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O RIO DE JANEIRO A PARTIR DA CHEGADA DA CORTE
PORTUGUESA: PLANOS, INTENES E INTERVENES NO
SCULO XIX
Amanda Lima dos Santos Carvalho (UFF)
Resumo:
A transferncia da Corte Portuguesa para o Brasil em 1808 trouxe
consigo novas intenes e
planos para o Brasil e para o Rio de Janeiro. A colnia
necessitava de um governo organizado e
instituies administrativas; e todas as mudanas que ocorreriam na
estrutura urbana naquele
perodo teriam como pano de fundo a sua adaptao funo de sede do
imprio. O objetivo
desse artigo resgatar, sob o olhar dos planos urbansticos e das
transformaes efetuadas no
Rio de Janeiro no sculo XIX, o "pensar a cidade" a partir da
chegada da corte, mostrando o
quanto esse fato foi fundamental para alter-la no incio do sculo
XX. Nos Oitocentos foram
elaborados dois planos para a cidade do Rio de Janeiro: o
Relatrio Beaurepaire em 1843 e o
Relatrio da Comisso de Melhoramentos, em 1875 e 1876. Ambos
contemplando questes de
higiene, controle e induo do desenvolvimento da cidade, abertura
e alargamento de vias,
alm de representarem a sntese do pensamento urbanstico do
momento. Ao se analisar esses
planos, observamos muitos princpios colocados em prticas nas
grandes intervenes urbanas
do sculo XX.
Palavras-Chave: Rio de Janeiro; Histria Urbana; Planos
Urbansticos; Transferncia da Corte
Portuguesa; Sculo XIX.
Abstract:
This article attempts to rescue, under the prism of the urban
plans, projects and works carried
out in Rio de Janeiro in the nineteenth century, the ways of
thinking that held sway in the city
after the arrival of the Portuguese Royal Court, investigating
how this event was fundamental
to transform the city long afterward, in the twentieth century.
The transfer of the Royal Court to
Brazil in 1808 brought new perspectives to the city of Rio de
Janeiro and the entire country. All
the changes that occurred in the city in that period were based
on the need to adapt it to serve as
capital of global Portuguese Empire. Two plans were prepared for
Rio de Janeiro, as the capital
of the new Brazilian empire that was established with
independence from Portugal in 1822 : the
Beaurepaire Report in 1843 and the Improvement Commission Report
of 1875-1876. Both
focused on orderly development, sanitation, opening of new
streets and widening of existing
ones and reflected a synthesis of the international urban
thinking of the time. By analyzing
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them, we find many proposals relegated to the realm of mere
ideas but others that were put into
practice in the great interventions of the twentieth
century.
Keywords: Rio de Janeiro; Urban History; Urban Plans; Transfer
of the Royal Court;
Nineteenth century.
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A transferncia da famlia real portuguesa
A pesquisa que deu origem a este artigo teve como objetivo
recuperar, sob o olhar dos planos
urbansticos, dos projetos, intenes e transformaes efetuadas no
Rio de Janeiro no sculo
XIX, a maneira de pensar a cidade a partir da chegada da corte
real, mostrando o quanto esse
fato foi fundamental para alter-la, posteriormente, no incio do
sculo XX.
Colnia de Portugal desde o sculo XVI e capital do vice-reino
desde 1763, o Rio de Janeiro
teve seu desenvolvimento marcado pela transferncia da corte
portuguesa em 1808. Desde
ento, at 1821, foi sede da monarquia portuguesa, nica cidade das
Amricas na histria a
receber o aparato burocrtico e o contingente populacional antes
instalado na Europa. At
ento nenhum rei havia visitado seus territrios ultramarinos, nem
mesmo para conhec-los,
muito menos para morar e governar.
A fuga da monarquia portuguesa para sua colnia americana por
ocasio da invaso dos
exrcitos napolenicos um divisor de guas no processo histrico
brasileiro. Os preparativos
iniciais para acomodar a famlia real marcaram apenas o comeo da
transformao do Rio de
Janeiro, pois o projeto de construir uma nova cidade e capital
imperial perdurou por todo
reinado brasileiro do prncipe regente (SCHULTZ, 2008).
A estrutura urbana encontrada pela famlia real foi em grande
parte construda por Luis de
Vasconcelos e Sousa, que administrou a cidade entre os anos de
1778 e 1790. O vice-rei
considerado autor de uma das primeiras remodelaes urbanas do Rio
de Janeiro e precursor
das intervenes voltadas adequao da cidade aos conceitos modernos
das capitais
europeias, atuando no s na expanso da estrutura urbana, mas
tambm nos usos desses
espaos. Sua gesto conhecida principalmente pela construo do
Passeio Pblico e
reurbanizao do Largo do Carmo, expresses da prosperidade da
poca.
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Figura 1. Vista do Largo do Carmo em 1775. Fonte: Base digital
da Biblioteca Nacional disponvel em
http://bndigital.bn.br/acervo-digital/ (acesso em
16/07/2013)
Figura 2. Vista do Largo do Carmo por Debret na dcada de 1830,
aps a reforma de Vasconcelos e Sousa.
Fonte: Pontifcia Universidade Catlica, 1979, p.128.
A transformao do Rio de Janeiro em corte real comeou apenas dois
meses antes da
chegada do prncipe regente, quando as notcias do exlio real
foram recebidas. As aes
imediatas deveriam dar conta dos novos usos, nova classe, novas
necessidades e novos
agentes que junto com a corte chegavam ao Brasil.
Menos de uma semana aps sua chegada, ainda em Salvador, D. Joo
VI decretou a abertura
dos portos s "naes amigas". Esta medida representou um golpe de
morte no pacto colonial
que, na prtica, obrigava que todos os produtos das colnias
passassem antes pelas alfndegas
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em Portugal, ou seja, os demais pases no podiam vender produtos
para o Brasil, nem
importar matrias-primas diretamente das colnias alheias, sendo
forados a fazer negcios
com as respectivas metrpoles.
Permitiu assim a integrao do Brasil ao mercado mundial e
consequente invaso de produtos
estrangeiros, rompendo a base sobre a qual se assentava o domnio
metropolitano: o
monoplio comercial. De acordo com Pinto (2007), essa medida era
prova de uma
contradio inevitvel na poltica econmica adotada pela corte, que
queria imprimir os
princpios do liberalismo econmico em pleno territrio
colonial.
No que diz respeito ao permetro urbano do Rio de Janeiro Dom Joo
VI cria o imposto da
dcima para os prdios urbanos em condies habitveis dentro dos
limites das cidades e
vilas. Prtica j conhecida em Portugal, o tributo consistia no
pagamento anual para a Real
Fazenda, por parte dos proprietrios, de 10% do rendimentos
lquidos dos prdios, com o
objetivo de suprir os cofres da corte portuguesa estabelecida no
Rio de Janeiro, criando uma
fonte de renda imediata.
Silva (2012, p.52) destaca trs medidas de impacto, que foram
colocadas em prtica logo na
chegada da famlia real, quando "uma nova forma de organizao
comeava a ser gestada,
articulando conhecimento, atuao sobre o espao urbano e normas".
Foram elas: criao da
Intendncia Geral da Polcia, o diagnstico mdico e o mapa oficial,
o qual tinha como
objetivo registrar a situao da cidade e servir de instrumento
para planejar as mudanas
necessrias nova sede da corte, articulando o projeto
civilizatrio ao territrio. Juntas
indicavam uma nova forma de organizao e interveno,
principalmente se atrelados
introduo da dcima urbana.
O diagnstico produzido, ainda em 1808, pelo mdico Manuel Vieira
da Silva, fsico-mor
do reino, encarregado por D. Joo de investigar as causas da
insalubridade da cidade. O fato
de ter sido encomendado pelo prncipe e publicado na imprensa
transformaria o estudo em
orientao oficial. Os objetivos de D. Joo eram criar uma cultura
de discusso na cidade e
divulgar um documento que fosse visto como inquestionvel. Os
mdicos eram interlocutores
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privilegiados para falar dos problemas da estrutura urbana,
principalmente por articular a
sade e doena da populao ao meio geogrfico (SILVA, 2012). Essa
associao permitiria
que o higienismo se tornasse um potente discurso para pensar a
cidade durante o sculo XIX e
primeiras dcadas do sculo XX.
Figura 3. Mapa do Rio de Janeiro requisitado por D. Joo VI em
1808 e publicado em 1812. Fonte: Base digital
da Biblioteca Nacional disponvel em
http://bndigital.bn.br/acervo-digital/ (acesso em 16/07/2013)
Reconstruindo a Corte Portuguesa
A vinda da famlia real foi o primeiro momento em que a ideia de
civilizao comearia a ser
articulada ao territrio da cidade, e todas as mudanas que
ocorreriam na estrutura urbana e
social naquele perodo teriam como pano de fundo a sua adaptao
funo de sede do
imprio nos trpicos (SILVA, 2012); uma nova maneira de se pensar
a cidade seria
introduzida marcando definitivamente o futuro da cidade do Rio
de Janeiro.
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A instituio responsvel pelo bem pblico e comum era a Intendncia
Geral da Polcia, uma
das reparties trazidas pela famlia real. Regulava as obras
pblicas, o abastecimento de
gua, iluminao e segurana, e ainda a disciplinarizao da vida dos
moradores. A proviso e
a regulamentao de moradias figurava entre os empreendimentos
mais imediatos com que a
Intendncia estava envolvida
A transformao do Rio de Janeiro em corte real tinha de envolver
a marginalizao da
esttica e das prticas que no conseguiam refletir essa mudana.
Era consenso entre as
classes dominantes que no ser mais colnia significava adotar um
projeto colonial: civilizar-
se. Para isso era necessrio a criao e imposio de uma
uniformidade esttica e cultural "no
sentido de tornar a cidade em condies de servir de sede s
principais autoridades do reino."
(BRASIL, 1923, p.11).
Construir uma corte real significava construir uma cidade ideal;
uma cidade
na qual tanto a arquitetura mundana quanto a monumental,
juntamente com
as prticas sociais e culturais dos seus residentes, projetassem
uma imagem
inequivocamente poderosa e virtuosa da autoridade e do governo
reais.
(SCHULTZ, 2008, p.157)
Em maro de 1811 Viana props que a soluo da crise na proviso de
habitaes na j
apertada Cidade Velha podia ser encontrada se a ateno fosse
centrada numa regio fora do
centro da cidade conhecida como Cidade Nova, aonde os pntanos
cobriam a maior parte de
rea. Os residentes deveriam ser estimulados a secar e aterrar a
rea e construir casas. Assim,
a cidade seria enobrecida, mais habitaes estariam disposio, e os
alugueis cairiam. A
imposio de padres para a construo na rea poderia ser disfarada
por meio de isenes.
Mais importante, "as intervenes da coroa dariam fim "liberdade
mal entendida" de
construir como quiser, reforando consequentemente a autoridade
do prncipe regente."
(SCHULTZ, 2008, p.163).
Ficou estabelecido ento que seria concedida iseno da dcima
urbana por dez ou vinte anos
aos proprietrios que edificassem casas de sobrado nos terrenos
situados na Cidade Nova; a
construo de casas de um s pavimento ficava proibida.
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A Misso Artstica Francesa
Com o objetivo de modernizar e se afastar dos traos coloniais da
cidade, novos padres de
civilidade so importados da Frana e Inglaterra, influenciados
pela razo da elite burguesa e
da Revoluo Industrial, trazidos pela Misso Artstica Francesa em
1816. De carter
civilizatrio e chefiada por Joaquim Lebreton, o projeto trouxe
consigo uma nova ideologia
de arquitetura, artes e espao urbano, e tinha como objetivo
principal atualizar o gosto e a
tcnica do imprio em territrio brasileiro.
(...) sustentar a renovao da monarquia no Novo Mundo demandava
as
reformas correspondentes. A grandeza de uma monarquia americana
teria
que comear pela grandeza de sua capital. (SCHULTZ, 2008,
p.155)
Para Schwarcz (2008) a chamada Misso Artstica Francesa foi uma
grande convergncia de
interesses. A autora defende que, diferentemente da verso
oficial, a iniciativa e realizao do
projeto partiu dos artistas franceses, encabeados por Joaquim
Lebreton, tendo o governo
portugus apoiado o grupo aps sua chegada em terras brasileiras.
Somente dcadas depois
seria denominada como "Misso Francesa".
De um lado estavam uma srie de artistas franceses formados pela
Academia de Artes
Francesa, no mais estrito estilo neoclssico, vinculados ao
derrotado Estado Napolenico.
Desempregados, perderam boa parte de suas economias.
Do outro, D. Joo VI recebeu com muito bom grado a propostas dos
artistas. A corte tinha
bastante interesse em recepcionar um grupo de acadmicos que
poderiam reformular e elevar
sua representao oficial. Em uma sociedade majoritariamente
analfabeta, a iconografia se
apresenta como importante instrumento para construo e
fortalecimento da ptria local.
A arquitetura efmera - teatral e provisria - era o que melhor
sintetizava a ideia de capital no
urbanismo do Rio de Janeiro joanino; foi o principal recurso
utilizado pelo governo para
afirmar a superioridade e a presena da corte diante das camadas
mais populares (PESSA;
MATTOS, 2010). Essa arquitetura do espetculo, que afirmava o
neoclssico como o estilo
do imprio, tinha como objetivo transmitir a iluso de se estar em
uma capital europeia,
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desvinculando assim a cidade de seu passado colonial,
desempenhando importante papel na
representao da modernidade de poca (TELLES, 2000).
O primeiro dos seus grandes projetos urbansticos estava
vinculado construo de um novo
palcio imperial e reorganizao do centro do Rio de Janeiro. Por
volta de 1826 Montigny
elabora o projeto de uma extensa avenida monumental que
permitiria a ligao entre o Campo
de Santana, o Largo do Rocio e a Praa XV, a qual abrigaria o
novo palcio, incorporando o
Pao Real nova estrutura.
Figura 4. Plano de parte da cidade do Rio de Janeiro situando
novo Palcio Imperial. Fonte: Pontifcia
Universidade Catlica, 1979, p. 161.
Em 1827 uma elaborada proposta prev a preparao de uma nova malha
urbana no mangue
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de So Diogo - Cidade Nova, mais regular e simtrica, alm da
remodelao do Campo de
Santana, circundado de edifcios polticos e administrativos,
conforme uma praa francesa,
revelando assim a inteno de criar um novo centro de poder
afastado do ncleo colonial; a
partir dele toda urbe seria reorganizada.
Para o projeto do prdio do Senado, em 1848, Grandjean aproveita
o edifcio para imaginar
modificaes na estrutura dos bairros antigos, abarcando uma "rua
imperial projetada", entre
o Largo da Ajuda e o Rocio, considerada a grande ideia do
projeto, a mais ambiciosa, por
cortar o morro de Santo Antnio com uma larga artria que liga o
Rocio praia de Santa
Luzia. Vale observar que o sistema de avenidas retilneas no
constitui simplesmente um fato
esttico e celebrativo, mas visa resultados de maior eficincia
urbana, marcando novas
diretrizes de expanso em direo a novos bairros. Em cada projeto,
a praa tambm um
ponto de partida para a reestruturao de bairros centrais.
Figura 5. Edio pessoal sobre mapa de 1820 (Base digital da
Biblioteca Nacional disponvel em
http://bndigital.bn.br/acervo-digital/ - acesso em 16/07/2013)
com a sntese das principais propostas urbansticas
e arquitetnicas "estveis" de Grandjean de Montigny
Fonte: CARVALHO, 2014.
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De acordo com Taunay (1956), pode-se afirmar que Grandjean foi o
primeiro grande
urbanista que teve o Rio de Janeiro e o primeiro tcnico do
Brasil, fora da rea da sade, que
se preocupou com a higiene dos edifcios. O problema do
saneamento e da drenagem,
questes fundamentais que s seriam resolvidas muito mais tarde,
so preocupaes do
arquiteto em seus projetos, quando prev linhas para sada das
guas e dos esgotos.
Projeto de remodelao do
Campo de Santana
Projeto do novo palcio
imperial com eixo monumental
Projeto de reestruturao da
rea entre o Largo da Ajuda e o
Largo do Rocio
Legenda: Espaos Pblicos:
1 - Campo de Santana
2 - Largo do Rocio
3 - Largo do Pao
4 - Largo da Ajuda
Projetos de arquitetura "estvel":
a - Edifcio do Mercado
b - Praa do Comrcio / Alfndega (atual Casa Frana-
Brasil)
c - Academia Imperial de Belas Artes
d - Prdio do Senado
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O projeto neoclssico para a cidade no se realiza; apesar do
sucesso obtido nas exposies
pblicas da Academia, a maioria dos seus projetos so destinados a
ficar no papel. Do plano
de Grandjean s ficam alguns edifcios isolados e algumas ideias
urbansticas separadas do
contexto em que tinham sido elaboradas. A abertura da monumental
avenida retilnea, que
corta a trama da cidade velha, ser realizada no incio do sculo
XX, por ocasio da radical
"modernizao" da cidade executada pelo prefeito Pereira
Passos.
Entre 1808 e 1821 a populao do Rio de Janeiro dobrou, passando
de cerca 50 a 60 mil
habitantes para 100 a 120 mil (PREFEITURA DA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO, 2008).
A presena do rei na cidade exercia atrao sobre os habitantes de
outras partes do Brasil, das
Amricas e da prpria Europa. Gomes (2007) afirma que os treze
anos em que a corte
portuguesa permaneceu no Brasil no se comparam com nenhum outro
perodo da histria
brasileira no que diz respeito s profundas, decisivas e
aceleradas mudanas.
As transformaes pela qual a cidade passaria deveriam dar conta
desta nova exigncia ao
fazer convergir todas as atenes para o Rio, agora sede da coroa
para torna-la cabea do
Brasil. No entanto, necessrio falar em perdas e ganhos nesse
processo de metropolizao,
pois as mesmas transformaes que aproximavam a cidade dos
atributos europeus, tornando-a
mais limpa, iluminada, com teatros e modas cortess, afastavam-na
de suas caractersticas
coloniais, a exemplo da proibio do uso de rtulas em prdios
residenciais (SCHULTZ,
2008; SILVA, 2012).
As transformaes do Rio de Janeiro ps-Independncia
Duas dcadas aps o retorno de D. Joo VI a Portugal em 1821 e o
rompimento com a corte
portuguesa em 1822, o contexto social e urbano do Rio de Janeiro
era de grande crescimento
demogrfico. Esse incremento da populao urbana no foi, no
entanto, acompanhado de
proporcional melhoria nas condies de higiene. Logo, no de se
surpreender que os
problemas sanitrios tivessem destaque no planejamento urbanstico
desde essa poca.
Apesar de pouco conhecido, o Relatrio Beaurepaire, formulado
pelo ento diretor de Obras
Municipais, pode ser considerado o primeiro plano urbanstico
para a cidade do Rio de
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Janeiro, por apresentar uma proposta global de organizao formal.
O relatrio no se
restringiu aos problemas emergenciais, fazendo uma extensa
avaliao dos problemas da
cidade, sugerindo algumas medidas para resolv-los.
A nsia por melhora e embelezamento da cidade, que teve como uma
das primeiras
consequncias as propostas da Misso Francesa, alcanou sua
maturidade no incio da dcada
de 1840 quando a elite do imprio e o Conselho de Estado comearam
a demonstrar interesse
pela realizao de melhorias, associadas tambm consolidao da
burguesia urbana
(ANDREATTA, 2006). Alm disso pode-se destacar o sucesso econmico
do plantio de caf,
que equilibrou as contas externas do pas, permitindo a formao de
capital nacional que, em
conjunto com o capital estrangeiro, estimularam o progresso e
desenvolvimento.
Henrique Beaurepaire-Rohan, aps alguns anos viajando pelo
territrio brasileiro como
membro do Imperial Corpo de Engenheiros, retornou e encontrou a
cidade com os mesmo
problemas que existam anteriormente; deficiente captao e
distribuio de guas, falta de
calamento das ruas e iluminao pblica continuavam ocupando todo o
oramento da
Inspetoria de Obras Pblicas do Ministrio dos Negcios do Imprio.
Cedido cmara
municipal da corte entre 1842 e 1843, confeccionou o relatrio
que se tornaria referncia para
pensar a cidade nos anos seguintes.
Seu relatrio dividido em duas partes, salubridade pblica e
aformoseamento da cidade. As
principais propostas da primeira parte, utilizando critrios
higienistas, so: a transferncia do
matadouro pblico para a praia de So Cristvo; a soluo para a
questo do esgotamento
sanitrio atravs da adoo do padro europeu; construo de
encanamentos para
abastecimento de gua para todas as casas a partir dos rios
Carioca e Maracan;
estabelecimento de um canal de navegao no mangue da Cidade Nova
- Canal do Mangue -
com o objetivo de eliminar o grande "foco de miasmas" da regio;
desmonte do Morro do
Castelo a fim de ampliar a extenso da cidade e contribuir para
salubridade e embelezamento.
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Figura 6. Esquema parcial das propostas do Plano Beaurepaire
realizado sobre a planta de 1854. Fonte:
SMU/IPP, 2008, p.29
Sobre as propostas de aformoseamento, utilizando critrios
urbansticos e estticos,
Beaurepaire dedica um plano de reedificao regio considerada mais
"defeituosa", a
Cidade Velha. Visando melhorar a circulao, prope ampliao e
abertura de diversas vias
estabelecendo alguns critrios urbansticos, como extenso dos
quarteires e altura da
edificaes. Reitera ainda a necessidade de caimento adequado das
caladas, favorecendo o
esgotamento. Sobre as praas, alm de recomendar a abertura de 8
novas em locais
especficos, prope a regularizao da Praa da Aclamao, para isso
recorre a parte da antiga
e no colocada em prtica proposta de Grandjean de Montigny,
adaptando-a.
SMU/IPP (2008) destaca a atualidade de suas propostas e que, se
muitas daquelas sugestes
tivessem sido realizadas naquele momento, inmeras questes atuais
da cidade seriam
minimizadas. O fato que mesmo o plano no tendo sido colocado em
prtica, levantou
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importantes questes, estimulando a discusso urbanstica e abrindo
portas para que algumas
dcadas mais tarde a Comisso de Melhoramentos fizesse uma nova
proposta.
O Rio de Janeiro e o processo de modernizao
No que tange infraestrutura, aps sculos tendo seu esgoto
despejado a cu aberto em valas
ou mesmo nas praias, o quadro sanitrio da cidade foi se
agravando tornando-se o principal
alvo da campanha movida pelos mdicos e, logo depois, pela opinio
pblica, a favor de
melhorias que saneassem a capital do imprio.
A concesso do servio foi entregue companhia inglesa The Rio de
Janeiro City
Improvements. Apesar de ser quantitativamente eficaz, o servio
prestado sempre foi criticado
como de m qualidade.
A classe proletria, com reduzido ou nenhum poder de mobilidade,
adensava-se cada vez
mais nas freguesias urbanas centrais. O capital, sobretudo
estrangeiro, sombra dos
privilgios concedidos pelo Estado Imperial, apossou-se de
grandes fatias do urbano, penetrou
em muitas esferas bsicas para a existncia cotidiana de uma
populao cada vez mais
numerosa, concentrada nos exguos limites da rea central do Rio
de Janeiro (BENCHIMOL,
1992). Um contingente cada vez mais numeroso de trabalhadores
livres trabalhava e habitava
essa mesma regio.
O Rio sempre foi considerado uma cidade insalubre, mas registros
indicam que a primeira
grande epidemia de febre amarela tenha sido em 1850. A formao da
Comisso Central de
Sade Pblica e outras medidas que se sucederam marcaram a
institucionalizao de um tipo
de medicina que vinha se constituindo desde os anos de 1830 /
40.
A medicina social contribuiu decisivamente para a promulgao das
primeiras leis
submetendo a normas e interdies o crescimento "espontneo" da
cidade. Tais leis foram
quase sempre ineficazes, no entanto seu discurso se infiltrou no
senso comum das camadas
dominantes e das camadas mdias, culturalmente subalternas, que
nos anos 1870 j
construram uma influente "opinio pblica" favorvel a todo tipo de
melhoramento que
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transformasse a capital do imprio numa metrpole salubre e
moderna.
A segunda metade do sculo XIX marcou o incio da difuso dos
transportes ferrovirios por
todo o mundo. A separao dos usos e classes que se amontoavam no
antigo espao colonial
s foi possvel devido introduo do bonde de burro e do trem vapor,
que constituram-se
nos grandes impulsionadores do crescimento fsico da cidade.
Nesse contexto de grandes transformaes, as contradies sociais se
tornaram ainda mais
evidentes, aguadas pelas fortes epidemias de febre amarela. O
ento ministro do Imprio
props ao Imperador, em 1874, a nomeao de uma Comisso de
Melhoramentos da cidade
do Rio de Janeiro, composta pelos engenheiros Francisco Pereira
Passos, Jernimo Rodrigues
de Morais Jardim e Marcelino Ramos da Silva. Dois relatrios
foram apresentados, um em
1875 e outro em 1876, considerado o primeiro plano urbanstico da
cidade a ser levado ao
conhecimento pblico, ampliando as discusses acerca do
urbano.
O primeiro relatrio apresentado ainda em 1875, apenas dez meses
aps a nomeao da
comisso, e concentra suas propostas na rea da Cidade Nova. Os
engenheiros justificavam a
escolha afirmando que aquela seria a regio mais necessitada de
melhoramentos, que oferece
melhor condies para o desenvolvimento da cidade e na qual os
gastos e dificuldades para as
obras seriam menores.
A comisso elege o Canal do Mangue como eixo principal das
propostas nesse primeiro
relatrio. Este deveria ser navegvel e ajudar a solucionar a
questo do dessecamento das
reas pantanosas, que ainda eram um obstculo para a expanso
urbana. Para isso, seu
prolongamento at o mar e a canalizao dos rios eram
primordiais.
Sobre os parmetros construtivos, destaca-se, principalmente, a
limitao da altura das
fachadas e definio de altura mnima de 3 metros para
compartimentos habitveis. Para as
novas grandes avenidas a serem abertas a comisso procura manter
o traado retilneo e adota
padres de proporo entre a largura da via, calada e passeios.
Fazia parte do esquema virio
que essas avenidas formassem grandes eixos monumentais unindo
espaos simblicos,
remetendo ao plano de Haussmann para Paris.
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Diante de inmeras crticas por no abarcar a Cidade Velha em seu
plano, a comisso
apresenta um segundo relatrio, em 1876. Possui semelhanas com as
ideias do primeiro,
insistindo na defesa de suas premissas atravs de exemplos
internacionais. No entanto, dessa
vez os engenheiros tambm se debruaram sobre a Cidade Velha,
entendendo como
complemento indispensvel (ANDREATTA, 2006).
Alm de reforar as propostas contidas no primeiro relatrio, a
comisso prope a abertura,
prolongamento, alargamento e retificao de uma srie de ruas na
Cidade Velha. Ratifica os
pareces higienistas e recupera Beaurepaire ao propor o
arrasamento dos Morros de Santo
Antonio, Castelo e Senado, afirmando que seria determinante para
melhorar a ventilao na
cidade. As vultuosas demolies e desapropriaes necessrias para
sua realizao tambm
recuperam o Plano Beaurepaire.
Figura 7. Sntese das propostas da Comisso de Melhoramentos sobre
a planta geral da cidade de 1875. Fonte:
SMU/IPP, 2008, p.60
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Somente uma pequena parcela das propostas comeou a ser colocada
em prtica,
principalmente por problemas financeiros. No entanto, alm de
levantar a questo urbanstica
para discusso pblica, a Comisso de Melhoramentos foi fundamental
para moldar o
pensamento daquele que viria a ser prefeito da cidade do Rio de
Janeiro alguns anos mais
tarde. Francisco Pereira Passos era um dos engenheiros
responsveis pelo plano, e pde
colocar em prtica boa parte no incio do sculo XX, naquela que
considerada a primeira
interveno sistemtica e direta do Estado sobre o espao urbano
carioca.
Primeiras intervenes no sculo XX
A cidade entra no sculo XX como repblica desde 1889 e com uma
srie de problemas
urbansticos. Visando difundir no territrio urbano a ideia de
modernidade e baseando-se em
experincias de capitais europeias, a classe poltica republicana
busca a construo de uma
imagem simblica da cidade vinculada ao seu papel de centro da
nao. Para tanto seus
espaos devem ser ampliados, ordenados e embelezados.
O grande realizador dessa misso foi Pereira Passos, que ganhou
plenos poderes do ento
presidente Rodrigues Alves, cujas aes tiveram enfoque na capital
da Repblica.
Fundamentado em muitos dos argumentos utilizados nos planos j
apresentados, um Pereira
Passos mais maduro prope a abertura de sete eixos virios que
seriam suporte da cidade
remodelada.
A monumentalizao da cidade foi reforada, pessoas foram expulsas
do Centro, tanto pela
derrubada de prdios e do Morro do Senado, quanto pela valorizao
dos terrenos, sendo um
dos fatores que levaram ao aparecimento das primeiras favelas,
alm de deixar uma imensa
dvida pblica para seus sucessores. A eficincia na execuo
imediata e na programao das
obras difere esse plano dos anteriores, e faz com que seja to
comentado e estudado, um
verdadeiro marco na histria do Rio de Janeiro.
O "bota-abaixo" dos primeiros anos do sculo XX recupera uma srie
de novas maneiras de
se pensar a cidade que se desenvolveram a partir da transferncia
da corte portuguesa, quando
passou a ser planejada e modificada para se aproximar grandeza
de uma capital europeia, e
-
novas classes e novos usos passaram a conviver na apertada
cidade colonial. Afastando-se dos
traos coloniais, os planos do sculo anterior buscaram
principalmente monumentalidade,
embelezamento, saneamento, visando tornar o Rio de Janeiro o
centro da nao, um modelo
de cidade nacional.
Atravs da recuperao do discurso higienista, Pereira Passos
promove a abertura e
alargamento de uma srie de eixos monumentais, que transformariam
a imagem do Rio de
Janeiro. O grande marco a Av. Central, que "rasgou" de mar a mar
a cidade velha com 1.800
metros de comprimento e 33 metros de largura, demolindo cerca de
700 edificaes, entre
elas cortios e outras habitaes das classes populares, que
seriam, segundo o prefeito, as
principais fonte de insalubridade da cidade. Um concurso de
fachadas em estilo neoclssico
foi promovido para que a nova via se aproximasse ainda mais do
padro europeu. A
canalizao do mangue na Cidade Nova em conjunto com a construo de
uma larga avenida,
premissa na proposta da Comisso de Melhoramentos, finalmente
concretizada.
Figura 8. Detalhe do projeto de abertura da Av. Central. Em
cinza a nova via a ser aberta, promovendo vultuosa
demolio do casario antigo. Fonte: ABREU, 2008, p.65
Outras propostas que nasceram no sculo XIX, como a derrubada do
Morro do Castelo e do
Morro de Santo Antonio, s foram colocadas em prtica algumas
dcadas depois, em 1921 e
1950, respectivamente, o que mostra por quanto tempo as ideias
difundidas naquele sculo
permaneceram vivos e o quo importante foi sua influncia.
-
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