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ARMADILHAS, QUIMERAS E CAMINHOS: TRS ABORDAGENS DA ARTE NA
ANTROPOLOGIA CONTEMPORNEA
ANDR DEMARCHI1
UFRJ
RESUMO: Partindo dos conceitos de armadilhas, quimeras e
caminhos propostos respectivamente por Alfred Gell, Carlo Severi e
Els Lagrou, o presente ensaio bibliogrfico apresenta as
caractersticas, semelhanas e especificidades de trs abordagens da
arte na antropologia contempornea. Um dos focos do trabalho recai
sobre as rupturas que essas abordagens realizam em relao a anlise
simblica que por muito tempo dominou os estudos antropolgicos sobre
arte. Rompendo com o entendimento da arte enquanto linguagem
simblica, os estudos analisados enfatizam, cada um a sua maneira, a
ao cognitiva da arte em contextos nativos, privilegiando categorias
como agncia, eficcia, contra-intuitividade e presentificao. Na
ltima parte, mostro como essas categorias so aplicadas arte
amerndia atravs do trabalho de Els Lagrou sobre a arte
kaxinawa.
PALAVRAS-CHAVE: arte; agncia; presena; ao cognitiva.
ABSTRACT: Based upon the concepts of traps, chimera and pathways
proposed by Alfred Gell, Carlo Severi and Els Lagrou respectively,
this bibliographic essay presents the characteristics, similarities
and specificities of three approaches on art in contemporary
anthropology. The work focuses on the ruptures created by these
approaches, concerning the symbolic analysis that has long
dominated the anthropological art studies. Breaking away from the
conception of art as a symbolic language, the studies we analyzed
emphasized, in different ways, the cognitive action of art in
native contexts, privileging categories such as agency, efficacy,
counter-intuitiveness, and presentification. In the conclusion, we
demonstrate how these categories are applied to Amerindian Art
through the work of Els Lagrou on Cashinahua Art.
KEYWORDS: art; agency; presence; cognitive action.
Introduo ou a calmaria
1 Doutorando em Antropologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Suas reas de
interesse so etnologia amerndia, arte e antropologia urbana.
Atualmente realiza pesquisa sobre a arte dos grupos indgenas
Mebngkre (Kayap). E-mail: [email protected] .
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O presente trabalho tem um sabor especial para o autor que agora
o escreve, pois se trata do primeiro texto escrito por ele sobre o
tema geral da etnologia dos povos das terras baixas da Amrica do
Sul e, em especfico, das artes destes povos. Tal sabor
transformou-se em alguns momentos num temor provocado pela
insegurana tpica do marinheiro de primeira viagem ao se deparar com
os mares nunca antes navegados, a no ser por uma curiosidade
fugidia e despretensiosa que o acompanhava ao estudar antropologia
urbana, tanto na graduao como no mestrado. Ao fim e ao cabo,
sente-se agora, no incio do doutorado, capaz de dizer que, embora
esteja embarcando numa primeira viagem, cr estar enfim no barco
certo.
Pois bem, o tema escolhido para essa primeira estadia no mar da
etnologia, vem a ser justamente um tema que algumas dcadas atrs
passava por um daqueles momentos de marasmo muito comum no
conhecimento cientfico quando certo modelo terico predomina por
tempo demais sobre dados distintos, ou quando certo campo do
conhecimento ainda est por demais contaminado dos valores de um
outro. O fato que a j se prenunciava uma grande tempestade que
desestabilizaria certas bases tericas e metodolgicas e daria outro
rumo correnteza.
A chamada antropologia da arte padecia, por volta da dcada de
80, do sculo passado, deste estado de marasmo terico. Tal calmaria
era provocada por duas razes principais: 1) O fato das artes ou
produes materiais nativas ainda permanecerem vinculadas ao domnio
de competncia de uma outra disciplina, a esttica2, cujos critrios
de anlise eram ou deveriam ser opostos aos da antropologia3
(LAGROU, 2007); 2) O fato de que, naquela altura, grande parte da
produo antropolgica sobre arte, baseava-se em interpretaes, no
sentido estrito do termo, pois a arte era entendida como um sistema
simblico ou lingstico, que caberia ao antroplogo desvendar,
interpretando os
2 Para um debate sobre a validade transcultural do conceito de
esttica, ver Overing (1996).3 Alm disso, segundo Lagrou, uma
abordagem da chamada cultura material, considerada como
excessivamente classificatria, tcnica e formal, tinha desviado, por
muito tempo, a ateno da antropologia social para os sistemas de
pensamento e organizao social negligenciando o fato de sistemas de
pensamento poderem ser sintetizados e expressos, de maneira
exemplar, nos objetos (LAGROU, 2007, p. 37).
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signos, segundo o contexto especfico de cada sociedade (VIDAL e
SILVA, 1992).
Vidal e Silva (1992), em seu balano terico e metodolgico da
antropologia esttica, mostram como essa abordagem lingstica ou
simblica da arte parece se confundir com a prpria especificidade da
antropologia ao lidar com a arte de outros povos:
Os antroplogos possuem uma maneira especfica de abordar as
manifestaes artsticas e estticas. Desde os trabalhos de Boas,
Mauss, Levi-Strauss e, mais recentemente, Victor Tuner e Geertz,
sabemos que, se queremos entender o simbolismo da arte, precisamos
entender a sociedade. Segundo esses autores, nas sociedades
pr-industriais, a ambio da arte significar e no apenas representar.
Por isso a arte envolve todo um sistema de signos compartilhados
pelo grupo e que possibilita a comunicao (VIDAL e SILVA, 1992, p.
281).
Toda uma tradio antropolgica se funda ento na abordagem da arte
como um sistema simblico, uma linguagem visual, que deve ser
apreendida atravs do entendimento da sociedade. Os signos s seriam
compreensveis a partir do entendimento da prpria sociedade, por que
a representam ou significam-na. Institui-se uma idia que est
presente, de modo geral, nas abordagens provenientes deste modelo:
a relao primordial entre a arte e seu contexto especfico de produo:
a correlao direta ou indireta existente entre um grafismo ou uma
imagem, por exemplo, e a representao ou significao da ordem
scio-cultural de que faz parte4.
De todo modo e salvando as devidas propores da profundidade ou
no das abordagens da arte como sistema simblico ou lingstico, o que
parece ter provocado todo o marasmo terico mencionado acima foi a
paradoxal dificuldade enfrentada por esta antropologia em elaborar
uma teoria propriamente antropolgica para a abordagem da arte. A
calmaria se dava ento por uma srie de apropriaes de conceitos de
outras disciplinas, sobretudo, quelas relativas ao estudo da
linguagem
4 Esta idia aparece claramente tanto na abordagem sistmica e
cultural apresentada por Geertz (1983), onde ele afirma que de nada
vale falar sobre arte se ela no est relacionada ao saber local,
quanto na abordagem estruturalista de Levi-Strauss (1973) na qual a
arte Kadivu s pode ser entendida atravs de seu sentido e sua
funo.
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e do signo, como a lingstica e a semitica. Berta Ribeiro, na
introduo publicao da Suma Etnolgica Brasileira (1986), expe
claramente esta questo:
Preliminarmente torna-se necessrio elucidar os conceitos
utilizados nos estudos modernos de arte primitiva. Eles so
encontrados geralmente nos dicionrios de lingstica e, mais
freqentemente, nas obras especializadas dessa disciplina e da
semiologia. Tais so, entre outros: Fonema, morfema, significante,
significado, cone, ndice, smbolo, sinal, metfora, metonmia,
gramtica, semntica, linguagem simblica, comunicao visual (RIBEIRO,
1986, p. 16).
O que parece ter causado toda a calmaria a que me refiro parece
ter sido mais a forma como tais conceitos foram utilizados ou a que
perguntas eles se propunham a responder do que a utilizao destes
conceitos listados por Berta Ribeiro (1986) na construo de uma
teoria antropolgica da arte. Digo isso, porque as teorias que
vieram (desculpem-me o clich) como tempestade depois da calmaria
fazem claramente uso de conceitos da semitica, mas, no entanto,
buscam responder a outras perguntas diferentes daquelas propostas
pela antropologia simblica ou lingstica. Estou me referindo aqui
aos trabalhos de Alfred Gell (1998 e 2001), Carlos Severi (1993,
2002, 2004 e 2007) e Els Lagrou (1993, 2006, 2007) que, como ser
exposto, fazem outras perguntas e respondem a outras questes sobre
a arte e a antropologia.
Alfred Gell (1998 e 2001) diz explicitamente que est interessado
em responder questes como: para aonde determinado ndice ou objeto
de arte aponta? Que elementos esto envolvidos nesta capacidade do
objeto em mediar e produzir relaes sociais? Como a forma do objeto
age cognitivamente sobre as pessoas? E porque isso ocorre? J Carlos
Severi (1993, 2002, 2004 e 2007), ir se perguntar como e porque
certas imagens permanecem como memria de um povo e outras caem no
esquecimento? Porque algumas delas so contra-intuitivas e outras
no? Enfim, Lagrou (1993, 2006, 2007) se questionar a respeito da
relao entre desenho e superfcie: Quais os efeitos causados pelo
desenho quando aplicados superfcie imperfeita dos corpos? O que
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eles causam nos corpos? Quais formas fixam, como fixam e porque
fixam? E quais formas fluem, como fluem e porque fluem?
Neste sentido, se para a antropologia simblica a arte no s
representa, mas significa, para quelas abordagens que proponho
apresentar neste trabalho, a arte e suas imagens presentificam, ou
seja, no representam uma realidade, uma natureza ou determinado
aspecto da sociedade5. Assim, tanto para Gell, quanto para Severi e
tambm para Lagrou, o que interessar no estudo da arte a sua
capacidade deao cognitiva pela condensao de relaes,
intencionalidades e identidades complexas, contraditrias e
paradoxais.
Esta caracterstica peculiar destas novas abordagens da arte o
primeiro passo na direo dos conceitos de Quimera, Armadilha e
Caminho, expressos respectivamente por Severi, Gell e Lagrou. A
conseqncia fundamental presente na elaborao destes conceitos o
deslocamento de uma anlise voltada para o smbolo (e conseqentemente
para o significado), para aquela centrada no carter icnico das
imagens, no caso de Severi; para o estatuto das obras de arte
enquanto ndices, no caso de Gell; e, no caso de Lagrou, para a
possibilidade de juno de uma abordagem indexical e icnica.
Quimeras
O caminho trilhado por Severi at a noo de imagens
quimricasinicia-se nos seus estudos sobre os cantos xamnicos Cuna
(1993). Na passagem do seu estudo de gabinete ao trabalho de campo
uma questo sobre a eficcia teraputica dos cantos se coloca: os
pacientes aos quais so dirigidos no compreendem seu significado.
Surge assim um descontentamento evidente sobre as anlises baseadas
no aspecto narrativo do discurso simblico, que se abre como uma
possibilidade de discernir outras formas de memria social que no
aquelas que operam atravs da narrao. Essa necessidade, posta pela
prpria pesquisa de campo, ser elaborada teoricamente atravs da juno
de uma antropologia da memria com princpios do cognitivismo, que 5
Outras verses da noo de presena no estudo das artes, do xamanismo e
do ritual entre os amerndios podem ser encontradas em Viveiros de
Castro (2007) e Aristteles Barcelos (2005).
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proporcionam uma abordagem dos aspectos performativos, ou
pragmticos de contextos de comunicao ritual.
Dessas inquietaes surge certa preocupao no modo como algumas
imagens permanecem na memria de um povo e outras caem no
esquecimento, ou como certas idias se espalham rapidamente, como o
caso, por exemplo, dos contextos de movimentos messinicos. Essas
preocupaes estabelecem a possibilidade de re-elaborar o problema da
transmisso de representaes sociais em termos de uma antropologia
cognitiva fundada nas noes de complexidade, contradio e
paradoxo.
Na concluso de um de seus artigos Severi expe os passos seguidos
na direo das imagens quimricas.
Existem pelo menos dois modos de construir memrias sociais: um
opera atravs da narrao (e renovao contnua) de uma srie de histrias;
o outro, sempre vinculado elaborao da memria ritual, tende a criar
um nmero relativamente estvel de imagens cada vez mais complexas,
cada vez mais carregadas de significados e cada vez mais
persistentes ao longo do tempo. (...) Antes de mais nada, essas
imagens so sempre construdas em um contexto ritual (SEVERI, 2000,
p. 148).
As imagens do branco, certas estatuetas que servem como espritos
auxiliares do xam, so complexas porque apresentam significados
contraditrios e ambivalentes na cosmologia Cuna. Complexa tambm a
prpria identidade do xam, composta pelo que o autor denomina de
condensao de conotaes contraditrias acumuladas no contexto dos
rituais (SEVERI, 2002). Da surge a idia de que em contextos de
comunicao ritual o xam torna-se um enunciador complexo capaz de
emprestar sua voz a diferentes seres invisveis, espritos do bem e
do mal, seres vegetais e animais. essa complexidade que define o
uso ritual da linguagem e, por conseguinte a eficcia do rito de
cura, pois os contextos de comunicao ritual no so definidos somente
pelo uso de qualquer forma lingstica especifica, mas pela elaborao
reflexiva da imagem do enunciador e por seu efeito persuasivo
(SEVERI, 2002, p. 39).
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Em outro artigo, Severi (2004) elabora com mais clareza sua
abordagem cognitiva para a complexidade cultural atravs da anlise
do peculiar movimento messinico dos ndios Apaches. Neste texto,
eleretoma e complexifica o conceito de contra-intuitividade
proposto por Sperber e Boyer, segundo a sua abordagem da pragmtica
do ritual. Para estes autores a contra-intuitividade o que define o
sucesso e a permanncia de uma representao em uma determinada
cultura, devido a salincia psicolgica provocada por ela. Nas
palavras de Severi:
Boyer tem argumentado que o optimum cognitivo resulta da
combinao de suposies intuitivas e contra-intuitivas que geram um
tipo especfico de salincia cultural. Este tipo de salincia
supostamente responsvel pela persistncia no tempo e/ou pela rpida
propagao em uma comunidade, de uma dada representao (SEVERI, 2004,
p. 816).
Embora chame a ateno para a contribuio das idias de Boyer no
campo da antropologia cognitiva, Severi (2004) afirma que as
representaes mentais contra-intuitivas so muito frgeis e por
issopodem no causar salincia alguma. Neste ponto, o autor retoma a
anlise de categorias complexas e contraditrias como alma, sombra e
duplo, cujo contedo semntico indefinido e nunca totalmente
compreendido. O entendimento meramente semntico destas noes no
suficiente para explicar a posio que elas ocupam nas tradies
xamnicas dos ndios americanos. Para entend-las, preciso atentar
para as condies pragmticas que definem seu uso no contexto ritual.
A contra-intuitividade destas noes esto localizadas em seu uso no
contexto ritual e no no seu contedo semntico:
a persistncia no tempo e o sucesso, de noes deste tipo, no so
explicadas por seu contedo contra-intuitivo, mas por sua insero em
contextos de comunicao ritual precisamente definidos e contra
intuitivos. Em muitas situaes importantes, uma representao
culturalmente bem sucedida uma representao contra-intuitiva
formulada dentro de condies contra-intuitivas de comunicao (SEVERI,
2004, p. 817).
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E aqui chegamos enfim as imagens quimricas. Toda essa preocupao
de Severi com a complexidade e com o paradoxo ir desembocar no
estudo de certas imagens que capturam a imaginao, e tal como os
xams amerndios, concentram em si uma srie de conotaes
contraditrias. A noo de imagens quimricas , na verdade, a traduo da
idia da condensao ritual para o entendimento de certas imagens
complexas.
A abordagem de Severi (2007) para as imagens, ir se desenvolver
seguindo a tradio Walburgueriana
de considerar uma pintura ou um objeto esculpido como um mero
elemento em uma srie de representaes que devem envolver
necessariamente aes rituais, textos, tradies orais ou at simples
imagens mentais (SEVERI, 2007, p. 88).
Da, Severi (2007) conjugar em suas anlises uma abordagem icnica
com a exegese nativa, tal como o faz no estudo dos pictogramas
amerndios, na interpretao do movimento messinico dos ndios Apaches,
ou quando se refere s artes da memria.
Embora essa preocupao com a imagem e as palavras seja importante
para Severi, desejo reter a idia de uma abordagem da imagem que une
a iconicidade com a exegese nativa, com o intuito de demarcar a
especificidade de sua abordagem da arte. Veremos agora, atravs das
armadilhas propostas por Alfred Gell, uma outra leitura das obras
de arte, mais ligada ao ndice do que ao cone, mais preocupada com a
capacidade de ao dos objetos artsticos numa cadeia de relaes
sociais, mas, no entanto, fundada tambm em certos preceitos
cognitivos.
Armadilhas
O percurso percorrido por Gell at a noo de armadilha como um
modo de compreender as obras de arte constitui o incio de um
caminho mais longo no sentido de estabelecer uma teoria
verdadeiramente antropolgica da arte, fundada no entendimento do
objeto de arte (e de sua produo e circulao) enquanto funo de seu
contexto relacional,
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da matriz de relaes sociais na qual est inserido (GELL, 1998).
Oimportante para Gell compreender os objetos enquanto ndices numa
cadeia de relaes e interaes sociais onde ocupam o lugar de
agentesou pacientes dependendo de sua posio nessa cadeia. O
conceito de ndice, retirado da semitica peirceana, torna-se
importante porque permite a Gell fugir da anlise do significado de
uma obra de arte ou do que ela quer comunicar, e se preocupar em
compreender para onde determinado objeto aponta, qual a sua
capacidade de agir sobre o mundo e transform-lo. Neste ponto,
outros conceitos importantes so o de agncia e o de sua abduo. Um
ndice, segundo Gell gera necessariamente a abduo de agncia, uma
operao cognitiva particular que permite uma inferncia causal de
algum tipo a respeito de intenes e capacidades de objetos e pessoas
(GELL, 1998, p. 13).
No entanto, o tipo de ndice valorizado por Gell o que permite a
abduo de agncia social, na medida em que so portadores de
intencionalidades complexas. O papel do antroplogo nessa nova
antropologia da arte seria descobrir para onde essas
intencionalidades apontam; como agem sobre sua vizinhana; quais as
lgicas de aes, reaes e relaes sociais desencadeadas por, ou
localizadas em, um determinado objeto. Aqui podemos retomar a idia
da armadilha como obra de arte, ou da obra de arte como
armadilha.
Ela foi proposta por Gell no contexto de um debate a respeito da
exposio Art / Artifact (realizada em Nova York no ano de 1988), em
que a artista plstica, curadora e antroploga Susan Vogel, exps na
entrada da exposio uma rede de caa do povo Zande (frica),
provocando a reao do pblico que no sabia ao certo se se tratava de
uma instalao ou de um mero artefato. Gell aproveita-se da discusso
em torno desse fato e polemiza com o filsofo da arte Arthur Danto,
defensor da idia de que a rede Zande no uma obra de arte devido ao
seu carter utilitrio, ou seja, ela no uma obra de arte porque no
permite uma interpretao historicamente fundamentada que, para o
filsofo, diferenciaria a obra de arte do artefato. Gell (2001)
contra-argumenta no sentido de aproximar instrumentalidade e arte,
definindo a armadilha pela sua capacidade de condensar idias,
significados e conceitos tal como as obras de arte conceitual:
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Esses dispositivos incorporam idias, veiculam significados,
porque uma armadilha, por sua prpria natureza, uma representao
transformada de seu fabricante, o caador, da presa animal, sua
vtima e de sua relao mtua que, nos povos caadores, fundamentalmente
social e complexa. Isso significaque essas armadilhas comunicam a
noo de um nexo de intencionalidades entre os caadores e as presas
animais, mediante formas e mecanismos materiais. Creio que essa
evocao de intencionalidades complexas o que serve para definir as
obras de arte, e que, adequadamente emolduradas, as armadilhas para
animais poderiam evocar intuies complexas a respeito do ser, da
alteridade, do relacionamento (GELL, 2001, p. 184-5; grifo
meu).
Gell questiona com esse argumento toda uma viso moderna, ou
modernista, baseada em princpios estticos enraizados na concepo de
arte ocidental (e tambm na antropologia da arte), que, segundo ele,
j foram questionados pela prpria arte contempornea. Uma nova
antropologia da arte deveria ser construda contra os princpios
estticos enraizados na arte moderna ocidental, se aproximando assim
da arte contempornea que no se define mais pela lgica do belo, e
sim pela lgica do trocadilho ou da armadilha conceitual, pelo
complexo entrelaamento de intencionalidades sociais (LAGROU, 2006,
p. 05).
Para os objetivos deste trabalho preciso reter a idia da evocao
de intencionalidades complexas propiciada pelas armadilhas como o
ingrediente central de sua agncia; que est prximo o bastante para
no ser percebido da noo de condensao ritual (ou condensao de
conotaes contraditrias, por isso complexas) expressas por Severi e
depois reelaboradas para o estudo das imagens quimricas. Aqui,
nota-se uma primeira aproximao entre as duas abordagens e ela
parece ser proveniente de duas outras idias centrais para os
autores que so a presentificao (ou o carter no representativo das
imagens e obras de arte e sua ao cognitiva). Esses trs elementos
tornam-se os pressupostos fundamentais destas duas formas de
abordar a imagem, no caso de Severi, e os objetos no caso de
Gell.
Para ambos, a presena fundamental para que ocorra a salincia
cognitiva. Na abordagem de Severi, o contexto de comunicao ritual e
as imagens geradas nele no representam certo aspecto da sociedade:
o
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que importa em sua anlise a pragmtica, o conjunto de aes que
permite a uma imagem ser contra-intuitiva. Severi localiza na
pragmtica ritual a explicao de como ocorre cognitivamente esse
processo de presentificao. Ele acontece porque as imagens, textos,
cantos, enfim todo o conjunto de intencionalidades e ordens que
compe um ritual alm de estarem prenhes de conotaes paradoxais e
complexas, so formulados em contextos contra-intuitivos de
comunicao e por isso, tornam-se eficazes cognitivamente.
Para Gell, a presentificao concentra-se no prprio estatuto de
pessoa concedido a objetos e obras de arte. Se os objetos so tambm
pessoas, ento eles agem e no representam. Ou no caso da
armadilha,
uma armadilha feita especialmente para capturarenguias, por
exemplo, poderia muito melhor representar o ancestral, dono das
enguias, do que sua mscara, visto que no representa somente sua
imagem, apesar da forma da armadilha ter a forma de uma enguia, mas
presentifica, antes de mais nada, a ao do ancestral; sua eficcia
tanto instrumental quanto sobrenatural e a relao complexa entre
intencionalidades diversas postas em relao como aquelas da enguia,
do pescador e do ancestral (LAGROU, 2007, p. 44).
Embora fique evidente o efeito cognitivo que as armadilhas
proporcionam presa ou ao espectador, parece haver aqui um ponto
essencial que diferencia a abordagem de Gell e a de Severi. Lagrou
(2007) afirma que a anlise de Severi estaria voltada para a
compreenso do
poder das imagens de afetar as pessoas emocionalmente. A teoria
de Gell sobre agncia, por outro lado, no exclui absolutamente a
emoo como um dos efeitos possveis da agncia dos ndices de arte, mas
ele est mais interessado em entender cognitivamente o poder da
forma e dos objetos de agirem em relaes sociais do que em explorar
a imaginao humana (LAGROU, 2007, p. 58; grifo da autora).
Nota-se ento que, embora as duas abordagens contenham princpios
cognitivos, elas apontam para caminhos diferentes. A
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preocupao que move Severi na direo de uma antropologia cognitiva
a compreenso de formas distintas de memria social ou como colocado
acima, o porqu de certas imagens tornarem-se parte da memria de um
povo e outras no. Uma preocupao muito mais voltada para o
entendimento das artes da memria, atravs da articulao de imagens e
narrativas num contexto de comunicao ritual, do que para a
compreenso cognitiva do poder da forma dos objetos, ou mesmo para a
compreenso do poder das imagens em afetar emocionalmente as
pessoas.
Para Gell (1998), diferentemente, os princpios cognitivos
parecem se colocar como condio do funcionamento de seu sistema de
ao:
For the anthropologist, the problem of agency is not a matter of
prescribing the most rational or defensible notion of agency, in
that the anthropologists task is to describe forms of thougt which
could not stand up to much philosophical scrutiny but which are
none the less, socially and cognitively praticable (GELL, 1998,
p.17).
Essa preocupao com a descrio de formas de pensamento social e
cognitivamente praticveis parece ter sido, para Gell, um aspecto
importante de um ambicioso projeto de entendimento antropolgico da
mente humana.
Ele se unia na London School of Economics a Maurice Bloch na
ambio de transformar a antropologia numa cincia cognitiva com
capacidade de fazer afirmaes universais sobre o funcionamento da
mente humana, nas suas manifestaes externas. E no de se estranhar
que entre os autores que mais influenciaram o pensamento de Gell
destacam-se Lvi-Strauss e (...) Edmund Leach. Estes autores
gostavam, como Gell, de modelos e diagramas e, pelo menos
Lvi-Strauss pensava, como Gell, que existia uma isomorfia entre a
estrutura do mundo cognitivo, mental e sua objetificao no mundo. Ou
seja, era possvel estudar a mente humana atravs de suas manifestaes
sociais, culturais, materiais (LAGROU, 2006, p. 02).
Deve-se considerar que a nfase na forma e em sua capacidade de
ao cognitiva est ligada a importncia atribuda ao ndice na trilogia
peirceana do signo. Abandonando o cone e o smbolo, e
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concedendo total importncia ao ndice enquanto elemento de
agncia, Gell queria impor uma viso formal dos grafismos ou da arte,
que embora fosse entendida dentro de seu contexto de relao,
possuacerta independncia do seu significado, j que sua ao ocorreria
atravs da abduo de agncia. Este conceito, tambm retirado da
semitica torna-se importante por designar uma classe de inferncias
semiticas que so por definio, totalmente distintas das inferncias
semiticas que usamos no entendimento da linguagem (GELL, 1998, p.
14). A abduo de agncia livraria Gell do significado, da interpretao
e da representao. Mas sua lgica no invocaria tambm certos sentidos
inferidos pelo receptor?
Tratarei desta questo adiante. Neste ponto preciso reter a idia
de que a abordagem de Gell, centrada na capacidade agentiva da obra
de arte, em sua capacidade de capturar o receptor por meio de
processos cognitivos, trouxe grande tempestade para os mares calmos
da antropologia da arte provocando apropriaes e criticas de suas
idias no entendimento das artes dos amerndios6.
A prxima seo demarca um esforo no sentido de compreender uma
dessas apropriaes atravs do trabalho de Els Lagrou (2007), sobre a
arte Kaxinawa. Vejamos ento, entre quimeras e armadilhas, quais os
caminhos propostos pela autora.
Caminhos
As anlises de Lagrou (2007) sobre a arte Kaxinawa tm como um dos
temas centrais o poder das imagens (grficas, poticas,
materiais,corporais) em criar e destruir formas. Neste sentido,
assume grande importncia o desenho como possibilidade de fixao de
formas em superfcies imperfeitas, dentre as quais se destaca o
corpo humano, pois na luta pelo controle da forma que se baseia a
scio-cosmo-poltica Kaxinawa (LAGROU, 2007, p. 28). O trabalho de
Lagrou tem como pressuposto a idia j difundida de que para os
amerndios, o corpo uma matriz de smbolos e um objeto de pensamento
(SEEGER, Damatta e VIVEIROS DE CASTRO, 1979). 6 O trabalho de
Barcelos (2005) um bom exemplo das apropriaes das idias de
Gell.
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Dito isso, posso iniciar a argumentao expondo os pontos centrais
de uma das anlises pioneiras a respeito dos grafismos amerndios: o
estudo de Peter Gow (1989) sobre os desenhosabstratos Piro, que
serviu como ponto de partida de Lagrou, em sua insero no debate
sobre a arte. Neste trabalho, Gow faz a afirmao, bombstica para a
poca, de que os Piro esto interessados nos desenhos por eles mesmos
e no no que eles poderiam significar. Aimportncia do desenho
estaria relacionada transformao operada por sua aplicao em
determinada superfcie de coisas ou corpos (GOW, 1989, p. 25).
Interessado pela relao entre desenho e corpo humano, por um lado, e
desenho e imagem, por outro, Gow chama a ateno para a funo
mediadora do desenho entre os mundos dos corpos e das imagens, do
visvel e do invisvel.
A agncia do desenho seria dada pelo modo satisfatrio ou no que
suas formas so aplicadas aos corpos. Essa abordagem intra-esttica,
em que os desenhos so importantes por eles mesmos, ser questionada
por Lagrou. Segundo ela, no intuito de escapar a abordagem
semntica, Gow acaba por levar sua crtica longe demaisenfatizando a
independncia da forma com relao ao contedo extravisual dos desenhos
e concedendo importncia demasiada tcnica. Lagrou enfatiza que
preciso no abandonar totalmente a abordagem semntica, pois ela no
meramente contextual, nem pode ser reduzida ao modelo lingstico,
mas tambm no meramente intra-esttica (LAGROU, 1993, p. 08)7.
Fugindo destas e de outras armadilhas, Lagrou (2007) encontrou
na teoria da agncia de Gell a traduo de algumas das questes
centrais postas pelos dados etnogrficos reunidos junto aos
Kaxinawa. No entanto, j era possvel ver os caminhos da agncia, por
um lado, e de sua abordagem conciliadora de ndice e cone8, forma e
exegese, por outro, na sua resenha crtica do trabalho de Gow.
7 Para uma reconsiderao destas questes e uma nova leitura dos
desenhos Piro, ver Gow (1999).8 Essa importncia dada tanto ao ndice
quanto ao cone ser desenvolvida por Lagrou quando aborda a
especificidade da relao do dami, categoria que para os Kaxinawa est
relacionada figura, com seu yuxin, traduzido como imagem: a relao
de dami (em seus diferentes usos, desde o fazer de conta ao
tornar-se como) com seu yuxin (a forma perfeita e terminada a que
refere) simultaneamente indexical e icnica. A relao indexical
porque dami fisicamente (ou metonimicamente) ligado ao seu objeto
(como pegadas na areia), e icnica porque a relao de dami com seu
yuxin no somente baseada na contigidade e na metonmia, mas tambm
numa similaridade formal (LAGROU, 2007, p. 131-132).
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A crtica inicial realizada por Lagrou sobre a teoria
antropolgica da arte proposta por Gell, j foi esboada acima, tanto
nas consideraes feitas ao excesso de formalismo da anlise de Gow,
quanto na questo sobre os sentidos inferidos ou no pelo receptor no
processo de abduo de agncia. A questo aqui para Lagrou (2007) que
ela divide a obra de Gell em duas partes. Na primeira, quase que
totalmente absorvida pela autora em seu prprio trabalho, o objeto
de arte aparece como um ndice de agncia situado numa rede de relaes
causais onde se encontram
tipos muito diferentes de sujeitos, todos ligados, uns aos
outros, numa relao unidirecional de causa e efeito, isto , de
agentes cujas aes produzem pacientes que, por sua vez, podem se
tornar agentes, quando reagem ao que sofreram (LAGROU, 2007, p.
55).
Na segunda, e a se insere a crtica de Lagrou, Gell se preocupa
com o estilo, com as relaes formais entre as formas, pois parte do
princpio de que um ndice parte de um conjunto de objetos ou formas
relacionados e que, por isso, seria possvel traar as correlaes
formais entre as formas. Tais correlaes so realizadas do exterior e
no do interior:
as conexes entre padres de desenhos e sua lgica gerativa com a
lifeword (o mundo vivido) da sociedade que as produz no foram
encontradas atravs de uma conversa com as pessoas para as quais
significam, mas atravs de correspondncias formais entre as
estruturas sociais da sociedade e as estruturas formais guiando a
produo dos desenhos. Desta forma, Gell, um dos mais virulentos
crticos da tradicional antropologia da arte, faz concesses forma
estudada por conta prpria, isto , anlise formal, (...) mas no ao
contedo (LAGROU, 2007, p. 56).
A questo que parece girar em torno deste debate aquela relativa
s limitaes de uma anlise puramente formal, de um lado, e as
limitaes de uma anlise puramente semntica, do outro. A crtica de
Lagrou, tanto a Gell, quanto a Gow, refere-se ao fato destes
autores se preocuparem em demasia com a forma dos grafismos,
deixando de lado, ou dando menos importncia ao discurso nativo
sobre eles.
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Contudo, a prpria autora afirma que (e assim respondemos a
questo das inferncias do receptor no processo de abduo de agncia)
Gell s foi capaz de tornar seus ndices de arte em agentes, porque
admitiu algum tipo de sentido e contexto de interpretao que
possibilitaram seus artefatos ou imagens de agir (LAGROU, 2007, p.
56).
Assim temos, por um lado a viso de que Gell no cumpriu at as
ltimas conseqncias o seu programa de total abandono do significado
de seu modelo terico; e por outro, a idia de que isso era impossvel
porque o modelo de Gell pressupe, no carter abdutivo da agncia, um
sentido que propiciaria certas inferncias interpretativas do
receptor. Ao invs de excluir o smbolo e o cone de sua abordagem, o
que Gell fezfoi mostrar
que na relao pragmtica e interacionista do seu modelo, no
preciso distinguir ndice de cone. Pois todo cone j na verdade um
ndice: pois a imagem age sobre a pessoa, partilha nas qualidades
daquilo que imagem (LAGROU, 2006, p. 14-15).
Ou ento, que o smbolo, por sua vez tambm englobado pelo ndice:
tendo em vista que a abduo de agncia qual o ndice induz, supe
operaes cognitivas (LAGROU, 2006, p. 14-15).
Ao invs de excluir os outros dois elementos da trade do signo
proposta por Peirce, Gell parece hierarquiz-los transformando tanto
o smbolo (ou a interpretao), quanto o cone (ou a semelhana) em
pressupostos para a abduo de agncia causada pelo ndice. Neste
sentido, conclui Lagrou,
o fato de o autor recusar de maneira to forte a abordagem
simblica, lingstica ou semitica no significa que ele consiga e
queira operar fora destes esquemas de pensamento e sem seus
instrumentos; o que ele quer fazer colocar outras nfases (LAGROU,
2006, p. 14-15).
Neste ponto reencontramos o fio que ir tecer a prpria abordagem
de Lagrou sobre a eficcia dos grafismos Kaxinawa quando aplicados
superfcie imperfeita dos corpos. A autora prope um mtodo de anlise
para os grafismos em que forma e exegese so complementares:
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Quando uma leitura iconogrfica de unidades isoladas [dos
grafismos] parece confusa e contraditria, necessrio introduzir uma
leitura mais gestaltica ou estrutural dos padres como um todo, o
que proporciona, no caso Kaxinawa, uma melhor compreenso dos seus
usos e significados. Analogias entre esse cdigo visual e outros
cdigos verbais e no verbais, que juntos formam o pano de fundo para
a significao cognitiva e emocional do estilo artstico e,
conseqentemente do seu poder agentivo, so essenciais (LAGROU, 2007,
p. 150).
Mas quando aborda a especificidade do kene, desenho grfico
estilizado presente em todos os produtos e artefatos kaxinawa, que
a autora apresenta, atravs de algumas idias de Bateson, sua concepo
de como a arte comunica ou age cognitivamente ou de como o desenho
pode funcionar como um caminho de acesso simultneo e sinttico para
os diversos nveis da vida Kaxinawa. Em comparao com os outros dois
elementos (yuxin e dami) da trilogia da percepo Kaxinawa, kene se
destaca por ser essencialmente um padro ou padres grficos, enquanto
yuxin e dami esto relacionados imagem e a figura(LAGROU, 2007).
O caminho percorrido por Lagrou para chegar a uma concepo mais
geral sobre o que e como a arte comunica, inicia-se com a busca
pela explicao da nica informao explcita obtida com uma de suas
informantes sobre o significado prprio do desenho. Dona Mariana,
uma velha ndia, disse antroploga que o desenho era a linguagem dos
yuxin (LAGROU, 2007, p. 119). Esta relao entre grafismo, escrita e
linguagem, conduz a reflexo de Lagrou no sentido de compreender a
arte como uma forma de comunicao no verbal, marcada, como afirma
Bateson, por uma relao de alteridade, que se encaixa muito bem
prpria noo Kaxinawa do desenho como caminho para o estar
relacionado.
(...) O desenho alude a relaes, ligando mundos diferentes, e
aponta para a interdependncia de diferentes tipos de pessoas. Nesta
sua qualidade de veculo apontando para o estar relacionado reside
sua capacidade de agir sobre o mundo: sobre os corpos onde o
desenho adere como uma segunda pele e sobre as mentes dos que
viajam a mundos imaginrios em
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sonhos e vises, onde a visualizao do desenho funciona como mapa
(LAGROU, 2007, p. 66).
Como abordar ento um desenho prximo linguagem, mas com tamanha
capacidade de agncia, com essa capacidade de fazer relacionar
pessoas, dimenses e seres da cosmologia Kaxinawa, sem cair nas
armadilhas da abordagem lingstica e simblica? Lagrou escapa a essa
leitura recorrendo s idias seminais de Bateson (1977), sobre
estilo, graa e informao na arte primitiva. Bateson foge ao modelo
lingstico porque, para ele, a principal modalidade de comunicao no
a verbal, mas aquela propiciada pelo corpo, pela expresso e pelo
gesto. Nesta rede imbricada de relaes importam como elementos de
significao no apenas
o componente narrativo (o nome ou o referente) (...), mas tambm
(e de maneira mais importante) o estilo, o cdigo icnico que
transformou o referente em novo artefato, e o meio ou material
usado, a composio, o ritmo, e a habilidade demonstrada na
performance ou na realizao do produto (LAGROU, 2007, p. 123).
Ao analisar uma pintura balinesa, Bateson (1977) demonstra sua
capacidade de concentrar noes contrastantes e sintticas e
comunic-las ao receptor:
Em ltima anlise, este quadro pode ser lido como uma afirmao de
que seria um grande erro achar que preciso escolher entre
turbulncia e serenidade enquanto projeto humano. A concepo e execuo
do quadro fornecem a experincia que expe este erro. A unidade e a
integrao do quadro afirmam que nenhum destes dois plos
contrastantes pode ser escolhido ao custo da excluso do outro,
porque so mutuamente dependentes. Esta verdade profunda e geral
dita ao mesmo tempo com relao sexualidade, organizao e morte
(BATESON, 1977, p. 194).
essa idia central de sntese simultnea de um conjunto de
elementos comunicados que vai interessar Lagrou (2007) em sua
abordagem do desenho Kaxinawa como um caminho em constante
transformao. O desenho a escrita dos yuxins, porque atravs dele
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ocorre uma comunicao sinttica que se refere a todos os nveis
sociais e cosmolgicos simultaneamente.
A expresso esttica Kaxinawa no fala especificamente ou
exclusivamente sobre as relaes sociais (...) ou sobre a
complementaridade constitutiva das metades e do gnero. (...) A
esttica Kaxinawa tambm no uma referncia exclusiva interdependncia
dos lados visveis e invisveis do mundo ou unio sexual. (...) A
expresso esttica , entretanto, uma comunicao sinttica que se refere
a todos estes nveis simultaneamente (LAGROU, 2007, p. 127).
Seguindo este modelo poderamos dizer que, em termos gerais, a
arte, Kaxinawa ou Balinesa, comunica porque, indo alm da mera
representao de um conhecimento sobre o mundo, consegue expressar,
atravs de um cdigo visual, a simultaneidade e as interconexes de
diferentes nveis existenciais ou sociais, capacidade esta impossvel
de ser realizada pelo cdigo verbal, pela simples razo de ser
impossvel verbalizar tudo de uma s vez (LAGROU, 2007, p. 126).
Notamos, assim, que tambm para Lagrou, atravs de Bateson, a arte
comunica porque expressa de modo sinttico uma simultaneidade de
elementos impossveis de serem expressos por palavras. Encontramos
aqui uma vez mais a capacidade da arte de concentrar plos
contrastantes, de interligar nveis simultneos, e porque no, como
afirmariam Severi e Gell, de condensar conotaes contraditrias e de
entrelaar intencionalidades complexas.
Unindo em sua anlise uma abordagem icnica e indexical do
grafismo e compreendendo a agncia do desenho segundo uma concepo da
comunicao esttica como sinttica e simultnea, Lagrou parece fornecer
uma outra leitura, diferente das de Severi e Gell e singular por
utilizar elementos presentes nas abordagens dos dois autores. No
entanto, como marca comum s trs abordagens fica clara a preocupao
de compreender a obra de arte (os desenhos, objetos e imagens) como
um referente complexo, que sintetiza, entrelaa e condensa elementos
paradoxais e contraditrios e, por isso, age cognitivamente. Nas trs
abordagens a eficcia da arte eminentemente
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cognitiva. A arte ou as imagens, nem apenas representam nem
somente significam, mas pelo contrrio presentificam.
Concluso
As abordagens antropolgicas da arte discutidas neste trabalho tm
em comum o fato de estarem fundadas, todas elas, em pressupostos
cognitivos. Fugindo das abordagens simblicas e
representacionalistas os autores aqui apresentados centram suas
anlises na idia de que a arte ou certas imagens so eficazes por
fazer presente um conjunto de relaes sociais, por condens-las e
sintetiz-las, tornando assim salientes cognitivamente. Neste
sentido, estas anlises parecem se iniciar no justo ponto onde se
esgota a antropologia simblica. Um dos cnones desta antropologia
afirmava em fins dos anos 1960:
Quando passamos a considerar os elementos normativos da vida
social e o indivduo, nossa anlise tem, necessariamente, de ficar
incompleta. Pois essa relao faz parte tambm dos significados dos
smbolos rituais. Com ela, no entanto, chegamos aos confins de nossa
atual competncia antropolgica, pois, a, estamos lidando com as
estruturas e as propriedades das psiques, um campo especfico
tradicionalmente estudado por disciplinas distintas da nossa. Em
uma das extremidades do espectro de significados do smbolo, vamos
encontrar o psiclogo individual e o psiclogo social, e at mesmo,
para alm deles (se me permitem o chiste amistoso dirigido a um
amigo invejado), brandindo a cabea de sua Medusa, o psicanalista,
pronto para transformar em pedra o temerrio intruso das cavernas de
sua terminologia. Trmulos e agradecidos regressamos luz do dia
social. Aqui os elementos significativos do sentido de um smbolo so
relacionados com o que ele faz e com o que se faz com ele, por
intermdio de quem e para qu (TURNER, 2005, p. 80).
As antropologias da arte apresentadas aqui parecem se dispor a
ir alm dos confins da competncia da antropologia simblica, no
evidentemente atravs da busca por esse significado oculto
acessvel
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apenas pelos psiclogos, individuais e sociais, e pelos
psicanalistas, mas atravs de um outro caminho. Aquele que aponta
para os aspectos cognitivos presentes nas relaes complexas impostas
pela arte. Regressam, neste sentido, a luz do dia social no para se
restringirem ao que determinado objeto ou imagem representam ou
significam, mas para compreenderem como eles agem nestes confins at
h pouco tempo atrs no acessveis para os antroplogos.
Assim, a preocupao com os elementos que produzem salincia
cognitiva, com os contextos e imagens contra-intuitivas, com as
armadilhas, as quimeras e os caminhos, conduz a antropologia,
atravs da anlise da arte, a um outro lado em que eficcia e presena,
so mais importantes do que significao e representao. E isto ocorre
seja pelo caminho da anlise indexical, seja pela conjugao de uma
anlise icnica com a exegese nativa, seja pela juno destas duas
abordagens especficas.
Os caminhos que se abrem aps a tempestade que remexeu os mares
da antropologia da arte, parecem apontar agora para outra calmaria.
Nesta passagem do mar revolto para a mar baixa fica uma questo mais
que atual: possvel uma abordagem contempornea e antropolgica da
arte que no esteja baseada em princpios cognitivos universais?
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