Organizadores Alex Alves Fogal Alex Sander Luiz Campos Gustavo Henrique Montes Frade Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre Paulo Roberto Barreto Caetano Profa. Dra. Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa Wagner Fredmar Guimarães Júnior ANAIS DO III SPLIT SEMINÁRIO DE PESQUISA DISCENTE DO PÓS-LIT/UFMG 1ª edição ISBN: 978-85-7758-257-0 Belo Horizonte FALE/UFMG 2013
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Transcript
Organizadores Alex Alves Fogal
Alex Sander Luiz Campos Gustavo Henrique Montes Frade
Prof. Dr. Marcos Antônio Alexandre Paulo Roberto Barreto Caetano
- Filologia clássica e perspectivas para os Estudos Homéricos, de Gustavo
Henrique Montes Frade.............................................................................. 04
- LÓGOS e POÍĒSIS, LÉXIS e HERMĒNEÍA, no Tratado sobre o estilo, de
Demétrio, de Gustavo Araújo ..................................................................... 11
Método Sociológico:
- História e Literatura: olhar sociológico sobre Chica que manda, de Agripa
Vasconcelos, de Tarcísio Raimundo Benfica Neto ........................................ 24
- A forma objetiva de Canaã, de Bárbara Del Rio Araújo .............................. 32
- Luís da Silva sob uma perspectiva sociológica, de Felipe Oliveira de Paula .. 45
Método Pós-estruturalista:
- A poética da recusa, de Lucimara de Andrade .......................................... 52
- Revisitando a nação onettiana: contribuições pós-estruturalistas para a crítica
cultural, de Viviane Monteiro Maroca .......................................................... 64
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Apresentação
A terceira edição do Seminário Discente do Pós-Lit/UFMG ocorreu entre
os dias 29 e 31 de outubro de 2013 e apresentou como tema “A literatura e os
métodos de pesquisa”. Para contemplá-lo, foram selecionados quatro dos
principais métodos absorvidos pelos estudos literários, a saber: o método
filológico, o estruturalista, o sociológico e o pós-estruturalista.
A discussão sobre o método em qualquer área do conhecimento é
enriquecedora, portanto, não necessita de muitas justificativas ou defesas.
Entretanto, o atual cenário dos estudos de literatura demonstra que tal debate
não tem se mostrado muito vigoroso, o que muitas vezes ocorre devido à
tendência de acharmos que pensar sobre as questões de método consiste,
inevitavelmente, em aprisionar ou limitar demasiadamente a reflexão.
O III SPLIT se configurou como um espaço para pensarmos e
repensarmos nosso posicionamento, enquanto estudiosos, diante de nosso
objeto, o texto literário. Dessa maneira, foram acolhidas comunicações que
passam por uma metarreflexão sobre os métodos, bem como as que se
propõem a fazer uso direto deles no exercício de interpretação – ou seja, que
apenas aplicam um dos métodos em voga num determinado objeto de estudo.
Nestes Anais, encontram-se os textos apresentados nas comunicações,
por estudantes de pós-graduação de diversas universidades brasileiras.
Oportunamente, serão publicados também os textos dos professores
conferencistas.
A todos que possibilitaram a realização de mais uma edição do SPLIT,
nossos agradecimentos.
Os organizadores
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FILOLOGIA CLÁSSICA E PERSPECTIVAS PARA OS ESTUDOS
HOMÉRICOS
Gustavo Henrique Montes Frade (UFMG)1
RESUMO: O trabalho filológico sobre o texto de Homero começou na própria antiguidade. As edições dos poemas pelos bibliotecários de Alexandria (Zenódoto, Aristarco e Aristófanes de Bizâncio) prenunciavam o trabalho dos filólogos analistas que, do século XVIII até início do XX, buscavam o que seria o texto de Homero mais próximo possível do original em meio a alterações e adições do texto ao longo de sua transmissão. Os estudos homéricos até o início do XX se dividia entre os analistas e os unitaristas. Os analistas pensavam o material que nos chegou como uma espécie de compilação de textos menores diversos acrescentados posteriormente a um núcleo narrativo autêntico. Com metodologia filológica minuciosa, buscavam irregularidades que deveria ser extirpadas. Os unitaristas concebiam a Ilíada e a Odisseia como composições que formam uma unidade poética e narrativa, pensados como um todo e compostas por um único autor. No século XX, os trabalhos dos oralistas Milman Parry e Albert Lord revelaram a épica grega arcaica como poesia oral tradicional, com composição em performance. No final do século XX e início do XXI, os estudos homéricos se voltam para a transmissão e, sobretudo, para a construção narrativa do texto como poesia oral tradicional. PALAVRAS-CHAVE: filologia clássica, Homero, poesia épica oral tradicional.
FILOLOGIA ALEXANDRINA
Nos séculos 2 e 3 a.C, na Alexandria helenística, uma importante
sequência de intelectuais alexandrinos em cargo da biblioteca, especialmente
Aristarco, mas também seu antecessor Zenódoto e seu sucessor Aristófanes de
Bizâncio, se debruçaram sobre o texto de Homero. Os seus trabalhos principais
eram: (1) produzir hypomnémata, ou seja, analisar e comentar passagens que
proporcionassem problemas de interpretação e explicar palavras, além de
1 Doutorando em Estudos Literários pela Faculdade de Letras – UFMG.
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expressões já obscuras (lembrando que entre o receptor do período helenístico
e o vocabulário homérico já existia uma distância de alguns séculos); (2)
realizar a diórthosis, ou seja, estabelecer o texto original dos poemas
homéricos, sem modernizações e sem versos acrescentados ao longo de
transmissão do texto, para produzirem edições (ékdosis) de melhor qualidade.
Entre os principais materiais de trabalho dos bibliotecários de Alexandria
estavam a koiné, texto ou edição comum, possivelmente ateniense, e as
politikaí, textos ou edições produzidas por cada cidade, como Quios, Argos,
Chipre, Sínope e Massalia. Esses comentários nos chegaram através dos
escólios (e coleções de escólios), as anotações nas margens ou entrelinhas dos
manuscritos (NAGY, 1996). Assim, ainda na Antiguidade, filólogos especialistas
faziam uma recensão dos manuscritos disponíveis para estabelecimento do
texto e produziam comentários interpretativos.
FILOLOGIA ALEMÃ
As edições dos poemas pelos bibliotecários de Alexandria prenunciavam
o trabalho dos filólogos analistas do século 18 ao início do século 20. A partir do
trabalho de Wolf, Prolegomena ad Homerum (1795), que se tornou uma
referência para a questão homérica, os analistas pensavam o material que nos
chegou como uma espécie de compilação. Poetas e editores posteriores a
Homero teriam acrescentado textos menores a um núcleo narrativo autêntico,
que seria o texto original. Esses diversos textos tomariam o próprio núcleo
original como modelo de construção, conforme revelariam as cenas que
aparecem no poema mais de uma vez com texto idêntico ou levemente
modificado, e também cenas que apresentam inconsistências de pensamento
ou qualidade poética em comparação ao conjunto.
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Seguindo esse modo de conceber os poemas, obter um texto mais
próximo do que seria o original era eliminar esses elementos intrusos. Para isso,
pesquisadores como Willamowitz (1884) utilizavam o método filológico
minuciosamente com o objetivo de avaliar as lições possíveis transmitidas pela
tradição de manuscritos medievais e pelos comentários antigos em busca de
um entendimento da língua e do pensamento homéricos que permitisse
identificar as irregularidades que deveriam ser extirpadas.
Havia outra corrente importante de leitura e interpretação da construção
do texto homérico, que se opunha aos analistas: os unitaristas. Os unitaristas, a
partir dos trabalhos de Nitzsch (1826-1940; 1852), concebiam a Ilíada e a
Odisseia como obras que têm uma unidade poética e narrativa, pensadas como
um todo com suas partes intimamente conectadas e compostas por um único
autor. Ou seja, o que os analistas interpretavam como acréscimos ao texto, que
deveriam ser extirpados, os unitaristas tentavam explicar como parte da
dinâmica narrativa dos poemas. A busca dos analistas exigia todo um rigor do
trabalho filológico que por vezes faltava aos unitaristas, ou a parte considerável
deles, que se apoiavam mais na crítica literária para defender a unidade dos
poemas. Entretanto, essas duas principais correntes de estudos homéricos até
o início do século 20 ainda compartilhavam uma concepção romântica de autor,
que seria modificada pelos trabalhos dos oralistas.
A TEORIA ORAL
No século 20, os trabalhos de Milman Parry (publicados inicialmente na
década de trinta, mas reunidos em livro apenas em 1971) e Albert Lord (1960)
redefiniram a trajetória dos estudos homéricos. Parry estudou o padrão de
construção dos versos homéricos e os comparou à poesia épica oral tradicional
servo-croata, ainda um sistema vivo na Iugoslávia antes da Segunda Guerra
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Mundial. A fórmula, definida por Parry como “um grupo de palavras usado
regularmente sob as mesmas condições métricas para expressar uma dada
ideia essencial”, é a unidade básica para construção do verso oral tradicional. A
unidade narrativa básica é o tema, ou cena típica, conforme a denominação de
Arendt (1933), definida por Lord como “um elemento recorrente de narração ou
descrição na poesia oral tradicional, não restrito a considerações métricas e não
limitado à repetição palavra por palavra”. Seus estudos revelaram que o modo
de composição da épica grega arcaica é a composição em performance.
A partir dessa perspectiva oral, surgem trabalhos como o de Nagy
(1996), sobre a transmissão dos poemas, inclusive antes da tradição manuscrita
medieval. Nagy parte dos estudos de Pickens (1978) sobre a canção medieval
e, principalmente, do conceito de mouvance, a recomposição em performance
que garante a continuidade do poema na tradição através da variação, e
propõe o mesmo modelo na transmissão e estabelecimento dos poemas
homéricos. Portanto, as edições dos poemas homéricos necessitariam do
mesmo formato multitexto, que abarca e indica as variações possíveis próprias
do estilo oral, apresentado em edições de poesia medieval. Essa edição
multitextual não incluiria os erros de cópia e acidentes de transmissão do texto,
mas apenas as variantes autênticas da tradição oral. Esse material estaria
disponível para os bibliotecários alexandrinos, nas diferentes edições de que
dispunham e que circulavam no período helenístico com variantes diversas de
textos aos quais não temos mais acesso, exceto pelas indicações nos escólios.
As correções dos bibliotecários de Alexandria não são, então, conjecturas, mas
escolhas de edição que revelam variações autênticas da performance oral
multiforme2. As variantes autênticas, ou seja, em conformidade com a dicção
2 Para Nagy (1996), o texto comum, koiné, seria a edição ateniense de Demétrio de Fálero a
partir de uma suposta recensão de Aristóteles. Os escólios não fariam menção direta a essas edições porque elas teriam sido incorporadas à de Zenódoto, predecessor de Aristarco. A
divisão alexandrina em 24 cantos seria baseada na prática das performances.
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épica tradicional seriam o material base para uma essa edição multitextual que
está sendo editada atualmente por Casey Dué e Mary Ebbott (do Center for
Hellenic Studies) com participação de diversos especialistas, sobretudo, dos
Estados Unidos3.
Quanto a estudos e comentários aos poemas, as descobertas dos
oralistas direcionaram os esforços principalmente para dois campos. Um deles é
o que foi chamado de neoanálise. Não se trata de retomar a antiga perspectiva
dos analistas de uma compilação de textos, mas de identificar nos poemas
homéricos, em seus episódios, construções narrativas e personagens,
elementos que remontam a histórias e poemas mais antigos, de, por exemplo,
contos tradicionais, de poesia do oriente próximo e de outros poemas do ciclo
épico arcaico4.
Outro campo é o de estudos narratológicos, sobre a construção narrativa
dos poemas como uma unidade, como, no caso da Odisseia, os trabalhos de
Fenik (1976), Delebecque (1980), Clay (1997), Louden (1999), De Jong (2001),
Marks (2008) e Olson (1995). Eles observam padrões e o funcionamento dos
episódios, construções narrativas e personagens dentro do próprio poema.
PERSPECTIVAS
Pensar a narrativa e sua construção como uma unidade é um modo de
leitura produtivo para uma tese sobre a Odisseia direcionada ao estudo de um
elemento específico. A proposta seria, considerando a narrativa articulada como
um conjunto, o entendimento do funcionamento do elemento bem determinado
na obra, a partir do estudo e comparação dos trechos e episódios em que esse
elemento aparece na narrativa, proporciona, como consequência, uma
compreensão melhor da própria obra.
3 http://www.homermultitext.org/, acesso em 3 de dezembro de 2013 4 Neoanalistas importantes, como exemplo, seriam Kullman, Kakridis, Schadewaldt, West.
ALLEN, Thomas W. “History of the Text”. In: HOMERI Ilias. (3 vols.) edidit T. W. Allen. Oxford: Clarendon Press, 1931. AREND, Walter. Die typische Scenen bei Homer. Berlin: Weidmann, 1933. CLAY, Jenny Strauss. The Wrath of Athena. New York: Rowman & Littlefield Publishers, 1997. DE JONG, Irene J.F. A Narratological Commentary on the Odyssey. Cambridge: Cambridge University Press, 2001. DELEBECQUE, Edouard. Construction de l’ “Odyssée”. Paris: Les Belles Lettres, 1980. FENIK, Bernard. Studies in the Odyssey. (Hermes Einzelschriften 30) Wiesbaden: F. Steiner, 1974. LORD, Albert. The Singer of Tales. Cambridge: Harvard University Press, 1960. MARKS, Jim. Zeus in the Odyssey. Washington: Center for Hellenic Studies, 2008. NAGY, Gregory. Poetry as performance: Homer and beyond. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. NITZSCH, Gregor Wilhelm. Quaestiones Homericae. Hannover: Libraria Hahniana, 1824. OLSON, S. Douglas. Blood & Iron: Stories & Storytelling in Homer’s Odyssey. Leiden: Brill, 1995. PAGE, Denys L. The Homeric Odyssey. Oxford: Oxford University Press, 1955. PARRY, Milman. The Making of Homeric Verse: The Collected Papers of Milman Parry. Edited by Adam Parry. Oxford: Oxford University Press, 1971. PFFEIFER, Rudolph. History of Classical Scholarship: From the Beginnings to the End of the Hellenistic Age. Oxford, Clarendon Press, 1968.
12
PICKENS, Rupert T. The songs of Jofré Rudel. Toronto: Pontifical Institute of. Medieval Studies, 1978. WILLAMOWITZ-MOELLENDORF, Ulrich von. Homerische Untersuchungen. Berlin: Weidmann, 1884. WOLF, Friedrich August. Prolegomena to Homer, 1795. translated with introduction and notes by Anthony Grafton, Glenn W. Most, and James E.G. Zetzel. Princeton: Princeton University Press, 1985 ZUMTHOR, Paul. Essai de poétique médiévale. Paris: Editions du Seuil, 1972.
LÓGOS E POÍĒSIS, LÉXIS E HERMĒNEÍA, NO TRATADO SOBRE O
ESTILO DE DEMÉTRIO
Gustavo Araújo de Freitas (UFMG)1
RESUMO: A observação pouco atenta de termos como poíēsis e lógos, léxis e
hermēneía, no tratado Sobre o estilo de Demétrio, leva muitas vezes a
interpretações equivocadas que comprometem o entendimento de aspectos
fundamentais da obra. Um bom exemplo disso é o fato de que os dois primeiros
termos mencionados acima são aplicados, no início do tratado, segundo uma
distinção de poíēsis para textos em verso e lógos para aqueles em prosa que,
ao longo do texto, revela-se problemática. E quanto aos outros dois termos,
ambos apresentam uma concepção comum de estilo, em oposição ao assunto,
mas também dispõem de usos específicos, os quais envolvem desde uma
concepção mais abrangente de estilo, que engloba o próprio assunto, até uma
cisão dos próprios elementos estilísticos, isto é, da escolha de palavras e da
sýnthesis. Logo, é nosso intuito levantar essas questões terminológicas que
fundamentam a obra, propondo também, com isso, uma chave para sua melhor
compreensão.
PALAVRAS-CHAVE: Lógos, poíēsis, léxis, hermēneía, Sobre o estilo.
O tratado Sobre o estilo é reconhecido, dentre outras coisas, por seu
caráter didático, dispondo de conselhos práticos de como compor um discurso e
apresentando, para tanto, uma classificação de tipos de estilo. Além disso,
reconhece-se nele a presença de um grande número de reflexões críticas sobre
passagens da literatura grega, e não apenas da prosa e/ou da oratória, mas da
própria poesia. 2
No entanto, a terminologia aplicada tanto para a prosa quanto para a
poesia, ao longo do tratado, não é isenta de problemas, e mais ainda, os
1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG, área de concentração: Literaturas clássicas e medievais. Bolsista CAPES/Reuni. 2 Para um panorama acerca do número de menções a esses autores e citações, cf. Chiron, Un rhéteur méconnu: Démétrios (Ps.- Démétrios de Phalère), p. 383-389.
1
termos que servem para defini-los se inserem em um desenvolvimento teórico
mais amplo cujo elemento central, o ‘estilo’, também carece de uma
terminologia mais precisa. Por conseguinte, para que possamos melhor
apreender a teoria de Demétrio, é imprescindível que passemos em revista
essas questões terminológicas basilares de sua obra.
E, como ponto de partida, tomemos as linhas iniciais do Perì
hermeneías, em que temos uma primeira distinção entre poesia e prosa,
indicada pelos termos poíēsis e logos,3 e este segundo encontrando ainda um
equivalente na expressão hermēneía logikḗ. O que se nota, pois, em um
primeiro momento, é que as palavras que abrem o tratado antecipam uma
aplicação de poíēsis para textos em verso e de lógos para aqueles em prosa – o
mesmo servindo para os derivados dessas raízes –, que será novamente
marcada nos parágrafos 4 e 12, e ainda verificada em outras passagens ao
longo da obra. 4
No entanto, se verificarmos todas as ocorrências desses termos no PH,
veremos que essa aplicação, ao longo do tratado, não é tão simples assim. Com
relação àqueles referentes à poesia5, ao certo, poíēsis designa de um modo ou
de outro, em todas as suas ocorrências, textos em verso. Por vezes, ele possui
um sentido bem amplo, o qual abarca até mesmo uma noção concreta do
3 Acerca da distinção dos referidos termos, cf. ainda: Aristóteles, Retórica, III, 2, 7. 4 De fato, Demétrio abre uma possibilidade para a construção de versos (seja versos inteiros, seja metades de versos) na prosa (§ 180-183 ). Porém, nesse caso, trata-se de uma situação
excepcional, em que se admite o verso na composição, mas sem que ele estivesse sequer
indicado, enquanto tal, no encadeamento do discurso. Em outras palavras, o autor parece considerá-lo tão estranho à prosa (aqui novamente definida pelo termo lógos), que, mesmo
estando nela presente, ele deve, de preferência, não ser reconhecido enquanto um verso propriamente, pelo menos em um primeiro momento. Ademais, a contiguidade de versos, que é
uma característica marcante da poesia, parece estar, aqui, completamente fora de questão. 5 Para uma melhor apreciação quanto aos conceitos de poíēsis, poíēma, poiētikḗ e poíētikós, sobretudo, no que concerne ao surgimento dos mesmos, cf. Brandão, Antiga Musa (arqueologia da ficção), p. 23-30; Vicaire, Recherches sur les mots désignant la poésie et le poète dans l’ œuvre de Platon, p. 1-9.
2
texto, isto é, aquilo que conceberíamos mais propriamente como um “poema”6,
e que seria mais especificamente expresso, em outras passagens, por poíēma.7
Além disso, ele aparece também com o sentido de ‘obra poética’, referindo-se à
de Homero8 e à de Safo9.
Contudo, várias ocorrências do adjetivo poiētikós, o qual se encontra
também substantivado pela forma neutra, no singular ou no plural10, apontam
para a existência de outros elementos característicos da poesia que não
exatamente o verso. No parágrafo 70, por exemplo, a forma tá poiētiká refere-
se especificamente a palavras poéticas. No parágrafo 167, o adjetivo qualifica
também essas palavras, que se opõem àquelas consideradas “prosaicas” (pezá
onómata). Já no parágrafo 146, o autor aponta não para palavras, mas para
expressões que considera ser “mais poéticas” (poiētikṓtera).
E, além de palavras e expressões, há ainda determinadas figuras que
Demétrio considera como próprias da poesia: a parabolḗ (comparação
desenvolvida)11, a metaphorá (metáfora), a hyperbolḗ (hipérbole) e a émphasis
(impressão)12. Ademais, no parágrafo 112, temos a indicação do uso da
linguagem poética na prosa e a distinção entre elas se reflete na expressão tò
poiētikón en lógois.
Também o termo que designa o poeta, poiētḗs, em muitas ocorrências,
faz referência a uma faculdade que vai além da composição de versos. É fato
6 Cf. §1, 12. 7 Das quatro ocorrências de poíēma (§51, 118, 167, 188), pelo menos as três últimas apresentam um sentido mais próximo daquilo que concebemos propriamente como um
“poema”. 8 § 12, 107. 9 § 132, 166. 10 No parágrafo 249, a forma neutra no singular constitui uma exceção; ela retoma o sentido primeiro do verbo poiéō, de que deriva, e se refere a um “fator”, no caso, de veemência. Além
dessa ocorrência, é oportuno lembrar a forma feminina substantivada desse adjetivo, hē poiētikḗ, usada, conforme dissemos anteriormente, como sinônimo de poíēsis, no parágrafo 4
(cf. ainda § 170). 11 Cf. § 89 12 Quanto às três últimas, cf. § 286.
3
que, às vezes, ele se refere a autores de obras reconhecidamente em verso, no
caso, Epicarmo13 e Homero14; no entanto, em alguns momentos, nota-se que o
termo não estabelece nenhum vínculo com esse tipo de composição. No
parágrafo 76, por exemplo, Demétrio faz menção ao mito (mûthos), que seria
para os poetas o mesmo que a escolha do tema (hypóthesis) para a arte da
pintura. Também no parágrafo 128, o termo não implica em qualquer menção
aos versos; nesse caso, aos poiētaí são atribuídas as graças (khárites) mais
elevadas e mais nobres.
Mas, sem dúvida, em nenhuma dessas passagens, fica tão evidente que
não apenas os versos caracterizariam a atividade poética, quanto naquela do
parágrafo 215, em que poiētḗs se refere, curiosamente, a um autor de textos
em prosa: Ctésias. Ora, o que teria levado Demétrio a considerá-lo um poiētḗs
só poderia ser a presença de outros elementos próprios da poesia em seu
texto.
Assim, embora o verso seja apresentado como um elemento
essencialmente ligado à poíēsis, a ocorrência dos demais termos referentes à
poesia, como poiētikós e poiētikḗ, denuncia a existência de outros elementos
também a ela vinculados. Em outras palavras, é um equívoco tomar apenas as
linhas iniciais do tratado e afirmar que os versos seriam, na concepção de
Demétrio, a única característica que distingue a poesia da prosa.
Também com relação à terminologia utilizada para definir esta última,
especificamente, apresenta alguns problemas. De fato, o termo logos teria sido
empregado, como vimos, para distinguir a prosa dos textos em verso, e, pelo
menos em outras três ocorrências15, além das que levantamos16, percebemos
outras aplicações do termo, cf. § 37, 75, 92, 93, 100, 195. 20 Uso semelhante do termo em Aristóteles, Poética, 1450a. Acerca da passagem, destaco as
palavras de Brandão: “Parece que agora Aristóteles está estabelecendo uma distinção entre a linguagem metrificada, própria da poesia, e o lógos (o discurso) em geral, que poderia incluir
tanto a prosa quanto a poesia (é preferível interpretar assim a oposição do que simplesmente
como poesia/ prosa, até porque ele falou antes de léxis dos lógoi, isto é, lexis dos discursos)” (Brandão, Lógos e léxis na Retórica de Aristóteles., p. 12).
5
Ao contrário, o termo lógos (e derivados), com bastante frequência, faz
menção à oratória, e mesmo quando aqueles outros termos aplicam-se a essa,
poderiam, de algum modo, passar por sinônimos dos referentes à prosa.21 Em
outras palavras, ainda que se identifique a presença de uma terminologia
específica da oratória, não se pode afirmar que estejam estabelecidos,
propriamente, os limites do discurso retórico. Isto é, o lógos, a par da distinção
que ocorre com relação à poesia, como dissemos, engloba, indistintamente, os
mais diferentes tipos de discurso.
E temos assim, em linhas gerais, as principais questões terminológicas
acerca da poesia e da prosa no tratado; mas, conforme dissemos no início
dessa exposição, essas questões se enquadram dentro de um contexto mais
amplo da teoria dos tipos de estilo, em que se faz mister um melhor
entendimento também acerca da definição deste último.
Logo, tomemos os chamados kharaktḗres hermēneías (tipos de estilo),
descritos nos parágrafos 35 a 37, e cuja relevância é evidenciada no próprio
título pelo qual a obra tornou-se conhecida. Observa-se aí, uma concepção
abrangente de estilo, que envolve os três elementos: escolha de palavras,
composição (sýnthesis) e assunto tratado (diánoia/prágmata). Isso é expresso,
no parágrafo 38, pelo emprego de termos a esses equivalentes, léxis,
21 No parágrafo 12, por exemplo, o termo rētoreía define a oratória de Isócrates, Górgias e Alcidamante; contudo, no parágrafo 15, para referir-se ao discurso de Górgias, Demétrio
emprega o termo lógos, e, nos parágrafos 68 e 299, o mesmo refere-se ao discurso de
Isócrates; inclusive, neste segundo caso, o exemplo do discurso veemente (deinós lógos), tomado como contraponto ao de Isócrates, é, justo, uma citação de Demóstenes. Ademais, o
termo rḗtōr, pelo menos em duas oportunidades, nos parágrafos 24 e 287, denota um tom depreciativo, e o mesmo se verifica no emprego de rētoreía, no parágrafo 9. De fato, não
significa que esses termos, em todas as suas ocorrências, sejam imbuídos desse valor depreciativo: as outras duas ocorrências de rḗtōr, nos parágrafos 262 e 275, não demonstram,
pois, o mesmo tom, tampouco a outra passagem de rētoreía, no parágrafo 12, acima
mencionado. De qualquer modo, tais ocorrências não deixam de revelar que esses termos não parecem estar na preferência de Demétrio, quando se trata da oratória, ou, pelo menos,
‘daquela’ que o autor mais preza.
6
synkeîsthai prosfórōs e diánoia, respectivamente, e é também, sob a mesma
perspectiva, que devemos ler as ocorrências dos parágrafos 114 e 235.22
Sem dúvida, o que chama mais atenção, nessas passagens, é justamente
o assunto tratado, este representado na obra, ora pelo termo prágmata, ora
por diánoia, enquanto um dos aspectos do estilo. Contudo, este uso de
hermēneía aplica-se especificamente às situações em que, junto do termo
kharaktéres, vem a designar os chamados “tipo de estilo”. Aliás, notemos ainda
que, apesar de sua importância central no âmbito do desenvolvimento teórico
empreendido por Demétrio, trata-se de apenas quatro dentre as vinte e duas
ocorrências do substantivo ao longo do tratado, às quais poderíamos ainda
acrescentar as três do verbo hermeneúō. 23
Ao certo, o maior número de ocorrências se encontra mesmo em
contextos cuja concepção de estilo pressupõe a escolha de palavras e/ou
sýnthesis, em contraposição a diánoia/prágmata. Nesse sentido, a ocorrência
do parágrafo 119, que encerra, de certo modo, o desenvolvimento dos
parágrafos 114 a 117,24 preparando o público para o exposto seguinte sobre a
conveniência (prépon), apresenta mesmo uma sobreposição de planos
envolvendo as duas referidas concepções.
Observa-se, pois, que após considerar o assunto (diánoia) como uma das
características pertencentes ao estilo (hermēneía), no parágrafo 119 – que
22 A ocorrência do parágrafo 114 aponta para o desmembramento de hermēneía na mesma
estrutura tripartite, evidenciada, nesse caso, nos parágrafos 115, 116 e 117, consecutivamente, pelos termos: diánoia, léxis e sýnthesis. E é, enfim, também nesse sentido, que se deve ler a
ocorrência de hermēneía no parágrafo 235. 23 Ademais, lembremos ainda de algumas ocorrências para as quais, entre comentadores e tradutores, costuma-se admitir um sentido mais genérico de “expressão”, “locução” (cf. § 66,
138, 226 e 280). Mas enquanto o emprego do termo no parágrafo 138, não deixa possibilidade de uma conexão com quaisquer das concepções de estilo propostas no tratado, em outros
casos, ainda que não expressa, é possível inferir uma conexão, como nos parágrafos 66, 226 e 280. Também a ocorrência do parágrafo 244, apresenta um emprego do termo bastante vago,
e temos que admitir uma concepção de ‘estilo’ em que se acrescenta um elemento anômalo
dentro da perspectiva que acompanhamos até aqui, o ḗthos. 24 Cf. supra, n. 23.
7
segue as considerações acerca da sýnthesis –, o autor propõe uma oposição
entre estilo e assunto, dada justamente pelos termos hermēneia e prágmata:
“Tal qual o pilão enfeitado do provérbio é a elevação do estilo quando se trata
de assuntos irrelevantes” (tradução nossa).
Reforça ainda mais essa oposição, o desenvolvimento seguinte acerca da
conveniência (prépon), que pode ser assim resumida: “tratar as questões
irrelevantes de modo irrelevante e as grandiosas com grandiosidade” (tradução
nossa). Ora, a separação é evidenciada na própria possibilidade de um
tratamento elevado para assuntos irrelevantes, e aqui, novamente, o termo
hermēneía é evocado, na forma verbal, nos parágrafos 120 e 121. De fato, uma
separação que será outra vez mais marcada, no parágrafo 156.25
Ainda segundo tal concepção, é importante salientar que não se verifica,
em nenhuma dessas ocorrências, uma oposição entre o que seria a “escolha de
palavras” e a “composição” (sýnthesis). No parágrafo 46, por exemplo, sob a
forma verbal, o termo estaria sendo aplicado à sýnthesis, mas não se pode
inferir que o autor esteja criando uma oposição entre a mesma e a escolha de
palavras; antes, o que se evidencia é sua oposição à diánoia. Explicação
análoga serve para a ocorrência no parágrafo 173, que, nesse caso, se aplicaria
não à sýnthesis, mas à “escolha de palavras”, e onde, também, a oposição
nítida é com a diánoia.26
25 A oposição entre hermēneía e diánoia, no parágrafo 156, é reforçada pelo próprio emprego feito por Demétrio das partículas mén e dé: Hai mèn oûn katà tḕn hermēneían khárites tosaûtai kaì hoi tópoi. En dè toîs prágmasi lambánontai khárites ek paroimías: “Assim, isso é o quanto
de graça pode haver no estilo, bem como os lugares de onde provém. Já no assunto, a graça pode vir de um provérbio” (tradução nossa). 26 De fato, um argumento contrário faria opor a essas passagens as reflexões subsequentes acerca da sýnthesis (§ 49), no primeiro caso, e, da “escolha de palavras” (179), no segundo.
Tais passagens demonstram, pois, uma aplicação específica que poderia sugerir uma oposição entre os dois sentidos possíveis. No entanto, é preciso que consideremos a inserção do termo
no âmbito da discussão. Notemos, pois, que a ocorrência no parágrafo 46 dá-se em meio a
uma discussão sobre a sýnthesis; por conseguinte, o termo é empregado conforme essa acepção possível no âmbito de seu campo semântico. Analogamente, no parágrafo 173, a
ocorrência dá-se na ocasião das reflexões acerca das “belas palavras”; com efeito, é enfatizado
8
Em outras palavras, trata-se de empregos que, em oposição à diánoia,
privilegiam, em cada caso, um daqueles dois aspectos de hermēneia, sem que
isso constitua necessariamente uma contraposição entre esses últimos. Aliás,
parece também ser esta a forma mais apropriada de ler a ocorrência do termo
no parágrafo inicial; ainda que se trate de uma expressão um pouco vaga,
“estilo da prosa”, e que o contexto aponte na direção de questões de
composição, o contraponto mais nítido é mesmo com a diánoia.
Ainda nesse sentido, em muitos casos, o termo concorre com léxis,
podendo até mesmo ser tomado por sinônimo. É o que ocorre, por exemplo,
nos parágrafos 12 a 14, onde hermenēía é utilizado para referir-se aos estilos
“cíclico” e “repartido”, enquanto que, no parágrafo 21, aos mesmos estilos
aplica-se o termo léxis. 27 Outra ocorrência de hermenēía, no parágrafo 24, tem
também um uso similar ao de léxis, do parágrafo 22, onde, aliás, explicita-se a
oposição entre “estilo” e prágmata. E a mesma equivalência de termos em
oposição à diánoia pode ser verificada nos parágrafos 132 e 133, 156 e 165.28
No parágrafo 228, de fato, a equivalência a princípio não é tão evidente,
uma vez que não há uma oposição propriamente com o assunto
(prágmata/diánoia), mas antes, uma relação com o comprimento (tó mégethos)
da carta. Contudo, a própria construção frasal parece aproximar os termos
equivalentes ao ‘estilo’, e o emprego subsequente de hermēneía, em anunciada
oposição a prágmata, no parágrafo 230, ainda na sequência desse
desenvolvimento sobre o estilo epistolar, indica que a relação entre os mesmos
um dos aspectos de hermēneia, a escolha de palavras, sem que essa ênfase represente uma
oposição ao outro sentido possível. 27 Cf. Aristóteles, Retórica, 1409ª: o estilo cíclico (katestraménē léxis) se opõe ao estilo contínuo (eiroménē léxis). Ainda sobre o período como construção sintática cíclica (oratio vincta atque contexta, connexa series: katestraménē léxis), cf. LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literaria, § 452. 28 No parágrafo 156, o termo hermenēía ocorre no fim de um desenvolvimento, iniciado no
parágrafo 136, acerca do estilo, e onde o termo para definir esse último é léxis, em enunciada
oposição a prágmata. No parágrafo 165, o emprego de hermēneía pode ser tomado como equivalente ao de léxis, do parágrafo anterior, onde o estilo se opõe ao assunto, que, nesse
caso, não é mencionado pelos termos diánoia ou prágmata, mas pelo correlato húlē.
9
em torno de uma concepção de estilo que se opõe a prágmata, parece ser a
suposição mais razoável.
Assim, conforme verificamos na análise das passagens acima, a
aproximação dos dois termos é possível graças também a um emprego de léxis,
que opõe questões estilísticas ao assunto (diánoia/prágmata), e o qual, de fato,
também se observa, sem uma correlação com o termo hermēneía, em muitas
outras passagens do tratado, a saber: § 114, 271, 272, 61, 193, 198, 59, 267,
271, 114, 191 e 207.29
Contudo, o emprego de léxis, a exemplo com o que ocorre com o de
hermēneía, também assume certas particularidades.30 É, aliás, bastante
significativo o fato de jamais o termo associar-se a uma concepção de ‘estilo’ no
qual se inclua o ‘assunto’, como ocorre na abordagem dos tipos de estilo
(kharaktéres hermēneías). Mais significativo ainda é o emprego associado a
“escolha de palavras” em nítida oposição à sýnthesis, uma oposição que, como
vimos, não se verifica, em nenhum momento, entre as ocorrências de
hermēneía, mas que é expressa em várias de léxis (cf. § 38, 77, 116, 142, 184,
188, 190; 221, 237, 272).31
Nesse sentido, é importante salientar que a escolha de palavra jamais
está excluída quando se trata das ocorrências de léxis referentes ao estilo;
mesmo que ela não seja mencionada, em contextos onde se aplica um sentido
mais amplo de léxis, ou seja, escolha de palavras mais composição, e no qual
se privilegie esse segundo de seus aspectos, como nos parágrafos 21, 59, 61,
193, 198, 267, 271, não há expressamente, em nenhum momento, uma
29 Ainda nos parágrafos 61, 106, 141, embora se admita um sentido mais genérico de
“expressão”, “locução”, há uma conexão possível também com o estilo em oposição ao assunto. 30 Ademais, vale lembrar que, nos parágrafos 11, 268 e 197, ele assume aquele sentido mais
genérico que também ocorre com hermēneía, sem conexão possível com as concepções de
“estilo” propostas no tratado. 31 No parágrafo 43, aquele seu sentido mais genérico é associado especificamente com um
“modo de falar”, também estranho ao campo semântico de hermēneía na obra.
10
exclusão daquele primeiro aspecto, como ocorre com o segundo, nas passagens
anteriormente citadas.
Logo, conclui-se que ambos os termos hermēneía e léxis oscilam, entre
uma concepção comum de estilo, em oposição ao assunto, e usos mais
específicos, dos quais se destacam: quando se trata daquela concepção mais
abrangente de estilo, que engloba o assunto, o termo é hermēneía, já quando
se pretende opor a escolha de palavras à sýnthesis, utiliza-se léxis.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRANDÃO, J. L. Lógos e léxis na Retórica de Aristóteles. Disponível em: <<http://www.letras.ufmg.br/jlinsbrandao/JLB_Logos_Lexis_Retor_Arist.pdf>>Acesso em: março 2009. __________. Antiga Musa (arqueologia da ficção). Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, p. 23-30; Vicaire, Recherches sur les mots désignant la poésie et le poète dans l’ œuvre de Platon, p. 1-9. CHIRON, P. Un rhéteur méconnu: Démétrios (Ps.- Démétrios de Phalère). Essai sur les mutations de la théorie du style à l’époque hellénistique. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 2001. __________. Démétrios. «Du style». Paris: Les Belles Lettres, 1993. FREESE, J.H. Aristotle. Art of Rhetoric. Cambridge, Massachussetts, London: Harvard University Press, 2006. (The Loeb Classical Library). FREITAS, G. A. “Sobre o estilo” de Demétrio: um olhar crítico sobre a Literatura Grega (tradução e estudo introdutório do tratado). Dissertação de mestrado inédita. Belo Horizonte: FALE-UFMG, 2011 (177f). GRUBE, G. M. A. A Greek Critic: Demetrius On Style. Toronto. University of Toronto Press: 1961. INNES, D. C. Demetrius. On Style. (in. Aristotle, v.XXIII). Cambridge, Massachussetts, London: Harvard University Press, 2005. (The Loeb Classical Library).
11
HALLIWELL, S. Aristotle. Poetics. (in. Aristotle, v.XXIII). Cambridge, Massachussetts, London: Harvard University Press, 2005. (The Loeb Classical Library). LAUSBERG, Heinrich. Elementos de retórica literaria. (versión española de Mariano Marín CASERO). Madrid: Editorial Gredos, 1975. LÓPEZ, José García. Demetrio, Sobre el Estilo. ‘Longino’, Sobre lo Sublime. Madrid: Editorial Gredos, 1996. (Biblioteca Clásica Gredos). MOXON, T.A. On Style. Demetrius (in. Poetics). London: Everyman’s Library, 1963. ROBERTS, W.R. Demetrius On Syle, The Greek text of Demetrius De Elocutione Edited after the Paris Manuscript. (With Introduction, Translation, Facsimiles, etc. Cambridge: At The University Press, 1902). Cambridge: Bibliolife, 2010. __________. The Greek Words for 'Style.' (With Special Reference to Demetrius περὶ Ἑρμηνείας.). The Classical Review, vol. 15, n. 5, p. 252-255, jun. 1901. VICAIRE, P. Recherches sur les mots désignant la poésie et le poète dans l’ œuvre de Platon, p. 1-9.
HISTÓRIA E LITERATURA: OLHAR SOCIOLÓGICO SOBRE CHICA QUE
MANDA, DE AGRIPA VASCONCELOS
Tarcísio Raimundo Benfica Neto (UNIMONTES)1
RESUMO: A Saga do País das Gerais, ambicioso exercício literário do escritor
mineiro Agripa Vasconcelos, que pretendeu, com seus romances históricos,
contar a história de Minas Gerais, embora obtendo sucesso junto ao público,
recebeu quase nenhuma atenção da crítica. Chica que manda, quinto volume
da Saga, configura-se um romance biográfico sobre Chica da Silva e recria a
sociedade dos setecentos no Distrito Diamantino. Fruto de uma pesquisa
primorosa do autor, a obra traz rico elemento social, fundamental ao que
Antonio Candido chamou economia do livro. Embora Candido atente para o
risco de uma crítica unilateral, indica a validade das análises que, se valendo de
um elemento da obra, aponte para uma interpretação coerente. Pretendeu-se
analisar neste trabalho o romance Chica que manda a partir de seus aspectos
sociais e, ao mesmo tempo, contemplar o debate acerca do método nos
estudos literários. Tal análise, contudo, buscou não desconsiderar o caráter
representativo da obra que, antes de tudo, pretende-se literária.
PALAVRAS-CHAVE: Chica da Silva, Agripa Vasconcelos, romance histórico
INTRODUÇÃO
O método histórico, cujas bases se encontram em esforços de
compilações e levantamentos bibliográficos iniciados no século XVI, chegaria ao
século XIX possuindo conceito e metódica próprios. No final desse século,
porém, iniciar-se-ia intenso movimento de reação anti-historicista que se
seguiria pelas primeiras décadas do século XX e que, mesmo no limiar do
1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários, da Universidade Estadual de Montes Claros – PPGL Unimontes, desenvolvendo a pesquisa Chica e Xica: representações do mito nos romances históricos de Agripa Vasconcelos e João Felício dos Santos.
1
século XXI, ainda fomentaria debates acerca da crise do método nos estudos
literários.
Em oposição ao historicismo, diferentes métodos foram propostos, nos
quais, ora se privilegiava o conteúdo da obra (como, por exemplos, o método
psico-histórico, que aprofunda os desenvolvimentos do pensamento, da emoção
e do estilo; e a escola alemã do Geisteswissenschaftler, cujas investigações
buscam encontrar na obra a mitologia, o centro criador, a lei eterna, etc.), ora
os problemas de forma e estilo (como o formalismo russo e o new criticism
anglo-americano).
Afrânio Coutinho, para quem a fase polêmica entre as duas direções
opostas (conteúdo e forma) parece estar ultrapassada, faz um balanço positivo
da reação contra o historicismo, na medida em que dela resultou a correção
dos “exageros que hipertrofiaram o papel das pesquisas históricas, sociais,
econômicas e biográficas na explicação da obra literária” e a facilitação da
compreensão de que “o exclusivismo historicista deforma a visão da realidade”
(COUTINHO, 2004, p.8). Com ele, alinha-se Antonio Candido, para quem “a
integridade da obra não permite adotar nenhuma dessas visões dissociadas; e
que só a podemos entender fundindo texto e contexto numa interpretação
dialeticamente íntegra” (CANDIDO, 2006, p.13).
A historiografia brasileira, em sua fase primitiva, ainda sob a visão de
que é a literatura um fenômeno histórico, resumia-se a catálogos
biobibliográficos e antologias de caráter didático. A produção literária do então
Brasil Colônia consistia de “produções individuais de pouca repercussão”
(CANDIDO, 2010, p.33).
A partir da metade do século XVIII é que se começa a esboçar uma
literatura como “fato cultural configurado” (CANDIDO, 2010, p.33). Antonio
Candido cita a influência do francês Ferdinand Dennis, “autor do primeiro
escrito onde se reconhece uma literatura brasileira distinta, o Résumé de
2
l’Histoire Littéraire du Brésil (1826)” (CANDIDO, 2010, p.43). Dennis defendia
que um país independente necessita de uma literatura independente. Suas
ideias encontrarão terreno fértil no Romantismo, que tem seu alvorecer com a
publicação, em Paris, da revista Niterói, fundada por jovens brasileiros que ali
estudavam. Em sua primeira edição, a revista traz o manifesto de Gonçalves de
Magalhães, que defendia o abandono da mitologia clássica e dos modelos
portugueses. Em contrapartida, propunha o indianismo, a emoção religiosa e o
sentimentalismo, eis, pois, as bases do projeto de literatura brasileira:
O problema da nacionalidade literária foi colocado, dentro da esfera do Romantismo, em termos essencialmente políticos. Os nossos
historiadores literários encaravam a autonomia literária conforme essa
orientação, tendo Sílvio Romero estabelecido a capacidade de expressão nacional como critério valorativo de excelência literária.
(COUTINHO, 2004, p.28)
Silvio Romero é quem, apesar de sua obra refutável atualmente, trata a
historiografia literária no Brasil a partir de bases científicas. É ele quem
consolida a concepção historicista e sociológica da literatura. “O estudo da
literatura deveria começar pelo conhecimento da parte estática, ou base sobre
que se levantavam a nacionalidade, raça, território, meio social e econômico,
em suma por introduções sociológicas” (COUTINHO, 2004, p.21).
O SOCIAL EM CHICA QUE MANDA
Tal noção de literatura tributária do processo de formação do Estado
brasileiro, rica em elementos históricos e reprodução do espaço geográfico,
parece ser a mesma que nortearia a produção do escritor mineiro Agripa
Vasconcelos, este comprometido com a formação de Minas Gerais, agora na
segunda metade do século XX. Suas Sagas do País das Gerais constituem seis
livros em que Agripa lança mão dos registros historiográficos mineiros,
tempera-os com os causos das gerais e constrói a narrativa que, girando em
3
torno de uma personagem histórica principal, reproduz o que o autor chama de
ciclos da civilização mineira.
Chica que manda – Romance do Ciclo dos Diamantes nas Gerais, quinto
volume das sagas, narra a vida de Chica da Silva, sua origem escrava, sua
união marital com o contratador de diamantes e sua consequente ascensão
aristocrática. Embora Agripa Vasconcelos explore com maior interesse os
conflitos internos experimentados pela rainha do Tejuco, decorrentes de um
ciúme doentio que a leva a perpetrar hediondos crimes pela manutenção de
seu casamento, residindo aí o valor literário da obra, ele também traça um
panorama da sociedade do século XVIII um tanto quanto fiel à verdade
histórica. Tendo como pano de fundo o romance de Chica da Silva e João
Fernandes, Vasconcelos perpassa por todos os setores da sociedade retratada,
apresentando seus vícios e sua lógica interna.
Uma vez alçada à condição de concubina de João Fernandes, o
contratador de diamantes, a ex-escrava passa a usufruir no Distrito Diamantino
de luxo e fausto inéditos na colônia. Logo se vê envolvida com os negócios do
companheiro e passa a exercer grande influência na administração do Distrito.
Torna-se grande senhora de escravos e logo assimila os modos da metrópole. A
narrativa vasconceliana ilustra com riqueza de detalhes as vestes, adereços e
penteados usados por Chica, comparando-a a “uma Rainha faiscante de joias,
sedas e cabeleira loura de cachos mais compridos” (VASCONCELOS, 1966,
p.134).
Em Chica que manda, são retratados os excessos financiados pelos
diamantes. A ex-escrava agora menospreza a sociedade em que fora pária:
Não era mais segredo para ninguém que ela se tornara a mulher mais rica de Portugal e Colônias, o que humilhava suas amigas e abria as
bocas dos homens. Chica estava no ápice do orgulho, em suntuosa empáfia de miliardária que não sabe mais o que fazer com o dinheiro.
(VASCONCELOS, 1966, 183)
4
A união de Chica da Silva com João Fernandes, ao contrário do que se
apresenta, não é um caso de amor avassalador que enfrenta barreiras e
preconceitos. Segundo Júnia Ferreira Furtado, “o amor não era condição
necessária ao casamento. Os matrimônios [...] visavam à construção de
alianças que promovessem social e economicamente os envolvidos” (FURTADO,
2003, p.115). Embora Agripa Vasconcelos pareça, superficialmente, negar essa
condição, tecendo uma narrativa em que o amor dá a tônica do relacionamento
entre Chica da Silva e João Fernandes, as pistas do que subjaz à união estão
presentes na obra. A ex-escrava não é a senhora absoluta do coração de seu
companheiro, ao contrário, desempenha um papel muito bem determinado
naquela sociedade e vê seu posto constantemente ameaçado por outras negras
que rivalizavam com ela em beleza:
Chica jamais se queixava a outros de suas amarguras e desilusões.
[...] Passou o dia como sonâmbula, errando pelos salões de seu Palácio, humilhada, preterida, jogada fora, apesar de todas as
dedicações, para ser substituída por uma ladina do seu serviço. (VASCONCELOS, 1966, p. 194)
A Chica vasconceliana, arrogante em público, senhora de si e de todos,
na intimidade se vê constantemente acuada pelo medo de que seu amásio a
substituísse por outra mulher mais jovem e mais bonita, relegando-a
novamente à base da pirâmide social. Tal medo se justifica uma vez que o
concubinato, embora diminuísse os estigmas da cor e da escravidão, lhe negava
privilégios legais dados às esposas. “O matrimônio, independentemente da cor
dos cônjuges, permitia que as mulheres dispusessem do pecúlio do marido,
qualquer que fosse o montante” (FURTADO, 2003, p.108). Não era esse o caso
de Chica.
Júnia Ferreira Furtado compara a condição da mulher na sociedade
mineira dos setecentos com a de objetos, as quais os homens enganavam,
manipulavam e nunca levavam a sério. “Sua vontade não importava,
5
especialmente quando escravas, pois os senhores as usavam a seu bel-prazer.
Consideradas incapazes, desprovidas da razão, deviam ser em face disso
subjugadas pelos homens” (FURTADO, 2003, p.117).
Vivendo em constante incerteza quanto ao futuro, seu e mesmo o do
próprio contratador, que poderia a qualquer momento regressar a Portugal,
Chica experimenta estados de paz e exasperação que se alternam
constantemente. Ora é a mulher de sociedade, pacata e limitada ao lar e às
atividades religiosas; ora é a mulher calculista, que está sempre um passo à
frente, sendo esta produto do gênio de Agripa Vasconcelos.
Assim é que afasta, de maneira sempre cabal, qualquer um que possa
ameaçar a estabilidade de sua união com o contratador de diamantes, como
quando encontra em um casebre pobre de derredor do garimpo uma criança
branca de olhos azuis. A suspeita de que possa ser um filho de João Fernandes
corrói suas entranhas e o medo de ser preterida volta a rondá-la, levando-a a
adentrar o miserável casebre, tomar o menino nos braços, avaliar suas feições
e atirá-lo ao rio. Chica age, assim, como o príncipe prudente de Maquiavel
(2001, p.14): cuida das desordens presentes, precavendo-se das futuras.
Maquiavel prega a prática acima da ética: no intuito de manter-se o poder, tudo
é válido. Evitar que futuramente um filho de João Fernandes viesse a exigir
direitos (desordem futura) seria uma justificativa para se eliminar de uma vez
por todas a criança (desordem presente).
Sob um olhar desatento, o enredo de Chica que manda soa como um
conto de fadas do Brasil colonial, em que a pobre escrava sofredora encontra
seu príncipe encantado e vive feliz para sempre. Atentando-se para obra,
evidencia-se, porém, o esforço de Agripa Vasconcelos em recriar a sociedade
mineradora do século XVIII, cuja tônica estava no ouro e nos diamantes,
opondo aventureiros ambiciosos à ganância do Estado português.
6
CONCLUSÃO
Vasconcelos, apropriando-se de fatos históricos, constrói uma narrativa
merecedora de ser estudada porque, mesmo abusando da representação de
uma época e de uma nacionalidade, assemelhando-se mais a uma história da
civilização mineira que propriamente a um romance, apresenta literariedade
quando reveste o discurso histórico com as contribuições de seu gênio, criando
uma Chica que, mesmo conformada com os padrões de sua sociedade, possui
profundidade psicológica.
Neste trabalho, os apontamentos das reconstituições sociais feitas por
Agripa Vasconcelos, longe de quererem explicar a obra, apenas acenam para a
matéria de que se valeu o autor na condução de seu processo criador. Como
indica Antonio Candido (2006), “o externo, (no caso o social) importa, não
como causa, nem como significado, mas como elemento que desempenha um
certo papel na constituição da estrutura.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006. ______. Iniciação à literatura brasileira. 6 ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil: introdução geral. 7 ed. São Paulo: Global, 2004. FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Compnhia da Letras, 2003. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Antonio Caruccio-Caporale. Porto Alegre: L&PM, 2001.
7
SCHOLZE, Lia. A mulher na literatura: gênero e representação. In: DUARTE, Constância Lima; ASSIS, Eduardo de; BEZERRA, Kátia da Costa (Org.). Gênero e representação na Literatura Brasileira. Belo Horizonte: UFMG, 2002, p. 174-182. VASCONCELOS, Agripa. Chica que manda. Belo Horizonte: Itatiaia, 1966.
A FORMA OBJETIVA DE CANAÃ
Bárbara Del Rio Araújo (UFMG)1
RESUMO: Esta comunicação pretende demonstrar que uma das maneiras mais
significativas de estabelecer relações entre o romance e a realidade é
compreender como o aspecto externo se torna parte da estrutura do livro,
atuando diretamente na sua problemática. O romance Canaã, de Graça Aranha,
foi classificado pela fortuna crítica como uma narrativa mal estruturada, em que
as circunstâncias históricas apareciam marginalmente em consequência das
divagações do autor. Críticos renomados como Bosi, Schwarz e Paes afirmaram
que a obra tinha seu nível de verossimilhança e realismo comprometido pela
filosofia cósmica. Observada a discrepância entre o movimento do romance e
seu sistema teórico de noções, é possível, primeiramente, encarar tal aspecto
como um defeito de composição ou uma falta de capricho do seu escritor.
Contudo, em outra leitura, pode-se notar tal desequilíbrio como intrínseco à
situação real e histórica brasileira. Isto é, a falta de dimensão histórica da
narrativa tem fundamento histórico ela mesma, tornando-se forma literária.
Assim, percebemos a forma objetiva de Canaã, evidenciado que nem a obra
nem o artista escapam à materialidade de seu tempo. Não pretendemos aqui
entender a sociedade como um elemento delimitador da esfera criativa, mas
buscamos refletir sobre a invenção romanesca, que é livre, mas não arbitrária.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e Sociedade, Forma Objetiva, Canaã.
INTRODUÇÃO
A relação entre literatura e sociedade pode ser pensada em vários níveis
desde o mais simples que consiste em mostrar os aspectos sociais na obra,
quanto o mais refinado, em que se nota uma efetiva interpenetração dos
1 Mestre em Literatura Brasileira pelo programa de pós-graduação em estudos literários da
elementos externos e estéticos. Segundo Roberto Schwarz, analisar a obra em
função de ver nela aspectos da realidade consiste em uma das graves gafes
que o crítico pode cometer, pois o estatuto de autonomia da Literatura já é
concedido a partir do processo mimético. Contudo, uma gafe tão grotesca
quanto essa seria imaginar a obra como algo hermético, dissociado da vida.
(SCHWARZ, 2000, p. 34)
O processo válido para o estudo da relação entre as instâncias sociais e
artísticas consiste, para o crítico referido, assim como para Antonio Candido,
em averiguar como a realidade social se transforma em componente da
estrutura literária a ponto dela poder ser estudada em si mesma. Diante desse
aspecto, a importância da estrutura da obra é destacada no estudo entre
literatura e a sociedade, já que é ela que decalca a realidade fazendo com que
os reflexos da estrutura social migrem para o plano literário, onde atuam como
princípio ordenador desempenhando seu papel ideológico. A realidade social,
quando transformada em componente da estrutura literária, passa a
desempenhar uma função nessa estrutura. Esses elementos factuais são
sublimados e trazidos ao nível da fatura por onde expressam certa visão sobre
o mundo. Nesse aspecto, a forma exprime representações individuais e sociais
que transcendem a situação imediata e se inscrevem no patrimônio cultural.
Isto posto, percebemos que a sociedade não é limitadora da obra literária, mas
como lembra Goldman, ela é um elemento interno ativo que atritará com outras
formas sob nova dinâmica e revelará algo de si. (GOLDMAN, 1977, p.18)
Adensando essa perspectiva, pode-se dizer que a forma literária é
objetiva, isto é, ela não necessariamente está condicionada às intenções
subjetivas do autor ou do dado factível. Esses, aliás, são apenas matéria sem
autoridade especial que não significam diretamente, mas que ganharão
significado a partir da configuração literária que os redefine. Deste modo, há
uma coerência mínima de se analisar ou aproximar a história ou a vida do autor
2
da obra, mas vale sempre lembrar que isso não a determina. A dimensão
estética não se consterna a isso. O que se observa é a existência de matizes
que fazem com que o dado externo ou individual se apresente na obra de
maneira diferenciada. Assim, a verdade e a realidade da narrativa derivam da
combinação adequada dos elementos no interior da narrativa e não da sua
fidedignidade ao externo. O modo como a narrativa se organiza é, pois, a
medida para o seu entendimento.
Diante dessa discussão, vale aqui um pequeno adendo sobre a
concepção de realismo. Nos manuais didáticos e nas histórias da literatura, de
maneira geral, o realismo é tomado como uma estética que vincula a obra aos
aspectos críticos sobre a realidade, isto é, como a obra faz referência ao
externo e ao contexto. Caberia aqui uma pergunta: não seriam todas as obras
literárias realistas nesse sentido, pensando que todas elas de certa forma
representam e configuram de algum modo os aspectos sociais?
Sem me estender muito nessa conversa, é necessário pensar que há
diversos tipos de realismos, isto é, há diversas maneiras de configurar a
realidade no texto. Deste modo, não há um realismo determinado por período
como um estilo único, como a historiografia aponta. Auerbach explicita que o
modo de representar os elementos históricos e filosóficos no romance não se
dá de maneira monolítica e convencional, mas de forma específica, em que
cada pormenor do conjunto integra aquele sistema de significação que vai
muito além da referencialidade e do vínculo com o mundo empírico.
A concepção de romance realista, tal como se elabora, é um resultado de
procedimentos estéticos específicos. Trata-se de uma técnica que não se fixa a
períodos, a um estilo particular ou a uma época. Assim, por realismo não se
entende o conceito de classificações literárias, mas um modus sobre o qual
cada obra estetiza a realidade. Nesse caso, a ideia de Realismo torna-se, pois,
múltipla, sendo mais apropriado falar em realismos. (AUERBACH, 2009, p.488)
3
Por fim, esse trabalho tem o objetivo de apresentar como se configura o
realismo na obra Canaã, de Graça Aranha. Começaremos contudo pelo
problema instaurado pela crítica, que não percebeu a forma objetiva da obra e
a julgou como a-histórica e sem representação social possível.
O MASSACRE DE CANAÃ PELA CRÍTICA
Canaã foi o primeiro romance do escritor Graça Aranha. Romancista
atuante e atento às tendências poéticas modernistas, o maranhense procurou
configurar na sua obra certa perspectiva filosófica, advinda da escola de Recife.
Nesse aspecto, permeia o seu romance um conteúdo filosófico, que muito se
assemelha aos ensaios A Estética da Vida e Espírito Moderno, escrito pelo autor
posteriormente à Semana da Arte Moderna.
É certo que o cunho teórico e filosófico da obra causou inicialmente
muito impacto nos leitores e na crítica, que embora reconhecesse o sucesso de
vendagem do romance em 1902, quando saiu a publicação pela Garnier, se
mostrava reticente sobre a configuração estética da obra. O romance, que
colocava tematicamente em voga a situação de imigração no interior do Espírito
Santo, a ocupação de colônias germânicas e a reflexão dos colonos Milkau e
Lentz, causou certo alvoroço até mesmo na classificação literária.
Ronald de Carvalho classificou a obra como o primeiro romance filosófico
brasileiro. Contudo essa filosofia foi por ele criticada, pois a discussão dos
protagonistas, segundo ele, apontava para certo socialismo, não fazendo
sentido para época e para o influxo da narrativa.
De fato, Milkau e o outro colono Lentz estabelecem na narrativa
discussões filosóficas acerca da humanidade. Milkau propaga ideias de amor e
solidariedade entre os homens pressupondo uma lei de integração universal
entre os seres. Observa-se no discurso do protagonista uma enorme
4
capacidade lírica de descrição e observação. Contudo, percebe-se que toda
subjetividade do personagem vira matéria emocional para demonstração
filosófica. Isto é, suas reflexões solapam as cenas em busca de descrever uma
proposta de se buscar uma terra ideal, ambiente de igualdade e justiça:
Essa Europa, para onde daqui se voltam os vossos longos olhos de sonhadores e moribundos, as vossas cansadas almas, cobiçosas de
felicidade, de cultura, de arte, de vida, essa Europa sofre do mal que desagrega e mata.
(...) Como vós, ela está no desespero, consumida de ódio, devorada
de separações. Ainda ali se combate a velha e tremenda batalha entre senhores e escravos. (...) É uma sociedade que acaba, não é o
sonhado mundo que se renova todos os dias, sempre jovem, sempre belo. E ainda para manter tais ruínas os governantes armam homens
contra homens e entretém-lhes os ancestrais apetites de lobos com a pilhagem de outras nações. (...) As leis, nascidas de fontes impuras
para matar a liberdade fecunda, não exprimem o novo Direito; são o
escudo perturbador do Governo e da riqueza, e quem diz autoridade diz posse, diz servidão e destruição. (ARANHA, 1982, p.204)
Milkau aguarda a revelação da terra nacional e do futuro dentro de um
plano de socialização fundamentado em um espaço coletivo e igualitário,
contrário à venda, à posse e à competição individual. Abaixo, percebemos que
o protagonista, tomando o princípio do amor e da solidariedade como contrato
social entre os homens, reflete sobre a coletivização de bens e a necessidade
de se acabar com a propriedade:
Não seria muito mais perfeito que a terra e as suas coisas fossem propriedade de todos, sem venda, sem posse? (...) Não vês que a
propriedade torna-se cada dia mais coletiva, numa grande ânsia de
aquisição popular, que se vai alastrando e que um dia, depois de se apossar dos jardins, dos palácios, dos museus, das estradas, se
estenderá a tudo?.... O sentimento de posse morrerá com a desnecessidade, com a supressão da idéia da defesa pessoal, que
nele tinha o seu repouso. (ARANHA, 1982, p.88)
Milkau acredita que no futuro o homem perceberá que é possível viver
somente com o necessário. Nesse aspecto, ele imagina uma condição social
ideal, quando não existirá propriedade e a produção se destinará apenas ao
5
consumo comum. Assim como os socialistas utópicos, o protagonista pensa que
o homem não tem necessidade de riqueza pessoal, sendo, portanto, possível
viver com o mínimo. Em algumas passagens da narrativa, Milkau diz ainda
sobre a necessidade de se findar o comércio, que ocorre pela produção de
excedentes, e retornar à lavoura, condição ideal em que cada membro produz o
mínimo necessário e socializa o que colher. Com aspecto messiânico, ele,
então, afirma que o futuro se fará no fim de qualquer exploração:
Procuro uma vida estável e livre, e o comércio é torturado pela avidez e ambição... Além disso, penso que o trabalho digno do homem é a
lavoura nos países novos e férteis como este, e a indústria no velho
continente. O comércio não me atrai, com suas formas grosseiras, com seus estímulos baixos, sua posição intermediária na sociedade.
Não me sinto solicitado senão por coisas mais simples e aproximadas da situação do futuro. (ARANHA, 1982, p.45)
O trecho acima expõe o pensamento de Milkau sobre o comércio e a
indústria, formas nascentes de modernização econômica e social brasileira, que
no romance são utopicamente transpostas pelo princípio da solidariedade e do
amor. O personagem almeja para o futuro brasileiro um espaço de
coletivização, contrário a qualquer monopólio e exploração. Em seu socialismo
fantasioso, Milkau deseja um tipo de sociedade mais justa, deixando de
perceber a luta de classes nesse momento histórico, acreditando, sobretudo na
bondade natural do homem na possibilidade de chegar a acordos amistosos
entre interesses antagônicos de diferentes grupos da sociedade.
Essa discussão empreendida por Milkau bem como a sua adesão
filosófica e mística foram muitíssimo criticadas pela fortuna crítica da obra. Para
José Carlos Garbuglio, por exemplo, os pressupostos disseminados em Canaã
são confusos e o modo como são engendrados não convence por carência de
maior solidez. Segundo o critico avalia, a maneira como o projeto anticapitalista
de Milkau aparece na narrativa é despropositada, já que contrasta com o
momento histórico brasileiro de modernização e industrialização também
6
dramatizado na narrativa. A formação de uma nova ordem econômico-social
ainda estava sendo implantada no território nacional, quando o protagonista
coloca em discussão a desconstrução desse sistema e a sua substituição pelo
amor fraterno. A lei cósmica da integração e o princípio do amor, como visão
do mundo subjacente ao romance, parecem negar a realidade objetiva:
Poderia haver algo mais incongruente com a nossa realidade de então do que o igualitarismo econômico postulado pelo protagonista de
Canaã numa altura em que, recém-emerso o país da Abolição e após um breve interlúdio de jacobinismo republicano, as rédeas do poder
voltaram, nas presidências de Campos Sales e Rodrigues Alves, à
mesma oligarquia rural que havia sido o sustentáculo do império? Falar de extinção de propriedade privada num país que continuava a
proclamar-se essencialmente agrícola e cuja indústria mal ensaiava então os primeiro passos titubeantes, era colocar-se totalmente fora
do tempo da História. (PAES, 1992, p.80)
Assim como José Paulo Paes afirma que o utopismo de Milkau e o
projeto de Graça Aranha perdem-se da realidade histórica brasileira, dos
próprios acontecimentos enfatizados na narrativa, Roberto Schwarz enfatiza
que a obra e a visão que nela se estabelece são contraditórias como
interpretação do Brasil. Segundo o crítico uspiano, o princípio discutido por
Milkau e por Lentz, sobre “dominar ou não a natureza” e a “lei do amor” como
regente dos homens, não tem fundamentação em uma sociedade de classes,
que abria-se aos primeiros passos da industrialização. Nesse aspecto, o
estudioso demonstra que, por valer-se de conceitos e ideias inadequadas, a
obra tem seus eixos desarticulados: “o desequilíbrio da concepção reflete na
arquitetura do livro, levando-o a negar sua intenção inicial para terminar no
polo oposto, em processos alegóricos que anulam o próprio mundo da ficção,
cujo coroamento deveria ser”. (SCHWARZ, 1965, p.20). Roberto Schwarz ainda
afirma que o universo ficcional é condicionado pela proposta teórica do autor, e
nesse sentido o romance padece por não articular bem a história do
protagonista Milkau e as divagações filosóficas sobre o Brasil e sobre a condição
7
humana. Na opinião dele, “a obra vai minguando”, situações vão se
transformando em símbolos vagos, liquidando a autonomia dos personagens e
condicionando-os aos jorros filosóficos do ensaio A Estética da Vida.
(SCHWARZ, 1965, p.22).
Para a fortuna crítica, a tentativa de impor a teoria à diversidade interna
da obra compromete a profundidade estética do romance. Nesse aspecto, as
cenas de Canaã parecem um conjunto recortado, onde o apanhado de
pormenores está designado a expor e exemplificar a teoria da “unidade infinita
do todo”. Os episódios, de maneira geral, são metáforas para a explanação da
força cósmica, fazendo com que todos os acontecimentos da narrativa pareçam
símbolos filosóficos. Estes são capazes até mesmo de assumir a
monumentalidade da dramatização social; contudo, não podem expressar a
realidade de maneira contundente, já que o dado histórico social está
obscurecido. Assim, por não verem a história de maneira evidente na obra, a
fortuna critica condenou Canaã afirmando o desequilíbrio de sua estrutura e o
classificando como mau romance.
A FORMA OBJETIVA DE CANAÃ
Observada a fortuna crítica sobre a discrepância entre o movimento do
romance e seu sistema teórico de noções, é possível, primeiramente, encarar
tal aspecto como um defeito de composição, um equívoco da obra ou uma falta
de capricho do seu escritor no abono da historicidade. Contudo, em outra
leitura, mais atenta, pode-se associar esse modo de representação como
ideologia, quando a composição adquire funcionalidade crítica e valor mimético
em relação ao país. (SCHWARZ, 1999, p.40).
O romance de Graça Aranha, configurado como um modelo narrativo
específico (o romance de ideias), apresenta um ponto de vista socialista e, ao
8
mesmo tempo, místico sobre as circunstâncias nacionais e as relações
humanas. Essa perspectiva é julgada pela fortuna crítica como despropositada
em relação à situação e aos acontecimentos dramatizados, pois a
implementação da modernização brasileira, da sociedade do capital, choca-se
diretamente com os limites da posição anticapitalista da teoria difundida pelo
protagonista Milkau, implicando assim em uma regressão formal do romance.
Contudo, observando bem, pode-se perceber que a utopia, o princípio do amor
e a unidade cósmica, proferidos pelo personagem, apenas “parecem” estar em
uma zona diferente daquela dos conflitos reais. Explico: a visão utópica
dramatizada no romance pode ser atrelada à visão de classe das elites e dos
intelectuais que, durante a primeira República, assentiam o discurso social, mas
não buscavam qualquer modificação efetiva na sociedade, somente
elucubravam a respeito dos “problemas sociais”, mas sem qualquer
engajamento. Nesse aspecto, o ato empírico está, de alguma maneira,
atravessando a narrativa e a sua linha de força teórica, pois da mesma forma
que o discurso de Milkau parece debandar para o afastamento da vida prática,
o discurso das elites no momento representado tinha características
semelhantes, a saber, a despreocupação com a práxis social.
O historiador Adalmir Leonidio, em “Ideias socialistas no final do século
XIX”, revela que as ideias socialistas utópicas se implantaram no Brasil durante
a primeira República de maneira difusa. Alguns pressupostos dos pensadores
do socialismo utópico cercaram o imaginário dos intelectuais no cenário
nacional, mas não havia uma homogeneidade ou qualquer consenso quanto ao
que seria uma “ação de caráter socialista”. Empregava-se a palavra em aspecto
geral para dizer sobre as “preocupações sociais”. Nesse sentido, a grande
maioria desses intelectuais não dispunha de planos de ação reformista, e
muitas vezes proferiam elucubrações sobre a realidade brasileira que logo
debandavam ao misticismo. (LEONIDIO, 2009, p.111)
9
Constituía, portanto, um plano das elites a apresentação de pontos sobre
a reflexão social, não para incentivar ou acionar a revolução; pelo contrário,
procurava-se usar a etiqueta socialista para manter a situação de ordem e
tranquilidade pública. Assumindo um discurso utópico, trazendo à tona as
questões sociais e os problemas econômicos, as elites, ao invés de defrontarem
a nova situação que se formara, tentavam se adaptar às conjecturas:
acalmavam a insatisfação dos ex-escravos, agora homens livres, ao mesmo
tempo em que tentavam atender aos interesses de alguns senhores de terras e
dos monarquistas, desgostosos pela situação abolicionista e republicana. Nesse
aspecto, o estado utópico de harmonia e socialização servia para alivio da
situação e manutenção do poder da classe burguesa. (LEONÍDIO, 2009, p.123)
No livro História das idéias socialistas no Brasil, Vamireh Chacon elabora
um estudo panorâmico do modo como o ideal utópico socialista foi engendrado
no Brasil e no pensamento da intelectualidade brasileira. O autor ressalta,
sobretudo, a enorme influência desse pensamento sobre autores como Tobias
Barreto e Graça Aranha. Contudo, ele revela que o pensamento alemão foi
adotado pelas elites e pelos intelectuais nacionais como uma espécie de
esoterismo, sem repercussão revolucionária e social (CHACON, 1965, p.17).
Dessa forma, consolidava-se um “intimismo à sombra do poder”, que
demarcava a posição do pensamento intelectual afastado da cultura popular, da
reflexão crítica e da práxis social.
O que se percebe, então, é que o desequilíbrio e a falta de historicidade
da obra Canaã se mostra como parte intrínseca da situação real e histórica
brasileira. A inconsistência que configura a forma do romance é um fator
empírico, tem fundamento histórico na distância entre a vida nacional e os
projetos da nossa elite intelectual. Nesse sentido, ainda que a linha teórica do
romance se choque com a linha histórico-social dramatizada, ainda que existam
referências ao socialismo utópico, ao fim das hierarquias, não há aí negação da
10
realidade. A perspectiva mística, que discute sobre o espírito cósmico e a união
dos seres pelo amor fraterno, representa o pensamento de um grupo social que
naquele momento formulava projetos distantes da realidade recém-
industrializada do país. Portanto, “a falta de dimensão histórica da narrativa
tem fundamento histórico ela mesma, tornando-se forma literária” (WAIZBORT,
2007, p.53).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em Canaã, como já observamos, os acontecimentos sociais e históricos
dão insumo à filosofia e parecem não irromper como forma de romance.
Contudo, percebemos que o desequilíbrio, causado pelo excesso de
elucubrações teóricas, evidencia a própria realidade, a perspectiva de uma
classe. Assim, a leitura do romance nos permite notar que o ambiente social,
externo, está presente não de maneira superficial, mas como elemento interno
e ativo, sob o ponto de vista da utopia, que anima a narrativa. O dinamismo
interno da obra, a exposição filosófica, acaba por nos remeter à problemática
histórica. O desequilíbrio da obra não se mostra como uma falha ou falta de
perícia do escritor Graça Aranha com os procedimentos técnicos, mas como
uma condição social. Nesse aspecto, percebemos que a forma do romance não
é posta ou inventada pelo escritor para ordenar a matéria informe; ela é
homóloga à estrutura da sociedade, isto é, o limite do realismo de Canaã deve-
se à própria situação histórica concreta na qual estava situado. Quando o
romance permanece no registro privado, sem historicização, tentando angariar
uma situação utópica de fim do Estado ou do comércio, essa “falta de dimensão
histórica” expressa, ela mesma, a sociedade:
A dificuldade, no caso, é só aparente: em toda forma literária há um
aspecto mimético, assim como a imitação contém germes formais; o impasse na construção pode ser um acerto imitativo – como já vimos
que é, neste caso - o que, sem redimi-o, lhe dá pertinência artística,
11
enquanto matéria a ser formada, ou enquanto matéria de reflexão. (SCHWARZ, 2000, p.70)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1970. ARANHA, Graça. Canaã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. AUERBACH, Erich. Mimesis. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2009. BAKHTIN, Mikhail. A Estética da Criação Verbal. São Paulo: Cia das Letras, 2003. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2010. CHACON, Vamireh. História das idéias socialistas no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 3ed. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2005. ENGELS, Friedrich. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 10 ed. São Paulo: Global, 1989. GOLDMANN, Lucien. Sociologia do Romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. GOLDMANN, Lucien. Dialética e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. LEONIDIO, Adalmir. “Esta palavra socialismo... Idéias socialistas no Brasil no final do século XIX”. In: Revista do Programa de Pós-graduação em História da UnB, vol.12, n.º 2, fevereiro de 2004. LEONIDIO, Adalmir. “As idéias do socialismo utópico no Brasil”. In: Revista Eletrônica Cadernos de História, vol. VIII, ano 4, n.º 2, dezembro de 2009.
12
MICELI, Sergio. Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. PAES, Jose Paulo. Canaã e o ideário modernista. São Paulo: Edusp. 1992. SCHWARZ, Roberto. “A estrutura de Chanaan”. In: A sereia e o desconfiado. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1965. SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Ed.34, 2000. WAIZBORT, Leopoldo. A passagem do três ao um. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
0
LUÍS DA SILVA SOB UMA PERSPECTIVA SOCIOLÓGICA
Felipe Oliveira de Paula (UFMG)1
RESUMO: O objetivo é expor a importância do método sociológico para minha
interpretação sobre Angústia (1936), de Graciliano Ramos. Buscando entender
a forma de narrar de Luís da Silva, parto do pressuposto de que a ontologia do
ser (no caso, do protagonista do romance) deve ser entendida dentro de um
processo complexo de inter-relações humanas (LUKÁCS, 2010). Assim, para
aprofundar um estudo sobre sua individualidade, é preciso entender as
transformações sofridas ao longo de toda sua vida. Isso permite perceber o
sentimento de inferioridade, os recalques, a inadaptação e as revoltas de Luís
da Silva como partes de sua individualidade, cuja formação se deu ao longo de
sua trajetória, sempre como integrantes de uma totalidade orgânica real. A
partir disso foi possível entender como o narrador internalizou uma visão de
mundo própria que desse conta de apreender as contradições geradas pela
dinâmica social e como ele a transpõe na sua forma de narrar.
Antes de iniciar a exposição da interpretação sobre Angústia, pretendo
descrever, de maneira breve, o que entendo por método. Conforme Roberto
Acízelo de Souza (2006, p.171), o conceito de método é caracterizado,
basicamente, por duas perspectivas diferentes. A primeira limita-se a esclarecer
a sua origem grega, apontando para uma concepção poético-etimológica na
qual o método quer dizer “caminho para um fim, pois provém de metá, ‘para’ e
hodós, ‘caminho’, no sentido de meio”. O caminho é iniciado objetivando um
1 Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras - UFMG.
1
fim, que de certa maneira estaria preestabelecido pela escolha do método. Na
segunda perspectiva, e a que interessa nesse trabalho: “método é o conjunto
de princípios e procedimentos orientadores de uma pesquisa” (SOUZA, 2006,
p.171). A escolha metodológica está ligada à orientação e não definição de
resultados. Ou seja, o método não serve como camisa-de-força da análise, ele
não restringe ou reduz a leitura do texto literário a determinas teoria. Mas,
também, por outro lado, não permite todo tipo de experiência com a
justificativa de que as obras são complexas e abertas a múltiplas leituras. Neste
caminho, o método não é confundido com disciplina ou linha teórica. A partir
desse entendimento, proponho utilizar o método sociológico; ou, para não
haver confusão, método marxista, materialista ou dialético.
Para Georg Lukács (2009, p.33), um dos grandes legados do marxismo
consiste no esclarecimento de que o processo de abstração que produz a
“universalidade” não pode ser visto como resultado de uma abstração
intelectiva, mas como a internalização, na consciência humana, do processo
social objetivo. Nessa linha de raciocínio, não é possível compreender a
abstração caso não lidemos diretamente com o objeto, levando-nos a conclusão
de que o método dialético é construído na análise, ou seja, o método se
desdobra na tentativa de dar conta das várias contradições que uma obra
literária pode comportar. Não se trata de elaborar uma lógica de leitura, mas de
apreender a lógica dinâmica estabelecida na narrativa, de modo que seja
possível extrair do texto literário os movimentos das estruturas moventes.
Tendo como base esse pensamento, esboçarei como esse método me
auxiliou a aprofundar a interpretação de Luís da Silva, narrador e protagonista,
de Angústia, de Graciliano Ramos. Como o método dialético nasce do objeto,
iniciarei expondo o estilo de Luís da Silva para mostrar como o social não pode
ser descartado.
2
O conceito de estilo aqui empregado não se restringe às questões
estilísticas, mas significa, conforme Mikhail Bakhtin (2010, p.174), uma
penetração ao objeto expondo e representando uma linguagem que, nela, já
está contido o social. Diante disso, a ideia de partir do estilo para se chegar ao
social é apenas um esquema de análise, já que é totalmente pertinente
começar pelo social para chegarmos ao estilo. Um não pode ser visto sem o
outro.
O estilo em Angústia acompanha o movimento do objeto representado: a
consciência de Luís da Silva. Isso não é difícil de perceber na leitura do
romance, pois a própria escolha do narrador em primeira pessoa já nos mostra
a adequação da linguagem com o objeto. Não seria adequado, para expressar e
representar algo tão íntimo, um narrador em terceira pessoa. O que explica,
por sua vez, o fato da narrativa ser tão confusa como a consciência de Luís da
Silva. Para colocar em evidência a dinâmica do objeto, são utilizadas técnicas
das quais o uso fora intensificado ou criado na literatura moderna como o
monólogo interior, o fluxo de consciência, o solilóquio e o ritmo fragmentário
com idas e vindas na narrativa sem aparente preocupação sequencial e lógica.
Além da quase eliminação do discurso direto, se compararmos Angústia com os
dois primeiros romances do escritor: Caetés (1933) e São Bernardo (1934).
Se a consciência de Luís da Silva está no momento do presente e, de
repente, sem qualquer motivo aparente, começar a relembrar de algum fato do
passado, a narrativa acompanha esse movimento. Vejamos um exemplo:
Seu Ivo está invisível. Ouço a voz áspera de Vitória e isto me desagrada. Entro no meu quarto, procuro um refúgio no passado. Mas
não me posso esconder inteiramente nele. Não sou o que era naquele tempo. Falta-me tranqüilidade, falta-me inocência, estou feito um
mulambo que a cidade puiu demais e sujou.
Fumo. Assisto a uma discussão do barbeiro André Laerte com o negociante Filipe Benigno. As palavras me chegam quase apagadas,
destituídas de senso (RAMOS, 2005, p.24).
3
Neste episódio, o protagonista está distraído pensando em sua vida
quando começa a lhe chegar imagens do seu passado. Depois de reclamar da
sua situação no presente, não sabemos exatamente em qual tempo ele está
fumando, se a discussão de André Laerte ocorre no momento em que o
narrador fuma ou se ele está lembrando enquanto fuma. Só ao longo da
narrativa que vamos nos situar um pouco mais, quando tomamos conhecimento
que André Laerte e Filipe Benigno fizeram parte da sua infância. A confusão
acontece porque o estilo dinâmico está acompanhando o movimento da
consciência do protagonista.
Concordando que o que está em jogo é a consciência e que o estilo é por
ela moldado, então, é preciso levar em conta o indivíduo Luís da Silva. Isso não
é possível ao desconsiderar que ele é um ser social, o que não implica em
condicioná-lo e interpretá-lo apenas através do momento sócio-histórico, mas
em entender que para pensar sua subjetividade é preciso pressupor que o
social já está nela contida.2
Para compreender o legítimo retorno ao que é próprio de Luís da Silva é
necessário pensá-lo a partir da propriedade específica de seu modo de ser e de
suas relações sociais. Suas qualidades essenciais devem ser vistas num
processo de desenvolvimento intrinsecamente histórico. Dizendo com outras
palavras, o que lhe é peculiar nasce do relacionar-se. A consciência, assim
como a linguagem, não existe como algo vazio que vai sendo preenchido ao
longo da vida, mas nasce exatamente nas interações. Portanto, o indivíduo, em
contínuo desenvolvimento, cria múltiplas formas de viver socialmente, e cada
vez mais variadas, o que, por sua vez, acarreta exigências ao indivíduo. “Esse
processo, que se desenrola objetiva e subjetivamente, em constante interação
entre objetividade e subjetividade, faz surgir as bases ontológicas, das quais a
2 Para Theodor Adorno (2003, p. 66), “a referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela. É isso que se deve esperar, e até a mais
simples reflexão caminha nesse sentido”.
4
singularidade do ser humano, ainda em muitos aspectos meramente natural,
pode adquirir aos poucos caráter de individualidade (social, possível apenas na
sociabilidade)” (LUKÁCS, 2010, p. 82).
Luís da Silva é um inadaptado à sociedade em que vive, é uma pessoa
recalcada e fracassada. Mas para alcançarmos de maneira mais profunda esses
sentimentos é preciso levar em conta a sua formação como indivíduo dentro de
um momento sócio-histórico específico. Este fato externo não aparece na obra
literária de maneira referendada ou apontando diretamente as causas e
consequências da personalidade do protagonista. Por isso, estuda-se como ele
foi internalizado e como transparece na sua visão de mundo, que, por
consequência, está representado no seu modo de narrar.
Nesse sentido, o método dialético é importante por considerar a
subjetividade dentro de um processo complexo de relações humanas. Em
nenhum momento, busca-se, com a justificativa do método, uma olhar
fotográfico da sociedade e do indivíduo, como se a história fosse determinista.
Para Luís da Silva, a realidade sempre se constitui numa ambivalência, e
para que ele a compreendesse foi necessário desenvolver uma maneira própria
de englobar os opostos, de modo que as diferentes atitudes e imagens de uma
mesma pessoa não se anulassem ou se excluíssem, mas se complementassem,
formando uma totalidade. Nesse sentido, a disjunção foi se tornando uma
característica própria da personalidade de Luís da Silva. Para entender como ela
foi sendo internalizada, é preciso compreender como os efeitos do
desenvolvimento desigual de vários complexos sociais atuaram na subjetividade
do personagem. Uma das influências sofrida pelo personagem foi o fato de ter
passado grande parte da sua adolescência vivenciando uma situação familiar
ambígua. Seu avô havia sido mandatário local e grande fazendeiro. No entanto,
logo após a Lei Áurea, ele perde todo seu poder de mando e suas terras.
Mesmo assim, o avô, Trajano Pereira, e o pai, Camilo Pereira, continuavam
5
vivendo como se ainda fizessem parte da oligarquia rural. Luís da Silva ouvia
todas as histórias gloriosas do avô, mas o presenciava como um derrotado,
uma pessoa incapaz de modificar a situação econômica da família. Essas
transformações familiares e sociais são mais bem compreendidas caso vistas
dentro de um processo de transformações que estavam ocorrendo no Brasil no
final do século XIX. O país estava passando por um momento de transição do
antigo mundo senhorial para um possível sistema burguês. Essa maneira
própria de ver o mundo foi iniciada na infância e foi se formando ao longo da
sua trajetória de vida.
Internalizado um modo próprio de ver a vida, Luís da Silva, narrador,
quando se propõe a tomar nota dos acontecimentos de sua vida, transpõe para
sua forma de narrar sua maneira de enxergar os fatos. Assim, para concluir, é
possível fazer um esquema de leitura de Angústia, com base no método
dialético. Antes disso, vale enfatizar que todo esquema serve, inicialmente,
como síntese de uma ideia que pode e deve ser estudado com maior
profundidade. Assim, utilizarei as setas para significar, inicialmente, a direção
do estudo:
ESTILO OBJETO (a consciência de Luís da Silva) INDIVÍDUO
REALIDADE SÓCIO-
HISTÓRICA
No entanto, esse esquema só serve para um esboço inicial, pois, em nenhum
momento, é possível interpretar em Angústia a sociedade fora de Luís da Silva,
até porque se trata de um narrador em primeira pessoa, tampouco é possível
compreendê-lo fora da realidade. Ambos estão integrados. Desse modo, o
esquema mudaria e uma versão mais honesta ficaria da seguinte maneira:
6
ESTILO OBJETO INDIVÍDUO REALIDADE
O importante é notar que o entendimento de um dos itens acima não se
faz de modo satisfatório caso outro, qualquer um, seja desprezado. Por
exemplo, não é possível entender o estilo sem a realidade, nem a realidade
sem o estilo ou sem o indivíduo, visto que todos estão indissoluvelmente
articulados no romance.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ACÍZELO, Roberto de Souza. Iniciação aos Estudos Literários. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ADORNO, Theodor. Palestra sobre lírica e sociedade. In: ______. Notas de Literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003, p. 65-90. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010. LUKÁCS, Georg. Prolegômenos para uma ontologia do ser: questões de princípios para uma ontologia hoje tornada possível. São Paulo: Boitempo, 2010. ______. “Contribuição à história da estética”, IN: ______ Arte e sociedade: escritos estéticos 1923-1967. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. RAMOS, Graciliano. Angústia. 61º edição. Rio de Janeiro – São Paulo: Record, 2005. ______. Caetés. 29. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2002. ______. São Bernardo. 82. ed. Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2005.
A POÉTICA DA RECUSA1
Lucimara de Andrade (UFMG) 2
RESUMO: O presente artigo pretende discutir a figura do escritor Ariano
Suassuna a partir de artigo publicado em 9 de agosto de 1981 no Diário de
Pernambuco intitulado “Despedida”. Nele o escritor anuncia a sua “despedida
da vida literária”. Tal questão possibilitará abordagens relacionadas à “síndrome
de Bartleby”, ao biográfico e ao personagem Quaderna.
Em 9 de agosto de 1981 Ariano Suassuna despede-se da vida literária em
um artigo intitulado “Despedida”.
Hoje, estou me despedindo. Preciso me recolher, para tentar reunir os estilhaços em que fui me despedaçando, e ver se ainda é possível
recompor com eles alguma unidade. (...) Aliás, não é nem uma decisão que estou tomando: como as serpentes que trocam a pele
antiga por uma nova, de repente acordei mudado, sem saber como
nem porquê. (Diário de Pernambuco, 9 ago. 1981)
Estaria Ariano sendo tomado pela síndrome de Bartleby? Essa espécie de
mal endêmico das letras contemporâneas, pulsão negativa ou a atração pelo nada que faz com que certos criadores, mesmo tendo
consciência literária muito exigente (ou talvez precisamente por isso) nunca cheguem a escrever; ou então escrevam um ou dois livros
depois renunciam à escrita; ou, ainda, após retomarem sem problemas uma obra em andamento, fiquem, um dia, literalmente
paralisados para sempre. (VILA-MATAS, 2004, p. 10).
1 Inicialmente esse trabalho foi elaborado como trabalho de conclusão da disciplina “Seminário de Teoria da Literatura: saberes ficcionais e ensaísticos na contemporaneidade”, do Programa
de Pós-graduação em Estudos Literários da UFMG, ministrada pelo Prof. Dr. Roberto Alexandre do Carmo Said. 2 Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pelo Programa de Pós-graduação
em estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), orientanda da Profª Drª Leda Maria Martins e bolsista CAPES.
1
Pois bem, “nobres senhores e belas damas3”, a recusa de Dom Ariano
Villar Suassuna deve-se a questões muito mais complexas. O caso talvez nem
seja de poder ou não poder criar, mas de “preferir não”. Esta fase de “silêncio”
é de intensa atividade criadora. Segundo Carlos Newton Júnior (1999), quando
Ariano falava em isolamento e em abandono da vida literária, não queria dizer
que ele estava renunciando à literatura, mas sim a toda publicidade ao redor de
sua produção. Ariano continuou escrevendo e lecionando Estética e Cultura
Brasileira na Universidade Federal de Pernambuco além de dedicar-se a sua
poesia e as suas iluminogravuras4. Ariano também assumiu cargos públicos
(Secretário de Cultura do Estado de Pernambuco em 1995 e novamente em
2007), além de viajar pelo país ministrando suas aulas-espetáculo. Além disso,
há algumas particularidades de Ariano que cabem aqui serem colocadas. O
escritor escreve à mão. Depois ainda costuma datilografar na máquina de
escrever e corrigir à mão. Escreve e reescreve com sua letra miúda e trêmula
várias vezes, além da tendência, como ele mesmo diz, de ser prolixo e muito
exigente com a forma de escrever.
Não se trata então de uma impossibilidade criadora. Se se “prefere não”
então a possibilidade de criar existe. E é nesse limiar que estaria a potência de
vir a ser e talvez do vir a não ser. Como sugere Giorgio Agamben (2007),
“aquilo que se mostra no limiar entre ser e não ser, entre sensível e inteligível,
entre palavra e coisa, não é o abismo incolor do nada, mas o raio luminoso do
possível.” (p. 30)
3 Forma pela a qual o personagem Dom Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, ou simplesmente Quaderna, dirigi-se a nós leitores. 4 Esse nome resulta da fusão da iluminura medieval com o processo de gravação em papel. As iluminogravuras são o trabalho em que Ariano Suassuna une sua poesia com seu trabalho de
artista plástico. As iluminogravuras estão distribuídas em dois livros: o primeiro intitula-se
“Sonetos com mote alheio” e o segundo “Sonetos de Albano Servo Negro”. Na verdade, não se trata de livros publicados, mas de álbuns artesanais não encadernados. Cada álbum contém
pranchas de papel cartão de 44cm x 66cm pintadas a mão.
2
Aqui, tomando mais uma vez emprestado o estilo régio de Quaderna, faço
uma pausa e deixo para mais adiante continuação dessa reflexão sobre a
potência do não. Eu poderia perfeitamente dar continuidade sobre as reflexões
bartlebyanas de teóricos ilustres, mas prefiro não fazê-lo agora. Vou deixar isso
para depois. Assim, perdoem-me esta pequena astúcia retórica, tenham
paciência e permitam-se passear pelos meandros labirínticos do Castelo
subterrâneo de Dom Ariano Villar Suassuna.
O ERRO E A PARALISIA OU: A QUESTÃO BIOGRÁFICA
Ariano Suassuna pretendia escrever uma trilogia chamada A Maravilhosa
Desaventura de Quaderna, o Decifrador e A Demanda Novelosa do Reino do
Sertão. Como A Pedra do Reino, o segundo livro teria cinco partes, das quais
ele escreveu apenas duas e publicou no Diário de Pernambuco como folhetim.
No entanto, Ariano pegou a primeira parte e publicou, em forma de livro, com o
título História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: ao Sol da Onça
Caetana, mas depois chegou à conclusão que tinha cometido um erro, tanto é
que o livro não foi reeditado:
Quaderna mudou completamente, acabou-se a ironia, porque eu deixei que a minha história pessoal entrasse pela história e pela
personalidade de Quaderna. Enquanto A Pedra é narrado por Quaderna, O Rei Degolado é narrado por Suassuna. Eu já tinha
descoberto que era um erro, parei, não publiquei a segunda parte.
(AGÊNCIA, 2006).
Quando Ariano fala em “erro”, ele refere-se a ter se deixado levar pela
carga autobiográfica. Se pararmos para refletir sobre a obra romanesca de
Ariano, ficamos confusos, pois ele é publicado por um autor que criou um
personagem que se assume como o dono do enredo. É a obra de Quaderna
dentro da obra de Suassuna. Ou seria o contrário? Mas é importante pensarmos
3
que estamos diante de uma obra narrativa. Assim, torna-se necessário
refletirmos um pouco sobre a questão do narrador. De acordo com Benjamin
(1996) “entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se
distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos.”
(p. 198) Pensando na questão da oralidade, logo vem à mente a forte ligação
de Suassuna com a Literatura de Cordel, a qual ele conhecera ainda menino em
Taperoá. Segundo Braulio Tavares (2007), para Ariano, o cordel é uma forma
de expressão que envolve a Literatura, a Música e as Artes Plásticas e foi em
torno dessas três expressões que ele criou suas obras mais expressivas. Ao
criar um narrador, Quaderna, que teve seus primeiros contatos com a Literatura
de Cordel também durante a infância em Taperoá, Ariano aproxima as suas
experiências à de seu personagem e daí poderíamos dizer que tanto autor
como personagem se assemelham à figura do “camponês sedentário” de
Benjamin, figura esta que corresponde ao representante arcaico que conhece
as histórias e tradições de seu país em oposição à figura do “marinheiro
comerciante”, cuja itinerância é a principal fonte de sua narrativa. Assim sendo,
mestres na arte de narrar, autor e personagem estendem para o reino narrativo
suas experiências.
Vejamos esse trecho do texto O teatro, o circo e eu escrito por Ariano
Suassuna em 1977:
já declarei várias vezes que sou um Palhaço e Dono-de-Circo
frustrado. Meu trabalho de escritor, de professor, de falso profeta fraco e pecaminoso, de cangaceiro sem coragem, de organizador de
espetáculos armoriais de música e dança, de cavaleiro sem cavalo e de criador de cabras sem terra, não passa da tentativa de organização
de um vasto Circo. Assim, se aqui, por acaso, aparecem às vezes, numa espécie de ressurreição do folhetim, os figurantes grotescos ou
dramáticos da farsa e tragédia da Política, ou se surgirem
personagens ficcionais que tenho inventado ao longo de 30 anos de trabalho literário, serão, todos esses, os atores ambulantes, mágicos,
reis, dançarinas, “guerreiros-brincantes”, palhaços e equilibristas de meu Circo. E sempre que escrever sobre os pintores de papel e
criadores das roupagens de meu “espetáculo ideal” que estou
4
pensando – esse espetáculo meio circense e desarrumado ao qual se dedicam minha vida e minha imaginação meio extraviadas, tentando
imprimir-lhe alguma ordem e beleza, para colocá-lo, como um
espelho, diante do Circo do mundo. Faz muito tempo tomei consciência de que, tanto como escritor
quanto como criador do Quinteto Armorial ou da Orquestra Romançal Brasileira – cujos concertos sempre procurei transformar num misto
de música e espetáculo no qual eu funcionava como chefe dos comediantes; tanto escrevendo romances ou peças, quanto na
qualidade de criador do Balé Armorial do Nordeste, da Orquestra
Popular do Recife, estava eu na verdade recriando na Arte o circo que não pudera ter na vida. (SUASSUNA, 2008, p. 209-211)
A imagem do circo também é emblemática para o personagem Quaderna.
O circo é parte de sua formação teatral, cinematográfica e literária, como
também de sua iniciação à “homência”, e, como todo bom pícaro, não poderia
o circo deixar de ser uma forma de levar vantagem. Mas, o mais importante é
pensar que o circo é o jeito que Quaderna tem de transformar, ou seja, de
recriar, de inventar e dar cores e brilhos à realidade afoscada do Sertão. É
sendo o Dono-do-Circo que ele pode também cumprir vários papéis
dependendo de sua necessidade. É sendo o Dono-do-Circo que ele pode agir
ora como Palhaço Sabido, passando a perna em seus mestres e rivais; ora
como Palhaço Besta, se fazendo de inocente diante do Juiz Corregedor; ora
como Mágico, criando imagens ilusórias e ora como Equilibrista tentando se
desviar dos golpes do infortúnio, além de ser o Dono, ou seja, o mandante, o
chefe-organizador de todos esses “atores ambulantes” e “guerreiros-brincantes”
que desfilam, fazem piruetas, dançam, fazem palhaçadas e tentam se equilibrar
nesse picadeiro sonhoso e literário.
Eu e minhas Cavalhadas propomos outra coisa – uma síntese entre o
Cordão azul de José de Alencar e o Cordão vermelho de Aluízio Azevedo. Não fechamos os olhos para a insânia, a injustiça, o
sofrimento e a morte, coisas que um dia, os historiadores do futuro
verão registradas aqui, juntamente, e no mínimo, com as dilacerações e becos-sem-saída em que andou o Brasil neste triste, epopeico e
trágico momento de sua História. Mas achamos que seria uma espécie de covardia lamuriosa ficarmos a nos lamentar por causa disso. Então,
acentuando uma cor de estandarte aqui, fazendo reluzir um manto de
5
vidrilhos baratos ali, montando a cavalo acolá, vestindo-nos de Reis com coroas de flandre, ou pintando a cara de alvaiade como os
“Velhos” do pastoril, entre gargalhadas despedaçadas e corajosas,
prantos desatinados, estandartes e máscaras de couro, ásperos toques de rabecas, violas, pífanos e tambores, respondemos à
mascarada trágica, desordenada e esfarrapada da Vida com outra – protesto e denúncia contra a primeira, por ser uma tentativa de
reerguer, com os destroços da tragédia e do grotesco do mundo, um outro universo – este Castelo que é, na Arte, o que o mundo deveria
ser na realidade, isto é, humano e exalçado, com as chagas da
miséria e da morte cicatrizadas – um Castelo-de-pedra reluzente, firme e glorioso. (SUASSUNA,1977, p. 72)
Para Bakhtin, as máscaras do bufão e do bobo vêm em socorro do
romancista no “desmascaramento” da vida representada, o que está
intimamente ligado ao sentido figurado de toda a imagem do homem e de seu
aspecto alegórico que possui um importante significado no romance: a
denúncia de todo o convencionalismo falso nas relações humanas. Para o
teórico:
esta luta contra as convenções é prosseguida pelo romance numa base mais profunda e radical. Além disso, a primeira linha, a linha da
transformação do autor, utiliza-se das figuras do bufão e do bobo
(que não compreendem a convenção deplorável da ingenuidade). Na luta contra o convencionalismo e a inadequação de todas as formas
de vida existentes, por um homem verdadeiro, essas máscaras adquirem um significado excepcional. Elas dão o direito de não
compreender, de confundir, de arremedar, de hiperbolizar a vida; o direito de falar parodiando, de não ser literal, de não ser o próprio
indivíduo; o direito de conduzir a vida pelo cronotopo5 intermediário
dos palcos teatrais, de representar a vida como uma comédia e as pessoas como atores; o direito de arrancar as máscaras dos outros,
finalmente, o direito de tornar pública a vida privada com todos os seus segredos mais íntimos. (BAKHTIN,1998,p. 278)
Segundo Bakhtin (1993), em uma das obras-primas do grotesco
romântico, Rondas Noturnas, de Bonawentura, encontramos opiniões muito
significativas sobre o riso na boca de um guarda-noturno. Num determinado
ponto o personagem explica o riso: “Haverá no mundo meio mais poderoso
5 O termo cronotopo refere-se, segundo Bakhtin (1998), à interligação fundamental das relações temporais e espaciais artisticamente assimiladas na literatura. (p. 211)
6
para opor-se às adversidades da vida e do destino! O inimigo mais poderoso
fica horrorizado diante desta máscara satírica e a própria desgraça recua diante
de mim, se me atrevo a ridicularizá-la!” (p. 33)
A atitude de Quaderna, em relação ao riso, aproxima-se da atitude em
relação ao riso no Renascimento, a qual, segundo Bakhtin (1993), pode ser
caracterizada da seguinte maneira:
o riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das
formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, sobre a história, sobre o homem; é um ponto de vista
particular e universal sobre o mundo, que percebe de forma diferente, embora não menos importante (talvez mais) do que o sério;
por isso a grande literatura (que coloca por outro lado problemas universais) deve admiti-lo da mesma forma que ao sério: somente o
riso, com efeito, pode ter acesso a certos aspectos extremamente
importantes do mundo. (p. 57)
Vejamos o que Braulio Tavares (2007) diz sobre o personagem Quaderna
e sobre seu criador Suassuna:
existem pontos de semelhança óbvios entre os dois (e diferenças
também óbvias), mas sem dúvida uma das razões principais para isso é a identidade de estilo oral entre os dois. Quem lê o livro e assiste a
uma aula-espetáculo do autor percebe que o tom de voz de Quaderna é o mesmo de Ariano. O estilo, o vocabulário, a sintaxe barroca
incrustada de cláusulas e subcláusulas, o adagiário nordestino, as guinadas bruscas no meio de uma argumentação para explicar
exaustivamente um detalhe acessório, a mistura de interjeições
populares e vocabulário erudito... e acima de tudo a exaltação, o entusiasmo, a oralidade de comportas escancaradas que confere ao
personagem, na frieza da página escrita, o tom permanente de quem prega para uma congregação de leigos. (p. 141-142)
Segundo Bakhtin (1997), existe uma prática muito recorrente que busca
“extrair um material biográfico de uma obra e, inversamente, em explicar uma
obra pela biografia, contentando-se com uma coincidência entre fatos
pertencentes respectivamente à vida do herói e à do autor.” (p. 29) Ora, é bem
possível que as obras dos criadores estejam contaminadas por algum tipo de
fragmento biográfico. A questão é a transposição desse fragmento biográfico
7
para um fragmento estético. Ou seja, quando esse fragmento biográfico
transposto para uma obra passa a ter um valor estético.
Quando Ariano diz que o livro História d’O Rei Degolado é autobiográfico
e, por esse motivo ele o considera um erro, do ponto de vista literário,
poderíamos dizer que ele estaria de acordo com o pensamento de Gilles
Deleuze em seu texto “A Literatura e a vida”. Para Deleuze (1997) “escrever
não é contar as próprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos
e fantasmas”. (p.12) Para o teórico, pecar por excesso de realidade ou de
imaginação é a mesma coisa, ambos implicariam em uma espécie de estrutura
edipiana que se projetaria no real ou se introjetaria no imaginário. Já Maurice
Blanchot (1987), “acredita que as lembranças são necessárias, mas para serem
esquecidas, para que nesse esquecimento, no silêncio de uma profunda
metamorfose, nasça finalmente uma palavra, a primeira palavra de um verso.”
(p. 83) Diante disso poderíamos dizer que é no esquecimento das lembranças,
nesse silêncio, ou nesse apagamento que se iniciaria a metamorfose, o começo
de toda criação.
A POTÊNCIA DA VONTADE PRÓPRIA
“Começar a pensar é começar a ser atormentado”, disse Albert Camus
(2012). A tormenta no caso do conto de Herman Melville está ligada mais ao
narrador (advogado e patrão de Bartleby) que a Bartleby. A tormenta surge a
partir do momento em que Bartleby profere a fórmula “prefiro não...”. Frase
inconcebível para um patrão ouvir de seu funcionário. E é aí que se instaura o
absurdo. O advogado se vê sem reação diante dessa recusa justamente porque
ela não é uma recusa rebelde, mas uma recusa tímida e sem razão. Não se
trata de um enfrentamento. E é justamente por isso que ela é absurda. Porque
ela rompe, mas ela não possui pressupostos. Não se sabe como e nem por que
8
Bartleby a pronuncia. Não há lógica, mas uma forte potência destrutiva: uma
espécie de potência da vontade própria – se é que se pode dizer assim.
Mas, o que tipo de ligação há entre o conto de Melville e Ariano
Suassuna? Vou tentar esclarecer. Ariano, muitas vezes, se refere a Quaderna
como se ele tivesse vontade própria. Como então lidar com um autor que
parece ver, ou melhor, ouvir sua personagem em outro lugar que não a sua
obra? Como lidar com um personagem que parece se desprender das páginas
na qual ele vive? Algo bastante complexo. São muito curiosas as declarações de
Ariano sobre Quaderna. Poderíamos dizer que é pura jogada pois, por mais
absurdo que pareça, Ariano já declarou que tentou afogá-lo.
Não pretendo comparar Quaderna com Bartleby. A relação que estou
estabelecendo aqui é a do estranhamento, em termos hierárquicos, da postura
do empregado frente a seu patrão e a do personagem frente a seu criador. Não
se sabe o que fazer com esses personagens que deveriam ser subalternos – se
é que isso seria possível. Eles destroem a pirâmide hierárquica. São criaturas
fantasmagóricas que insistem em preferir permanecer onde estão. Aliás, é a
única coisa que se sabe delas: onde elas estão. Quando se deixa de alimentá-
las, elas padecem. O advogado deixou de alimentar Bartleby e Ariano
interrompeu a escrita de sua trilogia.
Na verdade, Ariano não a interrompeu. Ariano ainda pretende concluir a
narrativa de Quaderna. Desde o início a década de 80 ele vem escrevendo um
romance que virá a ser uma espécie de livro-síntese que incluirá teatro, poesia,
prosa e artes plásticas. Nota-se que 1981 é o ano em que ele escreveu o artigo
“Despedida”. No artigo citado há um trecho que Ariano diz o seguinte:
sou um homem perturbado por sonhos, quimeras e visões às vezes
até utópicas da vida e do real. Depois que escrevi certas partes do romance que deixo inconcluso, comecei a me libertar de alguns dos
fantasmas que me perseguem; assim talvez possa começar a sair,
também, do caos trevoso e palavroso da maldita Literatura – a minha e a dos outros. (Diário de Pernambuco, 9 ago. 1981)
9
Segundo Gilles Deleuze (1997), do que viu e ouviu, o escritor regressa
com os olhos vermelhos, com os tímpanos perfurados. (p. 14) No entanto, para
teórico não se escreve com as próprias neuroses, pois “a doença não é
processo, mas parada do processo, como no "caso Nietzsche".” (DELEUZE,
1997, p. 13) Assim, a literatura apareceria para Deleuze como um
“empreendimento de saúde”.
No caso do escritor Ariano Suassuna, talvez, a literatura funcionaria como
uma forma de dar ordem ao caos, como uma forma de se libertar dos
fantasmas. Dependendo de como se encara a neurose, ela pode ser a paralisia
ou “a gota de trevas com que o pensamento escreve” tomando emprestadas as
palavras de Agamben. Pensando em Ariano, o produzir artisticamente e
intelectualmente parece um adiamento da morte, ou um “preferir não” morrer.
Em várias entrevistas Ariano já declarou que não pretende morrer.
Como foi falado anteriormente, desde 1981 Ariano Suassuna está
escrevendo seu livro-síntese que até então se chamará “O Jumento Sedutor”.
Enquanto isso Ariano viaja pelo país com seu projeto Ariano Suassuna – Arte
como Missão. Aos 86 anos ele não descansa. Ariano, esse “cabra” com uma voz
rouca e fraca com uma letrinha miúda e trêmula a proferir desaforos e escrever
invencionices fantasiosas, como um Quixote arcaico a brandir sua espada
contra os moinhos de vento – os gigantes destruidores da cultura brasileira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGAMBEN, Giorgio. Bartleby, escrita da potência. Lisboa: Editora Assírio & Alvim, 2007. BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na idade média e no renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: EdUnB, 1993.
10
BAKHTIN, Mikhail. O problema do herói na atividade estética. In: Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 25-114. BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: Editora Unesp, 1998. BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1996. p. 195-221. BLANCHOT, Maurice. A morte possível. In: O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco,1987. p. 83-105. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro. BestBolso, 2012 DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. São Paulo. Editora 34, 1997 NEWTON JÚNIOR, Carlos. O pai, o exílio e o reino: a poesia armorial de Ariano Suassuna. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1999. SUASSUNA, Ariano Villar. História d’O Rei Degolado nas Caatingas do Sertão: Ao Sol da Onça Caetana. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1977. SUASSUNA, Ariano Villar. Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2006. SUASSUNA, Ariano Villar. O teatro, o circo e eu. In: NEWTON JÚNIOR, Carlos (org.). Almanaque Armorial. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. p. 209-212. TAVARES, Bráulio. ABC de Ariano Suassuna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. VILA-MATAS, Enrique. Bartleby e companhia. São Paulo: Cosac Naify, 2004. DOCUMENTOS ELETRÔNICOS AGÊNCIA Estado. Mestres na difícil Ciência de decifrar o Brasil. São Paulo, 2006. Entrevista com Ariano Suassuna e Antunes Filho. Disponível em: <http://www.nordesteweb.com/not07_0906/ne_not_20060720b.htm>. Acesso em: 06 jun. 2013 FONTES SUASSUNA, Ariano Villar. Despedida. Diário de Pernambuco. Recife, 9 ago. 1981.
REVISITANDO A NAÇÃO ONETTIANA: CONTRIBUIÇÕES PÓS-ESTRUTURALISTAS PARA A CRÍTICA CULTURAL
Viviane Monteiro Maroca (UFMG)1
RESUMO: Este trabalho tem como objetivo refletir sobre a importância do pós-
estruturalismo para a constituição de espaços teóricos pós-coloniais/pós-
ocidentais, de acordo com Walter Mignolo, a partir dos quais se analisa a
produção literária latino-americana. Busca-se enfocar a obra crítica do escritor
Juan Carlos Onetti para pensar os impactos do pós-estruturalismo no sentido de
descentralizar categorias fixas do pensamento ocidental, sobretudo a relação
entre nação e literatura. Nesse sentido, a obra de Onetti serve como base para
avançar o questionamento pós-estruturalista, invocando o conceito de pós-
ocidental de Mignolo para repensar a ideia de nação apresentada em textos do
escritor uruguaio como um lugar de enunciação heterogêneo, que coloca em
questão as verdades estabelecidas pelo pensamento moderno europeu. A
noção de nação, como uma noção homogênea, englobando uma comunidade
política, é questionada pela literatura e pela crítica de Onetti, na medida em
que questiona essa coesão para mostrar as ambiguidades e fraturas do discurso
nacionalista. Assim, tais interstícios e ambiguidades só se tornam possíveis pelo
exercício crítico que, ao ler a obra de Onetti, seja capaz de incorporar as
posições teóricas pós-estruturais.
PALAVRAS-CHAVE: Juan Carlos Onetti; nação; pós-estruturalismo.
É notório que a obra Juan Carlos Onetti seja um marco na literatura de
seu país e continente por articular uma estética existencialista com uma
literatura urbana. Onetti começa a publicar em 1933, e seu primeiro romance,
O poço, é editado pela primeira vez em 1939, ano em que é lançado o
semanário Marcha de Montevidéu. Onetti é convidado por Carlos Quijano,
fundador de Marcha, para assumir o ofício de secretário de redação do 1 Doutoranda em Estudos Literários pela Faculdade de Letras- UFMG.
1
semanário desde seu primeiro número (de 23 de junho de 1939), onde
permanecerá até 1941. O escritor também foi responsável pela coluna de crítica
literária de Marcha, cargo que viria a ser ocupado por importantes intelectuais
do país ao longo dos 35 anos de existência do jornal, como Angel Rama e Emir
Rodríguez Monegal.
Uma das colunas que Onetti publica, La piedra en el charco, sob o
pseudônimo de Periquito el Aguador, representou, como VERANI (1996) e
ROCCA (1992) notam, um marco para a literatura do país, que não havia
produzido, até então, obras importantes de vanguarda. Já em 1968, recorda-se
de ter dito a Quijano que desconhecia a existência de uma literatura nacional
na ocasião da fundação do semanário (ONETTI, 2009, p.353) e, com sua
coluna, visava “apedrejar semanalmente o charco vazio das letras” de seu país.
É curioso como a noção de literatura nacional emerge do discurso de
Onetti. A princípio soa como uma simples generalização, mas sua constante
reiteração ao longo da publicação – não precisamente semanal – de La piedra
em el charco leva-me a indagar o que seria nacional aos olhos de Onetti.
Nos dias de hoje, pensar em literatura em termos de nação pode parecer
anacrônico, visto que a noção de fronteira é também abstrata em um mundo
globalizado no qual a informação atravessa o globo instantaneamente. Mas a
ideia de uma literatura nacional sempre acompanhou a necessidade de
afirmação de um Estado-nação.
Frederick Jameson, em Third world literature in the Era of Multinational
Capitalism, de 1986, instala uma polêmica ao afirmar que “todos os textos do
terceiro mundo são necessariamente, discutirei, alegóricos, e de um modo
muito específico: devem ser lidos como o que chamarei de alegoria nacional.”
(JAMESON, 1988, p.69). Indistintamente, haveria esta via de leitura para os
textos produzidos nos países de terceiro mundo.
2
As respostas a Jameson não demoraram a aparecer, e a de Aijaz Ahmad
veio sob o título de A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”.
Ahmad expressa seu incômodo com o fato de que, para Jameson, o primeiro e
o segundo mundo sejam estabelecidos segundo seus sistemas de produção
(capitalismo e socialismo), enquanto terceiro mundo é definido “em termos de
uma ‘experiência’ de fenômenos inseridos externamente. Aquilo que é
constitutivo da própria história humana estará presente nos dois primeiros
casos, ausente no terceiro” (AHMAD, 1998, p.161), sendo ao terceiro mundo
relegado o posto de objeto da história do primeiro mundo. Além disso, Ahmad
questiona se, de fato, todos os textos produzidos em países que foram
colonizados seriam textos de terceiro mundo em virtude, exclusivamente, de
sua localização geográfica, e alega que a alegorização não é específica do
terceiro mundo se se pensarem as relações entre público e privado, pessoal e
comunal. A extensa crítica não se restringe a esses pontos, mas aponta o quão
reducionista e empobrecedora pode ser a leitura de Jameson.
É incômodo o vínculo estreito que Jameson impõe aos países colonizados
com as metrópoles, que ainda implica certa inferioridade e subserviência ao
“primeiro mundo”. Contudo, de modo distinto, parece-me interessante a leitura
de Doris Sommer que apresenta a possibilidade de ler algumas obras latino-
americanas do século XIX como alegorias da nação. Elas seriam obras
fundadoras da nação, no momento em que os países latino-americanos iam se
tornando independentes. Sommer nota que “os romances românticos
caminham de mãos dadas com a história patriótica na América Latina”, e que “a
paixão romântica (...) forneceu uma retórica para os projetos hegemônicos, no
sentido gramsciano de conquistar o adversário através do interesse mútuo, ou
do ‘amor’, ao invés da coerção” (SOMMER, 2004, p.21).
Gourgouris corrobora em partes com a posição de Sommer:
3
Enquanto forma, a nação é fundamentalmente ininteligível. Ou, mais precisamente: uma nação não pode ser lida como um texto; inclusive se tivesse (ou produzisse) sentido, deveríamos desconfiar dele. É por
isso que é decisivo perceber a natureza formal da nação como semelhante à de um sonho. Atribuir ao imaginário nacional as
características de uma exclusiva formação discursiva não é justo para com sua complexidade. A ênfase deve mudar de uma nação-como-
texto a uma nação-como-sonho, o que quer dizer que aqueles textos que portam a marca da nação podem, em definitivo, ser vistos como
descrições dos pensamentos do sonho da nação[...]. (GOURGOURIS
apud ACHUGAR, 2006, p. 231.)
Achugar (2006, p.231) concorda com Gourgouris, em Dream Nation, que
a nação não poderá ser reduzida a um conjunto de práticas e leituras
predeterminadas, mas essas leituras deverão dialogar e coexistir com outros
projetos de leitura diferentes. Portanto, concordo com Achugar quando diz
que: “a construção da nação realizada por determinados textos, ou discursos,
ou por determinados sujeitos sociais, é passível de ser substituída por outras e
implica, de fato, uma leitura incompleta e parcial; ou seja, inesgotável” (2006,
p.231), já que, como afirmará mais à frente, ainda no ensaio Direitos de
memória, sobre independências e estados-nação na América Latina, “esses
relatos [...] constroem ‘mundos paralelos’ que, geralmente, dizem mais dos
lugares a partir de onde se narra e da posição de quem narra, do que dos fatos
que descrevem.” (p.235). Os textos ou práticas discursivas não devem ser
compreendidos como “nação-como-texto”, mas como sonho, porque a nação
não pode ser redutível ou delimitada.
A tentativa de homogeneização de textos e nações nasce do projeto de
Goethe de Weltliteratur. Retomando o diálogo entre Goethe e Eckerman de
1827, Hugo Achugar (2006, p.65-80) já aponta alguns dos conflitos que
compõem o que chama de “a cena primordial da história da literatura
contemporânea do Ocidente”: as relações entre cosmopolitismo e exotismo;
localismo e universalismo, estranheza e universalidade. Nesta cena, Achugar
mostra que o movimento homogeneizador em questão trata de dirimir as
especificidades dos textos e suas diferenças culturais, visando a inseri-los em
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um todo “razoavelmente burguês”. Neste contexto, surge a primeira formulação
do conceito de Weltliteratur – traduzida como literatura mundial, universal e até
mesmo literatura cosmopolita – que já nasce como antagônica à literatura
nacional. Vale frisar que, para Goethe, a literatura mundial seria produto de um
trabalho coletivo entre franceses, ingleses e alemães.
O conceito de Weltliteratur surge no momento em que se tornavam
estados-nação as ex-colônias americanas, e Achugar atenta para a seguinte
condição: o que se costumou chamar de universal surgiu, como argumenta
Judith Butler, nos discursos de esquerda que notaram o uso do termo a serviço
do colonialismo e do imperialismo; ela teme que o que tem sido chamado de
universal é a provinciana propriedade da cultura dominante. Ou, em outras
palavras, o ocidentalismo. Em consonância com o que Walter Mignolo (2003)
chama de sistema mundial colonial/moderno (a modernidade foi concebida em
termos de progresso, de cronologia e da superação de um estágio anterior), a
pós-colonialidade não é uma superação da colonialidade, mas uma
reorganização de seus alicerces. Ela não é um significante vazio que apenas
homogeneíza e acomoda os “elementos restantes” do processo de
descolonização, e, sim, está entranhada em cada história local, conectando-as e
inserindo-as em um projeto universal. Mas Mignolo considera a expressão pós-
colonial problemática para ser aplicada às práticas culturais dos séculos XIX e
XX na América Latina, preferindo o termo pós-ocidentalismo para esse
contexto.
Este termo pós-ocidental, de reorganização de uma nova epistemologia
latino-americana, ainda não tocará o período a partir do qual Onetti escreve sua
crítica em Marcha. Mas entender a relação intrínseca – se não a sinonímia -
entre universalismo e ocidentalismo apresenta-se imprescindível para pensar o
problema que ora proponho pensar.
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O primeiro artigo de Periquito el Aguador, Señal, apresenta “a ostensiva
depressão literária que caracteriza os últimos anos da atividade nacional. (...)
As letras seguem destilando-se das antigas e deslizantes plumas” (ONETTI,
2009, p.355), o que induziria a pensar que o Uruguai seria um país fantástico,
onde teria desaparecido a juventude e o relógio marcasse sempre a mesma
hora. Ainda, atribui esse marasmo ao momento que vive o país – o golpe de
estado de Gabriel Terra –, que exige que todas as forças sejam direcionadas à
política.
A princípio, poder-se-ia ter a impressão de que o nacional trataria apenas
de uma questão territorial: a literatura produzida dentro das fronteiras do
estado-nação uruguaio. Mas o final do texto sinaliza para uma questão muito
cara a La Piedra en el charco: “virgens territórios literários da cidade e do
campo2 oferecem sua mais estreita, mas profunda riqueza sentimental aos mais
novos passageiros.” (p.356) Mas, na semana seguinte, vem a proposta de
“esboçar o futuro desejável para a literatura uruguaia”:
Hemos hablado de nuestras gentes y lugares, frondosamente, sin perdonar nada. Pero no hay aún una literatura nuestra, no tenemos
un libro donde podamos encontrarnos. Ausencia que puede achacarse al instrumento empleado para la tarea. El lenguaje es, por lo general,
un grotesco remedo del que está de uso en España o un calco de la
lengua francesa, blanda, brillante y sin espinazo. No tenemos nuestro idioma; por lo menos, no es posible leerlo. La creencia de que el idioma platense es el de los autores nativistas resulta ingenua, de puro falsa. No se trata de tomar versiones taquigráficas para los
diálogos de los personajes. Esto es color local, al uso de turistas que
no tenemos. Se trata del lenguaje del escritor; cuando aquél no nace de su tierra, espontáneo e inconfundible, como un fruto del árbol, no
es instrumento apto para la expresión total. No hay refinamiento del estilo capaz de suplir esta impotencia ingénita. (ONETTI, 2009, p.357.
grifos nossos.)
Agora, a constatação do problema vai além: não há uma literatura
uruguaia porque não há um livro em que os uruguaios podem se encontrar.
2 Grifo nosso.
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Seja por uma linguagem imitada da França ou da Espanha, seja por se crer
erroneamente que o idioma platense era aquele utilizado pelos autores
nativistas. A autenticidade nacional da linguagem e da língua são elementos
imprescindíveis para o projeto de Onetti, somada ao “espíritu nuestro”. Do que
precisaria a literatura rioplatense é uma voz que diga “simplesmente quem e
que somos, capaz de dar as costas a um passado artístico irremediavelmente
inútil e de aceitar despreocupada o título de bárbara.” Aqui parece se esboçar
melhor a questão do nacionalismo, desta vez, contudo, um “nacionalismo
platense”. Mas o que soa ainda mais curioso é que Onetti também reclame a
sua condição de bárbaro. Principalmente porque a narrativa urbana é um dos
principais aspectos dessa nova estética nacional que estaria por vir e que
reclamava Onetti, e a barbárie remete, imediatamente, à vida nos pampas e, no
âmbito da literatura, à gauchesca.
Para o autor, o fato de a literatura ser gauchesca não é um problema por
si só:
Declaramos en voz alta – para que se nos oiga en toda orilla del
charco que apedreamos semanalmente – que si Fulano de Tal descubre que el gaucho Santos Aquino, de Charabón Viudo, sufre un
complejo de Edipo con agregados narcisistas, y se escribe un libro
sobre ese asunto, nos parece que obra perfectamente bien. (ONETTI, 2009, p.368).
O problema seria a falta de familiaridade do autor Fulano de Tal com
Charabón Viudo, com o paisano Aquino e seu complexo. E, ainda, a persistência
de autores que nunca saíram de Montevidéu, queriam fazer uma literatura
nacional e teimavam em escrever sobre ranchos de totora, velórios de angelitos
e épicos rodeos. Um outro ponto que incomodava a Onetti no que toca a
literatura gauchesca é sua repetição, a que chamará de “retórica literária”, e
relativa também à repetição de temas não nacionais. Para Periquito el Aguador,
ela havia se tornado retórica, assim como a literatura de vanguarda que vinha
se fazendo no continente. Ainda, a questão da vanguarda representava outra
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questão para Onetti, que dizia respeito também a imitar moldes europeus:
“Darío entró de saco a Verlaine y, seguidamente, los bardos tropicales de
entonces se inspiraron en el que fuera llamado [...] ‘primer poeta de América’.”
(ONETTI, 2009, p.359).
Para Onetti, entrar na cidade e deixar para trás o campo era algo que
estava intimamente ligado ao projeto de uma literatura de cunho universal; a
urbanização dos países da América Latina em fins do século XIX/início do século
XX traz uma nova perspectiva à vida nacional, como nota Periquito el Aguador:
La llegada al país de razas casi desconocidas hace unos años; la rápida transformación del aspecto de la ciudad, que levanta un
rascacielos al lado de una chata casa enrejada; la evolución producida
en la mentalidad de los habitantes – en algunos, por lo menos, permítasenos creerlo – después del año 33; todo esto tiene y nos da
una manera de ser propia. Por qué irse buscar los restos de un pasado con el que casi nada tenemos que ver y cada día menos,
fatalmente? (…)Es necesario que nuestros literatos miren alrededor
suyo y hablen de ellos y su experiencia. Que acepten la tarea de contarnos cómo es el alma de su ciudad. Es indudable que, si lo
hacen con talento, muy pronto Montevideo y sus pobladores se parecerán de manera asombrosa a lo que ellos escriban. (ONETTI,
2009, p.368)
Os novos aspectos arquitetônicos da cidade, a nova vida política, os novos
habitantes, todos eles podem ser narrados pelo novo escritor uruguaio. Esta é
uma mudança muito significativa no âmbito da literatura do país, que não
abrigaria, até então, dramas psicológicos, crises existenciais, a cidade,
imigrantes. Agora, fala-se de política internacional em Montevidéu, estrangeiros
caminham pela cidade, os imigrantes fazem parte da paisagem urbana de onde
seus narradores escrevem; eles nomeiam seus personagens: Díaz Grey, Larsen,
Owen, Molly, Kirsten, Chapars, Baldi, Samuel Freider, e isso ainda significa fazer
literatura nacional. Este aspecto era impensável alguns anos antes, como
mostra Achugar (2006, p.232), para o escritor Zorilla de San Martín e o pintor
Blanes – marcos do nacionalismo estético de fins do século XIX no Uruguai –
que constituíram “uma projeção do sonho da nação onde se construiu ‘um
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corpo da pátria’ que buscava evitar o risco, ou o terror, desse Outro que
constituíam os estrangeiros – aumento da migração – e o impulso dos desejos
ou das pulsões individuais.” (ACHUGAR, 2006, p.232).
A predominância de uma narrativa neonaturalista entre as décadas de
1920 e 1930 somada à pouca expressividade – ou quase inexistência - de obras
literárias de vanguarda no Uruguai apontam para uma “paradez cansada” da
literatura nacional, nas palavras de Onetti, e divergem do movimento
modernista/vanguardista que estava em vigor na América Latina. O processo
modernizador da literatura uruguaia, portanto, parece se dar de forma distinta.
Tal processo – se comparado a outras literaturas nacionais latino-americanas do
período em questão - talvez se dê de modo distinto justamente por não tentar
evocar a imagem do indígena (ou do negro)3 e, ainda, por combater a figura do
gaucho como o herói nacional. O caráter de localidade da gauchesca privaria a
literatura uruguaia – aos olhos de Onetti – de adquirir o status de universal,
única via concebida por ele para adentrar uma modernidade literária. Ainda, La
piedra en el charco propõe a recusa ao uso do castelhano corrente na Espanha
– tal como ocorre nos movimentos vanguardistas de outros países hispano-
americanos –, mas também rechaça o idioma utilizado por autores nativistas
uruguaios, por não corresponder ao espanhol que se falava em Montevidéu
naquela época. O reconhecimento da urbanidade do país por meio de sua
representação na literatura seria para Onetti uma reivindicação decorrente do
fato de mais da metade da população uruguaia já viver na capital do país
naquela época.
No entanto, parece-nos um pouco controverso que a reivindicação de
uma nova literatura, independente e modernizada, reclame justamente o
3 Considerando-se que as duas etnias tenham sido praticamente extintas do país, a primeira, na
ocasião da dominação pelos espanhóis e da consolidação da república uruguaia; a segunda, no
momento da independência da Espanha, em que os escravos negros foram colocados em guerra. Hoje se estima que 4% da população do país seja negra. Acerca da monumentalização
da memória dos índios Charrúas, ver ACHUGAR, 2006, p. 185-197.
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espaço urbano para se desenvolver, já que para Angel Rama, em La ciudad
letrada,
(...) a cidade latino-americana tem sido um parto da inteligência, pois ficou inscrita em um ciclo da cultura universal em que a cidade passou
a ser o sonho de uma ordem e encontrou nas terras do Novo
Continente o único lugar propício para encarnar. Os próprios conquistadores que a fundaram perceberam
progressivamente ao longo do século XVI que tinham se afastado da cidade orgânica medieval na qual tinham nascido e crescido para
entrar em uma nova distribuição do espaço que enquadrava um novo
modo de vida, o qual já não era o que haviam conhecido em suas origens peninsulares. Tiveram que se adaptar dura e gradualmente
um projeto que, como tal, não esconde sua consciência racionalizadora, não sendo suficiente para ela organizar os homens
dentro de uma repetida paisagem urbana, pois também requeria que
fossem emolduradas/moldadas com destino a um futuro também sonhado de uma maneira planejada, em obediência às exigências
colonizadoras, administrativas, militares, comerciais, religiosas, que iriam se impor com crescente rigidez. (RAMA, 2004, p.35)
Seria possível que a cidade, que representara a ordem e a dominação, agora
seria o espaço da liberdade? Em que medida é possível ser independente no
seio da cidade ordenada? Seria a cidade modernizada ainda como a cidade
ordenada? Sabe-se que a cidade modernizada contemplava que o jornalismo
garantisse não só uma respiração independente aos intelectuais, mas também
o desenvolvimento do pensamento de oposição (RAMA, 2004, p.148), e é este
o lugar de crítica acerca da cultura que se discute em La piedra en el charco.
Em um momento não mais de dominação espanhola, Periquito el Aguador
reivindica um lugar intelectual não mais subserviente aos países hegemônicos.
Se a literatura latino-americana não consegue de fato ser independente, pois
trará sempre essa chaga da colonização, o que se vê, certamente, em Onetti é
a entrada em um outro momento da modernidade literária. É possível que ela
esteja integrada em um projeto homogeneizador universal, mas não se insira
ainda em uma nova práxis epistemológica pós-ocidental.
Voltando à questão que orienta este trabalho, o que seria o nacional
para Onetti? Em outro trabalho anterior, propus pensar algumas ressonâncias
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que a crítica do autor tem em sua produção ficcional. Penso que no projeto de
literatura de Onetti, ser nacional não é estar inserido em uma alegoria de
nação; não é ser nacionalista. É estar em solo uruguaio e lutar para que as
idiossincrasias regionais de seu país possam ser narradas, em idioma platense,
mas que todos esses aspectos sejam um suplemento ao universal. Não é mais
necessário trazer o gaucho para a narrativa para ser uruguaio.
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SOMMER, Doris. Ficcções de fundação – Os romances nacionais da América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2004. Trad. Gláucia Renate Gonçalves & Eliana Lourenço de Lima Reis. VERANI, Hugo J.De la vanguardia a la posmodernidad: Narrativa Uruguaya (1920-1945). Montevidéu: Ediciones Trilce/Librería Linardi y Risso, 1996.