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O DIRIO DE ARTISTA COMO SUPORTE NA CRIAO DE NARRATIVAS
DOCUMENTAIS: REFLEXES ACERCA DESSA PRODUO
CONTEMPORNEA E DE UMA EXPERINCIA DO PIBID PUC-CAMPINAS
Andria Cristina Dulianel PUC-Campinas/CAPES
RESUMO: A partir da anlise reflexiva das principais
caractersticas da criao de narrativas documentais, este artigo
pretende discutir como imagens, desenhos, registros e anotaes so
manipulados e agrupados visualmente na sequncia de um dirio ou
livro de artista, traando relaes com a noo de arquivo. Para tanto
sero analisadas produes de Renina Katz, Luise Weiss, Lygia Eluf,
assim como da minha pesquisa em dirios de artista. O artigo abordar
tambm o processo de criao de um dirio coletivo realizado em
conjunto com os alunos da Licenciatura em Artes Visuais da
Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, participantes do
subprojeto de Artes Visuais do Programa Institucional de Bolsa de
Iniciao Docncia (PIBID), financiado pela Coordenao de
Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior (CAPES).
Palavras-chave: dirio de artista, narrativas documentais,
registro, processo de criao, aes educativas.
ABSTRACT: Through a reflective analysis of the main
characteristics of the making of documentary narratives, this paper
aims at discussing how images, drawings, records and notes are
manipulated and visually grouped in the sequence of an artists
journal or book, establishing relationships with the concept of
archive. In order to do that, works from artists such as Renina
Katz, Luise Weiss and Lygia Eluf as well as my own artistic
research regarding artists journals will be analyzed. The paper
will also address the creative process of a collective journal
produced along with the undergraduates from the Visual Arts course
from Pontifcia Universidade Catlica de Campinas, by students taking
part in the Visual Arts subproject from the Institutional Teaching
Initiation Scholarship Program (PIBID) funded by the Coordination
for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES).
Key words: artists journal, documentary narratives, records,
creative process, educational activities.
A criao de dirios de artista e o conceito de arquivo
Partindo da ideia de que o arquivo trata da manipulao de
informaes, registros de
diversas ordens e formas, torna-se interessante ressaltar a
produo artstica
contempornea voltada para a questo da criao de narrativas
documentais,
atravs dos dirios de artista, tambm chamados de livros de
artista. Discutir a forma
como os mais diferentes documentos, imagens, desenhos,
registros, anotaes so
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manipulados e agrupados visualmente, na sequncia de um livro ou
caderno, nos
possibilita traar relaes com a noo de arquivo.
Muitos dirios de artista so construdos a partir da incorporao e
apropriao de
arquivos e documentos, na criao de narrativas fictcias ou
verdicas, como
arquivos de memrias reais ou ficcionais (SILVEIRA, 2001, p. 72).
Na criao das
narrativas visuais o documento aparece como forma de registro,
vestgio, podendo
ser considerado uma significativa unidade de representao de um
evento,
assumindo um papel de materializador do tempo histrico pessoal e
social no livro
de artista. (SILVEIRA, 2001, p. 90). Neste sentido perceber como
esses dirios
delimitam processos de pesquisa em suas anotaes, reflexes,
trajetrias e
produes visuais fundamental para nos aproximarmos da essncia do
processo
de criao do artista, entendendo como ele v o mundo, nas suas
mais diferentes
questes poticas e existenciais, de forma fluida, numa liberdade
de manipulao de
textos e imagens que esse tipo de produo permite.
Jacques Derrida em Mal de arquivo: uma impresso freudiana
(2001), traz
interessantes reflexes acerca do conceito de arquivo. O autor
comea o livro
refletindo sobre a origem da palavra que vem do grego arkh, que
significa tanto
comeo (origem/autenticidade), quanto comando (autoridade/poder).
A necessidade
de arquivo, chamada pelo filsofo de pulso de arquivo (a partir
das teorias
psicanalticas de Freud), surge do impulso de estocar, consignar,
reunir toda uma
srie de documentos de forma a classific-los e orden-los, com o
intuito de
reproduzir, memorizar, repetir e preservar o acontecimento para
o futuro, indo contra
a pulso de morte do arquivo, que nos leva a um processo de
apagamento e
esquecimento de elementos importantes do mesmo. Vale a pena
ressaltar que para
Derrida a ideia de arquivo no compreende somente o lugar onde se
estocam os
documentos, o repositrio fsico, mas compreende tambm relaes de
poder, como
escolhas, intenes, classificao e ordenao.
Neste sentido, ao relacionar a noo de arquivo com a criao de
dirios de artista,
torna-se interessante questionar: o que os artistas pretendem
preservar nos dirios e
livros criados? Quais escolhas determinam o que vai ser
arquivado? A criao das
narrativas documentais nos livros de artista nos permitem
discutir quais
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caractersticas da arte contempornea? Qual a importncia desses
dirios no
processo de criao do artista e como complemento de sua vida
profissional? Na
tentativa de traar algumas relaes sobre essa discusso, associada
s ideias de
Derrida, pretendo fazer uma anlise de alguns cadernos de
artistas que
influenciaram minha produo artstica, finalizando tal reflexo com
a anlise de um
livro coletivo criado no espao da Universidade, como forma de
instigar os alunos da
licenciatura em Artes Visuais na criao de formas alternativas e
artsticas de
documentao de suas prticas.
Comecemos a discusso a partir de um dirio de Renina Katz, para
pensarmos a
questo da organizao de registros e vestgios do processo de
criao. No livro
Renina Katz (ELUF, 2011) da Coleo Cadernos de Desenho, podemos
notar na
sequncia narrativa de dirios da artista a criao de um verdadeiro
arquivo pessoal,
profundamente relacionado com sua trajetria potica. Ao folhear o
caderno
acompanhamos uma narrativa marcada por imagens e textos:
colagens de textos de
jornal e de imagens, transcries de livros, escritos sobre arte
no geral, estudos de
composies policromadas realizadas com lpis de cor, relatos de
pensamentos da
artista sobre seu processo de criao, reflexes escritas sobre
vida e morte... Enfim,
o dirio traz reflexes intimistas, visuais e escritas, que nos
apontam muitas
nuances do olhar da artista, fazendo com que nos aproximemos de
seu universo
com certa cumplicidade, pelo modo como os mais diferentes tipos
de documentos
so organizados e arquivados, numa sequncia e lgica internas,
como que a nos
dar dicas sobre a essncia do seu processo de criao. Atravs dos
mais diferentes
registros ou vestgios, temos imagens que documentam e do
testemunho
(SILVEIRA, 2001, p. 91), relatando um acontecimento, que neste
caso o olhar da
artista sobre mundo e sobre suas vivncias, as quais determinam
suas escolhas
artsticas.
Os cadernos tm acompanhado os artistas. Eles renem aspectos
pouco conhecidos de sua produo. Esses cadernos guardam momentos de
cumplicidade nicos, quase nunca divulgados, geralmente acessveis
somente aos olhos do prprio artista. Seu uso recorrente, como bloco
de anotaes, carns de viagem ou dirios de artistas, guarda o
pensamento construtivo que norteia o processo de criao e da
construo das imagens. (ELUF, 2011, p.5).
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Ao observarmos a sequncia dos desenhos de Renina Katz, podemos
perceber que
muitas das criaes so ainda embrionrias (fig.1), produes com
certo frescor e
que indicam futuros desdobramentos, sendo como que desenhos
iniciais que a
influenciam na criao de suas gravuras de carter no figurativo
(em especial
litogravuras realizadas a partir de 1970), pautadas na pesquisa
da transparncia das
cores. A maior parte dos desenhos do dirio so composies
abstradas, que nos
remetem paisagem, elementos recorrentes em sua produo. Mas
interessante
observar tambm demais criaes, como desenhos de observao de um
vaso de
plantas, um rosto, uma cabea e elementos da arquitetura
(construes, janelas,
escadas), temticas que dialogam com a liberdade das linhas e
formas no espao e
com o estudo das nuances delicadas das cores.
Fig.1. Renina Katz. Duas pginas de seus cadernos de desenho
publicados no livro Renina Katz
(ELUF, 2011, p.83 e p. 117).1
Uma das pginas (ELUF, 2010, p. 45) chama especial ateno, pois
nela a artista
cola cartazes de propaganda de exposies de artistas que nos
apontam referncias
visuais. Podemos observar um belo cartaz sobre uma exposio de
desenhos e
aquarelas de Mondrian de 1981, um cartaz da exposio de Jim Dine
de 1984 e um
cartaz de uma exposio de 1982, que apresenta uma obra de
Magritte. Na mesma
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pgina do caderno aparece uma transcrio de um texto de Oscar
Wilde: Somente
pessoas superficiais no julgam as aparncias. O mistrio do mundo
o visvel, no
o invisvel. Esses registros nos impulsionam a investigar o olhar
da artista: O que
estaria chamando sua ateno? Quais referncias so visitadas
durante o processo
de criao? Desse mundo de aparncias, de elemento visveis, quais
mistrios so
investigados pela artista?
A artista e professora Lygia Eluf, organizadora da coleo
Cadernos de desenho,
tambm apresenta uma produo em dirios de artista muito
interessante. No livro
Lygia Eluf (2004), da coleo Artistas da USP, a artista traz um
memorial sobre
seu processo de criao de pinturas, gravuras e colagens. Uma das
partes mais
importantes do livro o miolo, o qual traz fragmentos de seus
dirios de desenho,
permitindo ao leitor acompanhar, como na produo de Renina Katz,
muitos estudos
de composies, de cores, realizados com lpis de cor, pastel seco
e colagens.
Alm das imagens, acompanhamos no decorrer dos dirios, reflexes
sobre os
encaminhamentos de suas sries de pinturas. Alm disso
compartilhamos de relatos
intimistas, atravs das descries de sentimentos e indcios de suas
vivncias
pessoais. Ao folhearmos as pginas de seus cadernos, percebemos
em alguns
momentos um carter confessional, pois alguns trechos revelam
acontecimentos
ntimos, gerando uma sensao ambgua no espectador, ao mesmo tempo
de
constrangimento, como se estivesse a invadir um espao privado,
como tambm de
cumplicidade e proximidade, por conta da revelao de aspectos
pessoais
relacionados criao. No texto Lygia Eluf (2004, p.107) afirma: No
posso
apresentar meus sentimentos na forma como eles existem. Espero
que aparea algo
em meu trabalho que os denuncie.
Este carter confessional de muitos livros de artista, segundo
Paulo da Silveira
(2001, pp.94-95) despertado pela prpria forma cdice do livro.
Muitos artistas
escolhem esse formato de dirio, das pginas se sobrepem umas nas
outras, como
forma de afirmar essa possibilidade potica de se trabalhar com
os traos mais
ntimos da narrativa do dirio.
Mas nos interessa, neste momento, verificar a opo de alguns
artistas pelo aparentemente convencional. Em primeiro lugar, a
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utilizao zelosa da brochura comum, que apela para a grande
distribuio, principalmente naquelas obras que eu chamaria de
esclarecedoras, reveladoras, obscenas porque desveladoras e
denunciatrias da vida pessoal do artista ou de seu entorno, de uma
forma direta, sem pudores. Em segundo lugar, o caso dos cadernos e
dos livros de notas reais ou simulados, utilizados por artistas
plsticos como complemento de sua vida profissional ou afetiva.
(SILVEIRA, 2001, p.95)
Outra produo rica com relao a essas questes de levantamento de
registros e
arquivos, so os livros-objetos criados por Luise Weiss entre
1998 e 1999, como
tambm os mais recentes, por trazerem uma interessante reflexo
sobre a questo
da memria e do esquecimento. Tais livros so organizados a partir
de fotos e
documentos de familiares da artista e antepassados da ustria,
apresentando
indcios da vida pessoal e afetiva da artista, assim como da
condio de passagem
do ser humano.
O mais intrigante de sua produo o fascnio pelo processo de
apagamento das
imagens fotogrficas (a artista apropria-se tambm, em outros
trabalhos, de vdeos
com cenas antigas de seus familiares, realizados nos anos 1940 e
1950, assim
como de fotografias de desconhecidos), trazendo reflexes acerca
da passagem do
tempo, no como as imagens podem representar marcas do tempo e vo
sendo
esquecidas pela memria. Weiss (2011, p. 133) afirma que as
imagens no so
ntidas assim como as lembranas so vagas.
Ao observar a produo da artista relaciono tal processo de
apagamento da
memria com as ideias defendidas por Jacques Derrida em Mal de
Arquivo Uma
impresso freudiana (2001). O filsofo aponta interessantes
reflexes acerca de
como os arquivos so criados e manipulados por uma questo de
poder e
autoridade, em uma tentativa de superar o que ele chama de mal
de arquivo,
processo de destruio da memria, de apagamento, de esquecimento
do
acontecimento. Derrida associa tal processo ao conceito de pulso
de morte,
desenvolvido por Freud nas teorias psicanalticas.
Inevitvel no relacionar tal conceito com a produo de Luise
Weiss. Ao manipular
as imagens fotogrficas da famlia, ao notar o apagamento de tais
documentos e ao
se apropriar de tais elementos para a criao de seus livros,
atravs da fotocpia e
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tcnicas de transferncia da imagem, a artista nos faz questionar
sobre a fragilidade
e vulnerabilidade da memria e da fotografia como documentao.
Nos
procedimentos de transferncia, as imagens vo sofrendo um
processo de
apagamento, nas quais os detalhes dos rostos dos retratados,
assim como de outros
elementos apresentam pouca definio. A fotografia evoca a presena
daqueles que
esto ausentes, em imagens que se tornam cada vez mais nebulosas
e
fantasmagricas.
Nos livros objetos de 1998-1999 (fig.2), feitos com papelo e
fotocpias das
fotografias encontradas nos arquivos familiares, Luise cria
diferentes possibilidades
de leitura das imagens, antes imveis e nicas. A justaposio das
fotografias de
paisagens, soldados, cenas antigas da poca da guerra, criam uma
narrativa,
quadro a quadro, trazendo tona a questo do tempo. O interessante
tambm a
escolha pelo formato da sanfona, que possibilita ao espectador
folhear o livro pgina
por pgina, como tambm observ-lo como um todo, ao abri-lo em uma
grande linha
contnua. Nestes livros no h textos, a leitura deles se d
plenamente pelo visual.
Fig. 2. Luise Weiss, 1998. Livro-objeto. Papelo e xerox
colorida, 30 x 25 cm.
Detalhe de reproduo retirada o livro Luise Weiss, 2004, pp. 2 e
3.
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O livro enquanto objeto, na sua possibilidade de manipulao e na
justaposio das
fotografias, cria uma narrativa que no apenas representa e
remete histria da
famlia da artista, mas de sua prpria relao com essa vivncia,
evidenciando na
imagem uma sensao de apagamento, vazio e de fragilidade ante sua
histria e
memria, numa investigao da prpria identidade.
Ao pensarmos nesse processo do folhear o livro, da narrativa e
da relao com o
tempo de leitura do espectador, fica tambm evidente a postura
daquele que
investiga, escava uma histria, numa atitude quase que
arqueolgica. Derrida traz
uma interessante imagem das camadas do arquivo, como as camadas
da pele de
um corpo, as quais relaciono com os livros, pois arquivam
elementos que desvelam
verdadeiras narrativas poticas, conforme a necessidade do
artista.
No corpo desta inscrio, seria necessrio, ao menos, sublinhar
todas as palavras que apontam, certamente, para a instituio e a
tradio da lei (legisladores, lawmakers), isto , para esta dimenso
arcntica sem a qual no haveria arquivo, mas tambm, mais
diretamente, para a lgica e a semntica do arquivo, da memria e do
memorial, da conservao e da inscrio que pe em reserva (store),
acumulam, capitalizam, estocam uma quase infinidade de camadas, de
estratos arquivais por sua vez superpostos, superimpressos e
envelopados uns nos outros. Neste caso, ler trabalhar nas escavaes
geolgicas ou arqueolgicas sobre suportes ou sob superfcies de
peles, novas ou velhas, as epidermes hipermnsicas ou hipomnsicas de
livros ou de pnis. (DERRIDA, 2001, p.35.)
Nesta relao com o escavar livros, percebendo a infinidade de
camadas
arquivais, apresentadas superpostas umas s outras (como as
camadas de pele),
trago algumas reflexes acerca de produes minhas. Ao documentar
atravs de
dirios de desenho as vivncias pessoais, os estranhamentos e
encantamentos do
olhar, uso como recurso da linguagem a sobreposio das imagens em
relaes de
transparncia, que ao mesmo tempo que revelam as camadas do
olhar, tambm
ocultam detalhes pelo apagamento causado pela sobreposio das
pginas.
Em alguns desses dirios, criados entre 2007 e 2009, trago o
desenho como
principal meio de investigao e registro das vivncias cotidianas.
So
representaes de elementos observados da natureza e da paisagem,
relacionados
aos contornos da figura humana. As imagens so construdas em uma
processo de
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quase abstrao da forma reconhecvel, por conta da sobreposio das
linhas, com
variedades de intensidade e tonalidade. Nesse processo de criao
atraa-me a
sobreposio das camadas de papel levemente transparentes (papel
japons e
papel vegetal), pois iam apagando gradativamente os elementos
visuais.
Nos primeiros cadernos criados com pginas levemente
transparentes observei
essas nuances de apagamento e ocultamento de reas do desenho,
sendo que na
sequncia criei alguns dirios, o Dirio das linhas ocultas de 2007
e Cuidando de
2009 (fig.3), usando como recurso a juno de diversas pginas
atravs da costura,
como forma de ocultar algumas camadas, gerando curiosidade e
certo mistrio.
como se apenas o artista pudesse resgatar em sua prpria memria o
que observou,
guardando certo segredo de seu processo no interior das camadas.
Nestes livros
notam-se linhas que quase se apagam, manchas e reas sombreadas
que
estruturam a imagem. O espectador percebe que na construo de
cada imagem do
livro foram feitas anotaes e registros de diversos elementos da
paisagem, mas,
por conta da juno das pginas transparentes, fica impossibilitado
de observar
cada detalhe do processo separadamente, cada camada do olhar,
restando apenas
os vestgios quase que apagados desse acontecimento sensvel.
Desta forma meus dirios dialogam com a questo do apagamento da
memria, o
processo de esquecimento do qual Derrida chama de mal de
arquivo, e ao mesmo
tempo revela uma necessidade de arquivar, guardar, reunir uma
srie de desenhos
e anotaes que resgatem detalhes importantes dessa experincia,
atravs da
explorao de linhas no espao bidimensional. Tais narrativas
visuais acontecem em
movimentos ambguos, numa tentativa contraditria de ao mesmo
tempo revelar e
ocultar tais registros do olhar. Ao folhear a sequncia de
pginas, somos instigados
a querer vasculhar cada camada desse corpo do livro. Na busca
arqueolgica das
camadas do dirio, o espectador deve contentar-se apenas com os
leves vestgios
de vultos de linhas e texturas que sobrevivem, aceitando a perda
de elementos
visuais mais sutis que ficaram soterrados pelas camadas
subsequentes.
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Fig. 3. Andria Dulianel, 2009. Cuidando. Tcnica mista sobre
papel japons e
vegetal, 25 x 11 cm (dimenso de cada pgina).
Experincia de criao de dirio coletivo junto aos alunos do PIBID
PUC-Campinas
Trago um desdobramento da minha prtica docente, a qual tem relao
com o
processo de pesquisa com desenho e dirios de artista apontados
acima. Como
professora do curso de licenciatura em Artes Visuais da
Pontifcia Universidade
Catlica de Campinas (PUC-Campinas) e coordenadora do subprojeto
de Artes
Visuais do Programa Institucional de Bolsa de Iniciao Docncia
(PIBID),
financiado pela Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel
Superior
(CAPES), procuro orientar meus alunos a desenvolverem projetos
na rea da arte e
seu ensino, relacionados aos seus prprios processos de
criao.
O PIBID da PUC-Campinas tem como objetivo central contribuir
para a formao de
qualidade de todos os alunos das licenciaturas da Universidade,
buscando o
aprimoramento de suas prticas pedaggicas, incentivando-os a
atuarem na
educao bsica de forma inovadora. Desta forma valorizamos o
magistrio atravs
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da insero dos nossos bolsistas no cotidiano de escolas pblicas
da cidade de
Campinas, com o intuito de elevarmos a qualidade da educao
bsica.
Uma das caractersticas mais interessantes do nosso projeto
institucional a
integrao das diferentes licenciaturas atravs do desenvolvimento
de aes
interdisciplinares, como tambm de estratgias especficas para
cada rea do
conhecimento (Artes Visuais, Biologia, Educao Fsica, Geografia,
Filosofia,
Sociologia, Matemtica, Letras, Histria e Pedagogia). No presente
artigo no
pretendo trazer a descrio das diferentes oficinas realizadas por
nossa rea junto
s demais dentro do projeto, mas trazer um relato reflexivo sobre
um processo de
documentao de tais aes realizadas junto aos bolsistas de artes
visuais, como
forma de sistematizar nossas aes de um modo artstico e
diferenciado,
respeitando a natureza da arte e o processo criativo de nossos
alunos bolsistas.
Dentro do PIBID PUC-Campinas possumos diferentes instrumentos e
formas de
sistematizar e avaliar as atividades desenvolvidas, para tanto
desenvolvemos
reunies semanais com os bolsistas, instigamos o relato oral e
escrito atravs de
relatrios, registros fotogrficos e audiovisuais, assim como a
criao de portflios
das aes pedaggicas realizadas. Apesar de tais atividades citadas
serem
desenvolvidas com compromisso pelos participantes, na rea de
Artes Visuais
sentimos a necessidade de abrirmos um espao para o
desenvolvimento de um
modo artstico de organizao das aes e produes enquanto grupo,
marcado
pela visualidade e valorizao dos relatos mais pessoais sobre o
processo vivido.
Pensando em formas mais abertas de arquivamento de nossos
documentos, no
ficando presos apenas aos formulrios e relatrios comuns a todas
as reas (vale a
pena ressaltar aqui que tais mtodos so importantes mecanismos de
aferio e
avaliao do conhecimento adquirido, afinal a reflexo a partir da
prtica muito
importante). Desta forma, a criao do dirio coletivo, veio como
uma forma de
complementar nossa prtica reflexiva, pois nos possibilitou
perceber o processo
vivido de forma direta e sensvel, por conta da concretizao das
ideias em imagens.
O pensamento de nossos alunos/artistas marcadamente visual e
suas prticas
pedaggicas esto intimamente relacionadas com suas prticas
poticas. Temos
como filosofia de nosso curso de licenciatura o incentivo do
artista-professor, afinal
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acreditamos que no se pode estimular algum a viver um processo
criativo, sem se
ter vivido um, como afirma Ana Anglica Albano (1984). Neste
sentido, no podemos
reduzir nossas reflexes apenas ao discurso escrito, ou falado.
Como artistas
precisamos falar atravs da arte tambm, como forma de reafirmar e
valorizar nossa
rea do conhecimento.
Para tanto levei para o grupo, em uma das reunies de rea
semanais, uma caixa-
fichrio com dois desenhos meus e dois registros escritos sobre
minhas impresses
do processo que estvamos vivendo nas escolas e em nossas reunies
de
planejamento. Falei com os alunos sobre a importncia de criarmos
um espao de
criao e organizao das nossas aes de forma mais artstica,
instigando- os a
trazerem suas fotografias, desenhos, escritos, enfim, toda uma
srie de registros e
documentos que considerassem pertinentes para serem arquivados
no nosso livro
coletivo. No dei muitas regras de formatao e deixei a escolha da
sequncia das
pginas livre.
O dirio coletivo foi criado neste primeiro semestre de 2014,
apontando aes
realizadas em trs escolas pblicas da cidade de Campinas: a
E.M.E.F. Prof Geny
Rodrigues, na qual desenvolvemos um trabalho interdisciplinar
com a rea de
Educao Fsica, voltado para alunos do Ensino Fundamental I e
tambm em duas
escolas estaduais Jardim Icara e Professor Messias Gonalves
Teixeira nas
quais desenvolvemos oficinas especficas de artes visuais e
tambm
interdisciplinares com demais reas do conhecimento, voltadas
para alunos do
Ensino Fundamental II e Ensino Mdio. Durante o semestre
trabalhamos processos
de criao a partir de traos importantes da cultura
afrodescendente e indgena,
pautados da contextualizao de contedos como mscaras, grafismos,
pintura
corporal, vestimentas, processos rituais, performance e corpo,
tendo como eixos
norteadores a contextualizao, a criao e a fruio de produes
artsticas
escolhidas.
Aos poucos foram surgindo desenhos, colagens, fotografias,
resduos de material,
tecidos, uma srie de itens coletados a partir da experincia
vivida. A cada semana,
quando abria o dirio me surpreendia pelo modo como os alunos
comearam a criar
seus registros e a arquiv-los: pginas que se abriam e
desdobravam,
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sobreposies, envelopes, retalhos de materiais, desenhos dos
alunos das escolas,
desenhos dos bolsistas, barbantes, diferentes formatos de
pginas, enfim, uma srie
de vestgios que foram organizados numa narrativa visual criada
por muitas mos.2
Tambm h algo de exterioridade nos livros formados por coleo
documental a partir de algum tipo de coleta que representa uma
experincia vivencial. Neste caso o artista elege sua atitude entre
o caminho do acaso (aquilo que casualmente ou incidentalmente
chegar a ele numa determinada situao) ou de algum princpio
norteador (uma norma especfica de coleta). (SILVEIRA, 2001, p.
95)
Para alm de pastas que apenas guardam trabalhos realizados,
criamos um modo
de pensar e apresentar nosso trajeto de pesquisa e de atuao nas
escolas, atravs
de uma organizao marcadamente visual, por camadas que revelam
uma
diversidade de extratos arquivais, marcados por um modo potico
de guardar e
preservar os registros (figs. 4, 5 e 6). Tal iniciativa foi
importante, pois nos
permitimos dar expresso ao que aprendemos atravs da linguagem
visual, alm de
contribuirmos para o projeto valorizando a capacidade criativa
do artista, resgatando
das armadilhas do mal de arquivo, do esquecimento, experincias
to marcantes.
Fig.4. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica
mista.
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Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses
variveis.
Fig.5. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica mista.
Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses variveis.
Fig.6. Livro coletivo- PIBID Artes Visuais, 2014. Tcnica
mista.
Livro fechado: 26 x 33 x 5 cm. Livro aberto: dimenses
variveis.
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Notas 1 Na referida publicao alguns desenhos aparecem datados
entre 1984 e 1985, sendo que os apresentados neste artigo no tinham
datao indicada.
2 O livro coletivo foi construdo por mim e por mais 9 alunos
bolsistas do PIBID, dentre eles: Renata Cristina Soares Santos,
Matheus Reis, Thas Gomes da Silva, Wagner Galesco Novaes, Samia
Cristina Araujo Sousa, Victor Tosi Hunger, Yara Rassa Xavier de
Oliveira, Samantha Costa Tavares e Renata Cavalcante da Cruz.
Referncias BOSI, Alfredo. Reflexes sobre a arte. So Paulo: tica,
2002. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impresso freudiana. Rio
de Janeiro: Relume Dumar, 2001. ELUF, Lygia. Lygia Eluf. Artistas
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Katz. Cadernos de desenho. Campinas, SP: Editora da Unicamp:
Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2011. MOREIRA, Ana Anglica
Albano. O espao do desenho: a educao do educador. So Paulo: Edies
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criao. Rio de Janeiro: editora Vozes, 1997. SILVEIRA, Paulo
Antonio. A pgina violada: da ternura injria na construo do livro de
artista. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. WEISS, Luise.
Luise Weiss. Artistas da USP;14. So Paulo: Editora da Universidade
de So Paulo: Imprensa Oficial do Estado de So Paulo, 2004.
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de So Paulo, 2011.
Andria Cristina Dulianel Doutoranda em Artes Visuais pelo
Instituto de Artes da Unicamp e mestre em Artes pela mesma
Instituio. Docente dos cursos de licenciatura e bacharelado em
Artes Visuais da Pontifcia Universidade Catlica de Campinas.
Coordenadora de rea do subprojeto de Artes Visuais do PIBID
PUC-Campinas.