e Angélica viu brilhar nela uma pastilhazinha branca.
— Que é isso?
— Veneno... Em dose ínfima.
Angélica o encarou.
— Que você teme, Joffrey?
— Nada. Mas é um hábito que sempre tive. O corpo se acostuma pouco a pouco ao veneno.
— Pensa que alguém pode procurar envenenar-me?
— Não penso nada, querida... Simplesmente, não creio no poder do chifre de licorne.
No seguinte mês de maio, o conde de Peyrac e sua mulher foram convidados para as bodas reais.
Deviam celebrar-se em Saint-Jean-de-Luz, às margens do Bidassoa. O Rei Filipe IV da Espanha traria
ele próprio sua filha, a infanta Maria Teresa, ao jovem Rei Luís XIV. A paz se havia firmado... ou quase.
A nobreza francesa, enchendo os caminhos, dirigia-se à pequenina cidade basca.
Joffrey e Angélica deixaram Toulouse de manhã bem cedo, antes das horas de calor. Naturalmente,
Florimond fazia parte da comitiva, com sua ama-de-leite, sua embaladeira e o pretinho que estava
encarregado de fazê-lo rir. Era um bebê cheio de saúde, embora não muito robusto, com um lindo
semblante de Menino Jesus espanhol: pupilas e cachos negros.
A indispensável Margarida vigiava em um dos carros o guarda-roupa de sua senhora. Kuassi-Ba, para
quem se haviam feito três libres, cada qual mais deslumbrante, assumia ares de grão-vizir, sobre um
cavalo tão negro como a sua pele. Havia ainda Afonso, o espião do arcebispo, sempre fiel, quatro
músicos, entre eles um menino violinista, Giovanni, a quem Angélica tinha afeição, e um tal Francisco
Binet, barbeiro e cabeleireiro, sem o qual Joffrey de Peyrac nunca viajava. Criados, servilhetas e lacaios
completavam a equipagem, a qual precediam as de Andijos e Cerbalaud.
Absorvida na preocupação da viagem, muito excitada, Angélica quase não notou que havia deixado
para trás os arrabaldes de Toulouse.
Quando o coche atravessava uma ponte sobre o Garonne, soltou um pequeno grito e encostou o nariz
na vidraça.
— Que lhe está havendo, querida? — perguntou Joffrey de Peyrac.
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— Quero ver Toulouse uma vez mais — respondeu Angélica.
Contemplava a cidade rosa estendida às margens do rio, com as altas agulhas de suas igrejas e a
rigidez de suas torres. Uma súbita angústia apertou-lhe o coração.
— C Toulouse! — murmurou. — O Palácio da Gaia Ciência!
Tinha o pressentimento de que nunca mais os tornaria a ver.
FIM
As mulheres são dotadas de uma intuição que às vezes lhes dá um extraordinário poder de prever os
acontecimentos futuros. Angélica, ao deixar Toulouse e o Palácio da Gaia Ciência, acompanhando o marido, o
Conde Joffrey de Peyrac, para assistir às bodas de Luís XIV, não sem razão teve o súbito pressentimento de que algo
terrível estava para acontecer.
Não era para menos que a doce e sagaz Marquesa dos Anjos intuía sobressaltos em seu destino. Depois de uma infância
cercada depresságios assustadores na província, fora arrancada de uma vida pacífica para assumir um casamento
marcado pelo medo e o preconceito. Mesmo o impressionante marido, a quem aprendera a amar, atraía o ciúme do
soberano por sua riqueza e inspirava o ódio e a suspeita da Santa Inquisição.
Suas aventuras prosseguem em ritmo mirabolante. No próximo volume, O Suplício de Angélica, veremos que ela
não se enganava ao supor uma completa reviravolta em sua vida sempre cheia de surpresas.
ANNE E SERGE GOLON
OS AUTORES:
ANNE E SERGE GOLON
Serge Golonbikoff nasceu em Bukhara (URSS] em 1903 e Simone (Anne) Changeuse, em Toulon (Fiança),
em 1928. Çonheceiam-se e casaram-se na África, para onde Arme, com o dinheiro de um prêmio literário,
viajara como jornalista. Serge era uma celebridade na época: formado em geologia, mineralogia e química,
cruzara o misterioso continente em busca de ouro e diamantes, acabando por participar da descoberta de
estanho em Katanga (Zaire). Atraída por sua fama, Anne resolveu entrevistá-lo.
De volta à França, em 1952, já casados, tiveram a idéia de escrever uma novela histórica ambientada no século
XVII: Serge colhendo as informações no Arquivo de Versalhes e Anne exercitando um talento para as letras
manifestado já na infância.
O sucesso de Angélica, Marquesa dos Anjos, lançado em 1959, foi imediato, animando os autores a
produzirem novos volumes. Estes, traduzidos para vários idiomas e transpostos para o cinema, fizeram da
heroína uma das personagens mais famosas do mundo.