8/16/2019 Almas Antigas http://slidepdf.com/reader/full/almas-antigas 1/356 ALMAS ANTIGAS TOM SHRODER PRIMEIRA PARTE Prólogo Crianças que se lembram de vidas passadas 1 A PERGUNTA É tarde. Já está quase escuro. A fumaça de milhares de fogueiras de dejetos paira ao redor da luz dos faróis, à medida que o microônibus avança, aos solavancos, pela passagem estreita e esburacada que faz as vezes de estrada nas regiões desabitadas da Índia. Ainda faltam várias horas para alcançarmos o hotel, moderna ilha de conforto plantada nesse oceano de terceiro mundo. Conseguimos escapar de u caminhão que ziguezagueia em direção
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Crianças que se lembram de vidas passadas1A PERGUNTA
É tarde. Já está quase escuro. A fumaça demilhares de fogueiras de dejetos paira aoredor da luz dos faróis, à medida que o
microônibus avança, aos solavancos, pelapassagem estreita e esburacada que faz asvezes de estrada nas regiões desabitadas da
Índia. Ainda faltam várias horas paraalcançarmos o hotel, moderna ilha deconforto plantada nesse oceano de terceiromundo. Conseguimos escapar de ucaminhão que ziguezagueia em direção
Entretanto, mesmo preso nessa bolha demedo, consigo perceber a ironia da situação.
No banco de trás, aparentementedespreocupado com os enormes torpedosque espalham lama por todos os lados e que
se precipitam em nossa direção, está uhomem alto, de cabelos brancos, com quaseoitenta anos, que insiste em afirmar que
conseguiu acumular provas bastante sólidasque demonstram que a morte física nãosignifica necessariamente o meu fim, ou o de
quem quer que seja.Seu nome é Ian Stevenson, um médiopsiquiatra que há trinta e sete anos ve
enfrentando estradas como essa, ou aindapiores, para colher relatos de crianças queafirmam lembrar-sede vidas anteriores,fornecendo detalhes e dados precisos sobreas pessoas que afirmam ter sido, pessoas que
existiram e que morreram antes que elasnascessem. Enquanto luto contra o pavor da
morte, ele se vê diante do medo de que otrabalho ao qual dedicou toda a sua vidafique completamente ignorado por seus
colegas de profissão.– Por que – pergunta ele, pela terceira vez,desde o início da noite – os cientistas e
geral se recusam a aceitar as provas que játemos da reencarnação?Nesse dia, como nos últimos seis meses,
Stevenson demonstrou o que considera“provas”. Ele me permitiu acompanhá-lo esuas viagens para trabalho de campo,
primeiramente nas montanhas ao redor deBeirute e, agora, numa grande extensão deterra na Índia. Ele respondeu minhasinfindáveis perguntas e até me convidou aparticipar das entrevistas que constituem o
cerne de sua pesquisa. As provas às quais elese refere não vêm de um modismo da Nova
Era, de leitura sobre vidas passadas ou deregressões hipnóticas nas quais alguém dizter sido uma noiva florentina do século
dezesseis ou um soldado das guerrasnapoleônicas, fornecendo detalhes quepodem ser obtidos através da leitura de u
romance. As particularidades trazidas pelascrianças de Stevenson são despretensiosas emuito mais específicas. Uma delas lembra-se
que era uma adolescente de nome Sheila, quefoi atropelada por um veículo que seguia poruma estrada recolhendo capim para
alimentar animais. Outra se recorda de tersido um jovem que morreu de tuberculosechamando por seu irmão. Uma terceiralembra-se que era uma mulher, no Estado da
cirurgia cardíaca à qual não sobreviveria etentando, sem sucesso, chamar sua filha. E
assim por diante. Em centenas de casos portodo o mundo, essas crianças fornecenomes de cidades e de parentes, profissões e
relacionamentos, atitudes e emoçõesespecíficos de um único indivíduo,geralmente desconhecido de suas famílias
atuais. Mas o fato é que as pessoas de queas crianças se recordam realmente existiram,suas lembranças podem ser comprovadas,
comparando-as a eventos de vidas reais, e asidentificações feitas podem ser verificadas –ou contestadas – por um grande número de
testemunhas.É isso o que Stevenson vem fazendo há quasequarenta anos. É esse o trabalho quedesenvolvemos no Líbano e, agora, na Índia:examinar registros, entrevistar testemunhas e
aferir os resultados, comparando-os apossíveis explicações alternativas. Poucos
puderam, como eu, constatar de perto oquanto esses casos podem ser convincentes –não apenas em relação aos fatos, mas na
emoção claramente visível nos olhos e vozesdas crianças, de suas famílias e das famíliasdas pessoas que elas afirmam ter sido. Tenho
presenciado e ouvido fatos surpreendentespara os quais não encontrei uma explicaçãofácil.
Agora, estamos quase no fim de nossaviagem, talvez a última na carreira deStevenson. No frio barulhento do
microônibus que vai sacole jandoruidosamente noite adentro, começo a pensarque a pergunta de Stevenson não e apenasretórica. Ele quer que eu, o forasteiro, oornalista cético que viu tudo o que ele queria
mostrar, lhe dê uma explicação. Como é queos cientistas podem ignorar a imensa
quantidade de provas que lhes sãofornecidas?Começo a refletir longamente sobre como é
difícil falar de provas quando não se conheceo mecanismo de transferência – a forma comopersonalidade, identidade e memória pode
ser transferidas de um corpo para o outro.Então, paro imediatamente. Ouço minhaspróprias divagações e percebo o que
Stevenson realmente está me perguntando:depois de tudo o que vi, pelo menos euacredito?
Eu, que sempre olhei para dentro de mimesmo sem jamais ter visto um sinal ououvido um sussurro de qualquer outra vidaque não fosse a minha, o que acho de tudo
isso? Ele quer saber. Está me fazendo umapergunta e merece uma resposta.
2SÓ SE VIVE UMA VEZA resposta é longa e começa dez anos antes
de Stevenson me fazer a pergunta, nupequeno e confortável consultório médicolocalizado a poucos quarteirões de minha
casa em Miami Beach. A luz da sala é fraca. ODr. Brian Weiss, chefe do departamento depsiquiatria do Hospital Mount Sinai, está
falando suavemente. E me conta umahistória:Em 1972, Weiss hipnotizou uma jove
mulher. Ela estava deitada de costas no sofá,os olhos fechados, as mãos pousadas ao ladodo corpo, envolta num lençol imaginário deluz branca, levada a um transe através da vozdo médico e da vontade de sua própria
– Volte aos acontecimentos que deraorigem aos seus sintomas.
Em transe profundo, ela respondeu, numavoz baixa e rouca. Longas pausasinterrompiam suas palavras, como se falar
fosse difícil ou doloroso.– Vejo degraus brancos que me levam até uedifício... um edifício grande e branco co
pilastras... Estou usando um vestido longo,ma bata feita de tecido rústico. Meu nome éAronda. Tenho dezoito anos...
Sem ter certeza do que se passava, Weiss fezalgumas anotações. O sussurro prosseguiu:– Vejo uma praça de mercado. Há várias
cestas. Elas são carregadas nos ombros.Moramos num vale. Não há água. O ano é1863 antes de Cristo. Antes do final da sessão,Aronda havia morrido aterrorizada, arfandoe sufocando em meio a uma enchente.
p qpassado, tiveram experiências marcantes,carregadas de intensa emoção, cujasconseqüências profundas se fazem sentir nopresente. Não posso afirmar que tais
experiências sejam lembranças de vidaspassadas. É possível que sejam fruto dafantasia, como acontece nas distorções de
memória: uma forma indireta de se descreverum problema. Por exemplo, uma pessoa quediz ter sido estuprada em uma outra vida
pode, na verdade, estar expondo umalembrança incestuosa na infância. Mas existeuma finalidade por parte do inconsciente.
Não sei ao certo o que está acontecendo coessas lembranças de outras vidas, mas nãoacredito que sejam uma enganação.
Depois de conversar com outros psiquiatras ede ouvir opiniões divergentes, decidi
presponsável pelo verbete da EnciclopédiaBritânica sobre regressões hipnóticas a vidaspassadas. Era o Dr. Martin Orne, na épocapsiquiatra clínico e professor de psiquiatria
da Escola de Medicina da Universidade daPensilvânia. Ele tinha muito a dizer:– Sempre me sinto como aquele personage
de histórias infantis que diz para todos quePapai Noel não existe. As pessoas quepropagam essas idéias não são mal-
intencionadas, apenas têm um imenso desejode acreditar. Muitos crêem que o que se faladurante a hipnose tem maior probabilidade
de ser verdadeiro, quando, de fato, aconteceexatamente o oposto. A hipnose pode criarpseudomemórias. Lembranças de
reencarnações não são diferentes dos casos depessoas que, hipnotizadas, declaram ter sido
p p gexames físicos no interior de discos voadoresEsses são os chamados “mentirososhonestos”. Os terapeutas pedem a seuspacientes que voltem até a causa de seu
problema. Isso é algo que várias pessoasacham difícil fazer e, se não consegueencontrar a origem nessa vida, regressam a
ma vida anterior. Fantasia, é claro.Lembro-me de ter desligado o telefone emeu escritório sentindo minha curiosidade
satisfeita. Mais uma vez, como vi acontecerantas outras em minha vida profissional,ma história que, de início, parecia ter
alguma explicação extraordinária acabava setornando algo simples e comum.Eu estava agora totalmente convencido de
que Weiss havia se encantado com ufenômeno bastante interessante e concluído
envolvimento hipnótico. Muitos dessesrelatos incluíam nomes, endereços e detalhesíntimos da vida de pessoas que as crianças,aparentemente, não teriam como conhecer.
Membros das famílias dessas pessoas foralocalizados e as lembranças relatadas foracomparadas com fatos acontecidos na vida
real. De acordo com Stevenson, em muitosdesses casos as recordações apresentadaspelas crianças passaram no teste da realidade
de forma muito convincente.O que me deixou mais impressionado foi ofato de Stevenson afirmar ter investigado u
grande número de casos – na verdade, maisde duzentos em todo o mundo. Confesso quemeu primeiro pensamento foi que se tratava
de um maluco delirante que também dizia terma gaveta cheia de fragmentos da cruz de
que certamente não era esse o caso. Encontreiuma citação de um artigo de 1975, publicadona respeitada revista médica The Journal ofthe American Medical Association,
afirmando que Stevenson “havia coletadocasos cu jas evidências dificilmente poderiaser explicadas com base em quaisquer outras
premissas (além da reencarnação)”.O artigo também fazia referência a um livrono qual Stevenson reunira seus casos.
Encontrei o livro na biblioteca pública. Oestilo acadêmico dificultava a leitura, mas oesforço valeu a pena: os casos era
convincentes, até mesmo espantosos, e fiqueibastante impressionado com a aparenteimparcialidade e a ponderação demonstradas
nas investigações. Stevenson procurara fatosconcretos, específicos e passíveis de
verificação, relacionados a vidas passadas eb i i i í l i
pedindo que revisse a sua posição. Disse-lheque estava mais interessado em observar seutrabalho do que em entrevistá-lo. Finalmente,em dezembro, Stevenson convidou-me a ir
até Charlottesville para discutirmos o assuntopessoalmente.Em janeiro de 1997 encontrei-me com ele e
seu escritório na Divisão de Estudos daPersonalidade da Universidade de Virgínia.A sala de espera estava repleta de arquivos
contendo todas as anotações datilografadas etranscrições de mais de 2.500 entrevistasfeitas por Stevenson durante os vários anos
de sua pesquisa. Numa das paredes podia-sever um mapa dos Estados Unidos em largaescala, coberto de alfinetes de cabeças
vermelhas, pretas e brancas, com a seguintelegenda: vermelho – casos de renascimento –,
preto – experiências de quase-morte –, brancocasos en ol endo fantasmas/espíritos
prova de qualquer uma dessas afirmações.Mais uma vez fiquei encantado. Eu já estavamais do que convencido a passar algutempo com Stevenson – só precisava fazê-lo
aceitar a idéia. Expliquei que gostaria deacompanhá-lo em seu trabalho de campo.Disse-lhe que, como um observador leigo,
usando minha habilidade jornalística paraanalisar detalhes num contexto, eu poderiarecriar para os leitores a experiência daquele
rigoroso trabalho de investigação que ficavaapenas sugerindo nas entrelinhas de seuseruditos relatórios. Poderia descrever o
comportamento de seus entrevistados e ascaracterísticas mais sutis que contribuepara aumentar ou mesmo diminuir a
credibilidade desses encontros, pois, aindaque subjetiva, a experiência de testemunhá-
los forneceria um tipo de informação com oqual também seria possível avaliar os dados
alcançar. Queria fazer novas visitas aalgumas pessoas cujos relatos ele haviapesquisado anteriormente, mas que só agorapretendia publicar. Também estava em busca
de novos casos envolvendo crianças, nãopara estudá-los, mas para entregá-los aoscuidados de Erlendur Haraldsson, da
Islândia, que havia realizado testespsicológicos nas crianças de Stevenson no SriLanka e queria expandir sua pesquisa até
o Líbano. Finalmente, planejava visitarnovamente algumas das pessoas que haviaencontrado há mais de trinta anos, para
tentar compreender o papel que as memóriasde vidas passadas e alguns comportamentosa elas associados desempenharam no curso
de sua existência.
Na manhã seguinte encontrei Stevensonolheando os fichários abarrotados de
desconhecido, morto num acidente rotineiro– uma pessoa que dificilmente faria parte dasfantasias de uma criança. Mais importanteainda: as famílias envolvidas não se
conheciam previamente. Se fosse verdade,seria difícil explicar como uma criançapoderia fornecer dados precisos sobre a vida
de um operário desconhecido, que moravanuma comunidade diferente da sua e quehavia morrido um ano antes de seu
nascimento. Além disso, Daniel começara afazer tais afirmações assim que foi capaz defalar, o que diminuía ainda mais a
possibilidade de fraude À medida que acriança vai ficando mais velha, torna-se maisconsciente do ambiente que a rodeia e sua
capacidade verbal aumenta, assim como seucontato com o mundo fora de casa. Como pai,
posso afirmar que, aos cinco anos, as criançascolecionam todo tipo de informações e
geans, camisetas e bonés. Tinham umapostura desleixada, como se fossem doistípicos adolescentes norte-americanos. Ulfatusava um blusão, calças jeans e botas, mas osbrincos de prata e a maquiagem conferiam-lhe feminilidade.
Mina explicou o motivo de nossa visita eperguntou-lhe se poderíamos fazer algumasperguntas.
– Não me incomodo. Podem me perguntarem inglês, se quiserem – respondeu Ulfat.Não era como eu imaginava. Esperava
encontrar vilas com casebres de chãopoeirento, pessoas com roupas tradicionais ecostumes totalmente estranhos. Sabia que
alguns dos críticos de Stevensonquestionavam o fato de ele usar tradutores,
por considerarem que ele não poderia tercerteza de que a tradução era precisa e não
seria capaz de compreender um contextocultural diferente do seu. Entretanto, oambiente ali não era mais exótico do que, porexemplo, a casa de meus vizinhos cubanosem Miami, onde os pais falavam mal o inglêse os filhos ouviam CDs de música heavy-
metal. E ali estava uma pessoa com umaexperiência de vidas passadas que possuíam videocassete e falava inglês com sotaque
americano.Ulfat sentou-se numa poltrona em frente àmãe e nós começamos a fazer perguntas.
Contou que era universitária em Beirute eque não sabia o que iria fazer quandoerminasse os estudos.
Ela ainda se lembrava de sua vida anterior?
– Não muito, apenas nomes. Quando eu eracriança costumava falar sobre isso, mas agora
á me esqueci. Lembro-me do meu nome esobrenome, do dia em que morri e de comoaconteceu.O nome por ela lembrado era Iqbal Saed.– No dia em que morri, lembro-me de cadadetalhe do que aconteceu.
– Então conte-nos o que você se lembra –disse.– Era noite. Eu estava caminhando. Tive
medo de entrar numa viela, mas não haviaoutro caminho. Notei a presença de unsquatro homens armados. Assim que eles me
viram, atiraram na minha perna. Quando meabaixei e pus a mão na ferida eles viram asóias que eu estava escondendo na blusa.
Então eles me pegaram. Antes de me matar,me torturaram muito. Não consigo me
lembrar bem dessa parte. Mas lembro domomento em que me mataram. Quando
fecho os olhos, eu lembro. Posso ver como euestava andando, posso ver tudo o queaconteceu naquela noite.– Quantos anos você tinha? – perguntouStevenson.– Vinte e três.
– Você se lembra de ter essa idade? Oualguém lhe disse a idade que Iqbal tinhaquando morreu?
– Eu me lembro que morri jovem, mas elesme disseram que eu tinha vinte e três anos.– Você freqüentou a escola em sua vida
passada?– Não acredito que eu tenha ido à escola.Sentindo-me fascinado, rabisquei algumas
anotações. Ela falava com naturalidade –melancólica, mas sem rodeios.
– Como você se sente em relação a essasmemórias? – perguntei.
– Elas me incomodam – disse Ulfat, nurepente. Fez uma pausa e prosseguiu. –Quando eu era criança, sempre sonhava quealguém vinha me matar, mas agora não tenhomais esses sonhos.Stevenson pediu a Majd que perguntasse a
Muna se ela conhecia alguém em Salina, acidade onde Iqbal morrera. Muna respondeu: – Não, é muito longe daqui.
– Você tem alguma marca de nascença? –perguntou Stevenson a Ulfat. Essa perguntareferia-se a um dos focos mais atuais das
pesquisas de Stevenson: verificar marcas denascença que, aparentemente,correspondessem a feridas ou imperfeições
– Alguma dificuldade física?De certa maneira, eu esperava que a moçacitasse algum detalhe só para agradá-lo. Masela continuava negando:– Nada disso – concluiu Ulfat.– A próxima pergunta é para Muna – disse
Stevenson. – Ulfat teve alguma dificuldadepara aprender a andar?Não, a menina andou aos onze meses.
Muna continuou a falar e, logo depois, Majdraduziu: durante a maior parte dosprimeiros anos de vida de Ulfar, Muna
estivera fora do país. Foi sua irmã, Najla, queesteve presente na ocasião em queapareceram os primeiros sinais das
lembranças de vidas passadas. Najla contaraa Muna que certa vez, quando Ulfat
começava a dar os primeiros passos, elaouviu dizer que os cristãos iriam chegar na
– É uma pergunta para Najla. Ela deve saber.Talvez ele pensasse que minha intenção eraapontar falhas na história de Daniel. Ele já mehavia dito que aquela entrevista não eraválida como prova. Mas eu estava intrigado.Afinal, cair de uma sacada não é um acidente
comum na vida de uma criança.Seria aquela lembrança uma memóriaconfusa, relacionada à imensa dor de perder
a irmã mais nova? Ou será que, num de seusencontros, ela ouvira a família Khaddegecontando velhas histórias e incorporara a
mais traumática de todas ao seu repertório de“memórias” sobre Rashid?Deixamos a casa e seguimos pelas
montanhas. Nosso destino era Aley, umacidade bem maior, com uma ampla rua
principal, onde edifícios de pedra abrigavalojas, restaurantes e escritórios.E ti h it d t
Eu tinha muito o que pensar durante aviagem. Primeiro, ficara impressionado coo refinamento e a naturalidade de Ulfat.Estava claro que ela não gostava de falarsobre suas Stevenson explicou:– Rashid costumava dizer: “Se quiser morrer,
entre num carro com Ibrahim.”Comecei a lembrar da transcrição daentrevista com Daniel, dezoito anos antes. Ele
culpava Ibrahim pelo acidente, contando queestavam em alta velocidade e, ao sererepreendidos pelos passageiros de um outro
carro, Ibrahim, aparentemente com raiva porter sido censurado, tentou retornar e alcançaro outro automóvel, perdendo o controle do
veículo.
– Quais são as suas lembranças em relação aoacidente? – perguntei.Ele nem esperou aradução
radução.– Era um conversível – afirmou. – Eu diziapara Ibrahim: “Devagar, não corra.” Então,lembro-me de estar no chão.– Você disse que visitou o túmulo de Rashid.Como se sentiu?Silêncio. Um sorriso.
– Pensei: “A morte não é assustadora.”Decidi que seria um bom momento paraperguntar a respeito de algo que ele havia
mencionado quando tinha nove anos: alembrança de ter caído de uma sacada.– Eu não estava falando de Rashid, que
morrera um ano e meio antes de Daniel –disse ele. – Era uma outra vida.– Uma vida intermediária – concluiu
Stevenson. Daniel pediu licença e foi até o
quarto. Voltou trazendo a fotografia de urapaz – Rashid.
– Quando você olha para essa fotografiasente que está olhando para si mesmo? –perguntei.– Sinto – disse ele. – Sem dúvida.Perguntei seele era capaz de consertar carros. Respondeurindo:
– Nessa vida atual, não.Enquanto Mahmoud acelerava montanhaabaixo, mergulhando nas luzes dos faróis que
vinham na direção oposta, minha menteexausta continuava lutando contra as últimaspalavras de Daniel: ele não tinha habilidade
para consertar carros.Se esse fosse mesmo um caso dereencarnação, havia uma pergunta:
exatamente que parte do morto teria voltado?Daniel não demonstrava ter as habilidades
aprendidas por Rashid e nem suas aptidõesinatas. Suas truncadas “memórias” eraapenas fragmentos de vinte e cinco anos de
apenas fragmentos de vinte e cinco anos deuma vida.Entretanto, ele olhava para o retrato do rapaze pensava: “Sou eu.” Nutria um sentimentode afeição pela família de Rashid como seizesse parte dela. Reconhecera Ibrahim.
Este era um assunto que Stevensondesconhecia. Acontecera há apenas cincoanos. E havia uma testemunha – alguém que
seria possível localizar.
5
A VELOCIDADE MATAUm pedaço de papel ficara guardado nosarquivos de Stevenson em Charlottesville
durante vários anos. Nele, uma lista do queainda precisava ser feito no caso de Daniel.
Um dos itens: verificar notícias publicadasem jornais sobre a morte de Rashid. É óbvioque um relato desinteressado da época do
que um relato desinteressado da época doacidente confirmando as lembrançasalegadas por Daniel, acrescentaria umaveracidade que ultrapassaria muito os limitesdos emocionados testemunhos prestados pormembros das duas famílias envolvidas.
Mas não seria fácil encontrar tais notícias: amaioria dos jornais que existiam em 1968 nãosobrevivera às décadas de guerras, e os
arquivos dos restantes talvez tivessem sidodestruídos. Majd chegou ao hotel na manhãde terça-feira trazendo o endereço do mais
importante dos sobreviventes, um matutinochamado Le Jour.Um elevador pequeno e mal cuidado levou-
os até o quarto andar de um prédio sequalquer identificação. Majd explicou o que
rodou aquele filme?Ela pegou o telefone celular e fez uma sériede chamadas. Eu me moviaimpacientemente, pensando na importânciadaquele documento, na pequena
possibilidade que tínhamos de localizá-lo eo tempo que perderíamos para fazê-lo.Ainda que os arquivos tivessem sobrevivido,
uma cidade grande e caótica como Beirute,acidentes fatais acontecem todos os dias enão era possível garantir que todos fosse
noticiados. De pé, ao meu lado, ligeiramenteencurvado, impassível, Stevenson nãodemonstrava preocupação, como se para ele
o tempo não importasse.
– Boas notícias – disse Majd, colocando otelefone de volta na bolsa. – A UniversidadeAmericana de Beirute possui o microfilme de
todos os jornais mais importantes publicadosem 1968. Stevenson decidiu ficar no hotelrelendo algumas de suas anotações. Enqantoisso, Mahmoud levou-nos, Majd e eu, até aUniversidade Americana, um delicioso oásis
de jardins floridos, num terreno aplainadoem meio às montanhas que se espelhavaem direção ao mar. Sob a sombra das árvores,
um caminho rodeava os edifícios, equipadoscom os mais modernos computadores e senenhum sinal de destruição, onde pessoas
elegantemente vestidas circulavam.Fomos levados ao departamento demicrofilmes, que parecia estar localizado
num planeta diferente do prédio do Le Jour.A sala era ampla, incrivelmente limpa, co
arquivos bem etiquetados e modernosvisores. Um homem com os modos, aaparência e o sotaque de Anthony Hopkins
em Vestígios do Dia nos mostrou seis jornaisque estavam em atividade em 1968 e nosdeixou pesquisá-los. Fui rodando o filmeenquanto Majd lia as notícias. As páginas iacorrendo, os dias dançando pela tela numa
procissão estonteante Nada. Mais um. Nada.Girei o filme mais uma vez, desanimado. Erainútil. Então, Majd gritou:
– Achei!Parei de rodar. Ali estava ela, uma pequenafotografia no pé da página: policiais ao redor
de um Fiat destruído, com o teto arrancado.Majd traduziu: “Acidente de automóvel eKornich Al-Manara.”
O artigo começava dizendo que “um acidentede automóvel aconteceu ontem em Manara
Corniche, causando a morte de um dospassageiros”. Dizia que Ibrahim estavadirigindo o Fiat, “tendo ao seu lado Rashid
Naim Khaddege, o proprietário do carro.Ibrahim tentou, em alta velocidade, alcançarum outro veículo, resultando em múltiplascapotagens e na morte instantânea de RashidKhaddege”.
Não esperava tal impacto. Ali, na tela, nointerior obscuro de um jornal publicadodezoito meses antes do nascimento de Daniel
Jirdi, três anos antes de ele afirmar que haviamorrido num acidente de automóvel, estavaum relato de uma fatalidade rotineira que
correspondia quase exatamente à históriacontada pela criança: Military Beach, altavelocidade, Ibrahim dirigindo um Fiat,
Rashid jogado para fora do veículo. Ele haviacontado tudo aquilo. E estava escrito:
“tentou, em alta velocidade, alcançar uoutro veículo”.– Majd, é exatamente o que Daniel disse.Majd
olhou para a tela com mais atenção:– Não, espere – disse ela. – Cometi um erro.Estava traduzindo rápido demais. Ele nãomenciona outro veículo. Ele diz “tentando,em alta velocidade, alcançar uma curva”, e
não um outro veículo.– Quem sabe eles simplesmente nãomencionam o outro veículo ou nem sabia
de sua existência – respondi. – Isso não querdizer que ele não estivesse lá. Mas existealgumas contradições com o depoimento de
Daniel. Ele disse que era um conversível. Afotografia não está muito clara, mas esse caro,definitivamente, tem um teto. Parece quase
arrancado, mas está lá. E o artigo diz que o
caro era de Rashid. Daniel disse que era deIbrahim.– O jornal deve ter se enganado – falou Majd.
– A família de Rashid nos falou que eleamais teve um automóvel.Imprimimos uma cópia da notícia e voltamospara o hotel. Já era quase meio-dia quandochegamos: uma manhã inteira dedicada averificar um único item de uma lista quefazia parte de u entre milhares de arquivos,contendo dezenas de milhares de itens ainda
pendentes. Levaríamos a vida inteira paracumprir todos eles. Stevenson não tinha todoesse tempo.
Ele olhou para o artigo impresso, sorriu eouviu a tradução de Majd sem fazercomentários.
– Gosto de ter o maior número possível dedocumentos – disse Stevenson, enquanto
guardava o artigo em sua abarrotada pasta. –Até mesmo os melhores casos costumaapresentar lacunas.
Dizendo isso, saiu do hotel e dirigiu-seimediatamente para o carro. Tínhamos uencontro com a família Khaddege na casa deMuntaha, a mãe de Rashid, que morava nocentro de Beirute.O filho de Muna, sobrinho de Rashid, um dosmeninos que tínhamos visto no nossoprimeiro dia em Kfarmatta, nos convidou a
entrar numa sala de paredes azuis,manchadas, cobertas de marcas de pregos.No meio da sala, uma mesa de centro, e sobre
ela, a fotografia do casamento de Daniel Jirdi,o filho que eles acreditavam ter perdido erecuperado através da reencarnação.
Muna nos recebeu como se fôssemos velhosamigos. Sentado numa cadeira à nossa frente,
estava um rapaz magro, bonito, um poucocalvo, vestindo calças jeans e camisa pretas.Fiquei feliz ao saber quem ele era: Akmad, o
primo de Rashid, a testemunha do momentoem que Daniel, espontaneamente,reconhecera Ibrahim. Senti que ele estavaansioso para conversar conosco, mas foiMuna quem começou a falar. Majd traduziu.Antes da morte de Rashid, Muntaha estavatricotando um suéter para ele. Um dia,depois que começaram a visitar Daniel, o
menino lhe perguntou:– Você terminou de fazer o meu suéter?Muntaha procurou o trabalho inacabado
onde o havia guardado anos atrás, após amorte de Rashid. Desmanchou a parte já feitae usou lã para tricotar uma peça menor, que
ofereceu a Daniel.
Quando ela acabava de contar a história, aporta de um dos quartos se abriu de repente.Emoldurada pelo retângulo vazio estava uma
mulher já velha, observando-nos através dafenda de um xale de cabeça que descia até assobrancelhas e subia até o nariz, deixando àmostra apenas uma pequena parte de seurosto miúdo e enrugado: Muntaha. Munapegou-o pelo cotovelo e ajudou-a a sentar. Eprosseguiu:– Minha irmã, minha mãe e eu estávamos
aqui, nesta casa, quando uma vizinha veioos contar que Rashid tinha sofrido uacidente. Minha mãe perguntou: “Ele
morreu?” A mulher disse que não sabia.Corremos para o hospital, mas ele já estavamorto.
Uma das afirmações de Daniel sobre Rashidera de que ele tinha batido a cabeça quandofoi jogado para fora do automóvel.
– Os médicos lhe disseram onde ele foiferido? – indagou Stevenson.– Não – respondeu Muna. – Ele já estavamorto. Nós não perguntamos. Mas vimos ocorpo. Tinha uma atadura na cabeça.Alguns anos mais tarde, um conhecidocontou para a família que Rashid haviarenascido na casa dos Jirdi, em Beirute. Isso
foi em 1972. Muna, Najla e uma amiga foraconhecer o menino.– Daniel não me reconheceu, provavelmente
porque eu havia mudado muito. Depois damorte de Rashid, passei a cobrir a cabeça eusar vestidos compridos – disse Muna. – Mas
ele viu Najla e chamou-a pelo nome.– Os Jirdi as estavam esperando? – indaguei.
– Não, chegamos de repente, sem avisar. Nãoconhecíamos a família. Daniel ficou muitocontente quando nos viu. Ele disse à mãe:
“Traga bananas para Najla e faça café, porqueminha família está aqui.” Ficamos abismadas.Rashid gostava tanto de bananas que minhamãe e Najla pararam de comê-las depois desua morte, pois faziam com que selembrassem de sua tristeza.Akmad, que estivera calado até o momento,pigarreou e começou a falar sobre o encontro
entre Daniel e Ibrahim, que diferia um poucodo que o primeiro havia nos contado.Segundo Daniel, ele tinha visto Ibrahi
quando se encaminhava para o túmulo deRashid. Akmad afirmou que Daniel pedirapara ser levado até a casa de Ibrahim.
– Estávamos caminhando numa rua a poucosquarteirões da casa quando vi Ibrahi
trabalhando num automóvel. Eu não dissenada, porque queria testar Daniel. Mas ele foilogo dizendo: “Aquele é Ibrahim.”
Akmad continuou a testá-lo, afirmando queele estava enganado, que aquele não eraIbrahim, mas Daniel insistia em dizer queera. Ibrahim levou-os até sua casa, sem saberque era aquele rapaz.– Eu não os apresentei. Então, Danielperguntou a Ibrahim: “Alguma coisaaconteceu com você em 1968?” Ibrahi
respondeu: “Não me lembro.” Mas depoisdisse: “Sim, eu me lembro. Tive um acidentee meu primo morreu.” E Daniel falou: “Eu
sou o seu primo.”Ibrahim chorou, atordoado durante quinzeminutos. Ele já ouvira falar de Daniel, mas
unca o tinha visto.
– Ibrahim fugiu depois do acidente. A políciaunca investigou – disse Muna, o rosto
quisesse livrar-se de algo que a incomodava.– Durante muito tempo – continuou Muna –,Muntaha não falou mais com Ibrahim. Elesempre lhe dizia: “Diri ja devagar, Rashid émeu único filho.” Eles só recomeçaram a sever durante a guerra, quando as duasamílias fugiram de Beirute e foram para as
montanhas.
Perguntei a ela sobre o item do artigo doornal que contradizia as memórias deDaniel. O dono do automóvel era Rashid?
– O carro era de Ibrahim – disse ela. – Rashidnão possuía nenhum automóvel.Já na ruía, fiamos sob uma marquise,
tentando nos proteger da chuva forte quecomeçara a cair.
– Muna me contou algo muito interessantequando estávamos saindo – comentou Majd.– Disse que Rashid ficara noivo cinco dias
antes do acidente.“Muito estranho”, pensei. Daniel parece ternascido com outras memórias da vida deRashid e, aparentemente, nunca haviamencionado o fato de estar noivo. Mais umavez refleti sobre a natureza fragmentária dasmemórias de vidas passadas. Eram como
ma cópia de carbono malfeita – aqui e ali
identificava-se uma palavra, até mesmo umafrase, mas era impossível ter uma idéia dodocumento inteiro.
Lembrei-me das palavras de Stevenson,quando lhe perguntei por que mesmo entreos drusos, onde tais casos eram relativamente
comuns, ainda era rara a ocorrência dememórias de vidas passadas.
– talvez porque lembrar seja uma falha –disse ele. – Talvez devamos esquecer, masalgumas vezes acontece uma disfunção nos
nossos sistemas e não esquecemoscompletamente.Na manhã seguinte, voltamos a Aley, paravisitar Latifeh, a mãe de Daniel, que nãoestava presente em nossa última entrevista.Stevenson queria rever alguns dos pontosiniciais daquele caso: o que Daniel disseraquando criança e como ele se encontrara pela
primeira vez com a família Khaddege.No apartamento de Daniel, depois detrocarmos gentilezas, Stevenson,
desdobrando um mapa da cidade, pediu aLatifeh que apontasse sua casa em Beirute, olugar onde Muna e Najla foram encontrar
Daniel pela primeira vez. Ela indicou uponto a menos de dois quilômetros da casa
da família Khaddege, um caminho quepoderia ser feito facilmente a pé. Depois davisita das duas irmãs de Rashid, Latifeh
levou Daniel para visitar a mãe do rapaz.– Da primeira vez que fomos lá, nãoconhecíamos bem a vizinhança – disseLatifeh. – Estacionamos na rua principal eDaniel nos conduziu pelo resto do caminho.Não pediram orientação a Muna e Najlaporque pensaram que a casa de Kfarmattaera a única que a família possuía. Segundo
Latifeh, eles só souberam da existência dacasa dos Khaddege em Beirute através deparentes da família, que, por coincidência,
eram seus vizinhos em Aley.Olhei para Stevenson e imaginei se ele estariapensando o mesmo que eu. Uma das
características mais convincentes dos seusmelhores casos era a ausência de qualquer
contato entre as famílias envolvidas, antesque as memórias da criança começassem a semanifestar. Se as famílias jamais tivessem se
encontrado e se não houvesse amigos ecomum, era impossível a criança ter obtidoinformações a respeito de sua personalidadeanterior. Até o momento, a história de Danielparecia se enquadrar nessa categoria. Mas,agora, essa prerrogativa estavacomprometida. Havia um elo potencialmenteentre os Jirdi e os Khaddege.
A mãe de Daniel percebeu nossa ansiedadequanto a uma possível contaminação dasafirmações feitas pelo filho e tentou nos
ranqüilizar. A vizinha era amiga de sua mãe,mas nunca havia sequer estado em sua casa.– Eles alugaram um apartamento perto de
minha mãe, em Aley. Mas tenho certeza deque Daniel nunca os encontrou antes de
cuidadoso, pois não queria perder seu amadoeto da mesma forma que os primos dos
vizinhos haviam perdido seu filho, nuacidente em que um carro em alta velocidadeperdera o controle em Military Beach. Elapoderia facilmente ter se esquecido do queinha dito ao neto. Mas, de alguma maneira,
Daniel pode ter se lembrado.
Eu não acreditava que esse tipo decontaminação tão retorcida fosse provável,mas era possível. Não seria de se esperar que
ma criança de dois anos ouvisse umaistória e lembrasse dela com tantos detalhes,como fez Daniel – o nome do motorista, o
ato de o carro ter perdido o controle, deRashid ter sido jogado para fora, do acidente
ter acontecido perto da água, da mãe deRashid estar tricotando um suéter para ele.Além disso, nenhuma história contada pela
avó explicaria os reconhecimentos feitos porDaniel – o caminho para a casa dosKhaddege, a irmã de Rashid, Ibrahim, e
outros.Latifeh contou ainda que, aos dois anos,Daniel falou “Quero ir para casa.” Algunsmeses depois, ele disse: “Essa não e a minhacasa. Você não é minha mãe. Eu não tenho
pai. Meu pai morreu.”– Ele se recusava a chamar Yusuf de pai –prosseguiu. – Chamava-o pelo nome e dizia:
“Meu pai se chama Naim.”– O que ele disse sobre o acidente? –perguntei.
– Disse que estava em casa comendo loubia(um prato feito com vagens) e que Ibrahi
chegou e o levou para o mar. Disse queIbrahim estava correndo. Ele pediu que fossemais devagar, mas o primo ignorou seus
– Estava pensando a respeito do que vocêdisse sobre relativa falta de casos entre oscristãos. A questão e a seguinte: se você
acredita que o poder da crença de umacultura é forteo suficiente para criar esse delírio coletivo eque crianças se lembram de dados específicosda vida de mortos que desconheciam, não é
preciso admitir que isso também funcione demaneira inversa? Que a crença cultural possareprimir memórias verdadeiras de vidas
passadas de tal maneira que elas só apareçaesporadicamente e de maneira fragmentada?Ricardo rejeitou a idéia:
– A reencarnação simplesmente não fazsentido. Quando participei da conferência da
população mundial, no Cairo, perguntei aum druso: “Se todos nós somosreencarnações de outras vidas, como você
palavra que sempre aparecia em suastraduções: takamous.– Literalmente, significa “trocando sua
camisa” – ela explicou. – Os drusos acreditaque o corpo é apenas uma roupagem para aalma e que, quando você reencarna, é comose mudasse de roupa. Takamous significa“reencarnação” em geral, mas, quando vocêse refere a uma pessoa que foi reencarnada,deve usar uma palavra diferente: natiq paraum menino, nataq para uma menina. A
tradução é: “aquele ou aquela que fala sobrea geração anterior”.Levei algum tempo para me dar conta da
importância dessas palavras. Em inglês oconceito de reencarnação – almas retornando
à carne – é de certa forma abstrato. Aqui elese referia a pessoas que se lembravam deuma vida anterior e afirmavam ter vivido no
passado. Não num passado indefinível, masna geração anterior. Bastante diferente daidéia ocidental de regressão hipnótica em que
pessoas se lembram de ter vivido eWaterloo ou na antiga Babilônia (o próprioBrian Weiss afirmou ter visto a si mesmocomo um sacerdote da Babilônia, no topo datorre de um templo). Dessa forma é difícil ouimpossível obter-se qualquer comprovação.Esse é o ponto mais extraordinário erelação aos casos do Líbano – todos são
passíveis de verificação. Pode-se comparar asmemórias às informações dos parentes e doamigo morto.
Apesar de parecer comum que, por váriasgerações, as crianças tenham se lembrado de
vidas passadas, para muitos libaneses a idéiaainda é novidade. Um artigo de julho de 1977de uma publicação semanal de Beirute, e
língua inglesa, chamada Monday Morning,me deu uma idéia da visão que a sociedadesecular mais ampla tem desses casos. O titulo
era: A REENCARNAÇÃO DE HANANMANSOUR e, abaixo dele, estava o seguinteresumo: “Suzy Ghanem, cinco anos, afirmaser a mãe de três filhos adultos, e estes estãoconvencidos de que ela realmente o é. Umavisão íntima do mais estranhorelacionamento familiar no Líbano de hoje.”Embora não haja pontos de exclamações, eles
estão presentes em todo o texto. A históriadiscorre sobre o tema com o mesmo nível deassombro que seria de se esperar num jornal
orte-americano:
Suzanne Ghanem tem cinco anos.Ela insisteem afirmar que não é Suzanne Ghanem. Eladiz aos pais que se chama Hanan Mansour,
que morreu após uma cirurgia nosEstadosUnidos e que quer seu marido e filhos devolta. As famílias Ghanem e Mansour nunca
tinham ouvido falar uma da outra.Entretanto, Suzanne (Hanan?) procurou seusfilhos e entrou em contato com eles. Agora,os filhos– todos adultos – estão convencidos de quesua mãe é uma menina de cinco anos quemora em Shwaifat, uma área ao sul deBeirute.
Stevenson estava trabalhando no Líbano hádoze meses quando o artigo sobre SuzanneGhanem foi publicado. Como está sempre
atento às notícias locais, viu o artigo e visitou
Suzanne em março de 1978, oito meses após apublicação.Isso foi há vinte anos. Hoje, a menina é ma
mulher de vinte e cinco anos.– Acho que Suzanne foi a pessoa que selembro do maior número de nomes – disse
Stevenson, ao me entregar uma pasta onde,um papel amarelado pelo tempo, li o
seguinte:“Hanan Mansour nasceu nas montanhasShouf, nos anos trinta. Com apenas dezesseisanos, casou-se com Farouk Mansour, uparente distante. Um ano mais tarde nasceusua primeira filha, Leila, seguida, dois anos
depois, por outra menina, Galareh. Nessaépoca, Hanan foi diagnosticada com uproblema cardíaco e aconselhada a não
engravidar outra vez. Mas, em 1962, ela teveum menino. Em 1963, seu irmão, Nabih, que
se tornara uma pessoa importante no Líbano,morreu num acidente aéreo. O acidente e amorte de Nabih foram muito comentados por
toda a comunidade drusa. Pouco tempodepois, a saúde de Hanan começou a sedeteriorar.”
Quando foi entrevistado, há vinte anos,Farouk disse a Stevenson que, dois anosantes de morrer, Hanan conversou sobre aprópria morte:– Ela disse que iria reencarnar e que teriamuitas coisas para contar sobre sua vidaanterior – falou Stevenson.Quando tinha trinta e seis anos, Hanan foi a
Richmond, na Virgínia, para se submeter ama cirurgia cardíaca de grande risco. Leilainha a intenção de ficar com a mãe, mas
avia perdido o passaporte e não viajou.Hanan tentou falar com a filha pelo telefone
antes da operação, mas não conseguiu. Nodia seguinte, ela morreu. Seu corpo foimandado de volta para Beirute.
Dez dias após a morte de Hanan, nasceuSuzanne Ghanem. Sua mãe, Munira Ghanem,contou a Stevenson, pouco antes do
ascimento da filha: “Sonhei que ia ter umamenina. Encontrei uma mulher que abracei e
eijei. Ela disse: ‘Eu vou vir para você.’ Deviater uns quarenta anos. Mais tarde, quandome mostraram o retrato de Hanan, achei quese parecia com a mulher do meu sonho.”Stevenson releu as anotações.– Temo que haja uma falha técnica aqui –
disse ele, após algum tempo. – Geralmente,pergunto se ela comentou o sonho coalguém para que me seja possível confirmar,
mas, nesse caso, não perguntei.
Os pais de Suzanne contaram que ela falousuas primeiras palavras aos dezesseis meses.Amenina tirou o telefone do gancho e disse:
ô, e a? Qua do, a s ta de, e esouviram que Hanan tentara se comunicarcom a filha antes de morrer, ligaram os fatos.
Mas, na época, não faziam idéia de queseria a pessoa com quem ela estava falando.Quando ficou mais velha, a menina disse queLeila era uma de suas filhas e que ela não eraSuzanne, mas Hanan.Quando lhe perguntaram “Hanan de quê?”,ela respondeu: “Minha cabeça ainda épequena. Esperem até que ela cresça e talvez
eu lhes diga.”E, segundo seus pais, disse mesmo. Aos doisanos ela já tinha citado o nome de seus outros
ilhos, de seu marido, Farouk, e de seus pais eirmãos: ao todo, treze pessoas. Ela falava
coisas como: “Minha casa é maior e maisbonita do que essa.” Algumas vezes ela diziapara o pai: “Eu te amo. Você é bom para
, p , ,por isso que eu aceito você.”Halim era o nome do pai de Hanan.
Como no caso Jirdi, um amigo que tinhaconhecidos na cidade onde a famíliaMansour morava acabou descobrindo que osfatos ligados à história contada por Suzannecorrespondiam à vida de Hanan. Os Mansourouviram falar da menina de Shwaifat eresolveram visitá-la.Suzanne tinha cinco anos quando Stevenson
a encontrou. Mesmo depois de tudo o quepresenciara em suas pesquisas com crianças,ele achou que a ligação da menina às suas
memórias de outra vida era excepcional.
– A história acabou criando problemas.Suzanne ligava para Farouk, o marido deHanan, três vezes por dia. Quando ia visitá-
lo, sentava em seu colo e descansava a cabeçait El d
, çem seu peito. Ele se casara de novo, com umaamiga de Hanan, mas estava tão preocupado
com a reação de Suzanne que lhe escondeu ofato. Entretanto, a menina acaboudescobrindo e cobrou dele: “Mas você medisse que nunca mais amaria outra pessoa.”Farouk não se lembrava de ter dito tal coisa aHanan. O máximo que admitiu foi: “Bem,pode ser que eu tenha dito algo parecido.”Chegamos à casa da família Ghanem no final
da tarde. Munira e Shaheen, os pais deSuzanne, nos receberam e nos conduziraaté uma sala estreita, onde fomos saudados,
num inglês perfeito, por Hassam, o irmão
mais velho de Suzanne. Alguns minutos maisarde a moça apareceu.O artigo do Monday Morning dizia que a
família da criança “via uma tristeza profundaS ti d l ” N fi l d
ç pem Suzy e sentia pena dela”. No final doartigo, o autor relatava que “ao sair, olhei
para trás e vi a menina que me observavapela janela. Seus olhos castanhos estavacheios de lágrimas”.Agora, em pessoa, os olhos castanhos deSuzanne eram seu traço mais marcante epareciam mesmo tristes. Vestida com calçaseans e um suéter azul, ela ficaria perfeita equalquer um dos grupos de alunos da
Faculdade de Miami, onde dei algumasaulas.Seu rosto era redondo, sua pele parecia
alabastro e sua expressão um tanto fechada.Ela nos olhou diretamente nos olhos, mas
como se estivesse bem distante. Disse-nosque completara dois anos de faculdade eBeirute e que agora estava ensinando inglês a
crianças de sexta e sétima séries, embora nãofalasse tão bem quanto o irmão
Suzanne levantou-se muito abruptamente esaiu da sala, como se tivesse lembrado de
algo que precisasse fazer com urgência. Leveialguns instantes para perceber que ela estavachorando. Hassam prosseguiu, sedemonstrar surpresa pelo comportamento dairmã.– Suzanne é muito sensível em relação a esseassunto. Houve um caso no qual ela atuoucomo mediadora entre duas famílias: a
anterior, que queria ver a criançareencarnada, e a atual, que não queriapermitir o encontro. Ela conseguiu convencê-
los a deixar a criança conhecer a primeiraamília.
Ficamos ali, constrangidos, até que Suzannevoltou, ainda com lágrimas nos olhos.Stevenson perguntou se ela gostaria de fazer
– Não – disse ela. – Estou bem.Ele perguntouovamente se ela ainda tinha lembranças.
– Não me recordo de fatos, mas ossentimentos continuam dentro de mim.– Quando foi a última vez que você viuFarouk?– Há quatro anos. Ele veio até aqui.Stevenson dirigiu-se aos pais da moça:– Quantos anos Suzanne tinha quando paroude telefonar para Farouk todos os dias? Eles
sorriram.– Não parei – disse Suzanne. – Ainda telefonopara ele.
– Com que freqüência?
– Sempre que tenho vontade. Talvez mais deuma vez por semana. – Um sorriso irônico seabriu em seu rosto. – Ele tem medo da nova
mulher. Agora ela estava falando em árabe.Majd traduziu a resposta O que Suzanne
filha, Leila, sofri com a dor da minha menina.Alguns minutos mais tarde, Stevenson fez a
Suzanne a pergunta com que sempre fechavaas entrevistas:– É bom lembrar-se de vidas passadas?
Depois de tudo o que ouvi, fiquei surpresoquando a moça aprumou o corpo, olhou-odiretamente nos olhos e disse, quase coraiva:– É bom, sim. Minha família anterior está
contente em saber que ainda estou por aqui eeu me sinto aliviada por ter visto de novomeus familiares do passado. Perguntei a
Munira e Shaheen o que eles se lembravado comportamento de Suzanne, quando
exatamente como se falasse com Hanan. Eladiz coisas como: “Estive falando com Mira,
aquela menina que estudou conosco noprimeiro grau.”De acordo com o artigo do Monday Morning,
o início a família Mansour ficara cética erelação à história de Suzanne. Eaimportantes e ricos e temiam que os Ghanepudessem estar atrás de algum dinheiro. Masa menina logo os convenceu quando, entre
outras coisas, identificou fotografias nuálbum de família. Ela as examinou diante dorepórter, que descreveu a cena:
Suzy identificou todos os parentes e disseseus nomes com precisão. “Este é meu irmão
sinceridade da família era visível.Mas, e o auto-engano?Seria possível que Nabih Mansour fosse tão
famoso a ponto de, nove anos depois de suamorte, uma criança fantasiar ter sido suairmã? Ou fazer com que os pais da meninainterpretassem algumas observações fortuitascomo prova da relação de sua filha com a
família de um herói morto e as moldassepara que correspondessem a fatos, nomes erelacionamentos que viera a conhecer sobre a
família de Nabih?
Mais uma vez, entretanto, como no caso deDaniel e dos Khaddege, nem essasinverossímeis possibilidades explicaria
udo o que Suzanne fora capaz de dizer. Nãopude deixar de pensar que poderia haver
para o conhecimento demonstrado porSuzanne: os Ghanem tinham uma crença tãoarraigada na reencarnação que,
inconscientemente, manipularam asafirmações da filha. E os Mansour desejavatão desesperadamente acreditar que Hananhavia retornado que acabaram sendoconiventes, elaborando ainda mais,colocando novas afirmações na boca deSuzanne, através de um eficiente processo desugestão.
Stevenson havia dito que não entrara econtato com os Mansour nessa viagem,
embora os tivesse entrevistado antes. Nãosabia se eles concordariam em nos encontrar.Mas eu desejava intensamente estar com eles.
Durante pelo menos meia hora Suzannepermaneceu em silêncio, enquanto a família
que ninguém lhe perguntasse, Suzannecontou algo que, segundo ela, jamais haviarevelado a ninguém: ela tinha conversado
com o rapaz que afirmara ser o irmão deHanan. Mais do que isso, ela sentira umaprofunda ligação com ele. A família ouviucom surpresa:– Eu estava na vila quando um homem seaproximou de mim – ela começou. – Elemereconheceu, mas não como Suzanne. Ele mereconheceu como Hanan. Disse que era
Nabih renascido. Tinha mais lembranças doque eu. Sua família havia reprimido suas
memórias e, talvez por isso, elas ficaram maisfrescas em sua mente. Ele me abraçou e mebeijou. Eu chorei.
Ao voltar para o hotel, refleti sobre osacontecimentos dos últimos dias e sobre
minha mente: aquelas pessoas não tinham opropósito de nos enganar. Era difícilimaginar o que alguém lucraria em promover
o próprio caso, sobretudo ente os drusoslibaneses, onde os casos eram comuns. Orelacionamento com a “família anterior” nãotrouxera qualquer benefício material, emuitas vezes os benefícios emocionaispareciam estar acompanhados por unúmero equivalente de complicações.Mas por que eu estava especulando tanto?
Por que me recusava a aceitar a explicação
mais óbvia: a de que os casos eraverdadeiros?descobriram que, enquanto ela passava por
aquele problema, na casa da família que elahavia reconhecido em sua visão uma criança
Stevenson não demonstrou grande interesse.Sabia melhor do que qualquer um que ashistórias ouvidas em segunda mão, na
maioria, não conseguiam se sustentar.– Você tem os nomes e os números detelefone dos sujeitos envolvidos? – perguntouele. O homem deu um passo para trás.– Eu lhes telefono – disse ele.Enquantotomávamos um uísque antes do jantar,perguntei:– Acha que aquele homem vai ligar?
– Ele parecia um tanto possessivo em relaçãoao caso – disse Stevenson tranquilamente. –
Eu mesmo tenho alguns casos que chamo de“quase-morte, quase vida”. Um deles eraastante parecido com o que ele descreveu.
Havia uma mulher inconsciente que,segundo os médicos, estava próxima da
inha se visto diante de uma mulher queacabara de dar à luz e contou que se sentiucompelida a empurrar-se para dentro do
corpo do recém-nascido. Mas, quando iaazê-lo, pensou no amor que sentia por suaamília e afastou-se.
– Interessante – comentei – que em ambos oscasos elas tenham dito que iriam entrar nahora do nascimento e não da concepção.– Não é mesmo? – disse ele, sorrindo.– Tenho pensado numa coisa – eu prossegui.
– Quando as pessoas afirmam que, nopassado, foram uma outra pessoa, mesmo
que a reconheçam, acho que elas tambépoderiam concluir que sintonizaramentalmente uma outra vida. Seria um caso
mais de percepção extra-sensorial do que devidas passadas.
– Não é só a memória que está envolvida –respondeu. –Quando as pessoas ainda sãocrianças, elas dizem: “Eu tenho uma esposa”,
ou “Eu sou médico”, ou “Eu tenho trêsbúfalos e uma vaca.” Elas são apersonalidade anterior e resistem àimposição de uma nova identidade. Danieldisse a Latifeh: “Você não é minha mãe.Minha mãe é uma sheikka.” Tive um caso naTailândia de um homem que, quandocriança, recordava-se de ter vivido a vida do
irmão de sua mãe. Ele afirmava que, quandoestava deitado de costas no berço, sentia que
era um homem adulto e tinha todas asmemórias de sua vida passada. Mas, cofreqüência, algum adulto intrometido virava-
o de bruços e, então, ele se tornava apenasum bebê indefeso em seu berço. Como uma
corpo para o outro lado.– Entretanto – disse eu –, de um modo geral,se a reencarnação é a explicação para esses
casos, ela é um processo que produzmemórias muito imperfeitas e incompletas. Oque eu quero dizer é que não houve nenhucaso de alguém que tivesse lembrançasperfeitas e completas de uma outra vida.– É verdade, nossos casos no Líbanoapresentam uma média de trinta lembranças.De fato, não é muito. Mas, como você
constatou com Suzanne, podem existir
também algumas lembranças emocionaismuito fortes.– Eu queria lhe perguntar uma coisa – eu
retornei. – Na palestra, quando vocêrespondeu à pergunta sobre sua“ ” d d d
idéias contidas na palestra, não haviadúvidas de que eram bem pensadas eexpressadas de forma eloqüente. Lembrava
os escritos do século dezenove, quando oscientistas também podiam ser escritores,historiadores e filósofos, quando não tinhamedo de expor seus pensamentos e discutirem público assuntos imponderáveis. Até alinguagem parecia relíquia do passado. Aescolha de palavras formais e respeitáveis eas citações provenientes de uma variedade de
fontes fidedignas me faziam tomar
consciência de como minha perspectiva eralimitada.Mas eu também estava intrigado pelo to
sutil de amargor, ou pelo menos de mágoa eperplexidade aparente no texto. Stevensonti l t t b lh l
dedicara toda a sua vida era objeto deescárnio ou simplesmente ignorado por seuspares, os cientistas mais importantes.
Este sentimento estava presente desde osegundo parágrafo. “Para mim”, escreveu,“tudo em que os cientistas acreditam agoraestá aberto a mudanças, e eu fico consternadoao perceber que muitos cientistas aceitam oconhecimento atual como algo imutável.”Num outro parágrafo, ele acrescenta, nutom meio jocoso: “Se os hereges pudesse
ser queimados vivos nos dias de hoje, oscientistas – sucessores dos teólogos, que
queimavam qualquer um que negasse aexistência de almas no século dezesseis – hojequeimariam aqueles que afirmam que elas
existem.”Na maior parte do texto, entretanto,Ste enson fala com surpreendente franque a
sobre sua própria evolução. Ele atribui à suamãe o início de seu interesse pela relaçãoentre o espiritual e o material. Ela fazia parte
da teosofia, um movimento místico do fim doséculo dezenove, que Stevenson descrevecomo “um tipo de budismo simplificado”para os ocidentais.Mas houve um momento em que o textochamou a minha atenção. Lembro-me deestar na sala de minha casa, tarde da noite.Não estava bem certo do que procurava
aquela fotocópia da reedição de uma
palestra e meus olhos começavam a ficarembaçados quando li o seguinte:Enquanto ainda estava envolvido com a
psicanálise, comecei a fazer experiências codrogas alucinógenas (talvez melhordenominadas psicodélicas) Experimentei
várias delas, na tentativa de encontraralguma que pudesse auxiliar os psiquiatrasem suas entrevistas e sessões de psicoterapia.
Numa de minhas experiências com LSD, tivetambém uma vivência mística: uma sensaçãode unicidade com todos os seres, todas ascoisas. Depois disso, passei três dias eperfeita serenidade. Acredito que, como eu,muitas pessoas poderiam beneficiar-se dautilização de drogas psicodélicas, sobsupervisão médica – a única maneira sensata
um discernimento verdadeiro e duradouro.Não se pode negar a imensa força destrutivaque induz ao abuso dessas poderás
substâncias. O risco de danos físicos epsicológicos é provavelmente grande demaispara que valha a pena usá-las. Mas també
ão posso negar, no meu caso e no de muitaspessoas que conheci naquela época e cujasvidas tenho acompanhado, que taisexperiências foram úteis, exatamente damesma maneira descrita por Stevenson.
Ele não afirma com todas as letras, massugere que a experiência com o LSD reforçou
seu senso de que há algo além do material naconsciência humana, algo que deixou, porentre as descargas dos neurônios e as cordas
retorcidas do DNA, um lugar para umaentidade como a alma, capaz de sobreviver àdecadência física da matéria cerebral Mas o
interessante é que tal experiência nãodiminuiu em nada sua fé na ciência como a
nica maneira de se comprovar ou não a
veracidade dessa idéia.“Por mais impressão que nos causem, asexperiências místicas são incomunicáveis, ao
passo que as observações científicas são edevem ser comunicáveis: não existe ciênciasem demonstrabilidade pública. Isso significaverificação independente.”Foi exatamente o que primeiro me atraiu no
rabalho de Stevenson. O que ele sempre dizé: “Veja o que encontrei. Examine do jeito
que quiser. Faça suas próprias perguntas,elabore testes de verificação que eu tenhadeixado de fazer e, se conseguir uma
explicação mais racional para esse fenômeno,por favor, conte-me.”Isso é ciência – mesmo que envolva questões
que muitos cientistas não levam a sério.Naquela noite, durante o jantar, com ogravador ligado, tentei completar os vazios
da história de Stevenson e entender melhorcomo ele foi parar ali, em Beirute, aos quasesetenta e nove anos, aprumado como uma
vareta, sentado diante de uma mesa cobertacom uma toalha branca, ao fim de um longodia de visitas a pessoas que renasceram. Àsvezes eu fazia algumas perguntas, mas, namaior parte do tempo, ele falou por si
mesmo, começando do início.
Stevenson nasceu em Montreal, em 1918. Seupai estudou em Oxford e era correspondente-chefe do The Times of London.
– Esse posto era quase semi-oficial – disse ele,parecendo refletir bem sobre cada palavraantes de proferi-la. – O Times tinha
correspondentes por todo o mundo.Ele se interrompeu por uns segundos,olhando fixamente pela janela, como se
tentasse ver algo muito distante. Depois,voltou-se para mim.– É difícil descrever agora o período entre as
duas guerras. Talvez seja mais fácil você teruma idéia se eu lhe contar que o predecessorde meu pai recebeu o título de cavaleiro,tamanha era a importância do posto decorrespondente-chefe do Times numa capital
importante como Washington ou Ottawa. Elecostumava voltar para a Inglaterra a cada
dois anos. Muitas vezes levava um de nós. Euera o segundo filho e tinha dois irmãos e umairmã.
O pai de Stevenson era um homem distante,envolvido mais com a carreira do que com aamília e, embora tivesse por ele um imenso
respeito, Stevenson era mais ligadoemocionalmente à mãe.– Minha mãe era uma esposa extraordinária.
Ela encora java as minhas leituras. Devo aelas, também, meu primeiro contato com oque hoje é chamado de fenômeno
paranormal. Ela possuía uma enormequantidade de livros sobre teosofia, religiõesorientais e a Nova Era, chamada então deNovo pensamento. O poder da mente sobre amatéria, da mente sobre o corpo. Ela passou
por uma curta fase de interesse em CiênciaCristã, mas minha mãe era independente
demais para ligar-se a uma determinadareligião.Stevenson terminou o segundo grau aos
dezesseis anos e foi mandado para umaescola na Inglaterra. Ganhou uma bolsa deestudos da Universidade de St. Andrews, na
Escócia, onde estudou durante dois anos.– Comecei a estudar história – recordou-se. –Sempre fui fascinado pelo assunto. Ainda
leio história por prazer, mas achei que nãome serviria como profissão. O jornalismotambém não me atraía. Muito do que meu pai
escrevia me parecia crítico e destrutivo, seoferecer muita contribuição para o bem-estarda humanidade. Então, decidi estudarmedicina.Em 1939, ele se transferiu para aUniversidade McGill, em Montreal, onde
que ainda não era o trabalho ao qual gostariade me dedicar. Senti que precisava estar maisperto das pessoas. Então, fui para o New
York Hospital, da Escola de Medicina deCornell, onde fiquei dois anos pesquisandomedicina psicossomática, principalmente as
arritmias cardíacas resultantes de distúrbiosemocionais. Costumava entrevistar pacientesligados a eletrocardiógrafos, conversandocom eles sobre suas tensões do dia-a-dia,para, então, observar as mudanças em suasfunções cardíacas. Estávamos interessadosem discutir por que, quando estressada, uma
pessoa pode desenvolver asma, uma outra,pressão alta, e uma terceira, problemascardíacos. Na verdade, jamais chegamos a
uma conclusão que me deixasse satisfeito eembora hoje muitos possam pensar que todaessa questão é absurda, ela ainda me fascina.
– Fui então convidado para trabalhar naUniversidade do Estado de Louisiana. Fuipara lá em 1949 e fiquei sete anos fazendo
pesquisas. Interessei-me pelas drogasalucinógenas. Tomei e receitei algumas epubliquei estudos sobre o assunto. Isso deve
er sido no início dos anos cinqüenta.– De certa forma, esse foi o começo dasmodernas idéias bioquímicas sobre osmecanismos das doenças mentais. Fiqueiinteressado em saber que efeito essas drogaspoderiam ter no tratamento de pacientes e nacompreensão de várias doenças mentais. Eu
as tomei e arregimentei residentes e pacientespara experimentá-las.– Estávamos interessados no LSD como uma
ferramenta terapêutica para despertarmemórias. Eu mesmo recobrei algumasmemórias. Lembre-me de ter sido
circuncidado, não quando criança, mas maisarde. Minha mãe me levou sem dizer aondeíamos. Ao chegar, quatro homens
corpulentos me seguraram. Meu rosto foicoberto por uma máscara com éter e acordeicom o pênis inchado. Eu não tinha esquecido
disso, mas com o LSD tudo me voltou amente com uma força extraordinária.– Em geral, minha experiência com as drogaspsicodélicas foi muito boa. Por exemplo, elasmudaram minha perspectiva em relação àbeleza física. Minha primeira mulher era umaartista com uma extraordinária percepção
sensorial. Eu era míope e nunca prestei muitaatenção ás cores e formas. A mescalina abriuum mundo novo diante de meus olhos. Não a
estou recomendando a todos e certamente elanão deve ser usada sem uma rigorosasupervisão médica, mas eu a considero
benéfica.– Essa experiência é realmente indescritível,muito difícil de exprimir em simples
palavras. Entretanto, meu interesse peloparanormal vem da influência de minha mãee é anterior às minhas experiências com o
LSD. Mas talvez elas tenham reforçado ointeresse.– Durante os anos que passei em NovaOrleans li muito sobre o que seria chamadode literatura paranormal. Nos meus últimostempos lá, a título de experiência, comecei aescrever uns poucos artigos e críticas de
livros, além dos relatórios das minhaspesquisas convencionais que estavam sendopublicados em revistas médicas.
– Em 1957, aos trinta e nove anos, fui paraCharlottesville como chefe do departamentode psiquiatria. Naquela época, eu já tinha u
certo nome como pesquisador tradicional,mas sabia que queria fazer alguma coisaligada aos fenômenos paranormais. Quando
ui entrevistado na Universidade de Virgínia,falei sobre meu interesse. Não pareceraassustados. Eu tinha outros objetivos
ambém.– Acho que meu interesse especial pelareencarnação vem desde a infância, pois era aparte central do estudo da teosofia. O quehouve é que, como eu era muito interessado,comecei a encontrar, em livros, jornais erevistas, relatórios de casos individuais de
memórias de reencarnação. No final, reuni aotodo quarenta e quatro casos. Ao compará-los, vi que tinham em comum o fato de, e
sua maioria, envolverem crianças pequenas,entre dois e quatro anos, que falavam delembranças de vidas passadas por um breve
tempo, até atingirem oito anos. Mas erapreciso juntar os casos para que isso seornasse óbvio. Alguns não passavam de
istórias jornalísticas triviais, mas outroseram consideravelmente mais sérios. Evários casos, alguns adultos cautelosos
haviam feito uma séria pesquisa a respeito doque as crianças disseram. E em três casosalguém havia feito um relatório das palavrasda criança antes que as afirmações fosseverificadas.– Na ciência os números são importantes e,para mim, os quarenta e quatro casos
indicavam claramente que ali havia algo quemerecia um exame mais atento. Os casoseram de diferentes países e vinham de fontes
de diversos tipos. Eu não conseguia imaginarque todos pudessem ser uma fraude ouilusão.
– Concluí que, se outros casos pudessem serencontrados e estudados mais cedo e comais cuidado, aquela poderia ser uma linha
de investigação bastante promissora. Nãoimaginei que eu mesmo iria colocar apesquisa em prática. Mas apresentei u
ensaio sobre o assunto para concorrer a uprêmio oferecido pela Sociedade Americanade Pesquisas Medicas e venci. Isso foi e1960.– Algum tempo depois, a chefe da Fundaçãode Parapsicologia em Nova York meelefonou dizendo que tinha um relatório
sobre um caso na Índia similar àquelesdescritos no meu ensaio e perguntando se eutinha interesse em vê-lo de perto. Recebi uma
pequena subvenção e saí de férias.No futuro. Eu havia lhe perguntado isso ema de nossas conversas anteriores – se ele
tinha “alguma experiência pessoal quereforçasse a idéia de que existe areencarnação”.
Ele apenas se sentou ainda mais ereto, coma expressão fechada no olhar, e disse:
– Nenhuma que mereça ser discutida.
Olhei para Galareh, que havia se acomodadouma cadeira do outro lado da sala, o rosto
ainda sombrio, mas aparentementeconformada com a força da presença domarido.– Somos da Virgínia. Só estamos de visitas noLíbano – continuou ele. – Li um artigo no
Washington Post no outro dia que dizia quevinte e nove por cento dos norte-americanosatualmente acreditam na reencarnação.
Como um professor que desfilava os pontosmais importantes de seu currículo, ele sevirou para Stevenson:
– Basicamente, as pessoas que se lembram devidas passadas morreram de forma abrupta:acidentes, violência, um choque. A maioria
não se lembra. Mas como o senhor e eusabemos, todas as vidas ficam guardadas nosubconsciente.
Olhei para Stevenson procurando ver suareação. Ele permanecia sentado, os braçoscruzados sobre os joelhos, sem esboçar seumeio sorriso. Virei-me outra vez paraGalareh, com visível desconforto.– Você fez alguma regressão? – perguntei.
reencarnação – respondeu, a voz quasesumindo. Desviou o olhar. – Foi um choque.Muito difícil. Já tinha ouvido histórias, mas
nunca tinha visto nada pessoalmente. Foimuito perturbador. Durante muito tempo eunão queria mais ouvir falar no assunto.
– Como aconteceu o artigo?– Eu tinha uma amiga. Uma jornalista. Conteia ela sobre Suzanne e ela foi até lá comigo... –Parecia prestes a chorar. – Isso dividiu afamília – acrescentou. E silenciou, soltando opeso do corpo sobre a cadeira.
Observei que, num canto, Majd e Faroukconversavam em voz baixa. Stevenson estavaexplicando que pretendia publicar um relato
sobre o caso de Suzanne.Makarem foi o único druso capaz de escreverum texto competente sobre a religião numa
antiguidades. Assim que nos sentamos nasala de visitas, chegou Elie Karam, opsiquiatra cristão que na festa de Majd
defendera com veemência a importância daspesquisas dos casos de reencarnação entre osdrusos. Estava acompanhado de sua mulher,
uma psicóloga de presença marcante.– Tenho uma história para lhe contar – disseKaram a Stevenson, enquanto tirava o casaco
e se sentava. – Minha assistente assistiu à suapalestra ontem à noite. Depois, ela foi paracasa e comentou o assunto com seu irmão devinte e cinco anos. Ambos são cristãos
maronitas. Ele disse: “Eu tive uma vidaanterior.” Assim, de repente. Ele nunca tinhafalado sobre o assunto. E contou: “Só me
lembro que eu era um homem alto, quemorava nos arredores de Viena e que morrinum acidente de automóvel.” Então, ela
então, prosseguiu.– Uma noite fui ver um curandeiro que tinhase tornado muito conhecido. Havia dez mil
pessoas lá. O su jeito disse: “Um de vocês queestá me vendo tem um tumor no cérebro.Mas será curado.” Mais tarde, encontrei u
amigo que tinha um tumor cerebralinoperável. Contei a ele o que tinhapresenciado e ele me disse: “Era de mim que
ele estava falando.” Acontece que meu amigoestava vendo o curandeiro pela televisão eficou convencido de que aquelas palavrashaviam sido dirigidas diretamente a ele.
Disse que, naquele mesmo instante, começoua se sentir melhor. Estava tão fraco que malconseguia se mexer e, de repente, sentiu-se
bem outra vez. Agora que estava curadopretendia passar duas semanas na Itália coa mulher.
Conheci a mulher dele também. Falei com elae implorei para que o fizesse confirmar a curaatravés de um exame de ressonância
magnética. “Se não for por causa dele, queseja pelo bem da igreja. Eles precisam dessetipo de prova”, insisti. Ela respondeu: “Ele
está bem, mas vou fazer isso porque você estáme pedindo, quando voltarmos da Itália.”Viajaram por duas semanas, como planejado,
divertiram-se bastante e, então, ele morreu.Acho que grande parte da fraqueza não eracausada pelo tumor, mas pela gravedepressão que ele sentia devido àquela
situação. A simples esperança de que tivessesido curado deu-lhe novo ânimo. A euforiade acreditar que havia escapado da morte
pode ter trazido uma energia que permitiuque ele se sentisse normal por duas semanas,antes que o tumor o matasse.
“Pelo menos”, pensei, “o pobre homeconseguiu viajar para a Itália e se divertir.”9
NEW JERSEY É UM ESTADO DE ESPÍRITOPelo menos num aspecto o marido deGalareh estava certo: um incontável número
de crianças que afirmavam lembrar-se devidas passadas contavam que haviamorrido de forma violenta. Em nossa
primeira manhã no Líbano, Stevenson haviamencionado um estudo segundo o qualcinqüenta a sessenta por cento de seus casosna Índia envolviam mortes violentas, embora
Aley, numa das áreas destruídas por ondeavíamos passado no outro dia. Seguindo asinstruções de mais um dos antigos mapas
desenhados à mão por Stevenson, Mahmoudestacionou o Mercedes na frente do que udia fora uma casa de pedra, mas agora era
uma carcaça sem teto e sem janelas, com uenorme buraco no lugar do vestíbulo. Saímosdo carro e Stevenson tentou orientar-se pelos
pontos de referência que conseguirasobreviver à destruição. Entramos numa ruae seguimos por um declive íngreme, porentre edifícios ainda mais destroçados e u
par de automóveis amassados eabandonados, até chegar à casa.Trinta e cinco anos antes, a jovem Salma, uma
moça pobre, morava no andar térreo de umaconstrução de dois pavimentos situada numacolina. Ela tomava conta de seus filhos e do
antiga árvore. Entretanto, ao ficar parado ali,no exato lugar onde um assassinato ocorrerahá tantos anos, senti com mais força a
obscuridade da vida e da morte de Salma.Mais uma vez, pensei: “Se essas memóriassão fabricadas de maneira consciente ou
subliminar, por que uma pessoa escolheriaexatamente aquela vida para se lembrar?”Mas nosso verdadeiro objetivo ali não era ver
a casa. Subindo a colina, do outro lado darua, morava um homem chamado ChaficBaz. Era professor de psicologia numaaculdade e, o mais importante para nossos
objetivos, morava naquele endereço hámuitos anos.O apartamento de Baz havia sofrido u
incêndio, mas agora estava totalmentereconstruído. Ele e a mulher nos convidaraa entrar insistindo em dizer, como era
costume no Líbano que a casa nos pertenciad í t tá l
para se viver. Após fazer algumas consultas,chegamos a uma oficina. Um rapaz de cercade vinte anos apareceu para abrir a porta do
apartamento do segundo andar.– Estamos procurando por Bashir Chmeit –disse Majd, em árabe, explicando a razão de
ossa visita.O rapaz, irmão de Bashir, convidou-nos aentrar. O apartamento nos surpreendeu: u
oásis todo acarpetado, repleto de plantas,surgindo num desolado fim de rua. Ficamossentados numa sala aquecida por ufogareiro a óleo. Quinze minutos depois, o
um precipício tão íngreme que ali nada podiaser construído. Aquela era a paisagem maisintocada que tínhamos visto no Líbano, mas aadmiração foi vencida pela vertigem – nochão do automóvel, vi meus pés apertandoum freio imaginário.
Mahmoud parou antes do final da estrada e,ao sairmos do carro, nos deparamos com u
uma túnica cinza e as tradicionais calçascurtas e pretas, saiu da última casa e veio aonosso encontro.
– Esse é Khattar – apresentou Stevenson.Majd disse algumas palavras, o homeconcordou sorrindo e nos levou até sua casa
de pedra, um pouco mais adiante. Lá dentro,numa sala de estar escura, alinhavam-se sofáse cadeiras desgastadas pelo uso, onde
estavam sentados, em cantos opostos, os dois
irmãos, agora adultos. Perto da porta,Mazeed nos olhava sem muito interesse. Tali,sentado próximo à parede direita, nosobservava através dos olhos semi-abertos,esboçando o que parecia ser um estranhosorriso. Os irmãos usavam calças jeans,
camisa esporte e botas de trabalho. Ambostraziam telefones celulares presos à cintura.
– Nós conhecemos a reencarnação eacreditamos nela. Então, por que precisamosprová-la?A mãe, usando um mandeel enrolado damaneira mais antiga, logo abaixo do nariz,entrou na sala com uma bandeja de café.
Aceitei uma xícara, na esperança de queaquela demonstração de hospitalidade
guardado no coração dos dois irmãos. Majdcontinuou a conversar com eles, seconsultas ou tradução, tentando demovê-los
daquele comportamento ríspido, tendo asabedoria de envolver Stevenson e eu omenos possível.
– Mazeed tem um negócio, uma agência deempregos disse ela, afinal. – Basicamente,isso significa trazer empregadas do Sri Lanka
e encontrar emprego para elas. Ele diz queambém é corretor de seguros.
– Pergunte se ele gosta de seu trabalho –disse Stevenson. Majd traduziu a pergunta.– Se não gostasse, não estaria fazendo isso –oi a resposta. O tom dispensava tradução.
Stevenson remexia em seus arquivos semuita pressa. Ele prosseguiu, aos poucos,
de sua vida passada?– Só um pouco. – Ele deu de ombros. – Aguerra nos fez esquecer.
Khattar apareceu na minha frente com umaandeja de doces, insistindo para que euaceitasse um. Depois de hesitar, peguei um.
Ele falou algo para Majd.– O pai diz que Mazeed parou de falar sobresua vida passada aos vinte anos.
– Vamos saber como está a saúde dele – disseStevenson.Mazeed olhou para cima.– Fuiferido durante a guerra. Estilhaços debombas lançadas pelo New Jersey. –Dirigiu um olhar de provocação paraStevenson e para mim e levantou a mão,
exibindo uam cicatriz irregular que seguia atéo pulso. – Fiquei um mês e meio no hospital.
Nosso irmão foi morto na vila. O New Jersey.No mesmo instante, a mãe apareceu couma fotografia do irmão morto, um jove
magro que sorria para a câmera. Um telefonecelular tocou com espalhafato. Tali o tirou dobolso e atendeu.
– A maioria das casas nessa área foi destruídae depois reconstruída – disse ela.Khattar me levou para o lado de fora e
apontou para uma seção de pedras novas que
formavam a parte sul da casa. Juntou as mãose, então, separou-as repentinamente,imitando o som de uma explosão. Seus olhoscastanhos estavam lacrimejantes, mas nãodemonstravam amargor.Quando voltamos, Mazeed continuava a falar
– um bom sinal, pensei. Disse que estavaoivo de uma moça em Kfarsalwan, a cidaded h d d d
se encontrava com sua família anterior.Havia interrompido as visitas, masrecomeçou a fazê-las há dois anos, quando
icou noivo. A moça era uma conhecida daamília passada.– Qual vida você prefere? – perguntou
Stevenson, lendo o questionário.– Para mim tanto faz – disse Mazeed. – Avida é dura.Do outro lado da sala, Tali
provocou:
– Somos do terceiro mundo – disse,demonstrando revolta.Majd traduziu eacrescentou:– Tali me disse antes que está sem trabalho.Às vezes, dirige um táxi. Ele fez algunscursos de nível universitário na área de
egócios, mas não consegue emprego.Tali inclinou o corpo para a frente e dissel d i i A d
Ma jd foi longa. O rapaz balançou a cabeça.Majd disse mais alguma coisa e Tali ainterrompeu.
Majd virou-se para Stevenson:– Ele disse que não quer aparecer nolivro.Stevenson ajeitou-se no sofá, levantou
as sobrancelhas e afirmou:– Já está lá.
Majd traduziu para Tali, que se levantou edeu um passo na direção de Stevenson,levantando a voz, quase gritando.– Ele disse que, se está no livro, exige umacompensação – explicou ela. – Algudinheiro ou ajuda para conseguir u
emprego.A sala se tornava cada vez mais fria e a luz,d i f E ã t t d
leitura de uma enfadonha discussão, coinúmeras notas de pé de página, entre céticose defensores da pesquisa e das conclusões deStevenson. A maioria dos argumentos usadospelos céticos podia resumir-se ao seguinte: ascrianças estavam fantasiando, eram os pais
que forneciam as informações para que ascrianças as repetissem, a necessidadepsicocultural de acreditar na reencarnação
criara os casos, numa conspiraçãoinconsciente entre pais e filhos, vizinhos edesconhecidos.
Para comprovar seus pontos de vista, oscéticos mencionavam tudo aquilo sobre o queeu já havia refletido bastante: as
inconsistências que apareciam até mesmo noscasos mais convincentes, a possibilidade deligações entre as famílias passadas e
presentes, as várias motivações que levava
ao desejo de ser visto como alguém querenasceu.Quando terminei a leitura, tive certeza deque nada daquilo conseguiria explicar osacontecimentos que eu havia testemunhadono Líbano.
Mas um dos céticos, E. B. Brody, usava uargumento diferente: “O problema”,escreveu “não está na qualidade dos dados
apresentados por Stevenson para provar suateoria, mas no corpo de conhecimentos eteorias que devem ser abandonados, ou
radicalmente modificados, se quisermosaceitá-la.”Em outras palavras, afirmativas
extraordinárias exigem provasextraordinárias. Do ponto de vista de muitoscientistas ocidentais, a idéia de uma criança
incorporar pelo menos uma parte de uma
personalidade já morta é, sem dúvida, umaafirmativa extraordinária. Mas quem poderiadizer que as provas colhidas por Stevensondurante trinta anos também não o fossem?Mas seriam elas extraordinárias o bastante?Era essa talvez a pergunta que vinha me
atormentando.Outros autores que desafiavam Stevensonnão tinham problemas em relação aos seus
dados e nem em considerá-los suficientespara sustentar uma afirmativa extraordinária.Sua argumentação era quanto à própria
afirmativa. Preferiam dizer que os casosseriam melhorAlguns dias depois, ainda estava tentando
digerir tudo aquilo quando recebi umamensagem eletrônica de Stevenson: ele haviamarcado a data de sua viagem à Índia,
certamente a última vez que iria até lá, e
queria saber se eu pretendia acompanhá-lo.
Em muitas ocasiões, e de muitas maneiras,ele já havia dito que as pesquisas na Ásiaeram mais penosas, mais perigosas e,geralmente, exigiam mais do que as feitas noLíbano. Isso me fez hesitar, assim como o
tempo e o dinheiro que precisaria investir,mas não cheguei a pensar seriamente numarecusa
Um dos argumentos mais convincentescontra a aceitação dos casos de Stevensoncomo prova da reencarnação era a idéia de
que eles não passavam de fantasias coletivas,reforçadas pela própria comunidade que ascriava e, assim sendo, não poderiam provar
nada além da vontade que essa sociedadetinha de acreditar. Eu havia pensado nisso noLíbano e agora colocava essa questão no
contexto da Índia.
Não conhecia quase nada a respeito da cultua
indiana tradicional e da crença hindu nareencarnação. Entretanto, sabia que eram tãodiferentes das crenças e da cultura drusaquanto estas das crenças predominantes eMiami Beach. E também sabia que, se o
fenômeno de crianças que se lembram deoutras vidas fosse uma criação cultural, assemelhanças entre os casos do Líbano e da
Índia seriam apenas superficiais.E se ao fossem? E se os casos tivessem asmesmas características daquelas que
tínhamos visto em Beirute? Se fosse assim, eusaberia algo mais: teríamos que descartarodas as respostas fáceis.
TERCEIRA PARTE ÍndiaCrianças da miséria12
O LEITERO
À meia-noite, quando pousamos em Déli, u
irritante e intenso cheiro de fumaça invadiu acabine do avião. Senti um grande alívio aonotar que ela não estava em chamas, masestranhei quando o cheiro nos seguiu porodo o feioso terminal. Mergulhamos na noite
e descobrimos que o aeroporto inteiro estavaenvolto numa nuvem de fumaça semelhantea um nevoeiro. Quando Stevenson e eu
saímos, um homem apoderou-se de nossocarrinho de bagagens e, sem dizer uma únicapalavra, empurrou-o até um local escuro, a
ns cem metros de distância, e começou acolocar as malas numa pequena caminhonete.Rezei para que fosse um motorista de táxi e
ão um ladrão. A saída do automóvel estavaloqueada. Furioso, ele gesticulou para que
eu o ajudasse a empurrar os dois veículos
que o enclausuravam.
Logo nos vimos na rua principal de Déli.
Passava de uma da manhã e o lugar estavaquase deserto. A fumaça pairava em frenteaos faróis. Fiquei aguardando o momento deemergir daquela nuvem, mas ela se tornavacada vez mais densa, a ponto de dificultar a
respiração.– De noite é muito pior – disse Stevenson.– Quer dizer que toda noite é assim? –
perguntei.– Isso vem de todas essas fogueiras de dejetos– explicou, olhando calmamente para a
escuridão, aparentemente despreocupado,apesar de seus problemas respiratórioscrônicos. – Talvez hoje esteja um pouco pior
do que de costume.A Índia, assustadora para a maioria dosvisitantes ocidentais, era velha conhecida de
Stevenson. Ali ele empreendera sua primeira
pesquisa de campo. Agora, trinta e sete anos
mais tarde, essa era provavelmente a últimadelas.Nosso hotel era um edifício escuro e malcuidado, com acomodações extremamenteprecárias. Tive um sono irrequieto e acordei
com o grasnar estridente de um corvopousado no beiral da janela. Um tênue cheirode fumaça permanecia no ar. Passamos a
manhã esperando pela Dra. SatwantPasricha, a psicóloga indiana que auxiliaraStevenson em muitas de suas viagens à Índia
e que vinha aplicando os métodos dele narealização de pesquisas. Às onze e cinqüentada manhã, ela apareceu no saguão do hotel –
uma mulher baixa, vestindo um sári roxo,com duas sacolas grandes penduradas noombro direito, um colar de pérolas no
pescoço e a marca vermelha de sua casta logo
acima do nariz. Assim que terminamos de
nos instalar, fomos almoçar juntos. Satwantfolheou algumas anotações onde haviadelineado um possível itinerário dos casos.Suas maneiras eram gentis e seu sorriso,franco. Era interessante ver a imagem ecarne e osso da Dra. Satwant Pasricha, queaparecia com destaque nas paginas deagradecimento dos livros de Stevenson e que
fora responsável por algumas críticas feitasao trabalho dele.Satwant era sique, uma das religiões da Índia
fundada há mais de quatrocentos anos, quecombina elementos do hinduísmo e do islã,numa tentativa de amalgamar as duas
doutrinas dominantes do país. Um doselementos que os siques adotaram doinduísmo é a crença de que as almas
renascem de acordo com as ações praticadas
na vida anterior. Os honrados eram bem-
nascidos e os perversos retornavam para umavida de sofrimentos – ou até mesmo comoanimais. Por causa disso, muitos céticos serecusaram a levar a sério o trabalho deSatwant.Eu não me deixei impressionar por essacrítica. Se Satwant não pode ser consideradaapta a estudar esses casos por crer na
reencarnação, o mesmo deve acontecer coqualquer pessoa que veja na morte o fim deudo.
Quando conversamos a esse respeito,Satwant me disse:– Se ja qual for a nossa crença ou
acionalidade, somos cientistas. Além disso,o que estou observando nesses casos écompletamente diferente da maneira co
que os hindus vêem a reencarnação.
De fato, Satwant me contou que quando u
colega lhe disse que Stevenson estavaprocurando um psicólogo indianointeressado em conduzir aquele tipo depesquisa, ela expressou um forte ceticismo.– Não pensava que casos assim existissem –acrescentou. – Quando disse isso a ele,Stevenson me falou: “Espere para ver.”Então, concordei em examinar um caso.
balançavam sobre rodas em desalinho. Mulase cavalos resfolegavam sob imensas cargas.Riquixás de dois lugares, puxados por
icicletas, oscilavam com o peso de famíliasinteiras. Pessoas perambulavam por entreimensos depósitos de lixo e choupanas eruínas, feitas de tijolos sem argamassa,forradas de plástico. Um fétido canal os
separava de jardins lindamente cuidados,repletos de flores e verduras. Homensacocoravam-se atrás das plantas mais altas
para defecar – uma necessidade num paísonde 700 milhões, entre quase um bilhão depessoas, não têm acesso à rede de esgotos. De
repente, imensos flancos de cor pardaarrastaram-se pela minha janela, tãopróximos que poderia tocá-los com a mão.
Espichei o pescoço e dei de cara com as
mandíbulas salpicadas de espuma de u
camelo, preso por arreios a uma carroça.À medida que avançávamos em direção aonorte, as aglomerações deram lugar a camposverdes, repletos de ervilhas e trigo. De ulado da estrada, trabalhadores – homens,mulheres e crianças – agachavam-se paracolher ervilhas. Do outro lado, de pé, homens
abarrotado de cana-de-açúcar havia caídouma vala, espalhando a carga pelo chão.Algumas mulheres, equilibrando potes de
barro e de latão na cabeça, surgiram á nossarente. Caminhavam em direção a uma vilaormada por casebres e ti jolos. À medida que
os aproximávamos, a estrada de pedras ia seransformando em lama. O motoristadiminuiu a marcha. O carro trepidou de
orma ameaçadora.
– Não será a primeira vez que eu teria que
sair e empurrar – observou Stevenson, senos trazer maior tranqüilidade.A família que queríamos entrevistar moravana parte mais alta, no final de uma ruela su jae estreita. A casa era uma estrutura de tijoloscom dois cômodos. Ficava situada no cantomais afastado de um pátio imundo, em frentea um poço do qual se retirava água
manualmente. Três búfalos negros,acorrentados a uma estaca, espantavam asmoscas que os rodeavam.
O sujeito do caso, uma menina de sete anoschamada Preeti, pequena para a idade, derosto redondo, cabelos curtos e pretos
cortados como um menino, estava em pé,imidamente, num canto. Usava uma blusade algodão grosso com o desenho de dois
ogadores de futebol americano e os dizeres:
THE BEST OF THE WEST. Os pais trouxera
dois bancos de madeira para o pátio ecomeçamos a entrevista.O pai, Tek Ram, trabalhava na companhiatelefônica em Nova Déli. Ele nos contou que,tão logo aprendera a falar com clareza, Preetiinha afirmado para o irmão e a irmã:
– Essa casa é sua, não é minha. Esses são osseus pais, não os meus.A menina dissera para
sujeito chamado Karna, cuja esposa sechamava Argoori, que havia perdido umailha chamada Sheila?
A mulher respondeu que conhecia uhomem chamado Karan Singh, apelidado deKarna, cuja filha adolescente fora atropeladae morta por um automóvel quandoatravessava a rua. O nome da esposa de
Karna era Algoori.A notícia chegou até a família em Loa-Majrae alguns homens, entre eles o pai da menina
morta, foram visitar Preeti. Segundo TekRam, ela reconheceu o pai e, mais tarde,quando foi com ele até a vila, reconheceu
também outras pessoas.Stevenson e eu havíamos conversado arespeito desses reconhecimentos que
apareciam com tanta freqüência nos melhores
casos estudados. Pelo menos aparentemente
eles constituíam as evidências mais fortespara a comprovação da veracidade dasafirmações sobre vidas passadas. Mas quasesempre eram também problemáticos. Nascomunidades rurais, os encontros entre ascrianças e as famílias às quais elas afirmavater pertencido anteriormente costumavaacontecer diante de grande número de
espectadores. Estes poderiam sugerir algo ousimplesmente dirigir o olhar para a pessoaem questão, orientando a criança para que
izesse a escolha certa.Tentamos obter detalhes sobre comoexatamente a família anterior tinha sido
reconhecida. Preeti vira o homem seaproximar?Tek Ram afirmou que não. Quando os
homens de Loa-Majra chegaram, a menina
estava na escola com a irmã. Elas voltara
para casa e os encontraram ali, à espera dePreeti.Pedimos para falar com a irmã de onze anos,que tinha nove quando o encontro apareceu.Como a mãe, ela estava enrolada num xaleverde. Sentou-se no banco ao lado deSatwant e respondeu nossas perguntas evoz baixa.
filosofia que viera para conversar sobrePreeti. Na capa, uma citação de Sócrates: “Avida não perscrutada não vale a pena.”
Enquanto caminhávamos pela estreita viela,de volta para o carro, o motorista aproximou-se furtivamente de mim e disse:– O senhor deve dar a elas alguma coisa.Algum dinheiro.Transmiti o comentário a
Stevenson.– Nunca fazemos isso – explicou ele aomotorista. – Contaminaria a informação.
Longe dos ouvidos do rapaz, Satwantobservou:– Ele pode ter dito alguma coisa para a
família, prometido conseguir dinheiro. Acho
melhor falar com eles. Ela voltou para perto
de Tek Ram e falou com ele em voz baixa. Aoretornar, explicou:– Ele disse que não estava esperando por
dinheiro. Trabalha numa agência do governoe tem um bom salário. Acho que ficouconstrangido porque o motorista tocou noassunto.O céu estava claro, mas o sol já começava a se
esconder. Apesar do esgoto aberto aos nossospés, a noite tinha o cheiro doce do trigoverde. Enquanto nos afastávamos da vila,
mulheres em longos vestidos de sedacoloridos e cabeças cobertas por xalesamontoavam-se ao redor do poço para
encher seus cântaros.Aquela única entrevista havia tomado quasetodo o dia e ainda tínhamos duas horas de
viagem de volta a Déli. Pensei nos arquivos
de Stevenson, mais de 2,500 casos de todas as
partes do mundo, cada um deles envolvendoinúmeras entrevistas. Quando estavafolheando visitamos Preeti, esquecemos de
medir Tek Ram ou de perguntar-lhe suaaltura. Stevenson e Satwant perceberaclaramente que Karan era mais alto, mas eusó me lembrava de ter visto Tek Ram sentadoe não pude ter certeza.
Uma das primeiras afirmações de Preeti aospais fora: “Minha casa é grande, a sua épequena.” Era inegável que a casa de Karan
Singh era muito maior do que a da família dePreeti.Karan confirmou o que os pais da menina
tinham nos contado: o leiteiro comentara ahistória de Preeti com uma mulher que elesabia ter nascido em Loa-Majra. Durante ma
visita à sua vila natal, a mulher avistara a
esposa de Karan e repetira para ela as
afirmações da criança.No dia seguinte, Karan Singh, um de seusilhos e quatro ou cinco homens da cidade
oram ver a menina.– Estávamos curiosos para verificar se elaestava falando a verdade – explicou.Pedimosque nos contasse exatamente o que tinhaacontecido na ocasião.Ele nos disse que a
mulher que havia contado a história ou levouà casa de Preeti. Amenina, a mãe, o pai, o irmão e a irmã
estavam lá, além de um vizinho. Mas aotícia se espalhou e uma multidão se reuniuo local.
– Queríamos testar a menina e por issoinguém lhe disse qual de nós era o pai deSheila, mas Preeti ficava olhando para mim.
Depois de certo tempo, ela recomeçou a
brincar. Então, sua mãe perguntou: “Você
sempre diz que se lembra de seu paiverdadeiro. Qual deles é seu pai?” Elaapontou para mim, dizendo: “Esse é meu
pai.” Um dos vizinhos quis saber: “Como seupai se chama?” Ela disse o meu nome, o deminha mulher e o de nossa vila. Então,alguém falou: “Não aponte para o seu paiassim, de longe. Venha para perto dele.”
lembrasse da aparência da filha naquelaidade. Entretanto, muitos dos casos que euinha visto não apresentavam qualquer
semelhança entre o sujeito e a personalidadepassada. De qualquer maneira, não vi no fatoma prova importante. Mas talvez o pai
estivesse se referindo a algo além dasemelhança física, ou talvez fosse apenas oseu próprio desejo: não era difícil imaginar a
emoção que ele sentiu quando a menina
pulou no seu colo e se agarrou ao seu
pescoço, dizendo: “Papai, me leve para casa.”– Você questionou a menina? Perguntousobre algum detalhe? – indaguei.
– Havia tanta gente que não foi possível –respondeu ele. – Ficamos até quase meia-noite e Preeti estava muito cansada. Erasexta-feira. Prometi que voltaria no domingo,mas ela apenas se agarrou a mim, dizendo:“Você é meu pai. Quero ir com você.”
p QOs pais de Preeti tentaram dissuadi-la, masela continuava abraçada a Karan.
– Como a mulher que tinha nos levado lá eraconhecida da família, eles decidiram deixarPreeti vir comigo.
Tomaram um “tempo” – um táxi de trêsrodas – para fazer o percurso entre a casa damenina e Loa-Majra. Pararam no mesmo
lugar onde descemos e caminhamos pela
lama – cerca de cem metros do lugar onde
morava a família.– Preeti nos conduziu até a casa – contouKaran. No caminho, ela viu um dos irmãos
de Sheila saindo de uma loja. Sem que lhepedissem, ela apontou para ele e o chamoupelo nome. Quando chegaram à casa daamília, o lugar estava repleto de amigos e
parentes. Preeti reconheceu todos os irmãos eirmãs. Perguntavam a ela onde estava
galguma coisa e ela apontava. Depois, Preetiolhou ao redor e perguntou: “Onde está
Munni? Ela foi para a casa da família domarido?”Munni era a irmã de quem Sheila era mais
próxima. Ela havia se casado antes da morteda menina e não estava lá quando Preetiapareceu para a visita.
– No dia seguinte, Munni veio ver Preeti, que
chorou quando a viu – contou Karan.Ele disse ainda que, nesse ponto, não tinhamais dúvidas de que Preeti era sua filha
reencarnada. Além disso, no acidente, Sheilahavia se machucado na coxa e Preetiapresentava uma marca de nascença ali.Qando esteve com a família, Stevensonexaminou várias marcas na pele de Preeti. Elepediu a Karan que fosse mais específico sobre
p q po ferimento na perna da filha.– Eu mesmo não vi – disse ele. – Mas minha
mulher viu.A mãe de Sheila estava trabalhando nocampo. Mandaram buscá-la. Ela apareceu
pouco tempo depois e Stevenson lheperguntou onde era a marca de Sheila. A mãeapontou para a parte externa da coxa direita.
O marido discordou:
– Você disse que era aqui – e apontou para a
parte interna da coxa. A mãe fez uma careta.Stevenson repetiu a pergunta e ela apontoupara a parte interna da coxa direita. Então,
explicou:– Não me lembro qual era a perna.– O que a fez acreditar que Preeti era a suafilha renascida? – perguntou Stevenson àmãe.– Quando ela chegou, eu estava junto co
várias outras mulheres e alguém lheperguntou quem era a sua mãe. Ela apontou
para mim. Quando um de meus filhosmostrou o irmão mais novo de Sheila eperguntou a Preeti: “Ele é mais novo ou mais
velho do que você?”, ela respondeu: “Ele eramais novo. Agora é mais velho.” No diaseguinte, ela estava brincando dentro de casa
e outro de meus filhos disse: “Ela se parece
com a minha irmã.” Preeti olhou para ele e
respondeu: “Você ainda não acredita que sousua irmã?” Meus instintos me dizem que elaé minha filha. Uma vez, quando estava co
Preeti na rua, ela teve medo e falou: “Pare.Vou ser atropelada outra vez.”Perguntei-lhe se ela havia presenciado oacidente. Ela disse que não. Somente um dosirmãos de Sheila, que estava trabalhando nocampo, vira tudo acontecer.
– Ele ficou transtornado durante muitotempo – contou Algoori.
Duas semanas mais tarde, segundo ela, omenino sonhara que Preeti viera sentar-seperto dele. Ele ficara assustado, pois sabia
que não era bom sonhar com os mortos.– No sonho, Sheila lhe dissera: “Não tenhamedo, eu vou voltar.”
Aguardamos algum tempo pela volta do
irmão, para entrevistá-lo. Após uns vinteminutos, tivemos que ir embora. Aindaqueríamos encontrar o leiteiro, do qual
sabíamos somente o nome e a vila ondemorava. Voltamos para o carro,acompanhados pelo pai de Sheila. Tenteiavaliar o nível de dificuldade enfrentado porPreeti para guiá-los até as casas. Não haviamuitas opções. Ela precisaria apenas saber
A casa do leiteiro ficava a meio quarteirãodali. Era uma construção de tijolos, sem luxo,nos fundos de um pátio sujo. Seu único toquede opulência era uma casa de banhos, dotamanho de uma cabine telefônica, situada naparte da frente, ao lado da bomba d’água.
Uma cortina de plástico vedava a entrada.O nome do leiteiro era Ranbir Singh.
(Descobri que Singh era um sobrenomemuito comum entre os hindus e os siques –significa “leão”, denotando a força da fé – e
Ranbirnão era parente de Karan Singh.) Eleconfirmo a história que ouvimos das duasfamílias e acrescentou um detalhe
importante: além de ignorarem os apelos da
menina para ser levada a Loa-Majra, eles a
castigaram por negar que era Preeti.– Quando fui ordenhar as búfalas, eu os ouvigritar e bater na criança. Ela estava chorando.
Quando me viu, veio me abraçar, dizendo:“Por favor, me leve ate a minha vila.”Perturbado, o leiteiro procurou a únicapessoa de Loa-Majra que conhecia: a mulherque acabou passando a notícia sobre asafirmações de Preeti para a família de Sheila.El d lh f i f l
Ele nos contou que, quando a mulher foi falarcom Preeti, a menina a reconheceu de
imediato, chamando-a pelo nome. Ele nãotestemunhou esse fato, mas foi o que amulher lhe contou.
O leiteiro estava presente quando KaranSingh veio encontrar Preeti pela primeira vez.Sua versão dos fatos era um pouco diferente.
Karan dissera que a menina o olhou por
algum tempo e depois foi brincar, até que a
mãe lhe pedisse para indicar seu “pai”. Naversão do leiteiro, assim que viu Karan,Preeti correu e o abraçou.
Ranbir nos levou de volta até o carro. Faltavaainda visitar uma pessoa: a mulher quetransmitira as notícias sobre as afirmações dePreeti à família de Karan Singh.Chegamos ao conjunto onde ela morava noinício da noite. Várias famílias se preparava
para o jantar. Acendiam o fogo para cozinharusando um punhado de gravetos com os
quais faziam arder um grande disco deestrume que queimava como carvão. Bebêschoravam num canto. A mulher a que
fomos entrevistar era apenas um contornosob um xale escuro, enrolado duas vezessobre o rosto. Ela repetiu quase tudo o que já
ínhamos ouvido, mas insistiu em afirmar
que, quando foi ao encontro de Preeti, Karan
Singh passou primeiro por sua casa.Mandaram buscar a menina. E foi naquelemomento, e não depois, na casa de Tek Ram,
que Preeti identificou Singh como seu “pai”.– Essa é a terceira versão do reconhecimento.Talvez a quarta, se contarmos o que o leiteirodisse: que Preeti reconheceu Karanimediatamente – observei, quando jáestávamos na estrada de volta a Déli. – O
nico ponto em que todos concordam é quePreeti o reconheceu, em algum momento, e
algum lugar.– Acho que essa mulher só está tentandoaumentar o seu papel na história – comentou
Satwant.– É verdade. Isso acontece às vezes nessaspequenas vilas – concordou Stevenson,
cruzando os braços. Por um minuto,
seguimos em silêncio. – Acho que os céticos
teriam imenso prazer em destruir esse caso –comentou ele.– O que você está querendo dizer? –
perguntou Satwant.Virei-me para ela:– Pode deixar que eu respondo. Existe essamenina, que está infeliz com os pais. Estáconvencida de que eles não a amam. E talvezessa mulher que acabamos de entrevistar nãoseja a única de Loa-Ma jra que se casou co
densa que não conseguíamos dar um passosem encontrar milhares de braços estendidos.
Nosso hotel ficava dentro de uma áreacercada, com arbustos e flores. Assim,mantinha a aparência impecável, necessária
para agradar os turistas que vinham conhecero Taj-Mahal, que, como a placa na entradaanunciava, podia ser avistado do telhado.
Deixamos as malas e alugamos u
minúsculo microônibus Maruti,aparentemente construído com o mesmomaterial usado na fabricação das latas de
Pepsi-Cola. Sentei-me no banco da frente. Opára-brisa era tudo o que me separava daestrada. Levando-se em conta que o lugar
estava sempre repleto de animais e deveículos um tanto assustadores, sentei-mecomo se estivesse assistindo a um filme etrês dimensões sentado na primeira fila
três dimensões, sentado na primeira fila.Agra parecia mais antiga do que as áreas de
Déli que visitei. Era um amontoado de ruínase grandiosidade – as ruínas eram maisconstantes – em meio a um labirinto de ruas
excessivamente ocupadas. Ao longe, aspontas arredondadas do Taj-Mahal erguiam-se majestosamente.
Após duas horas fora de Agra, nos arredores
da cidade industrial de Firozabad, pegamosuma estrada empoeirada e entramos nulabirinto de passagens estreitas, co
mercadorias transbordando de cada uma daspequenas aberturas e uma massa humanaque desafiava a limitação da área.
Finalmente, chegamos a um ponto por ondeo caro não podia circular. Saímos codificuldade e pisamos no chão irregular,tentando desviar do esgoto que escorria pelas
tentando desviar do esgoto que escorria pelasvalas, sob o sol quente.
Seguimos em frente, com Satwant parando atodo instante para pedir informações. Oambiente me oprimia. Para onde nos
virássemos havia estrume. Tivemos que abrircaminho contornando os flancos de ucamelo deitado num buraco lamacento.
Acossadas por moscas, crianças imundas se
aproximaram e foram nos seguindo quando
percorremos os últimos metros em direção aonosso destino final. Satwant passou por umatábua que servia de ponte sobre o esgoto e
abaixou-se para atravessar uma abertura nomuro de tijolos e entrar num pátio sujo. Alivivia uma menina que afirmava lembrar-se
da vida de uma prima que morrera queimadanum casebre, naquele mesmo cortiço.Satwant descobrira a garota através de umapesquisa feita por um assistente Em apenas
pesquisa feita por um assistente. Em apenasseis semanas esmiuçando a área, ele
conseguiu mais de 150 possíveis casos. Esse,em particular, tinha chamado a atenção deSatwant porque envolvia uma marca de
ascença possivelmente relacionada à vidaanterior. O sujeito da pesquisa ainda era beovem, quatro ou cinco anos de idade.
Segundo os pais, desde que começara a falar,
a menina afirmava ser a prima que morrera
queimada aos quatorze anos, quandomontava braceletes usados por toda a Índia.Eram fabricados nos cortiços das cidades
indianas. Mulheres e crianças trabalhavam odia inteiro recolhendo os anéis de metal nãoutilizados e fundindo-os sobre candeias
mantidas acesas com querosene – o maçaricode soldar do homem pobre. O trabalho eramonótono e perigoso. A família contou que amenina estava sentada trabalhando sobre
fogo no acidente fatal descansava no chão.As crianças que estavam nos seguindoamontoaram-se no pátio. Pude perceber o
número delas aumentar às minhas costas,ouvi-las tossir e fungar, sentir suas mãostentando tocar-me. A desagradável
proximidade fazia o suor escorrer pelo meupescoço, enquanto cada milímetro do meucorpo se rebelava contra aquela situação.Poderia uma criança nascer para uma
Poderia uma criança nascer para umaexistência tão miserável e sem piedade, ter
ma morte terrível e depois renascer algumascasas adiante para mais uma prisão perpétua,soldando braceletes no meio do estrume?
Os mesmos motivos que fizeram talpensamento me entristecer constituíam upoderoso argumento contra aqueles que
consideravam os casos de reencarnação como
fruto de um desejo de realização por parte de
indivíduos e da cultura como um todo. Se acrença hindu na reencarnação causavailusões de memórias de vidas passadas, por
que essas ilusões não aconteciam de acordocom a crença básica daquela cultura: ocarma? Em nenhum dos dois casos vistos até
agora havia qualquer sinal de que as atitudesda personalidade anterior implicassem umamelhora na situação da pessoa renascida. Arelação entre as duas vidas parecia causal e
ç pespontânea, da mesma forma como alocalização de uma nova planta se relacionacom a árvore centenária de onde a sementecaiu – de acordo com a proximidade, a
direção do vento e o acaso, e não segundouma ordem moral.O mesmo acontecia no Líbano. Se os
inúmeros casos drusos eram motivados pelo
desejo de reforçar crenças, por que o
intervalo entre a morte e o renascimento erade oito meses quando o dogma afirmava quedeveria ser zero?
Nós nos acomodamos da melhor maneirapossível nos bancos de madeira, nossosoelhos tocando os da mãe, uma mulher de
olhos vivos mas extremamente magra, e osdo pai, um homem grisalho, atormentado.Um cão sarnento tentou se insinuar por baixode nosso banco. Uma das crianças o golpeou
, p gao intérprete o que ela estava gritando:– Está dizendo: “Vamos matá-lo antes queleve a criança” – explicou ele, sedemonstrar preocupação. Stevenson
conseguiu sair dali sem se machucar.que atirou em si mesmo, abaixo do queixo,quando se viu encurralado pela polícia.
queixo se junta ao pescoço.Quando entrevistados, a irmã do morto, queinha visto o corpo de perto, e o policial, que
chegara na casa logo depois do suicídio,afirmaram que a bala tinha entrado por baixodo queixo e saído pelo alto da cabeça.
Imediatamente Stevenson voltou à casa deCemil e perguntou se ele também tinhamarcas de nascença no alto da cabeça. Sehesitar, o rapaz mostrou o lado esquerdo da
p qparte superior da cabeça. Stevensondescobriu ali uma linha fina e sem cabelo,com pouco mais de dois centímetros. Maistarde, ele comparou a fotografia da marca de
Cemil e a que foi feita na autópsia,mostrando a saída da bala no mesmo lugar.Eram incrivelmente similares.
Ainda assim, percebi que, por mais que os
sinais de nascença possam construirevidências, eles carregam uma dificuldadeintrínseca: se uma criança nasce com sinais
que fazem lembrar os de uma pessoa morta,esse fato em si já é suficiente para criar ufalso sentimento de identificação e gerar
alsas afirmativas de memórias de vidaspassadas.Isso não é apenas uma possibilidadehipotética – isso acontece de fato. No caso do
turco, tempos depois, um outro homem quedizia ter sido o mesmo bandido chamou aatenção de Stevenson. Ele tinha uma marcano alto da cabeça (mas não sob o queixo) e
afirmava ter lembranças precisas sobre a vidado morto.Levando-se em consideração que uma só
Não encontramos o automóvel no lugar eque o deixamos. Alguns meninos haviacortado o pneu com um prego amarrado a
m pedaço de pau, e o motorista estava no
orracheiro. Ficamos sentados na lateral darua, em frente a uma barraca feita deengradados vazios que servia de oficina para
o trabalho do borracheiro. O serviço
demorou tanto que tive tempo para refletir
sobre os dizeres de um imenso cartaz, a unscem metros dali:FIROZABAD, CIDADE DE VIDRO E DE
ESPLENDOR.14MARCADO PARA SEMPRE
Enquanto estávamos em Agra, Stevensonresolveu procurar relatórios médicosreferentes ao caso de uma marca de nascença,acontecido numa vila situada a três horas deviagem na direção leste O sujeito do caso
viagem, na direção leste. O sujeito do casoera um rapaz de dezessete anos. No resumoque Satwant fez do que conseguira descobrirnas entrevistas com a família, um ponto logo
me deixou intrigado: pela primeira vez, noscasos que acompanhei, os sinais relacionadosà existência de uma vida passada aparecera
antes que a criança fosse capaz de falar. Os
pais disseram que, tão logo aprendeu a
andar, o menino sempre caminhava edireção a uma vila próxima, a menos de doisquilômetros dali. Estavam constantemente
correndo atrás do filho para trazê-lo de voltapara casa.Quando nasceu, ele tinha duas pequenas
marcas circulares no lado direito do tórax: amaior e mais nítida com cerca de trêsmilímetros de diâmetro. Ambasapresentavam uma ligeira depressão erelação à pele circunvizinha e um fino anel
relação à pele circunvizinha e um fino anel,mais elevado, fazendo o contorno.Quando aprendeu a falar, segundo o relatodos pais a Satwant, o menino apontou para
as marcas e disse:– Foi aqui que levei os tiros.Ele também lhes disse o seu “verdadeiro
– O negócio é que um caso com um relatóriode autópsia vale por dez sem ele.Saímos de Agra e fomos para Etawah, ondelocalizamos o distrito policial. O capitão,
usando roupas civis, estava sentado do ladode fora, em frente a uma mesa de madeiracolocada na sombra. Ele nos convidou a
sentar e nos fez esperar vinte minutos
enquanto remexia uns papéis. Depois abriu
um grande livro de registros com capa depapelão. Dentro dele, anotaçõescuidadosamente feitas à mão – todos os
crimes registrados no distrito no meio dosanos setenta. Quando, depois de meia hora,todos os relatórios de 1976 já haviam se
radiante com a nova visita de Stevenson. Parairar o maior proveito possível da presença
do mundialmente famoso pesquisador, Joshi
avia organizado o que poderia ser descritocomo uma entrevista coletiva que se seguiria
Sunita não havia mencionado seu nome ousobrenome, mas disse que tinha uma irmãchamada Sumitri e que jamais havia usadoum sári – o que Joshi interpretou como u
sinal de que ela morrera ainda criança, umavez que, nas vilas indianas, somente asmulheres adultas usavam aquela vestimenta.
Um leitor de uma das seis vilas restantes
escreveu dizendo acreditar que morava naBelgaon à qual a menina tinha se referido: ascaracterísticas geográficas mencionadas
estavam presentes ali e ele conhecia umafamília cuja primeira filha morrera jovem eque tinha uma outra menina chamada
Sumitra. A menina morta, Shanta Kalmegh,nascera em 1945 e tinha morrido antes decompletar seis anos.
No inverno de 1979, quando Sunita tinhacinco anos, a família a levou a Belgaon, cerca
cinco anos, a família a levou a Belgaon, cercade 145 quilômetros onde moravam. Aochegar, Sunita mostrou-se hesitante, mas logoanunciou: “É aqui.” De acordo com aspessoas que viviam no lugar e quetestemunharam a visita, Sunita fez uma sériede identificações.
avia um altar ali quando Shanta era viva.Segundo as testemunhas, durante a visitaSunita disse que queria leite. Pegou um copo,dirigiu-se para uma outra casa perto dali,parou diante de uma parede e falou: “Aqui
ficava a janela por onde comprávamos leite.”
O sobrinho da pessoa que vendia leite
naquela casa quase trinta anos antesconfirmou que havia uma janela exatamenteali.
Depois, Sunita foi até a casa de um vizinho,apontou para um lugar, dizendo: “Aquiavia uma escrivaninha onde seu pai
costumava escrever. Meu pai veio aqui, e euvim com ele.”O vizinho disse que seu pai, um funcionário
público, preenchera muitos documentosnuma escrivaninha que ficava ali mesmo.
qEmbora houvesse uma escola em Belgaon, aafirmação de Sunita de que “havia utempo, mas não uma escola” era verdade naépoca em que Shanta tinha vivido ali. Aopassar na frente de um prédio, ela comentou:“Aqui ficava uma mercearia.”
Estava certa, segundo o superintendente da
vila – a mercearia tinha sido demolida háquinze anos, para dar lugar à escola.Como provas, esses reconhecimentos, apesar
de impressionantes, tinham um problema: aantiguidade. A morte de Shanta aconteceraem 1950, e as confirmações dos relatos de
Sunita baseavam-se em lembranças ligadas aatos que, à época da visita da menina, jáinham quase trinta anos. Entretanto, para a
amília de Shanta, Sunita havia provado averacidade de suas afirmações. Desde então,
m relacionamento passou a existir entreeles.Sunita se tornou uma pessoa importante eBelgaon. Em sua primeira visita, durante upasseio pela cidade, ela apontou para uterreno vazio próximo à escola e perguntou:
“Voes vão construir um templo aqui?” Não
havia planos para isso, mas os habitantes
interpretaram a pergunta como um sinal eacabaram erigindo um templo naquele lugar.Por causa de nossa visita, os parentes de
Sunita haviam se reunido na casa da famíliade seu marido, várias horas a leste deNagpur. Ficava numa rua de terra e, apesar
da aparência humilde, a casa era de concretoe muito confortável, o que indicava certaopulência. Pertencia ao sogro de Sunita, u
médico homeopata.Os pais de Sunita estavam lá, especialmente
Argumentava que os gêmeos siameses,embora permanecessem fisicamente ligados,sem capacidade de viver experiênciasindependentes um do outro, possuíapersonalidades inteiramente distintas. Nudos casos mais famosos, por exemplo, u
dos gêmeos siameses era alcoólatra e o outro,
abstêmio. As implicações desta idéia era
obvias: talvez algumas das diferenças maismarcantes entre as personalidades dosgêmeos idênticos pudessem ser explicadas
através da reencarnação.Stevenson havia colecionado um bonúmero desses casos, mas enfrentava u
problema prático: distinguir os gêmeosidênticos dos não-idênticos – cuja semelhança
ão era maior do que a de dois irmãos
comuns – não era simples. A aparência física“idêntica” não garantia que fosse
geneticamente iguais. A certeza só erapossível através de minuciosos exames desangue, realizados não apenas nos gêmeos,mas em toda a família. Na Índia, issoimplicaria enormes gastos, além da
passo mais tempo com eles do que com meuspais de Verni Kotha. Talvez, antes de mecasar e sair da casa de meus pais, elesivessem a impressão de que eu sentia falta
dos meus pais de Belgaon. Quando você tedois filhos, um em casa e outro morando
fora, tende a pensar mais no que está longe,
pois sente falta dele e pode ver o outro a todo
instante. Agora que moro na casa de meumarido, sinto falta dos meus pais de VerniKotha e dos de Belgaon com a mesma
intensidade.Perguntamos se ela ainda tinha algumamemória visual de sua vida passada.
– Ainda me recordo de algumas coisas –respondeu Sunita. – Por exemplo, lembro-mede brincar com minha irmã mais nova, mas
hoje penso muito menos nisso. É como vocêer uma prova, estudar bastante, tirar uma
oa nota e, então, desligar-se do assunto. Euqueria encontrar minha vila e rever minhaamília. Quando consegui, parei de pensarisso com a mesma intensidade.
Sabendo que uma legião de repórteres e
fotógrafos estava na frente da casa
aguardando a entrevista coletiva, Stevenson
decidiu tocar no assunto dos exames desangue. Disse que financiaria as viagens ateBombaim, provavelmente a cidade mais
próxima onde teriam acesso a testesconfiáveis.Seguiu-se uma breve discussão com os pais.
irando-se para nós, Sunita disse:– Sinto muito, mas não estamos interessados.Existe uma outra coisa que me interessa mais.
Eu me lembro de uma outra vida passada,mas não sei os nomes da vila ou da minha
amília. Talvez vocês possam me ajudar alembrar.Dois anos depois que voltou de Belgaon,quando tinha sete ou oito anos, Sunita passoua sentir-se dominada por vívidas imagens derostos que a olhavam com um amor intenso.
Ela sabia que eram seu pai e sua mãe, mas os
nomes não lhe vinham à mente.Só se lembrava que era filha única e que seuspais a amavam muito. Sua casa era feita de
cimento e havia uma árvore no quintal. Doterraço da casa, ela avistava os trilhos daferrovia e percebia que a terra ali era
vermelha e não amarela, como na regiãoonde estávamos. Sua família possuía umalo ja de tecidos, instalada um pouco mais
adiante da casa. Todas as imagens eram dainfância.S t t di l j lt l
Tempo e espaço são relativos, e na Índia uespaço mínimo pode levar um tempoenorme. Partimos de manhã bem cedo edireção a uma vila chamada Sharifpura,localizada cerca de cento e vinte quilômetrosa nordeste de Agra. Numa rodovia dos
pequena).Após algumas semanas, ela voltou a secomportar como mãe de seu filho e mulherde seu marido, mas continuava a dizer queera Shiva, afirmando que só estava cuidando
do menino porque “se eu cuidar dessa
criança, Deus cuidará dos meus (de Shiva)
filhos”.poderoso argumento contra a reencarnação: osujeito e a personalidade passada coexistira
– não era um caso em que a alma saía docorpo no momento da morte e entrava nuoutro antes ou durante o nascimento.
Naturalmente, seria possível (e arrepiante)argumentar que era um caso especial: talvezSumitra tivesse mesmo morrido fisicamente
em julho de 1985 e a alma de Shiva tivesseassumido o corpo antes que suadecomposição se tornasse irreversível
E quanto aos transes? E as aparentespossessões por outras personalidades? Comoexplicá-las dentro de uma idéia coerente dereencarnação? Ninguém declarou queSumitra morrera antes das possessões. De
tivesse absorvido todos os detalhes da vidade Shiva, como explicar os reconhecimentosfeitos por ela? E as afirmações precisas sobreo currículo educacional de Shiva, seuconhecimento dos apelidos carinhosos que afamília usava para se referir a ela, seu pai e
seus dois filhos – nenhum dos quais era
citado nas notícias dos jornais?E quanto à repentina capacidade de ler eescrever atribuídas a Sumitra, habilidades
completamente fora do alcance de umapessoa com o seu nível de instrução?Perguntei a Satwant se ela havia observado
Sumitra ler e escrever. A resposta foipositiva: embora pouco à vontade para exibirsua competência, a menina acabara
concordando em dar uma mostra de suaescrita.– Eu diria que era a escrita de uma pessoa do
quarto ou quinto ano escolar – disse Satwant.– Certamente, não era de nível universitário.Porém, baseados em tudo o que sabíamos deSumitra antes da mudança, esperaríamos nomáximo uma habilidade de primeiro ano. Émais ou menos como um pianista
profissional tentando tocar um piano
quebrado. ONão era muito, mas dava o que pensar.Talvez Sumitra tivesse gostado da vida na
cidade, talvez tivesse tido uma chance demelhorar sua capacidade de escrita e leituraenquanto estivera lá. A perspectiva de voltar
para aquela vila distante poderia ter dadoinício a um processo de depressão aguda.Quando ouviu falar do assassinato de uma
oca de alta casta, que tinha mais ou menos asua idade e que morava numa cidadepróxima, talvez ela tivesse se apossado
daquela personalidade alternativa, usando-acomo uma maneira de fugir de uma vida tãolimitada. Os transes poderiam ter sido reais –conseqüências de um descontrole emocional.O pai de Shiva, motivado pelo desejo devingança contra a família do marido de sua
filha, pode ter se apegado às afirmações de
Sumitra porque elas vinham ao encontro desua crença de que a filha fora assassinada poreles. Seu testemunho quanto ás identificações
eitas por Sumitra/Shiva pode ter sidoinfluenciado por essa motivação secreta.Mais uma vez, entretanto, ficava uma
dúvida. Apesar de improvável, a históriacontinha os inúmeros e inexplicáveisreconhecimentos feitos por Sumitra. Seria
udo uma farsa?Fizemos um caminho diferente para voltar aAgra, sem no entanto diminuir o tempo do
percurso. Nas últimas horas, enfrentamosuma intensa escuridão e todos os riscos docaminho. Senti falta de minha mulher e dosmeus filhos, e tomei consciência da distância– meio planeta. Tentei acalmar meuspensamentos e avaliar o que estava sentindo:
a possibilidade da reencarnação trazia algu
tipo de conforto diante de pensamentosmórbidos? Respondi para mim mesmo: nãoquero uma outra vida, quero esta.
Stevenson começou a falar sobre umapalestra que deveria fazer na Virgínia,durante uma convenção de cientistas
interessados em assuntos que as pesquisascientíficas em geral costumavamarginalizar. Quais são os elementos da
ciência que não se pode dispensar? Essa era aquestão que ele planejava explorar.Basicamente, explicou, ele pretendia
questionar algumas das expectativasconvencionais. Um dos problemas era a idéiade que é preciso haver um experimentopassível de tantas repetições quanto forenecessárias. Stevenson sentia que a opiniãode seus companheiros lhe era desfavorável
porque seus estudos envolviam m fenômeno
espontâneo que não podia ser recriado elaboratório.– Mas não se pode recriar também o impacto
de um meteoro ou de uma explosãovulcânica – explicou. – E isso não quer dizerque não seja possível conduzir uma pesquisa
significativa a respeito desses fenômenos.– Mas existe uma certa repetição em suapesquisa – repliquei. – Qualquer outro
pesquisador pode entrevistar as mesmaspessoas com quem você falou, interrogá-las,verificar a documentação mais importante.
Naturalmente eles vão pensar duas vezesantes de percorrer o longo caminho atéSharifpura.No escuro, não pude ver se conseguiarrancar-lhe um sorriso. Após algunssegundos, ele prosseguiu:
– Outro problema é a previsibilidade – disse
ele.Na ciência tradicional, uma teoria, para serválida, deve levar à possibilidade de fazer
previsões que possam ser testadas de formaexperimental. Stevenson, por exemplo, haviaprevisto que o homem que dizia ser u
andido turco teria uma marca no alto dacabeça combinando com a outra que eleapresentava debaixo do queixo. E estava
correto. Mas aquela fora uma exceção.Stevenson não podia prever como se daria amigração da alma, ou qual criança começaria
a se lembrar da vida de um vizinho e queseria ele. Isso invalidava o seu trabalho?Mais uma vez, pensei que ele poderia estar seesquecendo de um ponto.– Mas você pode fazer previsões e eu achoque elas são muito importantes. Em qualquer
um dos lugares onde agora existem casos,
você pode prever que uma pesquisa séria vaitrazer à tona novos casos. Você pode preverque, ao entrevistar sujeitos e testemunhas, os
pesquisadores encontrarão provas de que ascrianças fizeram afirmações corretas sobre avida de uma pessoa e que essas afirmações
não poderiam ter sido conseguidas por meiosnormais.Stevenson não respondeu. Pensei que, para
fazê-lo desistir de tudo, seus críticos sóprecisariam provar que a explicação maisplausível para o que ele havia observado não
era a reencarnação.Falei sobre isso durante um longo tempo,porém, quando concluí, ele parecia tãomelancólico quanto no início. Fui tolo aoesperar outra reação. Ele estava encerrando oestudo de quase três mil casos nos quais
sabemos, e acho que esse é o problema.– Mas que outra explicação existe para tudo oque temos visto? Examinei cadapossibilidade e, por eliminação, areencarnação deve ser o que explica tudo
reencarnação logo começava a parecer umaalternativa menos fantástica. Se eu aceitasseapenas um dos casos como autêntico, teriaque aceitar muitos outros, ou a maioria deles.Se a reencarnação fosse possível, pelo menos
ma vez, então ela se tornaria uma
explicação muito mais simples para Shiva, o
leiteiro e os outros, do que a retorcidacorrente de conspirações e coincidências quefui obrigada a criar.
Pela primeira vez, fiz a mim mesmo umapergunta objetiva: levando em consideraçãoudo o que vi e ouvi, por que não conseguia
simplesmente aceitar a reencarnação comoverdade?Algum fator estava me impedindo. Era algo
que eu conseguia sentir, mas não era capazde compreender.QUARTA PARTE
de comunicação, ele acabara reunindo maisde cem casos no país de crianças que faziaafirmações sobre vidas passadas, tendo
investigado vários deles em profundidade.Ao todo, as crianças não têm tantaslembranças específicas como no Líbano e na
Índia. Mencionam poucos lugares ou nomes,às vezes nenhum, tornando impossível aidentificação da personalidade anterior. Naverdade, os únicos casos norte-americanos
encontrados por Stevenson nos quais ascrianças disseram o suficiente para permitiral identificação, fornecendo dados sobre
outras vidas passíveis de verificação, fora“casos na mesma família”, como o de umenino que afirmava lembrar-se da vida do
avô.Entretanto, por mais convincentes que sejam,esses casos familiares apresenta dois pontos
Esse sinal chegou até mesmo a apresentarma secreção.
O problema desse caso era que o longo e
prolongado sofrimento da mãe em relação áperda do primeiro filho levava a pensar maisna possibilidade da fantasia estar realizando
um desejo do que em indícios dereencarnação. Quaisquer correspondênciasentre os sinais ou imperfeições de nascença ea doença do primeiro filho poderiam ser
apenas uma coincidência capaz de ativar namãe a crença de que a criança haviarenascido. Alem disso, a brevidade da vida
do primeiro filho, associada ao desejo da mãede tê-lo de volta, invalidaria quaisquerafirmações que o filho mais novo viesse a
fazer.Eu sabia que mesmo no melhor caso familiarainda haveria a fragilidade intrínseca do fato
região. Sua irmã, muito mais alta, eraJennifer, a mãe da criança. Ela nos recebeu na
sala escura, ondeo menino, Joseph, estava acomodado numapoltrona grande. Quando entramos, ele nos
dirigiu um rápido olhar e logo voltou aprestar atenção nos desenhos animados quepreenchiam suas manhãs de sábado. Eraroliço como a mãe, com o rosto redondo,
cabelos claros cortados com fran ja e o olharvulnerável de uma criança com quem asoutras costumam implicar. A tia chegou a
comentar que os colegas de escolacostumavam chamá-lo de “garoto deazenda”, zombando dele por morar no
campo, num lugar tão afastado.O tio, um rapaz que tinha abandonado osegundo grau, chamava-se David. Ele
morrera quando o trator que dirigia virou,d lh it S d ã
q q g ,esmagando-lhe o peito. Segundo a mãe,Joseph era asmático desde o dia em que
nasceu, o que o fazia perder muitos dias deaula.
– Meus pais ficaram desesperados com amorte de David – disse a tia. – Ninguém tocano assunto. E certamente ninguémencionou meu irmão em conversas casuais
depois que Joseph nasceu. Por isso, não seriapossível ele ter ouvido nada daquelas coisas.“Aquelas coisas” eram uma série de
afirmações feitas por Joseph que pareciacorresponder à vida de seu tio David. Elesempre chamava a avó de “mamãe” e dirigia-
se à própria mãe usando o primeiro nome,mas ninguém tinha prestado atenção nisso –afinal, a tia e a mãe também chamavam a avó
de Joseph de “mãe” –, até o menino começarf t d t lh
J p , ça fornecer outros detalhes.– Um dia, ele estava sentado na calçada da
casa de meus pais, olhando para cima. Nós oobservávamos – disse a mãe. – Ele chamou aavó e disse: “Mamãe, você se lembra quando
papai e eu subimos ali e pintamos o telhadode vermelho e eu fiquei com os pés e aspernas cobertos de tinta? Puxa, como vocêficou brava!” Minha mãe disse: “Joseph?” Ele
não respondeu. Então, ela exclamou: “Deusmeu, Jenny, era David falando comigo,Porque David pintou o telhado e fez a maior
sujeita, tinha mais tinta nele do que no teto.”O interessante é que o telhado foi pintado devermelho em 1962, mas depois nós o
pintamos de verde, como é até hoje. Um dia,estávamos seguindo pela via 11 e Josephdisse: “Quando eu estava crescendo, não
avia casas ali. Tudo era coberto de árvores,onde costumávamos caçar ” E uma outra vez
o amigo estava por perto. Mas Michael nãoaparecia há muito tempo.
– Ele ficou zangado comigo e foi embora –explicou o menino.
Joseph jamais deu um sobrenome paraMichael ou mencionou qualquer ligação delecom o tio morto. Mas sua mãe disse que udia, quando passavam de carro pelo
cemitério, o menino disse:– Vamos parar e procurar o túmulo deMichael. Fica em algum lugar por aqui, co
uma bandeira dos Estados Unidos por cima.Inúmeras crianças possuem amigosimaginários e as pessoas acreditam em várias
coisas. Mas o depoimento da família quantoàs afirmações que relacionam o menino ao tiomorto não perde credibilidade pelo fato de
Joseph ter um amigo invisível e sua mãe aomenos aceitar a idéia de que Michael poderia
vivia: ele era uma figura de grandeimportância no grupo, a quem todos se
referiam com profundo respeito. No início dasemana ele havia feito uma palestradelineando a tônica das futuras discussões.
Na ocasião, discorreu sobre um assunto sobreo qual havíamos conversado na noite em quevoltávamos de nosso desconfortável encontroem Sharifpura, argumentando que o tipo de
pesquisa de campo que havíamos realizadoera válido cientificamente, ainda que nãosatisfizesse todas as exigências de uma
experiência em laboratório.Não ouvi a palestra, mas li sua publicação.Estava escrita na linguagem formal que
Stevenson costumava usar. Em suaconclusão, ele conseguiu expressar eapenas três frases os quarenta anos de uma
experiência muitas vezes frustrante, assicomo sua fervorosa esperança para o futuro.
como sua fervorosa esperança para o futuro.“As dificuldades aparecem quando as
observações relatadas parecem entrar econflito com os ‘fatos’ aceitos pela maioriados cientistas como algo estabelecido e
imutável”, escreveu ele. “Os cientistastendem a rejeitar observações conflitantes...Entretanto, a história da ciência nos mostraque as novas observações e teorias pode
acabar prevalecendo.”Como Stevenson estava sempre muitoocupado, tive bastante tempo para ficar
vagando pelo campus da Universidade deirgínia, um dos mais espetaculares do país.Na alvorada do século dezenove, quando o
campus fora construído, o universo pareciaestar oferecendo seus segredos à ciência coenorme rapidez. Deviam pensar que logo não
haveria mais nenhum mistério a resolver.Toda a Criação se tornaria metódica, serena e
Mais de um ano já havia transcorrido desde omeu primeiro encontro com Stevenson.Desde então, passara a ler compulsivamente
tudo o que encontrava sobre teoria quântica,pesquisas bioquímicas e inteligência artificial.Era um tipo de assunto quase impenetrável,que permanecia sempre nos limites do meuconhecimento e compreensão.O pouco que eu sabia me dava a sensação deque o avanço da ciência tem sido muito mais
espetacular do que qualquer pessoa, no iníciodo século, poderia sonhar. Nos últimostempos, porém, era menos satisfatório.
Quanto mais se avança, mais se teconsciência dos mistérios a sereperscrutados.
Meu conhecimento não era mais amplo doque o da maioria das pessoas. Mas agora eu
ma necessidade de compreender se existiaalgo que pudesse lançar uma luz, ainda queindireta, sobre o que eu estava vendo.
Desde que terminara meus estudos de físicano segundo grau, aquilo que tinha sidocolocado como definitivo vinha sendosuperado rapidamente por novasdescobertas. Toda a ciência do mundosubatômico baseava-se em mistérios. Isso nãosignificava que os cientistas não fosse
ábeis ou inteligentes, mas as perguntas semultiplicavam indefinidamente.As fronteiras de tudo aquilo que
considerávamos realidade eram muito menosdefinidas do que imaginávamos. A realidadetinha que ser pensada com categorias
absolutamente revolucionárias dos conceitosque nos habituamos a configurá-la, com u
quase a totalidade dos leigos.Baseados nessas novas concepções, o agora, oontem e o que ainda está por vir pode
existir – usando uma palavra que só éadequada num mundo tridimensional –simultaneamente. É esse o problema: nenossa experiência nem nossa linguageforam feitas para lidar com uma realidadequadridimensional, pois somos ligados àseqüência, à idéia de que um tempo – o
presente – existe e os outros são relembradosou imaginados.Como seria ver o mundo em quatro
dimensões?Talvez todos os estranhos fenômenosdescobertos pela ciência, e outros dos quais
os cientistas ainda nem se deram conta,parecessem estanhos para as criaturas
levar através do espaço em quatrodimensões, conseguindo ver somente as
sombras do que está fora de sua esfera depercepção.E quem somos “nós”, afinal? Geneticistas,biólogos e cientistas da computação têpassado décadas lutando uns contra osoutros para serem os primeiros a criar, oupelo menos definir, a consciência. Nenhu
deles sequer vislumbrou uma solução.Onde e que tudo isso nos deixa? Num estadode admiração paralisante? Ou numa
insatisfação produtiva?Acho que essa insatisfação, pelo menos eparte, explicava a reunião da Sociedade de
Exploração Científica, uma federação decientistas associados de maneira um tanto
a visão de um espaço vazio entre o que aciência tradicional não consegue explicar e a
ortodoxia científica que descarta sediscussão certas idéias.Nem todos os membros da Sociedadeestavam propondo idéias radicalmentecontrárias, como fazia Stevenson. Naverdade, alguns estavam ali para, antes detudo, tentar desmascarar quaisquer
imposturas. Mas todos tinham interesse eusar um método científico para estudarassuntos vistos com escárnio pela ciência
tradicional, como, por exemplo, a existênciaou não de ÓVNIS, da vida após a morte, dapercepção extra-sensorial, das curas
mediúnicas, ou mesmo de um mecanismoque responda pelo fato de mulheres que
tendência a apresentar períodos menstruaissincronizados.
Desnecessário dizer que tudo isso gerou umaampla variedade de palestrantes e ouvintes.Os tópicos iam do sóbrio “Um centro paraestar a eficácia de certas terapias alternativas
e complementares na redução da dor e dosofrimento em determinadas populações depacientes” aos temas mais delirantes.
Participantes beirando a paranóiacompartilhavam o evento com pessoas deinquestionável conhecimento. Um dos
palestrantes, um demógrafo da universidadeJohns Hopkins chamado David Bishai, estavaali para falar sobre a dinâmica da migração, o
que explicaria por que a explosãopopulacional não refuta automaticamente a
de televisão, do tipo “mistérios científicos”,uma pessoa dizer que o número de sereshumanos que já viveram não seria suficiente
para fornecer almas para toda a populaçãoatual.– O erro era óbvio – disse Bishai. Eprimeiro lugar, ele explicou que as maisconfiáveis estimativas demonstram que o
úmero de pessoas que já morreram excedeem muito o número das que vivem agora.
Porém, ainda que isso não fosse verdade, nãoaria diferença. Ele desenhou um diagramano quadro-negro mostrando uma linha que
dividia doisJoel, uma das pessoas mais inteligentes que jáconheci, trabalhou comigo no Herald,
escrevendo uma coluna onde explicava aciência para as massas. Ele me disse que,
a idéia de que nosso planeta foi algum diavisitado por extraterrestres a bordo deOVNIS. Ao fazer isso, no entanto, ele
também discorria sobre a atuação da ciência,defendendo o mesmo conservadorismo e amesma rigidez contra os quais lutavaalguns participantes da conferência.Joel não apenas roubou a cena, mas porpouco não desencadeou um tumulto, aoinsistir em que a ciência tradicional era assi
por uma razão: ela fazia sentido, não sedeixava levar pela emoção, não tiravaconclusões apressadas e nem se envolvia e
conspirações para abafar a verdade. Elaapenas exigia provas científicas rigorosas,conseguidas através de meios passíveis de
repetição, potencialmente capazes de refutá-las em experimentos objetivos.l
e agressivos por parte de um membro daplatéia, mas as justificativas erainconsistentes, e Joel ouviu-o sem refutá-lo.
Começava a anoitecer quando saí com Joelnum automóvel alugado. Além de termosrabalhado juntos durante vários anos, Joel e
eu tínhamos sido colegas de quarto, por ucurto período, quando cheguei a Miami e eleacabava de sair de Princeton. Isso fora hámuitos anos, mas o sentimento de liberdade e
confiança permanecia.– Então, qual é o negócio com o tal deStevenson? – perguntou Joel.
Contei a ele sobre o que tinha visto no Líbanoe na Índia, assim como nos dois últimos dias,na Virgínia. Disse-lhe que, depois de mais de
um ano viajando, quase fazendo a volta aomundo, não podia rejeitar nada daquilo.E l i
de afirmar, de fato, que acreditava.Ele disse tudo o que eu já esperava ouvir:como era possível falar seriamente sobre
reencarnação quando não se tinha a menoridéia do que seria a alma, ou se ela existia? E,se as almas realmente existissem, como elasocupavam um corpo ou se moviam de upara outro? Aquilo que as criançasdemonstravam saber e que parecia desafiarqualquer explicação era mesmo fascinante.
Mas constituía material para um ótimo livro,e não para a ciência. Por mais que parecesseimprovável, a corrente de coincidências e
conspirações teria que ser a explicaçãonormal para os casos. Na ausência demotivos convincentes para acreditar e
almas e em sua transferência de um corpopara o outro, uma pessoa racional precisalh
o improvável e não o inexplicado.– Acredite-me, tenho refletido sobre tudo isso– disse. – É que...
O sol já havia se escondido atrás das colinas,a oeste. Um vento úmido e suave atravessavao automóvel. E eu entendi. Finalmente,compreendi o que vinha assombrando aminha mente desde a Índia, talvez até antes.– Quer ouvir uma longa história? – perguntei.– Claro.
– Logo que terminei a faculdade, no verão de1976, um amigo e eu decidimos dirigir pelopaís até que nosso dinheiro acabasse. Essa
viagem se tornou uma maratona deconversas. Dirigíamos, ouvíamos música econversávamos. Como éramos dois rapazes
de vinte e pouco anos, nosso principalassunto eram as mulheres. Havia duaslh i h id bi t
associando cada uma delas a uma visãodiferente do futuro. Uma era segura,previsível, quase um abrigo. A outra,
perigosa, arriscada, um salto sem rede. Àmedida que a viagem prosseguia e queouvíamos várias vezes as mesmas fitas demúsica, na minha cabeça cada uma daquelasmulheres, cada uma daquelas posturas dianteda vida, ficou associada a uma canção. Oabrigo seguro era Shelter from the Stor
(Abrigo da tempestade), de Bob Dylan. Aselvagem e perigosa era uma daquelasmúsicas desesperadas de Bruce Springteen,
She’s the One (É ela).– Duas musicas excelentes – comentou Joel.– Isso mesmo. E ambas mexiam comigo.
Ambas as mulheres e ambas as músicas. Meuamigo e eu discutimos esse assunto sob todosos aspectos possíveis Conversamos de uma
maneira que só acontece quando você tevinte e dois anos e está desempregado,dirigindo numa estrada vazia, uma hora
antes do amanhecer, a um lugar onde nuncaesteve.– Como você pode imaginar, essa discussãocontinuou sem parar, enquanto rumávamospara oeste e os espaços se tornavam maisamplos e mais desabitados. Visitamos unsconhecidos em Phoenix e tomamos a direção
de Los Angeles, nosso objetivo final. Nocaminho, pretendíamos parar e caminharpelo Grand Canyon. Mas já era tarde e
decidimos seguir mais uma hora para o sul,passar a noite numa área própria paraacampar e voltar para o Canyon bem cedo,
a manhã seguinte.– A área de acampamento era apenas umaplanície ao pé de algumas montanhas
Tomar o caminho mais seguro seria umaatitude bem fundada e sensata ou um passo
covarde em direção a uma vida de tédio earrependimento?– O problema começou a se refletir nasdecisões mais imediatas. Deveríamos ir paraLos Angeles, como havíamos planejado? Ou
seria melhor nos aventurarmos pelo México,uma terra desconhecida? Deveríamos voltarpara a Flórida e procurar emprego, como
sempre imaginamos fazer um dia? Ou ficarali, no oeste, e recomeçar tudo, sem contatos,dinheiro, contando apenas com o
inesperado?– Acho que você está me entendendo. Era omomento de decisão A hesitação a completa
incapacidade em separar a verdade da ilusãome atormentavam.
– Conversamos durante várias horas.Quando voltamos para o acampamento, já
era tarde da noite. Eu me sentia exausto. Meucérebro doía. Estávamos ali, atiçando o fogocom pedaços de pau, e meu amigo disse:“Quem sabe pegamos o carro agora mesmo eseguimos para o México?”
– A idéia realmente me atraía. Era audaz,impulsiva, arriscada. Então, comecei a pensaro quanto eu estava cansado, em como,
provavelmente, acabaríamos parando naestrada, no meio do nada, para dormir dentrodo carro, sentindo-nos como dois idiotas por
ermos saído daquela agradável área deacampamento e desistido de visitar o GrandCanyon
– Minha cabeça ia explodir. Gritei: “Esperem minuto! Essa decisão é igual a todo o
resto.” De repente pude ver como eu passara
tantas horas, senão semanas, correndo atrásdo próprio rabo. “Não vou mais fazer isso”,
disse então. “Agora vou aguardar algusinal.”– Minha dor de cabeça desapareceu namesma hora. Senti-me envolvido por usilêncio insondável. Ficamos ali, no escuro,
ouvindo o fogo crepitar.– Exatamente sessenta segundos depois,escutamos o som longínquo do motor de u
automóvel movendo-se pela noite. O barulhofoi aumentando e vimos luzes de faróismovimentando-se por entre as árvores.
Finalmente, um furgão se aproximou pelaestrada de terra. Lembre-se, a área deacampamento estava totalmente deserta O
furgão passou pela primeira área, pelasegunda, seguiu em direção onde estávamos,oi até o final e parou bem ao nosso lado.
Joel pulou no assento do carro e bateu com a
mão no painel.– Droga! – exclamou ele. – É melhor que nãoseja a música de Springteen.– A porta lateral do furgão se abriu –prossegui v e o som nos atingiu como u
apa, a voz luminosa, as guitarras estridentes,as marteladas no teclado. Springteen. She’she One.
– Oh, que droga! – disse Joel outra vez.– A música seguiu direto até o ponto em queele diz: “E você tenta, só mais uma vez,
vencer os obstáculos...” Então parou, fazendoaquele barulho eletrônico que se ouvequando alguém desliga de repente. As luzes
se apagaram, a porta foi fechada e éramos sónos dois outra vez. Silêncio completo. Não
ouvimos mais nenhum barulho. Nenhumavoz. Nenhum sussurro. Nada.
Joel riu.– Meu amigo e eu apenas olhamos um para ooutro. Eu disse: “É engraçado. Você pede usinal e consegue. Um enorme, espalhafatoso,cintilante sinal de néon. E ainda assim não
sabe o que ele quer dizer.” Meu amigo disse:“Não é óbvio?”– E eu sabia do que ele falava. Era óbvio que
ele queria me dizer que o “sinal” estava meavisando para tomar o caminho da coragem,escolher a mulher perigosa, jogar a cautela
para o alto. Se eu tivesse ouvido a descriçãoda cena, pensaria a mesma coisa. Mas ali, nomeio de tudo aquilo, nem pensei nessa
ipótese. Ficou logo bem claro para mim queaquela incrível coincidência não poderia serm guia prático capaz de definir as escolhas
que deveria fazer. Era estranho demais e aomesmo tempo excessivamente magnífico e
rivial. Tive a forte certeza de que o universoestava rindo de mim, do meu auto-envolvimento, e o mais inesperadoaconteceu: a ansiedade que eu sentiasimplesmente desapareceu.– Embora logo tivesse percebido que o“sinal” não era o que parecia, levou muitotempo para que eu o encarasse como o faço
agora. Por algum motivo, recebi essa dádiva,essa extraordinária e irrefutáveldemonstração de que não se pode analisar o
mundo baseando-se apenas no que aparecena superfície. O universo e o ser humano sãomuito mais do que máquinas de matéria
física, automáticas, vazias. Existe uma... forçaem algum lugar, algo que ultrapassa oconhecimento, mas que podemos, em algu
nível, sentir e ver e com a qual podemosinteragir. Minha vida tão insignificante e
todos os meus assuntos pessoais ligaram-se,de alguma forma, a algo tão gigantesco, tãoalém de mim mesmo, que poderiacoreografar uma pequenina representaçãocomo aquela, feita sob medida para a mentede um rapaz confuso.– Eu senti tudo aquilo profundamente. Umaárea de acampamento vazia, no meio do
ada, no meio da noite. E dois rapazes ali,discutindo tudo em termos de duas canções,durante semanas, e em sessenta segundos,
após decidir “esperar por um sinal”, ufurgão aparece, toa uma daquelas músicas, sóisso, e fecha a porta? Eu teria pensado que
era uma alucinação, mas meu amigo estavaali, de testemunha! E na manhã seguinte,quando o dia clareou, estávamos finalmente
adormecendo quando ouvimos a porta dofurgão se abrir, o toca-fitas ser religado, a
última parte da música tocar alto, a porta sefechar com força, o veículo tomar a estrada eir embora.– Sem dúvida, essa é uma história notável –disse Joel. – E não duvido que tenha sidoexatamente como você se lembra. Mas nãoacredito que haja algum ponto mágico eque um acontecimento improvável se
ransforme em “evidência” de algufenômeno totalmente novo. Qual éexatamente o fenômeno? Como é que o seu
cérebro ou os seus sentimentos poderiafazer com que o furgão e o motoristaparassem ali? Me dê uma teoria por trás do
acontecimento e alguma maneira de testá-la.Essa sua história fala de um acontecimentomuito incomum, sem qualquer teoria para
explicá-lo, a não ser a existência de alguipo de fenômeno maior que une as mentes
umanas às realidades físicas. E fica implícitoque, se outras pessoas estiverem tentandodecidir com quem sair, isso pode fazer coque você dirija um furgão e toquedeterminada música de Springteen.Pessoalmente, não me sinto sob ocontrole de forças que emanam do cérebro deoutras pessoas. A solução mais fácil para essa
situação, se você quer saber o que eu penso, édizer que, embora fosse única e excepcional,ela não exige qualquer fenômeno estranho
para acontecer: precisa apenas que umapessoa leve um furgão até o lugar onde vocêsestavam e toque uma música de Springteen.
E foi o que alguém fez, sem ter nada a vercom o seu problema. É isso o que eu acho.
– O problema com o paranormal –prosseguiu Joel – é que, por definição, ele
tende ficar tão distante do normal que,teoricamente, não pode ser medido. Então,não se pode provar que não está ali e neprovar que está. E, sendo assim, não possoexcluir a possibilidade de existir algumaligação entre os seus pensamentos e oaparecimento do furgão. Apenas não achoque se ja provável que exista qualquer
ligação.Dessa vez fui eu quem riu.– É isso – exclamei. – É essa ligação entre
tudo isso e aqueles casos de reencarnação. Eusabia que havia uma ligação, mas nãoconseguia identificá-la: o argumento é
exatamente o mesmo. Tenho uma série defenômenos que não podem ser explicados deforma normal. Tenho depoimentos e
testemunhas que os corroboram. Você diz:“Não há como fazer uma experiência para
provar ou refutar.” Eu digo que, sem dúvida,vale a pena procurar outros casos nos quaisas testemunhas aleguem ter presenciadoeventos similares para, assim, determinar aprobabilidade de que se jam explicadosatravés de fraude ou ilusão. Só que, no meucaso, não preciso me preocupar com acredibilidade das testemunhas, se estão
enganando a si mesmas ou mentindo. Porqueeu sou o sujeito e a testemunha, e sei o queaconteceu.
– Então, a questão passa a ser: “Tudo bem, seique aconteceu, mas o que isso significa?”Você diz: “Talvez seja uma coincidência.”
Ótimo, mas eu também quero dizer: “De jeitonenhum!” Não posso aceitar que aquilo tenhaacontecido sem haver qualquer ligação com o
que estava se passando na minha vida. Damesma maneira que, agora, desejo declarar
categoricamente que não posso aceitar quetodas aquelas crianças, todas aquelas famíliase todas as testemunhas estejam simplesmentementindo, que estejam iludidas, ou erradas.Aquelas crianças sabem de coisas que nãopoderiam saber normalmente. Estouaceitando este fato.– Mas no meu caso, embora eu aceitasse que
o que aconteceu naquela noite não era apenascoincidência, não aceitei a explicação queparecia óbvia quanto ao significado do sinal.
Simplesmente senti que não era aquilo.– E acho – prossegui – que afirmar que “essascrianças sabem o que sabem porque são
reencarnadas” me parece simplista demais.Linear demais. É aceitar que sabemos o queão sabemos, como, por exemplo, o que é o
“tempo”, ou o que é a “identidade pessoal”.Por isso, estou chegando à mesma conclusão
a que já tinha chegado antes: essas criançasnão são importantes pelo que dizem sobredetalhes específicos ou sobre o que aconteceapós a morte. Sua verdadeira importânciaestá no que dizem sobre o funcionamento domundo: que ele é misterioso, que existeforças maiores em ação, que, de algumamaneira, todos nós estamos unidos por forças
que ultrapassam o nosso conhecimento, masque, definitivamente, não são irrelevantespara as nossas vidas.
Joel fiou em silêncio durante algum tempo.Quando chegávamos ao nosso destino, ele,como sempre, deu a última palavra.
– Eu aceito isso como uma conclusão pessoal– disse ele. – Apenas não considero isso
ciência. Só mais tarde me ocorreu a respostaadequada: se não é ciência, talvez devesse
ser.18CRISÁLIDAS– Você é uma pessoa de sorte, tal como eu –Stevenson tinha me escrito quando eu estavaprestes a voar para Charlottesville. – Faleicom a mãe daquele caso sobre o qual lhe faleipor telefone. Ela concordou em conversar
com você. Infelizmente, devido a outroscompromissos, não poderei acompanhá-lo.Eu me sentia mesmo uma pessoa de sorte.
Aquela seria a última família que eu iriaentrevistar e ela preenchia uma série delacunas. Era um caso nos Estados unidos, no
qual a criança se lembrava da vida de uestranho. E não apenas isso, havia tambéuma chance de que fosse o primeiro caso
não-familiar nos Estados Unidos copossibilidades de identificação da
personalidade passada.Na verdade, era estranhamente parecido coa história que Arlene Weingarten tinha mecontado sobre seu irmão Jim, o menino de“Dixie”. Desde muito pequeno, um garoto naVirgínia era obcecado por botas de vaqueiroe calças jeans. Ele se recusava a usar qualqueroutra roupa e falava sempre sobre a “sua”
azenda. Um dia, ele estava com a mãedirigindo pelo campo, quando começou agritar: “É essa a minha fazenda.” Até o
momento em que me dirigi para encontrá-los,os pais não tinham feito nenhuma tentativapara verificar a informação.
Rodei por cerca de duas horas para fora deCharlottesville, até uma área nova que estavase desenvolvendo perto da estrada
interestadual. Era um daqueles lugares eque tudo, das caixas de correio às telhas, era
controlado pela associação de moradores eem que um gramado por aparar eraconsiderado alta traição. Pareia estranhoentrar com o Ford alugado na passagem quedava acesso a um cenário tão norte-americano dos anos noventa, sabendo quelogo estaria fazendo perguntas similares àsque tinha formulado nas montanhas Shouf,
no Líbano, e nos casebres de Uttar Pradesh.Debbie Lentz tinha trinta e nove anos,sedosos cabelos ruivos e uma agradável
informalidade. Ela e o marido eraproprietários de duas prósperas academiasde ginástica na cidade, um negócio que ela
havia construído com seu próprio esforço.Tornara-se uma pessoa importante nacomunidade comercial e por esse motivo ela
não quis que sua história viesse a públicocom seu verdadeiro nome, que não é Debbie
Lentz.– Você não conhece as pessoas com quelido – disse-me ela, quando sentamos à mesada cozinha. – Pensariam que tudo isso éloucura.Debbie nunca havia se preocupado coassuntos como reencarnação ou outros temasespirituais da Nova Era. Considerava-se
parte dos milhões de norte-americanos quevivem confortavelmente no mundo secular,sem refletir muito sobre assuntos espirituais
que ultrapassem a idéia geral de que “coisasoas acontecem para pessoas boas”.Mesmo assim, foi preciso um esforço para
que ela se convencesse de que era uma boapessoa para quem aconteciam coisas boas.Seu pai, um jovem escritor, morrera de u
ataque cardíaco quando ela tinha três anos.Sua mãe se casara novamente com u
homem que se revelara um alcoólatraagressivo que não gostava de crianças.Quando perguntei se ela já tivera algusentimento intuitivo de que a personalidadesobrevive após a morte, respondeu:– Você não imagina quantas vezes fiqueiacordada em minha cama, chorando cotodas as minhas forças pelo meu pai. E tudo o
que senti foi um terrível vazio interior, usentimento absoluto de que ele não estava lá.Então, onze anos, depois de casar e mudar
para o leste, ela descobriu que tinha câncer:dois tumores na virilha direita.– A radioterapia destruiu o ovário direito –
explicou Debbie. – O esquerdo se salvou,porém, dois anos depois, tive uma gravidezdifícil. Meu médico entrou em pânico e
retirou meu ovário, pois havia sangue porodo lado. Quando acordei e ele me contou,
entendi que não poderia mais ter filhos.Exames de sangue confirmaram que ela nãoproduzia mais estrogênio. Aos vinte e quatroanos, estava na menopausa. Passou a fase dereposição hormonal.Debbie havia trazido dois enormes copos deágua bem gelada (“Água nunca é demais noorganismo”, disse ela, alegremente, quando
me passou o copo– sempre preocupada coa saúde.) Robert, seu filho de cinco anos,entrou na cozinha.
Eu o tinha visto no pátio externo, pedalandom triciclo. Observei que vestia bermudas eão alças jeans. Mas usava grandes botas
pretas de borracha que teimavam eescorregar dos pedais. Ele vinha em direção à
mesa, um belo menino louro, de olhos azuis eexpressão grave.
– Mãe, estou cansado – anunciou.– Agora estou conversando – respondeu amãe. – Vá brincar ou ver televisão. – Ela
voltou-se para mim. – Essa é a primeira vezque consigo fazê-lo usar bermudas. Ele serecusava a vestir qualquer coisa diferente decalças jeans. Só usa botas de vaqueiro desde aépoca em que começou a falar. Jamais usou
outro tipo de calçado. Usava botas devaqueiro com o calção de banho quando ia àpiscina.
– Ei, Robert – chamei. – Por que você gostaanto de botas de vaqueiro?Ele estava deitadoem frente à televisão, de barriga para baixo.
– Eu gosto, só isso – respondeu.Debbiesentou-se à minha frente e continuou:
– Depois que tive câncer, tomei estrogêniodurante cinco, seis anos, e não me sentia bem.
Fui então ao oncologista pensando que estavacom outro tumor. Ele pediu uma série deexames. Quando saí do consultório, u
pensamento me veio à abeca: “Estougrávida.” Foi muito estranho. Fiz um examede sangue e deu positivo. Voltei ao médico eele disse: “Debbie, esse é o mesmo teste queusamos para encontrar um tumor. O
resultado foi positivo porque existe utumor. Você não está grávida.” Eu respondi:“Estou, sim.” Saí dali e, na manhã seguinte,
fui ao obstetra. Fizeram umaultrassonografia. Estava grávida.árias bênçãos numa só, segundo lhe disse o
médico.– Ele afirmou que a chance de o meu sistemareprodutor voltar a funcionar e produzir uma
criança saudável, depois da menopausa e dotratamento radioterápico, era de uma em u
milhão. Eram esses, literalmente, os números.Mas a pior luta foi com meu ginecologista,que não queria que eu levasse a gravidez
adiante, temendo que isso ativasse as célulascancerosas. Os médicos pediram maisexames e me falaram de todas asdeformidades que a criança poderia ter. Eudisse para meu marido: “Sabe, existe u
plano superior trabalhando. Há um motivo.Não importa que a criança não tenha pernas,olhos ou braços. Então, para que fazer todos
esses exames?”– Aos cinco meses de gravidez – continuouDebbie –, concordei em que fosse feito u
exame no feto. Fizeram o exame e o meninoera perfeito. Não havia anda errado. Então,
os médicos disseram: “Bem, talvez ele tenhasíndrome de Down.”
Não tinha. Na verdade, parecia mais espertoque a maioria das crianças.– Uma noite, fomos ao mercado, onde fazia
muito frio. O pai o estava segurando. Eleolhou para mim e disse: “Frio.” E eu pensei:“Meu Deus, ele só tem seis meses.”Robert dizia frases completas aos doze meses.– Ele sempre parecia entender o que lhe
alávamos – disse ela. – Nunca precisamoslhe ensinar palavras como “em volta”, “aolado”, “na frente”, “atrás”. Robert sabia o que
significavam desde o dia em que nasceu.Ainda estava engatinhando, a gente dizia“atrás de você” e ele se voltava para trás.
– Quando foi a primeira vez que lhe ocorreua idéia de que ele poderia estar falando deuma vida passada? – indaguei.
– Começou como uma brincadeira. Quandomeu marido e eu estávamos com outras
pessoas, Robert ficava sempre falando sobrea “minha fazenda”. As pessoas diziam: “Ah,você mora numa fazenda.” E nós dizíamos:
“Não, isso foi na outra vida dele.”Brincávamos a respeito. Literalmente, umabrincadeira.Robert tinha dez anos na época. A famíliaLentz morava cerca de meia hora ao norte da
casa onde viviam agora, numa antiga árearesidencial.– Havia algumas fazendas ali perto, mas
Robert nunca teve nenhuma reação pertodelas. Sempre dizia “na minha fazenda”.Quanto mais velho ele ficava, mais o seu
vocabulário se expandia. Aos três anos, disseque costumava esconder-se num depósitopara fumar quando tinha treze anos. Essa
conversa saiu do nada: “Mamãe, na minhafazenda, quando eu tinha treze anos, a gente
fumava.” Foi quando me dei conta de que,desde que começara a andar, ele colocava upedacinho de pau, um lápis, qualquer coisa,
na boca e fingia estar fumando. Eu e meumarido não fumávamos, nem ficávamosperto de pessoas fumando. E na creche eletambém não tinha contato com cigarro.– Sobre o que mais ele costumava falar? –continuou Debbie. – Sobre tratores, coisasligadas à fazenda, trabalhar na fazenda,acordar na fazenda, vacas... havia sempre
vacas na tal fazenda. Ah, ele falou tambéque um depósito havia sido destruídodurante uma tempestade. Pouco tempo atrás,
acho que no inverno passado, eu e eleestávamos sentados assistindo televisão emeu marido acendeu a lareira. De repente,
ele disse: “Minha mãe costumava ficar pertodo fogo quando estava grávida. Mamãe,
deixe eu lhe mostrar.” Fomos para perto doogo e ele continuou: “Ela esfregava a
barriga. Era muito grande. Ela ficava em pé
para se aquecer.” Nós lhe perguntamos:“Quantos filhos ela teve?” Ele respondeu:“Seis.”– Um dia – prosseguiu –, a mulher quetomava conta de Robert me disse: “Debbie,qual é o problema com essa fazenda de queele tem me falado?” Comparamos nossasobservações, e eram as mesmas. A mãe o
havia abandonado, sua irmã o maltratava,possuíam um trator verde e um pequenocaminhão preto. Tudo era idêntico. Achamos
muito interessante. Quando você fala couma criança, a história muda a toda a hora,mas no caso de Robert a história permanecia
a mesma desde o seu nascimento... era quaseinacreditável.
Algumas vezes, quando Robert falava dafazenda, sua voz se modificava.– Era fácil perceber. A entonação mudava.
Nesse ponto, a imaginação começava. Aistória se tornava um tanto sem sentido,
como: “Tinha uma roda-gigante na minhaazenda.” Você percebia a diferença.
Nossa conversa já durava mais de uma hora eeu estava fascinado. Mas não alcançamos omesmo que Stevenson me havia mostrado dooutro lado do oceano: crianças que se
comportavam como Robert, porém, fazendoafirmações muito mais específicas que, maisarde, provavam ser verdadeiras em relação á
vida de um estranho. Essa confirmação faziaoda a diferença, exigindo uma explicação
mais profunda para aquele comportamentode que um simples “isso é coisa de criança”.
Antes de ir a Beirute e à Índia, eu teria dado aseguinte explicação para o que Debbie estavame contando: uma história que demonstra o
quanto as crianças podem ser imaginativas ecomo elas não conseguem distinguir afantasia da realidade. Teria também pensadoque Debbie estava se enganando quandopercebia mudanças na voz do filho nomomento em que ele se referia a algoabsurdo como uma roda-gigante em suafazenda. Teria concluído: que fértil
imaginação!Agora, porém, minha visão era diferente –depois de tudo o que vira, não tinha outra
escolha senão levar a história mais a sério.O menino apresentava outras característicasestranhas. Debbie contou, por exemplo, que,
tão logo começou a falar, ele demonstravaum interesse precoce por motocicletas.
– Se estivéssemos numa estrada e ele ouvisseuma motocicleta se aproximar, dizia:“Mamãe, aquela é uma Harley.” E era. O
mais impressionante é que ele distinguia umaHarley de uma Suzuki. Não sei comoconseguia. E adorava roupas de couro preto,cabelos longos, brincos, tatuagens.– Alguma vez você perguntou qual era o
ome dele quando morava na fazenda? –indaguei.– Nunca consegui saber isso. Ele dizia
alguma coisa sobre a fazenda e pronto. Nãorespondia perguntas. Não estava interessadoem discutir o assunto. Estava contando sua
istória.Em novembro de 1995, Debbie e o maridocompraram a casa onde nos encontrávamos.
– estávamos morando aqui há cerca de seismeses e toda vez que precisávamos fazer
compras íamos pela mesma estrada. Um dia,resolvemos encurtar o caminho e, tão logodesviamos, Robert, na época com três anos,
ficou agitado no banco de trás, gritando,excitado: “Minha fazenda, esse é o caminhopara a minha fazenda, é esse, é aqui que elafica!” Era de arrepiar os cabelos.Continuamos dirigindo, e eu disse para ele:“Querido, não vejo nenhuma fazenda. Aliestá a escola onde você vai estudar quandocrescer.” Ele respondeu: “Não, não, eu sei
que é aqui, sei que é aqui.” Nenhum de nósamais havia estado ali. Passamos pela escolae, imagine só, na bifurcação da estrada havia
ma fazenda. Ele estava muito agitado. “Éaqui!” Como ele sempre se referia a ugalpão de depósito, eu lhe disse: “Meu bem,
existe uma fazenda aqui, mas ela não tem ugalpão.” E ele: “Vá em frente, papai! Vá e
frente, ao lado...” Ultrapassamos a casa,olhamos para a direita e lá estava o grande evelho galpão. Ele apontou e disse: “Viu, eu
falei. Está vendo mamãe?” Quando passamospela casa de ti jolos brancos, vimos vacaspastando.Alguns meses depois, Debbie ganhou ulivro escrito por Carol Bowman, Crianças eSuas Vidas Passadas. A autora acreditava queseus filhos haviam se lembrado de vidaspassadas durante uma regressão hipnótica.
Eu já conhecia o livro e achava que asrecordações das crianças eram como todas asoutras típicas “memórias” inspiradas pelo
A casa de tijolos brancos na bifurcação daestrada ficava a menos de um quilômetro e
meio. Quando nos aproximamos, pude ver asconstruções que Debbie tomara como sendogalpões de depósitos. Olhei para Robert, que
estava sentado em silêncio. Ele inclinou ocorpo para a frente e disse:– Tínhamos uma roda-gigante aqui.Olheipara Debbie. Ela não parecia ter ouvido.Segurava o volante com força.– Estou muito nervosa – afirmou.Entramos numa passagem à sombra deárvores e paramos numa área aberta, na
rente da casa. Uma jovem apareceu na portade entrada.– Você mora aqui? – indaguei.
– Será que poderíamos conversar com suamãe?A moça subiu os degraus e falou para
dentro.– Mãe! Tem gente aqui querendo falar covocê.
Uma mulher de expressão meiga,aparentando uns quarenta e cinco anos,surgiu à porta.– Entrem – disse, com a fala arrastadacaracterística do sul da Virgínia. – Meu nomeé Lynn. Entramos num saguão frio e escuro,apesar do sol que brilhava do lado de fora.Debbie
me seguia, e observei que Robert, atrás dela,segurava-a com força. Eu não havia pensadoem como introduziria o assunto. Podia sentir
– Esse menino está absolutamenteconvencido de que já viveu aqui – declarei.
Lynn pareceu confusa.– Meu bem, isso é impossível. Moramos aqui
á muitos e muitos anos.
– O fato é – acrescentou Debbie – que ele achaque passou uma vida anterior aqui.– Minha querida – disse ela –, acho que não.Meu pai foi dono deste lugar durante quasequarenta anos.– O menino não pára de falar na fazenda queteve – expliquei. – E está convencido de que éesta aqui.
Senti um certo alívio nos olhos de Lynn.– Depois que meu pai a comprou, nunca foirealmente uma fazenda – ela explicou. –
papai era corretor de imóveis.– Ele tinha algum passatempo, algo de querealmente gostasse? Robert está sempre
falando sobre motocicletas. Ela balançou acabeça devagar.
– meu pai jamais gostou muito delas. – Lynnez uma pausa para refletir. – Mas ele possuía
caminhões.
– É mesmo? – comentei. – A senhora selembra de alguma cor especial?– Branco – disse ela. – Os caminhões erabrancos.Eu ia registrando mentalmente: sem fazenda,sem motocicletas. Caminhões, mas de corpreta.– Ele fumava? – indagou Debbie.
– Papai fumava, sim, começou naadolescência.– Robert contou que teve problemas por estar
fumando no galpão aos treze anos disse euAl h i hi tó i
fumando no galpão, aos treze anos disse eu.– Alguma vez a senhora ouviu uma históriaassim? Ela pensou um pouco.
– Bem, não sobre o meu pai, mas sobre oirmão dele, que morava naquela casa grande
atrás da nossa. Tudo isso era uma únicapropriedade. Uma vez, quando eraadolescentes, meu pai e ele estavam levando
algumas roupas para a lavanderia, quando oirmão dele que estava fumando deu upiparote no cigarro. Queimou a roupa toda,não sobrou nada. É claro que tiveraproblemas por causa disso.Ela refletiu durante mais algum tempo.– Nós tínhamos mesmo algumas vacas. Ealguns porcos. E uma pequena plantação de
soja, também. Ele costumava carregar ocaminhão com soja para vender no mercado.Porcos? Vacas? Soja? Para mim isso era uma
fazenda Havia também o obituário:“Corretor de imóveis e fazendeiro” E Robert
fazenda. Havia também o obituário:Corretor de imóveis e fazendeiro . E Robert
tinha falado em carregar “grama” da fazendao caminhão.
Ainda assim, ele não havia fornecidodetalhes mais específicos. Afirmou ter tidoseis irmãos e irmãs. Lynn disse que havia oito
crianças na família, uma a mais. Robertmencionara um galpão sendo destruídonuma tempestade. Lynn não se lembrava de
nada parecido. O pai nunca tinha falado deuma irmã “má”. Não tinha nada a ver cotatuagens. Usava calças jeans e botas devaqueiro, mas isso era comum. Havia o fatode ele ter morrido logo antes de Robert
nascer, mas, sem dúvida, centenas de outrosfazendeiros também morreram.Comecei a pensar que teríamos que
considerar esse caso como “bola fora” Foientão que me lembrei de uma pergunta:
considerar esse caso como bola fora . Foientão que me lembrei de uma pergunta:
– Seu pai tinha algum sinal, alguma cicatrizno corpo?
– Ele tinha muitos fibromas que sempreprecisavam ser removidos, tumores fibróides.Pouco antes de morrer, papai teve que
remover um bem grande. Fiquei tenso. –onde foi isso? – perguntei.– Bem – disse ela. Colocou as mãos sobre o
alto da cabeça. No centro, ligeiramente àesquerda: o local exato do sinal maior deRobert. Ela olhou para mim e, depois, paraDebbie. Estava quase chorando.– Meu pai era um homem maravilhoso –
disse, emocionada. – Ele morreu aos oitenta esete anos de idade. Há quase seis anos eainda choro quando falo nele. Era u
omem tão doce, tão afetuoso com asmulheres Quando via uma mulher grávida
omem tão doce, tão afetuoso com asmulheres. Quando via uma mulher grávida,era sempre tão atencioso.
Lynn virou-se para Debbie:– Se houver qualquer parte do meu pai
guardada no seu filho, eu ficarei muito feliz.– Ela voltou-se para Robert, mas o rosto domenino estava enterrado nas costas da mãe.
Soluçava com força.Debbie tentou virá-lo, mas ele se agarrava aela desesperadamente.
– O que está acontecendo, Robert?Lynnagachou-se ao lado dele.Não precisa chorar,meu amor – disse ela. – Você nunca devesentir vergonha de nadaque disser. Pode me contar o que quiser. Vou
ter sempre vontade de ouvir. Eu costumodizer para as pessoas que um dia vou voltarcomo uma borboleta. Juro que acredito nisso.
Quando chegamos no automóvel, Robertestava sereno outra vez
p g p qem três continentes, concordando, selimites ou protestos, com o escrutínio do
trabalho ao qual dedicou toda a sua vida. Suabondade e cortesia refletiram-se em seus
associados, a Dra. Satwant Pasricha, na Índia,Majd Abu-Izedin, no Líbano, e o Dr. JiTucker, nos Estados unidos, assim como e
todos os que fazem parte da Divisão deEstudos de Personalidade, na Universidadede Virgínia, e que não pouparam esforços
para me prestar assistência.Devo uma profunda gratidão às inúmeraspessoas que leram o meu trabalho durante oprocesso de execução, oferecendo-mevaliosas opiniões e encora jamento,
especialmente Lisa Shroder, Joel Achenbach,David Fisher, Stephen Benz, Bill Rose e JohnDorschner.
Gostaria de agradecer ainda a BobTischenkel que chamou a minha atenção