-
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
Recepcin: 18 de mayo 2012. Aceptacin: 21 de agosto de 2012
ALgUNS PoNtoS dE INtERRogAo SobRE IdENtIdAdE(S) E tERRItRIo(S)
EM tARtESSoS
some questIons About IdentIty(Ies) And terrItory(Ies) In
tArtessos
PEDRO ALBUqUERqUE*
Resumo: Este trabalho pretende testar a relevncia dos con-ceitos
modernos de Identidade, Etnia, Mestiagem e Terri-trio na anlise do
registo arqueolgico e das fontes escri-tas gregas que referem
Tartessos entre os sculos VII e V a.C. Inicialmente, definem-se os
conceitos, bem como um questio-nrio centrado na comparao com a
poltica colonial portu-guesa em Angola e com a formao de Spirit
Provinces na re-gio de Cacheu (Guin-Bissau). Esta anlise permite
colocar vrias questes sobre os citados conceitos, enquadrando-os
numa interpretao metodologicamente mais crtica dos re-gistos
escrito e arqueolgico. Permite tambm ponderar, atra-vs da analogia
com os exemplos africanos, a existncia uma possvel desconstruo das
percees territoriais indgenas em prol de uma nova ideologia
dominante que edificou novos marcadores
territoriais.Palavras-chave: Identidade tnica; Territrio; Analogia
et-nogrfica; Spirit Province; Fontes escritas; Registo
arqueo-lgico; Tartessos.
Abstract: This work aims to test the relevance of the modern day
concepts of Identity, Ethnicity, Miscegenation and Ter-ritory in
the analysis of the Archaeology and of the Greek written sources,
which refer to Tartessus between the 7th-5th centuries BC. It
begins by defining the concepts and some questions based on a
comparative study involving Portu-gals colonial politics in Angola
and the construction of Spirit Provinces in the Cacheu region
(Guinea - Bissau). This anal-ysis ended up raising several
questions regarding the use of concepts in a methodologically
accurate interpretation of the data provided by the written and
archaeological sources, as well as questions (by analogy with
African examples) about the existence of a possible deconstruction
of indigenous terri-torial perceptions by a new dominant ideology
that constructs new territorial markers.Keywords: Ethnic Identity;
Miscegenation; Territory; Spirit Provinces; Written Sources;
Archaeological Sources; Tartessus.
1. INtRodUo
Partindo da anlise da documentao escrita e do registo
arqueolgico, este trabalho pretende colocar al-guns pontos de
interrogao sobre identidades e ter-ritrios em Tartessos. Sem perder
de vista o percurso historiogrfico do tema (entre outros, lvarez
2005,
2009), apresenta-se uma breve discusso sobre os con-ceitos
manejados, nomeadamente: Identidade (I), Et-nia/Grupo tnico,
Etnicidade (II), Mestiagem (III) e Territrio (IV).
Esta discusso faz parte de um trabalho mais amplo que incide
sobre a interpretao das necrpoles e dos santurios de origem ou
influncia oriental no Baixo Guadalquivir como marcadores
territoriais e, conse-quentemente, como elementos determinantes
para a construo, reconstruo e desconstruo de identi-dades. A
delimitao da rea de estudo, bem como da
* Universidade de Lisboa. Faculdade de Letras. 1600-214. Lis-boa
(Portugal). Correo-e: [email protected]
-
48 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
cronologia (c. sc. IX-VI a.C.) deve ser vista como um ponto de
partida para uma anlise mais alargada. deste modo que o trabalho
que agora se apresenta pre-tende definir algumas bases para a
colocao de per-guntas, mais do que para a obteno de respostas.
Para levar a efeito esta anlise, optou-se pela lei-tura crtica
da documentao escrita grega (scs. VII-V a.C.) com base nos
conceitos assinalados, por um lado, e em recentes contributos para
a Histria de frica, por outro. Estabelecendo alguns critrios de
leitura, estes dois campos de estudo revelam-se importantes para
uma proposta de anlise do registo arqueolgico.
Apesar de diferentes, as vertentes assinaladas apre-sentam
importantes pontos em comum e colocam os mesmos problemas. A
literatura grega (tal como a eu-ropeia sobre frica que lhe
posterior) produziu repre-sentaes que resultaram na construo de
entidades cujas caratersticas nem sempre so percetveis. Boa parte,
seno a totalidade, destas representaes, diz respeito a uma
realidade costeira ou das margens de um rio navegvel, deixando de
lado (por desconheci-mento ou por desinteresse) comunidades que
viviam no interior e que foram englobadas na mesma designao (Bhnen
1992: 45ss). Com a colonizao em frica, p.ej., registam-se casos
bvios de apropriao dessas categorias tnicas para o surgimento de
novas identi-dades (Amselle e MBokolo 1999, Moret 2004, Hen-riques
2004).
A anlise destes processos permite constatar, por um lado, que
existe um grande desfasamento entre a realidade do observador e a
realidade vivida ou sentida pelo observado. Por outro, que a
identidade um fen-meno que depende das circunstncias histricas e
so-ciais de um indivduo ou de uma comunidade.
neste sentido que devemos colocar a tnica na ter-minologia
utilizada para descrever comunidades huma-nas nos dois mbitos
literrios. Isso permite assinalar que os conceitos manejados na
anlise das chamadas Et-nias pr-romanas so mais herdeiros das
concees co-loniais europeias do sculo XIX do que, propriamente, da
terminologia grega ou mesmo latina. Uma anlise desta terminologia
permite matizar alguns apriorismos e, consequentemente,
extremamente til para uma aproximao aos critrios que presidem a uma
designa-o tnica. A um cenrio de unidade presente numa de-signao
sobrepe-se outro, marcado pela diversidade e, sobretudo, pela
permeabilidade mudana. Tal pers-petiva obriga a uma leitura crtica
das tradues das fontes escritas, sobretudo quando estas no permitem
verificar o alcance do termo original, como veremos (cf. Heintze
2007: 126-128).
Outro dos aspetos que podem ser alvo de discus-so o impacte da
presena colonial em frica, mais concretamente na atual Angola. Este
caso interessante pelo facto de permitir colocar algumas questes
sobre a noo de Territrio (e dos seus marcadores) como es-pao
manipulado pelo Ser Humano e como elemento de relao com a natureza
e com outras comunidades. A presena colonial portuguesa implicou o
desmante-lamento de algumas estruturas que organizavam,
con-solidavam e mantinham as identidades dos grupos humanos que a
habitavam. Teremos oportunidade de assinalar os mecanismos
desenvolvidos pelas comuni-dades residentes na adaptao a novas
circunstncias histricas e polticas, bem como a materializao des-tes
processos.
Esta perspetiva destaca o papel das necrpoles e dos santurios
como elementos determinantes na constru-o de identidades, como
mecanismos de transmisso da histria de um grupo humano e como
smbolos da presena e/ ou domnio de um grupo. por este mo-tivo que a
definio de Spirit Province, defendida por E. Crowley (1993), pode
ser til como ferramenta de anlise para processos de imposio de uma
ideologia dominante, sem que isso comprometa a diversidade de
identidades em cenrios de contacto e em espaos onde convivem grupos
de origens muito variadas.
2. IdENtIdAdE
Em termos gerais, a identidade um aspeto do com-portamento
determinado por uma relao de afirma-o (identificao) ou negao
(identizao) que o Ser Humano estabelece consigo mesmo e com os
outros (Knapp 2008: 32). Dependendo da alteridade e,
con-sequentemente, de uma representao justificada pelo contacto, a
identidade pode ser egorreconhecida ou al-teroadscrita (Tern 2002:
46). Afirmao e negao so dois elementos que se alimentam
reciprocamente e, como tal, esto sujeitos a transformaes consoante
as exigncias das circunstncias histricas, sociais, polti-cas ou
econmicas de uma sociedade (Hernando 2002, Lalanda 2005).
Podendo tambm tratar-se de uma estratgia de so-brevivncia e
integrao, a identidade acompanha o in-divduo num processo constante
de imitao ou mimesis que lhe confere originalidade (Potolsky 2006:
115ss.). Como tal, uma personalidade individual ou coletiva
es-tabelece critrios que a identificam e diferenciam de outras,
criando com isto um filtro para a construo e reconhecimento de
sentimentos de pertena ou de
-
49ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
no-pertena que s fazem sentido quando esto sujei-tos a uma
circunstncia determinada (Knapp 2008: 32). A identidade surge tambm
como consequncia de re-laes entre dominadores e dominados, fazendo
com que possa ser um fenmeno histrico ou um rapport de forces
(Amselle 1990: 54ss., Ruby 2006: 65). Em 1997, P. Jenkins prope um
modelo scio-antropol-gico da etnicidade, equilibrando o pensamento
de M. Weber sobre a diferena sentida, de G.H. Mead sobre a construo
do Eu social e de F. Barth sobre a orga-nizao social das diferenas
tnicas(segundo Tern 2002, Hernando 2002: 50ss.).
Permita-se-me apresentar um exemplo: a identidade dos
Portugueses na Literatura afirmada atravs da ne-gao do Castelhano
quando se tratava de garantir a independncia (Albuquerque 2008,
Knapp 2008: 32, Sousa e Santos 2010). Esta relao de negao deixava
de fazer sentido a partir do momento em que o inimigo era o
Muulmano, assistindo-se a uma unio baseada no critrio da religio
(Cristos). Do mesmo modo, o termo sincretismo () assinala a unio de
dois cretenses contra um terceiro (Plu., Moralia 490b).
tambm no cenrio da guerra contra os Persas que surge a
identidade grega (Cardete 2004: 19ss., com bi-bliografia), uma vez
que a presena de uma entidade exterior criou as condies necessrias
para a constru-o de uma unio de vrios grupos em torno de uma
de-signao comum. Estes esto, claramente, expostos por Herdoto
(7.144.2) quando apresenta alguns critrios que estruturam esta
unidade (v. Hdt. 1.142-148). A uma ideia de consanguinidade
acrescenta-se uma unidade ao nvel da lngua. Os usos e costumes
daqueles que inte-gram este grupo alargado so similares, mas no
ne-cessariamente os mesmos. Para alm disso, Herdoto assinala uma
comunidade de santurios e de sacrif-cios aos deuses. Apesar de o
nome Grego (definidor de um conjunto de grupos diferentes entre si)
colocar alguns problemas (Cardete 2004: 20-24), as invases persas
sustentaram, em boa medida, esta afirmao, confirmando a ideia,
anteriormente exposta, de que a identidade um processo que resulta
de uma represen-tao. Ou seja, a alteridade que confere sentido a
uma autoafirmao, resultando da a polarizao Gregos/ Brbaros ( ) que
Her-doto apresenta no prlogo da sua obra (sobre o conceito de
Brbaro, cf. Dubuisson 2001).
Estes exemplos permitem destacar a importncia da linguagem na
construo dos nomes (nome prprio, dos pais, famlia, cidade, regio)
que estruturam a iden-tidade de uma personalidade individual e
coletiva (Am-selle 1990: 65), como resultado da interao de
vrios
fatores que a individualizam e que determinam a auto e a
heteroperceo (Dias 1999, Garca 2009). Ou seja, um nome exprime um
significado, o que se aplica, p.ej., toponmia (cf. Sanmartn 1994).
Permitem tambm assinalar que a construo do Outro assenta sobre os
critrios que o Eu utiliza na sua autoperceo (lngua, rituais,
sacrifcios, alimentao, sistemas sociais, posi-o social, etc.) e que
nem sempre requerem um an-tepassado comum (cf. Escacena 1992,
Bourdieu 2011: 57ss., Od. 8.572-576, Hdt. 8.144.2, Th. 1.8.1).
Estes breves apontamentos so importantes para afirmar que a
identidade , essencialmente, um fen-meno histrico cujas
transformaes nem sempre so percetveis. Consequentemente, torna-se
claro que uma perspetiva essencialista insuficiente para expli-car
a complexidade desta questo, no s em termos individuais, mas tambm
em termos coletivos. Uma vez que o alvo desta contribuio Tartessos,
penso que pertinente desenvolver alguns aspetos das iden-tidades
tnicas.
3. EtNIA/gRUPo tNIco
Para Garca Martnez (2004: 141),
[...] la etnicidad no es slo un asunto del tipo de la
auto-identidad que siente la gente, sino tambin el tipo de
identidad social atribuida por los otros. As sucede en ocasiones
que las mayoras no suelen atri-buirse tales rasgos, pero los
proyectan en las mino-ras, que seran las nicas poseedoras de
etnicidad, con lo que habitualmente los miembros de los grupos
dominantes se olvidan de considerarse a s mismos como un grupo
tnico.
O uso atual do conceito de Etnia ou Grupo tnico reveste-se de
alguma controvrsia pelo facto de nascer em contextos coloniais,
como oposio ao conceito de Nao. Este primeiro aspeto conduz a uma
necessidade de rever alguns princpios que esto na base da sua
ela-borao, ao mesmo tempo que contrastando o seu con-tedo com o de
na lngua grega. Atendendo s ocasies em que Etnia descreve um grupo
humano, ve-rificamos que se aplica a um grupo minoritrio (p.ej.,
etnia cigana) ou a grupos que entram em conflito dentro de um mesmo
Estado (em pases africanos). Talvez por este motivo, (ethnos)
raramente traduzido por etnia, o que tambm se justifica pelo facto
de o termo grego no ter o contedo racial que reveste o conceito a
partir do sc. XIX (Cabanes 2005: 850, Amselle e MBokolo 1999).
-
50 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
Neste contexto, importa dar um especial destaque a algumas
ocasies em que (= .) surge na litera-tura grega, comeando pelos
Poemas Homricos. Nes-tes, aplica-se aos mortos (. : Od. X, 525),
aves (. : Il. 2.459), abelhas (. : Il. 2.87), homens/ companheiros
(. : Il. 3.32; 7.115; 11.595, etc.), grupos humanos alargados (p.e
Aqueus/ . : Il. 17.552), etc., num sentido de multiplicidade,
grupo, comunidade ou conjunto sem uma conotao cul-tural,
traduzindo-se por raa, tribo, etc. (cf. Cardete 2004). Alis, a
prpria designao do . integra as vrias comunidades individualizadas
que so assina-ladas no Canto II da Ilada.
Este sentido de conjunto est tambm presente na obra de Herdoto,
mas neste caso refere-se, exclusi-vamente, a grupos humanos (cf.
Powell 1938: 98-99). O seu discurso, como aponta C.P. Jones (1996:
315), no costuma tratar com detalhe os conceitos que uti-liza,
provocando no leitor atual alguma confuso relati-vamente ao
significado de termos como e . Apontemos alguns exemplos.
Herdoto apresenta Creso como rei dos Ldios e de outros povos ( )
em 1.53.2, deixando entrever que . nem sempre est associado a uma
comunidade especfica e que pode ter uma conotao de aliana poltica
(Cruz 2010: 20). Por este motivo, traduzido por otras na-ciones (C.
Schrader). Esta situao repete-se ao longo do texto herodotiano
(1.69.1- 2, 171.3, 177, etc., cf. Po-well 1938). O mesmo ocorre com
a representao de outras comunidades (p.ej. .: 1.57.3; .: 1.172.1;
.: 4.99.3, etc.), independentemente de estas serem gregas ( :
1.56.2) ou br-baras ( : 1.58). Esta variedade parece colocar
algumas dificuldades de traduo (p.ej. , tribo em 4.71.1 e 171, e
povo em 4.197.2). Neste ltimo caso, trata-se de uma referncia aos
povos autctones (Lbios e Etopes) e estrangeiros (Fencios e Gregos)
na Lbia, em que (Gregos) um termo gen-rico independente da origem
dos colonos. No primeiro, tomando como exemplo a traduo de C.
Schrader, o termo traduzido por tribo e povo na mesma pas-sagem.
Acrescenta-se ainda o uso de termos compostos como (i.e., do mesmo
povo) numa oca-sio (1.91.5).
Por outro lado, o termo (gnos, = .) parece designar em Herdoto
grupos unidos por consanguini-dade, da a sua relao com nascimento,
linhagem, famlia, estirpe, ascendncia/descendncia e, eventualmente,
com raa ou Nao (Chantraine 1968: s.v. ). O autor apresenta o .
lacedemnio
como de origem drica ( ) e o ateniense como de origem inica ([]
) em I, 56.2. A este respeito, M.C. Cardete (2004: 18) comenta que
este sentimento de identidade, transmitido pelo termo , en
ocasiones se confunde con el genos, enten-dido tambin en un sentido
muy amplio tanto como el mecanismo por el que uno accede a una
identidad que como el grupo que la proporciona. Herdoto, por
ejemplo, utiliza ambas palabras para referirse a rea-lidades
idnticas. Exemplo disso a referncia aos Citas como e como
(4.46.1-2). Nestes ca-sos, . designa uma entidade que integra vrios
po-vos unidos por um antepassado comum (p.ej., 1.143.2; 4.46.2;
5.91.1; 7.185.2), bem como espcies de animais (1.159.3; 3.113.1;
4.29, Jones 1996: 315ss.).
Para alm disso, em 5.2.2, Herdoto faz uma distin-o (pouco
frequente na sua obra) entre e , referindo-se s campanhas de
Megbaso, que submeteu autoridade de Creso todas as cidades e todos
os povos ( ) da Trcia (cf., igualmente, 6.27.1; Arist., Pol.
2.2/1261a; 3.19/1284a). Os trcios, segundo o autor (Hdt. 5.3.1), so
o segundo povo mais numeroso da terra e so apresentados como um sem
unidade poltica que se divide em vrias tribos.
Os exemplos assinalados permitem verificar que um termo que
adquire vrios sentidos. A sua aplicao nestes contextos aconselha a
ter alguma cau-tela, na medida em que no exclui cenrios de
diver-sidade. Adiantando parte das reflexes gerais deste trabalho,
o sentido do conceito grego, quando aplicado ao Tartssio, pode
refletir realidades muito di-versificadas, com contornos que variam
ao longo dos tempos (cf. lvarez 2009).
Apesar de se manter um sentido de grupo humano ou, se
preferirmos, de um conjunto de indivduos uni-dos em torno de um
sentimento de pertena e, que atra-vs dele, se individualizam face a
outro (cf. Gonalves e Barata 1999: 1311, Hillmann 2001: 330-331), o
uso cientfico de Etnia resulta de um processo que pode e deve ser
questionado no seu alcance ideolgico. A cr-tica nasce das
retrospetivas africanizadas, que desta-caram o uso atual do termo
como um produto do racismo europeu do sc. XIX (Amselle e MBokolo
1999, Mo-ret 2004, Ruby 2006, Fernndez 2009), a tal ponto que Etnia
ou Grupo tnico podem ser sinnimos de Raa (Bernal 1993: 115- 116,
Gaulmier 1981), no obstante a gradual perda de importncia do ltimo.
Por outras pa-lavras, pode entender-se o conceito de Etnia como
[...] communaut de langue, de coutumes, de va-leurs et souvent,
mais pas ncessairement, de cultes;
-
51ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
implantation dans un espace ou un territoire dfini ; conscience
dappartenir un mme groupe (ce qui implique, le plus souvent, la
revendication dune anctre commun ou pour le moins dune affinit de
sang) ; existence dun nom dsignant de ce groupe (Moret 2004:
34).
Atendendo ao panorama da obra de Herdoto, possvel assinalar a
grande variabilidade destes senti-mentos de pertena em torno da
lngua, dos costumes, dos valores ou mesmo dos cultos (cf.
infra)
Os conceitos de Raa e Etnia comearam a ser utilizados a partir
do sculo XIX, substituindo termos como Reino, Nao e Regio, que
faziam parte dos relatos de viagem anteriores (Amselle e MBokolo
1999: 70ss.). A organizao dos territrios coloniais acabou por
justificar a ascenso de uma terminologia que marcava uma diferena
entre o selvagem e o ci-vilizado, ao mesmo tempo que exprimia o
desmante-lamento das estruturas polticas anteriores, com uma cada
vez maior compartimentao dos reinos africanos (Amselle 1987:
469).
Esta situao conduz a um exemplo que deve ser destacado: a
elaborao dos mapas tnicos em frica segundo os critrios do poder
colonial. Estes, em l-tima anlise, refletem o modo de pensar do
colono e nem sempre as estratgias de individualizao das
co-munidades representadas, o que alis visvel na ela-borao da obra
As Raas do Imprio, de Mendes Correia e nas dificuldades que os
observadores sen-tiram na definio de critrios de individualizao,
fundamentais na elaborao destes mapas tnicos (Estermann 1983:
17ss., Amselle 1987, Henriques 2004: 72-3). A ttulo de exemplo, o
Atlas de Portugal Ultramarino, publicado em 1948, baseou-se na
diviso lingustica e esta, em muitos casos, no fazia qualquer
sentido (Esterman 1983: 17). Do mesmo modo, outros critrios
produziriam mapas diferentes, transmitindo uma ideia de unidade
cultural que nem sempre corres-ponde aos mecanismos de identificao
das comunida-des representadas.
Assim, nas palavras de R. Batty (2000: 92), ...one cannot use a
subway map in the same way as an Atlas. The former tells you how to
get somewhere. The latter tells you how to think about, locate and
separate hu-man communities. It embodies a way of thinking.
A anlise dos exemplos africanos constitui, deste modo, um
desafio s nossas percees e, consequente-mente, ao alcance dos
critrios que utilizamos para de-finir os limites de Tartessos.
quer isto dizer que nem sempre possvel deter-minar quais as
senhas de identidade utilizadas por um
grupo para se individualizar perante outro (Jones 1997: 74,
Knapp 2008: 37), sobretudo quando as circunstn-cias dos contactos
so pouco ou nada conhecidas. Por outras palavras, h que determinar
qual o tipo de rela-o que as comunidades tm entre si para verificar
se h, ou no, necessidade de desenvolver uma estratgia de
individualizao e quais os critrios para lev-la a efeito. Por outro
lado, h que considerar a discusso em torno da gnese de um
sentimento/relao de pertena (Wulff 2005) e a elaborao de modelos
que procuram explicar a Etnicidade (le caractre ou la qualit dun
group ethnique, segundo P. Ruby 2006: 32, 39-40, cf. Jones 1997:
56ss., Bentley 1997: 26, Tern 2002: 47.3, Cardete 2004: 19, Knapp
2008: 36-37, Fernn-dez 2009: 190).
Esta questo conduz a outra no menos importante: a formao dos
nomes de grupo. Uma mesma comu-nidade pode ter quatro (ou mais)
nomes diferentes: o nome com o qual o grupo se designa a si mesmo;
o nome dado pelos vizinhos; o nome dado por um obser-vador externo
em relao a 1 e 2 (viajante, colonizador, etc.) e, finalmente, o
nome que transmitido pelos in-formadores deste ltimo (Crowley 1993:
280-284). As-sim, o nome pelo qual conhecemos uma comunidade nem
sempre reconhecido ou utilizado por esta, como parece ser o caso
dos Bosqumanes, etnnimo criado pelos colonos Holandeses do Cabo
(Bosjesmannen; ing. Bushmen) para designar um grupo de homens da
floresta (Estermann 1983: 35); esta designao, note-se, baseia-se na
observao de uma diferena.
Esta ideia deve, porm, ser matizada, uma vez que, tanto no caso
africano como no caso das populaes mencionadas durante o domnio
romano, assinala-se, dune part, lmergence ou la consolidation des
eth-nies comme consquence de lentreprise coloniale; dautre part, la
rappropriation par les populations in-dignes elles-mmes des
catgories ethniques imposes depuis lextrieur (Moret 2004: 35, Garca
2007: 124-125). Noutros casos, assiste-se tambm a processos de
desidentificao (Crowley 1993: 284).
A ideia de unidade cultural acaba por estar pre-sente na
elaborao destes mapas e nas perspetivas de anlise do registo
arqueolgico. Esta ideia refletiu-se no critrio da materialidade
como mecanismo de reconstru-o paleoetnolgica (Ruby 2006, Niculescu
1997-1998; Jones 2008: 321, Fernndez 2009), partindo do princ-pio
de que uma cultura material equivale a um povo. Esta perspetiva
tipolgico-comparativa parece estar pa-tente em Tucdides (1.8.1)
quando refere os enterramen-tos dos Crios (cf. Ruby 2006: 28-29) no
contexto da purificao de Delos por Pisstrato (Hdt. 1.64). Neste
-
52 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
sentido, criou-se tambm a ideia de que os rituais fu-nerrios
eram marcadores tnicos estveis (Niculescu 1997-1998: 203-204).
Tartessos, como teremos oportunidade de ver, um nome que no
apresenta grande unidade de sentidos na documentao escrita. A
polarizao de entidades (Indgenas/Tartssios e Fencios) pode no fazer
sen-tido quando a comparamos com o conceito de na lngua grega. A
identificao de um etnnimo num documento escrito grego no implica
que o grupo re-presentado tenha uma unidade cultural ou lingustica
ou que seja puro ao ponto de justificar uma polariza-o rgida. por
este motivo que podemos abordar, de forma breve, a questo da
mestiagem.
4. MEStIAgEM
Ao descrever os Inios, Herdoto afirma que
[...] desde luego es una solemne estupidez pre-tender que stos
son ms jonios que los dems jo-nios o de ms noble origen, dado que,
entre ellos, hay un ncleo no despreciable de abantes de Eubea, que
nada en comn tienen con Jonia, ni siquiera el nom-bre; tambin hay
mezclados con ellos minias orcome-nios, cadmeos, dropes, focenses
disidentes, molosos, rcades pelasgos, dorios epidaurios y otros
muchos pueblos [...] (1.146.1; Trad. C. Schrader).
Nesta descrio (1.142ss.), o autor assinala que um , no sentido
geral, pode ter dentro de si ou-tros , bem como uma ideia de
mistura que acaba por estar presente na terminologia grega
(Dubuisson 1982). Mais adiante, apresenta o exemplo dos Budi-nos:
no territrio deste ter-se-o estabelecido gregos oriundos dos
emprios martimos do Ponto Eu-xino, fundando a cidade de Gelono e
estabelecendo a santurios consagrados a deuses gregos, com altares
e imagens de modelo igualmente grego. Herdoto re-gista, porm, uma
diferena em relao a arquitetura, uma vez que os santurios so
construdos em madeira, semelhana dos Budinos. Apesar de se manter
uma certa identidade grega, os habitantes de Gelono falam uma lngua
meio cita, meio grega (4.198) e esto in-tegrados no dos
Budinos.
O exemplo dos cipriotas parece ser tambm ilustra-tivo: [...]
segn el testimonio de los propios chipriotas, entre ellos hay
elementos tnicos procedentes de todos estos pases: de Salamina y
Atenas, de Arcadia, de Cit-nos, de Fencia y de Etiopa (Hdt. 7. 90).
Como pode-mos ver, estes grupos de outsiders so integrados numa
mesma designao numa determinada ocasio, po-dendo abandon-la em
prol de uma identificao mais conveniente para os seus interesses
(Crowley 1993: 284-285). O caso dos Luso-africanos tambm
expres-sivo neste sentido, uma vez que nesta designao inte-gram-se
indivduos de origens (locais e externas) muito diversificadas
(Horta 2009: passim).
Esta ideia de mistura entendida, em parte, pelo termo mestiagem
(ou mestio), que pressupe a defini-o de dois elementos, entendidos
como antagnicos, que se misturam (Twisselmann 1971). O termo mestio
(ou misto) referia-se, primeiramente, a uma opo poltica, designando
grupos de Cristos que se uniram aos Muul-manos na luta contra o rei
Rodrigo (Bernand, apud Gru-zinski 1999: 36-37 e n. 11). Deriva do
latim mixtu, i.e., misturado. Este termo, por sua vez, deriva do
grego - ou - (p.ej., de Plb. 1.67.7 e de Pl., Mx. 245d; X., HG II,
1.15; E., Ph., 138).
O Novo Dicionrio da Lngua Portuguesa assinala, precisamente, o
sentido biolgico desta terminologia: (a) mestiagem: 1. Cruzamento
de raas diferentes. 2. Reproduo de mestios entre si; (b) mestiar:
cruzar etnias diferentes ou indivduos da mesma et-nia com os de
outra, gerando mestios; (c) mestio: aquele que tem pais de etnias
diferentes entre si.
Esta questo mereceu ateno em estudos sobre o papel da hibridao
ou dos matrimnios mistos na cria-o de novas realidades culturais na
Amrica. Estes processos irreversveis, ideolgica e tecnologicamente,
mudaram por completo a relao das comunidades au-tctones com o
ambiente que as rodeava, provocando uma europeizao dos Americanos e
a americani-zao dos Europeus (Gruzinski e Bernand 2007: 617). Estas
transformaes realizam-se selon les rythmes et des chronologies qui
saccordent mal notre vision linaire de lhistoire (ibid.: 618).
Embora este tema no possa ser desenvolvido com maior detalhe,
gostaria de assinalar um aspeto que tem implicaes na leitura do
registo arqueolgico: de acordo com a leitura de S. Gruzinski e C.
Bernand (2007: 622),
La gnralisation des mtissages accoutume les individus et les
groupes les plus exposs a circuler entre les cultures et ls modes
de vie. Ces va-et-vient dveloppent une sensibilit culturelle la
diffrence, une aptitude varier les registres, tout comme ils
sti-mulent la capacit mler ou a multiplier les mas-ques et les
appartenances.
Estas situaes podem provocar aquilo que os autores apelidam de
mobilidade de identidades
-
53ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
(cf. Horta 2009), tornando difcil adquirir uma viso
suficientemente clara do modo como essas diferenas so percebidas
nas sociedades que procuramos anali-sar e como elas do origem a
novos processos, novas ideias, etc. (Arruda 2010).
Entendido como un passage de lhomogne et lhtrogne, du singulier
au pluriel, de lordre au di-sorde (Gruzinski 1999: 36), a mestiagem
pode apli-car-se s vertentes biolgica e cultural do Ser Humano,
respondendo a uma noo de pureza que justifica um hbito intelectual
polarizante que deve ser matizado. Neste sentido, alguns trabalhos
importantes colocaram o acento tnico na mestiagem como ferramenta
para a explicao de determinados processos de transforma-o (Gonzlez
1989: 159ss., Bandera e Ferrer 1995). Este hbito intelectual
polarizante foi duramente criti-cado por J.L. Amselle (1990: 9),
que, num importante estudo sobre os chefados Peul, Bambara e Malink
(SW do Mali e NW da Guin) apresenta uma alternativa que consiste
numa aproximao continuiste qui linverse mettrait laccent sur
lindistinction ou le syncrtisme originaire (Amselle 1990: 9-10).
Outras perspetivas, como a de F. Laplantine e A. Nouss, devem tambm
ser assinaladas: le mtissage est une composition dont les
composantes gardent leur integrit e le mtissage nest pas la fusion,
la cohsion, losmose, mais la con-frontation et le dialogue (apud
Gruzinski 1999: 38).
Considerando o syncrtisme originaire de Am-selle, qualquer
sociedade (ou qualquer indivduo), num determinado momento, o
resultado de vrias influn-cias que produzem o resultado original
que sustenta a identificao ou a identizao. Deste modo, im-porta
perceber a Cultura como um ensemble de pra-tiques internes ou
externes un espace social donne que les acteurs sociaux mobilisent
en fonction de telle ou telle conjoncture politique (Amselle 1990:
13). A conjuntura poltica e social, vlida num determinado momento,
pode desencadear a oposio entre duas en-tidades (p.ej., colonos e
indgenas) que se excluem mutuamente, embora possam revelar sinais
de inter-penetrao, convergncia e at mesmo identificao (Gruzinski
1999: 39-40).
quer isto dizer que a mestiagem vai muito mais alm de uma fuso
no sentido biolgico do termo, podendo ser abordada como um fenmeno
de confron-tao, dilogo, adaptao ou apropriao (Gruzinski 1999: 38)
que incide sobre o patrimnio imaterial de uma sociedade, produzindo
novas identidades. No po-demos tambm ignorar o papel dos matrimnios
no es-tabelecimento de alianas polticas e na transmisso de
informaes (p.ej., 1Rs., 16, 29-33; Sil. 3.97-107). Um
indivduo pode representar a confluncia de dois modos de vida
distintos, fazendo com que exista uma neces-sria interpenetrao de
culturas nas linhagens de in-dgenas e orientais, a tal ponto que, a
longo prazo, se torna difcil distinguir, arqueologicamente, uns de
ou-tros (Arruda 2010: 443ss.).
Apesar do interesse desta perspetiva, a imposio de uma ideologia
dominante um tema que importa destacar, tanto mais que permite uma
aproximao a processos de violncia que podem caraterizar as rela-es
sociais. Estes processos so percetveis, p.ej., na construo social
do territrio.
5. tERRItRIo E SPIRIT PROVINCE
De acordo com I. Castro Henriques (2004: 20), o Territrio
[...] o espao necessrio instalao das estru-turas e das
colectividades inventadas pelos homens, sendo tambm indispensvel
criao, manuteno e reforo da identidade. [...] sempre
simultanea-mente o invlucro [...] e o suporte fsico, espiritual e
identitrio das sociedades e das suas relaes com as naturezas e os
outros.
Esta definio surge no mbito de um trabalho so-bre a construo de
identidades na Angola colonial, no contexto de um processo histrico
que dar origem a um pas independente. O exemplo de Angola, como
ve-remos, permite definir um questionrio importante para o estudo
da presena fencia na Pennsula Ibrica e das suas relaes com as
comunidades residentes.
A cartografia, atravs da qual concebemos o espao, apenas uma
entre vrias formas possveis de repre-sentao ou abstrao (um exemplo
nOs Lusadas, de Cames, em Albuquerque 2008: 153ss.). Atendendo a
este aspeto, a existncia de marcadores territoriais tambm uma forma
de conceber e apreender o espao, o mundo habitado e a fronteira
entre o territrio do Eu e o territrio do Outro. A organizao
simblica e so-cial do territrio materializa-se na construo de
mar-cadores que exprimem a histria e a identidade de uma comunidade
(p.ej. Nordman 2005, Black 1997: 239); podem, consoante as relaes
intercomunitrias, de-sempenhar a funo de marcadores de fronteiras
(cf. Castro e Gonzlez 1989: 10ss., Henriques 2004, Gar-ca 2007).
Inevitavelmente, a construo social de um territrio etnocntrica e
responde a vrias finalidades consoante a circunstncia histrica em
que se inscreve (Black 1997: 239-240). Este comentrio
estende-se
-
54 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
organizao do discurso geogrfico (p.ej. Batty 2000: 88-89). Creio
que este discurso exprime uma relao histrica e identitria com o
mundo habitado e, con-sequentemente, com um territrio concreto (cf.
Henri-ques 2004).
Como smbolos da histria de um grupo humano, os marcadores
territoriais esto frequentemente asso-ciados a relatos de fundao.
Estes, por seu turno, so um ponto de partida til para a anlise das
relaes so-ciais criadas a partir do momento em que uma nova
entidade (p.ej., os fundadores de Gadir) ocupa um ter-ritrio,
simbolizando a sua presena com um espao de culto e uma cidade.
Nesta perspetiva, o colonizador aquele que, num determinado perodo
de tempo, no tem os seus mortos enterrados nesse territrio, o que
obriga construo de uma nova histria a partir da qual fabrica a sua
identidade e legitima a sua presena. Creio que, nesse sentido,
Melqart desempenha uma funo fundamental como antepassado que, em
tempos remotos, teria estado naquele lugar no contexto de um ciclo
de destruio de seres ctnicos.
Estes processos trazem consigo novas percees e estratgias de
ocupao/ explorao do territrio, conduzindo muitas vezes ao choque de
interesses en-tre as entidades envolvidas (Moreno 1999, Gonzlez
2005, Henriques 2004, Albuquerque 2010: 53, n. 83). Abordando deste
modo a implantao de necrpoles, espaos de culto e habitacionais, bem
como a sacrali-zao de espaos naturais (rios, colinas, etc.),
poss-vel propor um modelo de anlise que permite explicar processos
de transformao no seio das comunidades residentes.
neste sentido que podemos colocar um acento t-nico na construo
da Angola colonial. Antes do incio deste processo, o territrio era
ocupado por comunida-des com percursos histricos complementares que
o organizavam segundo as suas prprias lgicas civili-zacionais
(Henriques 2004: 9-10). Essa organizao passava por uma complexa
rede de marcadores territo-riais que garantiam a coeso identitria
dessas comuni-dades (Henriques 2004: 53-66). Apercebendo-se disso,
o agente colonizador optou por desmantelar, progres-siva e
violentamente, essas estruturas para impor o seu sistema de
organizao poltica e econmica do territ-rio. Esta atitude foi
fundamental para o exerccio (in)di-reto do poder colonial (cf.
Amselle 1999: 153ss.).
Aspetos como a posse de terra e os marcadores ter-ritoriais que
recordavam heris fundadores (rvores sagradas, necrpoles, etc.) e
assinalavam fronteiras e caminhos, acabaram por ser desmantelados e
destru-dos. Para o colono, a terra um valor alienvel; para o
colonizado, um elemento sagrado que condiciona a vida comunitria
e os seus rituais: a terra habitada e gerida por foras religiosas,
estabelecendo-se com ela uma relao simblica indispensvel criao,
manu-teno e reforo da identidade (Henriques 2004: 20) e da sua
histria.
Isto resultou, por um lado, no choque entre concei-tos
antagnicos (usos sociais e religiosos, ocupao/ organizao/ controlo
do espao, marcadores simbli-cos que identificam o territrio, etc.)
e, por outro, numa reao (no lado indgena) no sentido de garantir a
so-brevivncia de alguns esquemas ancestrais, ao mesmo tempo que
procurava reforar a sua autonomia atravs da adaptao de elementos de
origem colonial s es-truturas preexistentes. Este processo
indissocivel de algumas elites locais que, em determinadas ocasies,
defenderam o estatuto inferior do Negro, definido pela entidade
colonizadora, para reforar o seu poder. Se-gundo I.C. Henriques
(2004: 83-87), registou-se uma apropriao de sistemas
comportamentais e ideol-gicos (obteno de lucro e aquisio/ acumulao
de riquezas, concorrncia, etc.), tcnicos (agricultura, ar-tesanato
e arquitetura) e simblicos (representao do mundo), bem como a
escrita e a esttica do corpo (ves-turio, recusa da nudez e de
outros elementos externos ao corpo como, p.ej., tatuagens).
A materializao deste processo permite questio-nar at que ponto
as transformaes que so assinala-das no contexto indgena peninsular
na I Idade do Ferro podem refletir reaes adaptativas resultantes
dos no-vos modelos impostos pelas comunidades orientais e da
referida necessidade de escrever uma nova histria num territrio.
Neste sentido, podemos assinalar pos-sveis processos de
dessacralizao ou ressacraliza-o de um territrio.
O epiddio da purificao de Delos parece assina-lar a importncia
de uma necrpole como marcador territorial e smbolo de uma
identidade de grupo (Th. 1.8.1; Hdt. 1.64.2) e permite uma comparao
interes-sante com o desmantelamento dos marcadores em An-gola. Do
mesmo modo, o Antigo Testamento assinala processos similares
(p.ej., 2Rs. 23; Dt. 12, 1-3) de des-truio de smbolos associados a
uma comunidade com o intuito de apagar a sua memria num determinado
es-pao. O mesmo pode ser dito em relao aos santurios, que em muitos
casos simbolizam um episdio hist-rico, implantando-se em lugares
previamente ocupados (p.ej. Caura: Escacena 2001).
Estes processos acabam por conduzir elaborao de mecanismos de
integrao e excluso ou, se preferir-mos, de fronteiras sociais
(Garca Fernndez 2007).
-
55ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
A implantao de estruturas que simbolizam o dom-nio de um grupo
sobre os outros um tema fulcral para a construo de Spirit
Provinces. Este conceito, desen-volvido por Eve Crowley (1993:
215ss.) num estudo so-bre a regio de Cachu (Guin- Bissau),
aplica-se a um territrio composto por comunidades diferentes que se
unem em torno de uma ideologia dominante. Apesar de no pressupor a
existncia de uma estrutura poltica cen-tralizada, uma SP cria
mecanismos que a diferencia de outras, integrando indivduos de
origens muito diversi-ficadas num mesmo sentimento de pertena: each
spi-rit province became a local frontier, with an unusually fluid
and mobile social organization capable of acco-modating outsiders
in a variety of ways (ibid.: 223).
No obstante as necessrias matizaes deste con-ceito quando
aplicado ao registo arqueolgico da Pe-nnsula Ibrica, a sua
utilidade reside no facto de permitir uma anlise que valorize a
diversidade, sobre-tudo quando parece evidente que a expanso
oriental era composta por grupos oriundos de vrios quadran-tes do
Mediterrneo e no somente de Tiro (cf. Beln e Escacena 1995: 68-69,
Gonzlez 1989: 144, 2000), apesar do vnculo estabelecido com a
cidade de origem (Str. 3.5.5; Bordreuil e Ferjaoui 1988; Lpez
2004). Para alm disso, a implantao de marcadores territo-riais como
os santurios um aspeto que pode, e deve, ser valorizado na anlise
dos referidos processos de orientalizao das comunidades residentes
e de oci-dentalizao dos orientais (Escacena 2011). Creio que um dos
sintomas mais evidentes de adaptao a novas realidades a variedade
das manifestaes de Astart ao longo do Mediterrneo (Bonnet 2010). Em
todo o caso, a construo de uma Spirit Province permite uma integrao
e um domnio eficazes quando centralizada num santurio.
6. bALANo E PERSPEtIvAS
Atendendo ao exemplo de Angola, as transforma-es das comunidades
residentes podem ser analisadas numa perspetiva arqueolgica,
sobretudo quando se se-gue o critrio da visibilidade dessas
manifestaes ma-teriais (p.ej., Henriques 2004, Knapp 2008: 34-35).
A arquitetura, os rituais, um tipo de vesturio ou adorno, etc., s
so elementos de afirmao identitria quando se destinam a ser visveis
perante a comunidade ou pe-rante outras, e podem no desempenhar as
mesmas fun-es nos stios onde so identificados. Numa passagem de
Herdoto possvel identificar um exemplo de ob-jeto que utilizado
para afirmar a identidade de um
grupo (IV,3.4): os chicotes dos cavalos, fundamentais para
identificar os senhores perante os seus escravos:
[...] En las presentes circunstancias soy de la opinin de dejar
a un lado picas y arcos, y de mar-char a su encuentro provistos
cada uno de nosotros del ltigo de su caballo. Pues, mientras nos
veran con las armas en la mano, crean ser iguales a noso-tros y de
nuestra misma alcurnia; pero, cuando nos vean con ltigos en lugar
de armas, comprendern que son nuestros esclavos y, en ese
convencimiento, dejarn de ofrecer resistencia (trad. C.
Schrader)
Do mesmo modo, os objetos descritos nos Poemas Homricos podem
estar associados imagem do he-ri e das suas extraordinrias
riquezas. Acrescentado os exemplos de Dt. 12, 1-3 e 2Rs. 23, os
santurios, os al-tares e as necrpoles so elementos visveis da
identi-dade de um determinado grupo, o que justifica a sua
destruio.
A identidade, como construo social em perma-nente manipulao,
resulta de circunstncias histricas que nem sempre podem ser
definidas arqueologica-mente. A hierarquizao social somente um dos
pa-tamares possveis da identidade, e mesmo assim pode no afetar a
identidade de um grupo como um todo. Neste contexto, os
comportamentos funerrios podem ser um mecanismo de identificao ou
identizao de uma comunidade ou grupo social, operando por vezes
(como no caso de Herdoto), como filtro de representa-o (Soares
2003).
Vimos que a identidade, como construo social, afeta mbitos
diferenciados consoante as circuns-tncias histricas que rodeiam a
criao, manuten-o ou consolidao de grupos identitrios dentro de uma
comunidade, ou de uma comunidade perante ou-tra. A hierarquizao
social um entre vrios crit-rios de diferenciao mas, noutra
perspetiva, haveria que questionar se estas manifestaes afetam (ou
no) a identidade desse grupo como um todo. Por seu turno, a lngua
nem sempre um critrio vlido de diferencia-o, uma vez que pode ser
comum a comunidades que se consideram como diferentes (cf.
Estermann 1983: 17-19, 22, Henriques 2004: 72-3). A implantao de
uma Spirit Province, para alm de integrar uma grande diversidade de
grupos sociais, lnguas, etc., um me-canismo til no controlo da
reproduo social, uma vez que dentro destas que se contraem
matrimnios mis-tos (Crowley 1993: 222ss.). este suposto cenrio de
diversidade que pode ter caraterizado a gradual implan-tao de uma
ideologia oriental, embora adaptada, no SW peninsular.
-
56 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
Todas as questes colocadas podem ser aplicadas construo da(s)
identidade(s) de Tartessos. A perspe-tiva essencialista que marcou
boa parte dos estudos que se debruaram sobre o tema (cf. lvarez
2009) imps uma polarizao que pode no ser vivel quando anali-samos
com maior profundidade a variedade de situaes em que os termos e so
utilizados na litera-tura grega. Ou seja, o facto de se mencionar,
implcita ou explicitamente Tartessos como um territrio pertencente
a um (Tartssios) a partir do sc. VII a.C., no im-plica que essa
comunidade seja puramente indgena ou fencia, ou que fale uma mesma
lngua. Pode tratar-se de um grupo misto, tal como os cipriotas
(Hdt. VII.90), mas que partilha uma mesma designao ou,
simplesmente, de uma designao genrica cujo contedo nem sempre
percetvel aos nossos olhos. Atendendo s palavras de M. lvarez
Mart-Aguilar (2009: 92):
[...] En lo relativo a la cuestin de la identidad hay que
preguntarse sobre el significado de los tar-tesios del texto Son,
simplemente, los habitantes de Tartessos, esto es, los sbditos de
Argantonio, y no existe un contenido tnico-endgeno- tras esta
deno-minacin? O bien los tartesios son un colectivo, un ethnos,
definido por un comn sentimiento de perte-nencia expresada en ese
nombre? O ambas cosas?
Podemos apontar vrias questes formao de etnnimos ou de topnimos,
uma vez que as repre-sentaes transmitidas nos relatos de viagem ou
nos discursos geogrficos raramente ultrapassam a linha da costa ou
o interior dos rios navegveis (J., Ap. I, 60-68, Bhnen 1992). Para
alm disso, como se assinalou, um grupo humano pode ter vrios nomes
consoante as circunstncias (Crowley 1993: 280-284) e, na maioria
dos casos, estas designaes revelam um grande des-fasamento entre a
realidade observada pelo agente ex-terno e a realidade vivida pela
populao representada. Neste sentido, podemos assinalar as citadas
questes colocadas por M. lvarez (2009: 92) ao texto herodo-tiano e
a reflexo de M. Koch, quando afirma que uma aproximao a estas
representaes ...exige determi-nar los conocimientos geogrficos
sobre la Pennsula de los que se dispona en cada una de las pocas en
las que estos nombres se formaron y estuvieron en uso (Koch 2003:
201).
No caso que nos ocupa neste trabalho, evidente que Tartessos
adquire significados muito diversifica-dos consoante o autor que
menciona este nome. Este-scoro de Himera refere um rio ( , PMG 184;
Str. 3.2.11), conduzindo associao pos-terior com o Btis ou
Guadalquivir (Str. 3.2.11). Por
seu turno, a paisagem onde habitava Grion, Ertia (cf. Hes., Th.
289ss.), foi muitas vezes identificada com Gadir (lvarez 2007,
2009: 90, cf. Albuquerque 2010).
A esta primeira referncia acrescenta-se a de um aparente
territrio poltico, com o texto de Anacreonte, numa clebre frase
transmitida por Estrabo (3.2.14): No quisiera yo ni el cuerno de
Amaltea ni ser rey de Tarteso ciento cincuenta aos. A presena de
(reinar/governar) permite pensar na existncia desse espao poltico
sobre o qual o poeta podia ter escutado algo, na medida em que
viveu na corte de Polcrates de Samos por volta de 536-522 a.C.
(Gangutia 1998: 125). Este dado permitiria relacionar o texto de
Anacreonte com a viagem de Colaios, re-latada por Herdoto (IV,
152), mas a referncia a um surge na tradio transmitida pelos
Foceenses (idem. I.153) e no naquela. No entanto, o excerto de
Anacreonte no permite verificar se se trata de um to-pnimo ou de
uma regio que pode ter como base de designao a bacia do rio, ou
vice-versa. Devemos assi-nalar, porm, que o carter vago das
informaes pode indicar uma certa familiaridade do nome (e do seu
sig-nificado) entre a audincia destes autores, dispensando a
exposio de pormenores.
A posterior referncia de Hecateu de Mileto assi-nala um cornimo
por duas vezes, relacionando-o com duas cidades: Elibirge, cidade
de Tartessos e Ibila, cidade da Tartssia, a ltima das quais tinha
minas de prata e ouro (THA IIA 23.I).
As duas passagens herodotianas que referem Tar-tessos
introduzem, no contexto que tem vindo a ser tra-tado ao longo
destas linhas, questes interessantes. O primeiro desses relatos
(1.163), transmite a viagem dos Foceenses, que depois de chegarem a
Tartessos, trava-ram amizade com o rei local, chamado Argantnio,
que a reinou durante oitenta anos e viveu, ao todo, cento e vinte
(Trad. J.R. Ferreira e M.F. Silva). A traduo de (rei dos Tartssios)
por rei local afasta a possibilidade de reconhecer o nome de um que
ter sido tiranizado () por Argantnio. Embora o termo no aparea
neste texto, subentende-se que se refira a um povo que est sob o
governo de um ou de um (1.53.2). C.P. Jones (1996: 316) quem
assinala este pormenor, embora no se refira a 1.163.
Estabelecer-se-ia aqui uma relao com o texto de Ana-creonte,
complementada com a referncia a um territ-rio dominado?
O nome Tartssios pode significar, simplesmente, habitantes de
Tartessos, segundo se depreende da se-quncia geogrfica da viagem
dos foceenses, na qual
-
57ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
parece surgir um cornimo (lvarez 2009: 92). Porm, em 4.152,
Herdoto refere Tartessos como um porto inexplorado ( ) localizado a
Oci-dente das Colunas de Hracles ( ). Este texto, quando comparado
com o anterior, levanta algumas dvidas relativamente dependncia do
autor em relao aos seus informadores, uma vez que, para os
Foceenses, Tartessos seria um cornimo e, para os S-mios, um porto.
No entanto, podemos colocar um ponto de interrogao sobre o relato
de Hdt. 1.163: possvel que Tartessos seja uma cidade integrada na
designao de Ibria, uma vez que desempenha um papel decisivo na
narrativa como ltima etapa da viagem que antecede a concretizao do
seu objetivo.
Esta ltima ideia pode ser contrastada com um texto de Herodoro,
escrito em finais do sc. V, onde surge o etnnimo Tartssio numa
sequncia de ca-riz periegtico. O texto, transmitido e introduzido
por Constantino Porfiriognito, refere Ibria como um ter-ritrio
dividido em muitos povos ( , Const. Porph., Adm. Imp. 23; THA IIA,
46). A transcrio re-vela, porm, que estes so representados por
He-rodoro como (tribos): Cinetes, Gletes, Tartssios; Elbissnios,
Mastienos e Celcianos. Estas tribos, por sua vez, pertencem a uma
mesma entidade () que pode ser traduzida por povo, embora com a
provvel conotao gentica que foi anteriormente apontada. Em que se
baseia Herodoro para enquadrar estas num mesmo , neste caso
ibrico?
De todo o panorama apresentado, destaca-se a re-presentao de uma
entidade com contornos vagos e at mesmo contraditrios. Entre o
testemunho de Ana-creonte e o de Herdoto estaria o de Hecateu, que
as-sinala um territrio no qual existiriam cidades, mas este autor
no refere qualquer ou com esse nome.
Em todo o caso, para admitir a existncia de um Tartssio indgena,
torna-se necessrio assina-lar um acontecimento que tenha provocado
uma ne-cessidade de coeso perante a ameaa de um elemento externo.
Os sentimentos de pertena, compsitos e cambiantes, podem
condicionar a formao de Spirit Provinces ou, para recorrer expresso
de B. Ander-son, de comunidades imaginadas. Estas circunstn-cias
histricas podem no ser percetveis atravs do registo arqueolgico. No
entanto, a valorizao das ne-crpoles e dos santurios como marcadores
territoriais e, consequentemente, como elementos fundamentais para
a coeso identitria, pode ser til para uma apro-ximao formao de
sentimentos de pertena capa-zes de integrar indivduos com origens
diversas ou, por
outro lado, refletir os resultados de uma desestrutura-o prvia
do territrio indgena.
Este papel pode ter sido detido pelo santurio de Gadir, dedicado
a Melqart, e por outros, convertendo o episdio de fundao num
patrimnio comum domi-nado pelo agente oriental, aglutinador de
vrios sen-timentos de pertena. No deixa, por isso, de suscitar
alguma perplexidade a ausncia de relao entre Fen-cios e Tartessos
quando estas fontes, cronologicamente situadas entre os sculos VII
e V a.C., so contempo-rneas de um processo de ocupao consolidado e
pro-vavelmente regido por uma identidade prpria, embora ligada aos
fundadores Trios (Lpez 2004, lvarez e Ferrer 2009).
Vimos tambm que um pode ser uma enti-dade multifacetada e
compsita, suficientemente abran-gente para incluir diversas
subdivises, cada qual com uma possvel identidade prpria. quer isto
dizer que a designao de um pode derivar do nome genrico que
utilizado por um grupo dominante, o que parece notrio no caso dos
Citas de Herdoto (4.5-11).
Esta questo pode ir para alm da materialidade, uma vez que a
utilizao de um determinado ritual ou objeto pode representar uma
apropriao do elemento externo que no compromete a identidade de
grupo. No entanto, a organizao de um territrio em torno de um
marcador (p.ej., santurio) pode resultar na res-truturao de
identidades partilhadas e ser um veculo eficaz na transmisso e
receo da ideologia oriental. Seria necessrio, porm, conhecer com
rigor os aspe-tos que se transformaram, como, porqu e com que
ob-jetivo (p.ej., Beln e Escacena 1995, Beln 2001: 37). por este
motivo que creio que uma anlise que valo-rize a relao entre
marcadores territoriais e identidade pode assinalar situaes de
coexistncia pacfica, dom-nio, desmantelamento das estruturas
preexistentes, etc.
A questo da construo de identidades atravs do registo escrito
complexa, mas no o menos quando o nosso olhar se dirige para o
registo arqueolgico. A materialidade nem sempre um reflexo de
etnicidade, mas em determinados casos, pode exprimir um modo de
garantir a sobrevivncia (cultural) de um grupo humano ou transmitir
as senhas de identidade de um grupo social, seja ele dominante ou
no. As perspeti-vas que canalizam as observaes para o lado indgena
(p.ej. Torres 2002), destacam o papel do autctone na construo da
sua prpria identidade e da sua prpria histria. neste sentido que
creio que Tartessos , no essencial, uma entidade mista que integra
indivduos de origens muito diversificadas sob uma mesma de-signao.
Falta saber, porm, se este nome deriva da
-
58 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
observao externa (neste caso, grega) ou se se trata de um nome
criado e assumido num territrio localizado a Ocidente das Colunas
de Hracles (cf. lvarez 2007 para a associao entre Tartessos e
Gadir).
H que assinalar, finalmente, que a distribuio dos espaos de
culto no Baixo Guadalquivir, analisada com esta perspetiva, parece
indicar a existncia de vrios ter-ritrios polticos ou provncias
espirituais e no ape-nas de um. Este tema ser desenvolvido noutra
ocasio.
momento de terminar este texto. Pretendi apre-sentar alguns
pontos de interrogao sobre a comple-xidade da construo de
identidades, com base em elementos to (aparentemente) dspares como
o registo material, o registo escrito e alguns estudos sobre a
His-tria de frica. Embora possamos identificar as dife-renas entre
o contedo de cada uma destas fontes, todas elas colocam problemas
comuns que contribuem para a elaborao de um questionrio que permita
lan-ar um outro olhar sobre a questo tartssica.
ABREVIATURAS
As abreviaturas das fontes clssicas baseiam-se em Greek -
English Lexicon (H.G. Liddell e R. Scott 1958) e Oxford Latin
Dictionary (P.G.W. Glare, 2 ed. 2012).
Arist., Pol.: Aristteles, Poltica; Const. Porf.: Constantino
Porfiriognito; E., Ph.: Eurpides, As Fen-cias; Hdt.: Herdoto; Hes.,
Th.: Hesodo, Teogonia; J., Ap.: Flvio Josefo, Contra Apio; Pl.,
Mx.: Plato, Me-nexeno; Plb.: Polbio; Plu.: Plutarco; PMG: Poetae
Me-lici Graeci (D.L. Page); Sil.: Slio Itlico, As Guerras Pnicas;
Str.: Estrabo; Th.: Tucdides; THA: Testimo-nia Hispaniae Antiquae
(J. Mangas e D. Plcido, dirs.); X., HG: Xenofonte, Historia Graeca
(Helnicas)
bIbLIogRAfIA
Albuquerque, P. (2008): Cames e Tartessos: leituras em torno de
dois excertos dOs Lusadas. Spal 17: 137-168.
Albuquerque, P. (2010): Tartessos: entre Mitos e Re-presentaes.
Cadernos da Uniarq 6. Lisboa, Uni-versidade de Lisboa.
lvarez Mart-Aguilar, M. e Ferrer Albelda, E. (2009): Identidad e
Identidades entre los fe-nicios de la Pennsula Ibrica en el periodo
co-lonial, en F. Wulff Alonso e M. lvarez Mart Aguilar (eds.),
Identidades, culturas y territo-rios en la Andaluca Prerromana, pp.
165-204.
Mlaga e Sevilla, Universidad de Mlaga y Uni-versidad de
Sevilla.
lvarez Mart-Aguilar, M. (2005): Tarteso. La cons-truccin de un
mito en la historiografa espaola. Mlaga, CEDMA.
lvarez Mart-Aguilar, M. (2007): Arganthonius Ga-ditanus. La
identificacin de Gadir y Tartessos en la tradicin antigua. Klio
89(2): 477-492.
lvarez Mart-Aguilar, M. (2009): Identidad y Etnia en Tartessos.
Arqueologa Espacial 27: 79-111.
Amselle, J.L. e MBokolo, E. (1999): Au coeur de lEthnie.
Anthropologie de lIdentit en Afrique et ailleurs. Paris, Payot.
Amselle, J.L. (1987): Lethnicit comme volont et comme
reprsentation: propos des Peuls du Wasolon. Annales (ESC), 42e anne
2, pp. 465-489.
Amselle, J.L. (1990): Logiques mtisses. Anthropolo-gie de
lidentit en Afrique et ailleurs. Paris, Payot.
Arruda, A.M. (2010): Fencios no territrio actual-mente portugus:
e nada ficou como antes, en M.L. de la Bandera Romero e E. Ferrer
Albelda (coords.), El Carambolo. 50 aos de un tesoro, pp. 439-452.
Sevilla, Universidad de Sevilla.
Batty, R. (2000): Melas Phoenician Geography. Jour-nal of Roman
Studies 90: 70-94.
Beln, M. e Escacena, J.L. (1995): Interaccin cul-tural
fenicios-indgenas en el Bajo Guadalquivir. Kolaios 4: 67-101.
Beln, M. (2001): La cremacin en las necrpolis tar-tsicas, en R.
Garca Huerta e J. Morales Hervs (eds.), Arqueologa funeraria: las
necrpolis de in-cineracin, pp. 37-78. Cuenca, Ediciones de la
Uni-versidad de Castilla-La Mancha.
Bentley, G.C. (1997): Ethnicity and practice. Com-parative
Studies in Society and History 29 (1): 24-55.
Bernal, M. (1993): Atenea Negra. Las races afroasi-ticas de la
civilizacin clsica, Vol. I, La inven-cin de la Antigua Grecia, pp.
1785-1985. Barce-lona, Crtica.
Bertrand, J.M. (2005): Gnos, en J. Leclant (dir.), Dictionnaire
de lAntiquit, p. 954. Paris, PUF.
Black, J. (1997): Maps and History. Constructing im-ages of the
Past. New Haven, London, Yale Uni-versity Press.
Bonnet, C. (2010): Astart en Mditerrane. Reflec-tions sur une
identit une et plurielle, en M.L. de la Bandera e E. Ferrer
(coords.), El Carambolo. 50 aos de un tesoro, pp. 453-463, Sevilla,
Universi-dad de Sevilla.
-
59ALGUNS PONTOS DE INTERROGAO SOBRE IDENTIDADE(S) E TERRITRIO(S)
EM TARTESSOS
SPAL 22 (2013): 47-60ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
Bordreuil, P. e Ferjaoui, A. (1988): A propos des Fils de Tyr et
des Fils de Carthage. Studia Phoeni-cia 6: 137-142.
Bhnen, S. (1992): Place names as an historical source: an
introduction with examples from Southern Sene-gambia and Germany.
History in Africa 19: 45-101.
Cabanes, P. (2005): thnos, en J. Leclant (dir.), Dic-tionnaire
de lAntiquit, p. 850. Paris, PUF.
Cardete del Olmo, M.C. (2004): Ethnos y Etnicidad en la Grecia
Clsica, en G. Cruz Andreotti e B. Mora Serrano (eds.): Identidades
tnicas-identidades po-lticas en el mundo prerromano hispano, pp.
17-29. Mlaga, CEDMA.
Castro Martnez, P.V. e Gonzlez Marcn, P. (1989): El concepto de
frontera: Implicaciones tericas de la nocin de territorio poltico.
Fronteras. Arqueo-loga Espacial 13, pp. 7-18.
Chantraine, P. (1968): Dictionnaire tymologique de la langue
grecque: Histoire des mots. Paris, Klincksieck.
Crowley, E.L. (1993): Contracts with spirits: Religion, Asylum
and Ethnic Identity in the Cacheu region of Guinea-Bissau
[fac-simil]. Michigan, UMI Disser-tations/ A Bell e Howell Company
[texto original policopiado, 1990].
Cruz Andreotti, G. e Mora Serrano, B. (eds.) (2004): Identidades
tnicas-identidades polticas en el mundo prerromano hispano. Mlaga,
CEDMA.
Cruz Andreotti, G. (2010): Tarteso-Turdetania o la
de-construccin de un mito identitario, en M.L. de la Bandera Romero
e E. Ferrer Albelda (coords.), El Carambolo. 50 aos de un tesoro,
pp. 17-52. Se-villa, Universidad de Sevilla.
Dias, J.R. (1999): Identidade. Verbo. Enciclopdia
Luso-brasileira de Cultura, Vol. 10, pp. 813-814. Lisboa e So
Paulo, Verbo.
Des Cus, E. (2001): La influencia de la arquitectura Oriental
fenicia en las arquitecturas indgenas de la Pennsula Ibrica (s.
VIII-VII), en D. Ruiz Mata e S. Celestino Prez (eds.), Arquitectura
oriental y orientalizante en la Pennsula Ibrica, pp. 69-122.
Madrid, CSIC.
Dubuisson, M. (2001): Barbares et barbarie dans le monde
grco-romain: du concept au slogan. LAn-tiquit classique 70:
1-16.
Dubuisson, M. (1982): Remarques sur le vocabulaire grec de
lacculturation. Revue Belge de Philologie et dHistoire 60(1):
5-32.
Escacena Carrasco, J.L. (1992): Indicadores tnicos en la
Andaluca prerromana. Spal 1: 321-344.
Escacena Carrasco, J.L. (2001): Fenicios a las puertas de
Tartessos. Complutum 12: 73-96.
Escacena Carrasco, J.L. (2011): Variacin identitaria entre los
orientales de Tartessos. Reflexiones desde el antiesencialismo
darwinista, en M.A. Mart Agui-lar (ed.), Fenicios en Tartessos:
nuevas perspectivas, pp. 161-192. Oxford, BAR International
Series.
Estermann, C. (1983): Etnografia de Angola (Sudoeste e Centro).
Colectnea de artigos dispersos, coligi-dos por G. Pereira e
apresentados por M.V. Guer-reiro, Vol. I. Lisboa, Instituto de
Investigao Cien-tfica Tropical.
Fernndez Gtz, M.A. (2009): La etnicidad desde una perspectiva
arqueolgica: propuestas terico-meto-dolgicas. Espacio, Tiempo y
Forma, serie II, His-toria Antigua 22, pp. 187-199.
Gangutia Elcegui, E. (1998): La Pennsula Ibrica en los autores
griegos: de Homero a Platn, en J. Mangas e D. Plcido (eds.),
Testimonia Hispaniae Antiqua, IIA. Madrid, Editorial
Complutense.
Garca Calvo, A. (2009): Identidad, en R. Reyes (dir.),
Diccionario crtico de Ciencias Sociales, pp. 1497-1504. Madrid,
Plaza y Valds.
Garca Fernndez, F.J. (2007): Etnologa y Etnias de la Turdetania
en poca Prerromana. Cuadernos de Prehistoria de la Universidad
Autnoma de Madrid 33: 117-143.
Garca Martnez, A. (2004): A vueltas con la etnici-dad: de qu
sirve el concepto de etna? Educa-tio 22: 139-156.
Gaulmier, J. (1981): Poison dans les veines. Note sur le thme du
sang chez Gobineau. Romantisme 31: 197-208.
Gonalves, A.C. E Barata, O. (1999): Grupos tnicos. Verbo:
Enciclopdia Luso-Brasileira da Cultura, Vol. 13, pp. 1311-1313.
Lisboa y S. Paulo, Verbo.
Gonzlez Wagner, C. (2000): Santuarios, territorios y dependencia
en la expansin fenicia arcaica en oc-cidente. Arys 3: 4-58.
Gonzlez Wagner, C. (2005): Fenicios en el Extremo Occidente.
Conflicto y violencia en el contexto co-lonial arcaico. Revista
Portuguesa de Arqueologia 8(2): 177-192.
Gruzinski, S. e Bernand, C. (2007): Histoire du Nou-veau Monde,
vol. II, Les Mtissages. Paris, Fayard.
Gruzinski, S. (1999): La pense mtisse. Paris, Fayard.Heintze, B.
(2007): Angola nos sculos XVI e XVII. Es-
tudos sobre Fontes, Mtodos e Histria. Luanda, Kilombelombe.
Hernando, A. (2002): Arqueologa de la Identidad. Ma-drid,
Akal.
Hillmann, K.-H. (2001): Diccionario enciclopdico de Sociologa,
fundado por Gnter Hartfiel [ed.
-
60 PEDRO ALBUqUERqUE
SPAL 22 (2013): 47-60 ISSN: 1133-4525 ISSN-e:
2255-3924http://dx.doi.org/10.12795/spal.2013.i22.03
Or. 1994]. Dir. da edio espanhola por A. Martnez Riu. Barcelona,
Herder.
Horta, J.S. (2009): Ser Portugus em terras afri-canas:
vicissitudes da construo identitria na Guin do Cabo Verde (scs.
XVI-XVII), en H. Fernandes et al. (eds.), Nao e Identidades.
Por-tugal, os portugueses e os outros, pp. 261-274. Lis-boa, Centro
de Histria da Faculdade de Letras de Lisboa/ Caleidoscpio.
Jones, C.P. (1996): and in Herodotus. Classical Quaterly 46 (2):
315-320.
Jones, S. (1997): The Archaeology of Ethnicity. Con-structing
identities in past and present. London y New York, Routledge.
Jones, S. (2008): Ethnicity: Theoretical approaches,
methodological implications, en R.A. Bentley, H.D.G. Machner e C.
Chippdale (eds.), Handbook of Archaeological Theories, pp. 321-333.
Lanham, Altamira Press.
Knapp, A.B. (2008): Prehistoric and Protohistoric Cy-prus.
Identity, Insularity, and connectivity. Oxford, Oxford University
Press.
Koch, M. (2003): Tari e Hispania. Madrid, CEFYP.Lalanda, P.
(2005): A identidade sempre uma relao.
Uma introduo ao uso do conceito de identidade. Actas das III
jornadas/ Congresso do Arquivo de Beja, I: 39-42. Beja: Cmara
Municipal de Beja.
Lpez Castro, J.L. (2004): La identidad tnica de los fenicios
occidentales, en G. Cruz Andreotti e B. Mora Serrano (eds.),
Identidades tnicas-identi-dades polticas en el mundo prerromano
hispano: 149-167. Mlaga, CEDMA.
Lpez Ruiz, C. (2005): Revisin crtica de la aparicin de Tartessos
en las fuentes clsicas y semticas, en S. Celestino Prez e J. Jimnez
vila (eds.), El Pe-riodo Orientalizante. Actas del III Simposio
Interna-cional de la Arqueologa de Mrida: Protohistoria del
Mediterrneo Occidental. Anejos de Archivo Es-paol de Arqueologa
XXV: 347-362. Mrida, CSIC.
Moreno Arrastio, F.J. (1999): Conflictos y perspectivas en el
periodo precolonial tartsico. Gerin 17: 149-177.
Moret, P. (2004): Ethnos ou Ethnie? Avatars anciens et modernes
des noms des peuples ibres, en G. Cruz Andreotti e B. Mora Serrano
(eds.), Identidades t-nicas-identidades polticas en el mundo
prerro-mano hispano, pp. 32-62. Mlaga, CEDMA.
Niculescu, G.A. (1997-1998): The material dimension of
ethnicity, New Europe College Yearbook 1997-1998, pp. 203-262.
Nordman, D. (2005): Identidades territoriales, en P. Boissinot e
P. Rouillard (coords.), Lire les territoires des socits anciennes.
Dossier des Mlanges de la Casa Velzquez, Nouvelle srie 35(2), pp.
147-157.
Potolsky, M. (2006): Mimesis. London, New York, Routledge.
Powell, J.E. (1938): A Lexicon to Herodotus. Cam-bridge,
C.U.P.
Ruby, P. (2006): Peuples, fictions? Ethnicit, identit ethnique
et socits anciennes. Revue des tudes Anciennes 108 (1): 25-60.
Sanmartn, J. (1994): Toponimia y antroponimia: Fuen-tes para el
estudio de la cultura pnica en Espaa, en A. Gonzlez Blanco; J.L.
Cunchillos Ilarri e M. Molina Matos (coords.), El mundo pnico.
Histo-ria, sociedad y cultura, pp. 227-247. Murcia, Edi-tora
Regional de Murcia.
Soares, C. (2003): A Morte em Herdoto. Valores uni-versais e
particularismos tnicos. Lisboa, Funda-o Calouste Gulbenkian.
Sousa, R. e Santos, A.S. (2010): A incidncia do
An-ticastelhanismo na Literatura Portuguesa. Letras Comvida 1:
141-154.
Tern, E. (2002): La etnicidad y sus formas: aproxi-macin a un
modelo complejo de pertenencia t-nica. Papers 66: 45-57.
Twiesselmann, F. (1971): La mthodologie du mtis-sage. Bulletins
et mmoires de la Socit dAnthro-pologie de Paris, XIIe Srie 7(2):
145-157.