Alfabetização: o método em questão ESTE CAPÍTULO TEM OS SEGUINTES OBJETIVOS: • evidenciar que o método de alfabetização sempre foi uma questão na história do ensino inicial da língua escrita; • caracterizar a questão atual do método no processo de alfabetização; • sugerir as principais causas para o fato de métodos de alfabetização constituírem uma questão; • apresentar facetas da aprendizagem inicial da língua escrita e jus- tificar o foco deste livro na faceta linguística dessa aprendizagem, a que se reserva a designação de alfabetização; • distinguir aquisição da fala de aprendizagem da escrita; • caracterizar a aprendizagem inicial da língua escrita como apren- dizagem de um sistema de representação e um sistema notacional; • relativizar a importância do método, que não pode ser considerado como A questão, na alfabetização.
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Alfabetização: o método em questão · Alfabetização: o método em questão ESTE CAPÍTULO TEM OS SEGUINTES OBJETIVOS: • evidenciar que o método de alfabetização sempre
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• distinguiraquisição da faladeaprendizagem da escrita;• caracterizaraaprendizageminicialdalínguaescritacomoapren-
dizagemdeumsistema de representaçãoeumsistema notacional;• relativizaraimportânciadométodo,quenãopodeserconsiderado
comoAquestão,naalfabetização.
16 • Alfabetização
UMA qUESTãO hISTórICA
Pretende-seque,àpalavraquestão,centralnotítulodestecapítulocomotambémnotítulodestelivro,oleitoratribuaoduplosentidoqueelatemnalíngua:deumlado,questãocomoassunto a discutir,ou,maisqueisso,dificuldade a resolver–métodosdealfabetizaçãocomotemaaesclarecer,problemaadeslindar;deoutro,questãocomocontrovérsia, polêmica–mé-todosdealfabetizaçãocomoobjetodedivergências,desacordos.
Poroutrolado,considerandoaambiguidadequetemcontaminadoapalavramétodo,quandoselheacrescentaocomplementode alfabetização–frequentementemanuaisdidáticos,cartilhas,artefatospedagógicosrecebeminadequadamenteadenominaçãodemétodos de alfabetização–,convémdesde já esclarecer que aqui se entendepormétodo de alfabetização umconjuntodeprocedimentosque,fundamentadosemteoriaseprincípios,orientemaaprendizagem inicial da leitura e da escrita,queéoquecomu-mentesedenominaalfabetização.1
Esclarecidosostermosdafrasequedátítuloaestecapítulo,pode-seagoraafirmarqueaquestão dos métodos de alfabetização,emumeoutrodosdoissentidosdapalavraquestão,anteriormenteindicados,éhistórica,nãoéumaocorrênciaatual.Estevepresente,emnossopaís,aolongodahistóriadosmétodosdealfabetização,pelomenosdesdeasdécadasfinaisdoséculoxix,momentoemquecomeçaaconsolidar-seumsistemapúblicodeensino,trazendoanecessidadedeimplementaçãodeumprocessodeescolarizaçãoquepropiciasseàscriançasodomíniodaleituraedaescri-ta.Comoconsequênciadaindefiniçãodecomogarantiressedomínio,ométodoparaaaprendizageminicialdalínguaescritatornou-se,jáentão,umaquestão,noprimeirosentidodapalavra–umadificuldadearesolver;ecomoconsequênciadediferentesrespostassugeridasparaessadificuldadeométodotornou-se,tambémjáentão,umaquestão,nosegundosentidodapalavra–,umobjetodecontrovérsiasepolêmicas.Umaquestãoqueatraves-souoséculoxxeaindapersiste,recebendo,aolongodotempo,sucessivas
pretensas“soluções”,emummovimento,analisadoporMortatti(2000),de contínua alternância entre “inovadores” e “tradicionais”: um “novo”métodoéproposto,emseguidaécriticadoenegado,substituídoporumoutro“novo”quequalificaoanteriorde“tradicional”;esteoutro“novo”éporsuaveznegadoesubstituídopormaisum“novo”que,algumasvezes,éapenasoretornodeummétodoquesetornara“tradicional”erenascecomo“novo”,eassimsucessivamente.2
Essemovimentodealternânciametodológicateveinícioemnossopaís,comoditoanteriormente,apartirdasúltimasdécadasdoséculoxix.3Antesdisso,aquestãonãoerarelevante:considerava-sequeaprenderalereescreverdependia,fundamentalmente,deaprenderasletras,maisespecificamente,osnomesdasletras.Aprendidooalfabeto,combinavam-seconsoantesevogais,formandosílabas,parafinalmentechegarapalavraseafrases.Eraométododasoletração,comapoionaschamadasCartas de AbC,nosabecedários,nossilabários,nob + a = ba.Umaaprendizagemcentradanagrafia,ignorandoasrelaçõesoralidade-escrita,fonemas-grafemas,comoseasletrasfossemossonsdalíngua,quando,naverdade,representamossonsdalíngua.
denominaçãogenéricade sintéticos.Esta via é evidenciadanas seguintespalavrasdeHilárioRibeiro,autordaCartilha Nacional,escritanosanos1880,comediçõessucessivasatéosanos1930:“Comoaartedaleituraéaanálisedafala,levemosdesdelogooalunoaconhecerosvaloresfônicosdasletras,porqueécomovalorquehádelerenãocomonomedelas”(Ribeiro,1936,apudMortatti,2000:54).
Poroutrolado,passou-seaconsiderararealidadepsicológicadacriança,anecessidadedetornaraaprendizagemsignificativae,paraisso,partirdacompreensãodapalavraescrita,paradelachegaraovalorsonorodesílabasegrafemas,dandoorigemaosmétodosquereceberamadenominaçãogenéricadeanalíticos.Entreeles,destacou-seométodo da palavração,introduzidonoBrasiltambémnosanos1880,pelaCartilha MaternaldeJoãodeDeus,dequeSilvaJardim,eminenteeducadorpaulistanasúltimasdécadasdoséculoxixeprimeirasdoséculoxx,foiograndedivulgador.PalavrasdeSilvaJardim,emconferênciade1884,evidenciamestasegundaviadeevoluçãonocampodosmétodosdealfabetização:
Indiferentemente, porém, da orientação adotada, o objetivo, tantoemmétodossintéticosquantoemmétodosanalíticos,é,limitadamente,aaprendizagemdosistemaalfabético-ortográficodaescrita.6Emborasepossaidentificar,nosmétodosanalíticos,aintençãodepartirtambémdosignifi-cado,dacompreensão,sejanoníveldotexto(métodoglobal),sejanoníveldapalavraoudasentença(métododapalavração,métododasentenciação),estes–textos,palavras,sentenças–sãopostosaserviçodaaprendizagemdosistemadeescrita:palavrassãointencionalmenteselecionadasparaserviràsuadecomposiçãoemsílabasefonemas,sentençasetextossãoartificialmenteconstruídos,comrígidocontroleléxicoemorfossintático,paraserviràsuadecomposiçãoempalavras,sílabas,fonemas.
Nessequadrodedeslocamentodofocoeducativo–do(a)alfabetizador(a)9esuaopçãopordeterminadomododeensinarparaacriançaeseuprocessopeculiardeaprendizagem–,ométododealfabetização,talcomoatéentãoentendido, se torna irrelevante.Oconstrutivismonãopropõeumnovo
9 Convémfundamentaraopçãofeita,nestelivro,pelousodaduplaformamasculino/femininoparadesignarprofissionaisna áreadaalfabetização.Se se tomasse comocritério a realidade,queevidencia significativapredominância,emnossopaís,demulheresnaalfabetização,ousodofeminino–a alfabetizadora–seriajustificável,alternativaque,aliás,temsidoadotadacomcertafrequênciaemtrabalhosacadêmicos.Poroutrolado,dopontodevistalinguístico,seriacorreto,aocontrário,ousodaformamasculina–o alfabetizador,já que a norma gramatical considera, no caso de referência a grupodepessoas dos dois sexos, comonadesignaçãodeprofissões,aformamasculinacomoumgêneronão marcado,neutro, ummasculinogenérico,comindependênciaentreogênerogramaticaleosexo.Entretanto,assume-seaquiqueaquestãonãopodeserconsideradaapenasdopontodevistadarealidadeoudopontodevistalinguístico,dadoograndepesodeaspectospsicológicosesociais.Éque,nousodiscursivodalíngua,estereótiposepreconceitosculturaissesobrepõemànormagramatical:ousogramaticalmentecorretodomasculinogenériconaverdadeconstróirepresentaçõescognitivasesociaisqueatribuemespecificidadeaogenérico,associandoogênerogramaticalaosexo,demodoque,aoler,emumtexto,o alfabetizador,asmulherespodemperderavisibilidadeesesentirem,decertaforma,excluídas.Inversamente,podeocorrerqueaoler,emumtexto,a alfabetizadora,oshomenssintam-seexcluídosoumarginalizados(sobretudoporquejásãominorianaárea)–nestelivro,pretende-seevitarambasasalternativas.Essasconsideraçõessefundamentamempesquisasdesenvolvidasdesdeosanos1970,estimuladaspelomovimentofeminista,sobreosefeitosdochamado“androcentrismo”dalíngua.Ver,porexemplo,aspesquisasrecentes:Chatard,GuimondeMartinot(2005);Gygax(2007);Gygaxetal.(2009).Noentanto,comoaduplaformamasculino/feminino,seusadanestelivronatotalidadedoscasosemqueelacaberia(porexemplo,professor(a),autor(a),pesquisador(a),leitor(a),aluno(a)etc.)podedificultaraleitura,emvirtudedeserelaaindapoucofamiliar,eassimconstituirobstáculoaumaleiturafluente(emboraGygax,2007,contesteessapossibilidade),optou-seporsóusá-lanadesignaçãodaprofissãoqueéotemacentraldestelivro–alfabetizador(a).Nosdemaiscasos,mantém-seomasculinogenérico.
Oconstrutivismo, embora comasdiferentes enem sempre corretasinterpretaçõesqueaeleforamdadasnapráticadocente,foihegemôniconaáreadaalfabetização,particularmentenodiscursoacadêmicoenasorienta-çõescurriculares(cf.Parâmetros Curriculares Nacionais,1997),atéosanosiniciaisdoséculoemcurso,quandoaquestão do métodoreapareceemaisumavezseenfrentaummomentodecontrovérsiasemtornodoscaminhosadequadosparaconduzircomsucessooprocessodealfabetização.
Nosanos1980,o construtivismo surgecomo, ele também,umaal-ternativadecombateaofracassoemalfabetização.Emborareconhecendoque as causas do fracasso eram sobretudodenatureza social (Ferreiro eTeberosky,1986:17-8),propunha-sequeasolução,paracombaterosaltosíndicesdereprovaçãonaaprendizageminicialdalínguaescrita,serianãoumnovométodo,masumanovaconcepçãodoprocessodeaprendizagemdalínguaescrita,“tendocomofimúltimoodecontribuirnasoluçãodosproblemasdeaprendizagemdalectoescritanaAméricaLatina,eodeevitarqueosistemaescolarcontinueproduzindofuturosanalfabetos”(FerreiroeTeberosky,1986:32).
Entretanto,nosanosiniciaisdoséculoxxi,apesardahegemoniaexercidapeloconstrutivismonasduasdécadasanteriores,ofracassoemalfabetiza-çãopersiste,emboraessefracasso,agora,configure-sedeformadiferente:enquanto,noperíodoanterior,o fracasso, reveladopormeio sobretudodeavaliações internas à escola, concentrava-sena série inicialdoensinofundamental,aentãogeralmentechamada“classedealfabetização”,ofra-cassonadécadainicialdoséculoxxiédenunciadoporavaliaçõesexternasàescola–avaliaçõesestaduais,nacionaiseatéinternacionais–,ejánãoseconcentranasérieinicialdaescolarização,masespraia-seaolongodetodooensinofundamental,chegandomesmoaoensinomédio,traduzidoemaltosíndicesdeprecárioounulodomíniodalínguaescrita,evidenciandograndescontingentesdealunosnãoalfabetizadosousemialfabetizadosde-
Maisumavez,vive-seummomentodeconstataçãodofracassonaal-fabetizaçãoe,comosempreaconteceuaolongodotempo,maisumavezométododealfabetizaçãoseconfiguracomoumaquestão:apontadocomoresponsávelpelofracasso,torna-seumadificuldade a resolver–umdossen-tidosdapalavraquestão–e,emvirtudedasdivergentessoluçõespropostasparavenceressadificuldade,torna-setambémobjetodepolêmica–ooutrosentidodapalavraquestão.Ouseja:nosanosiniciaisdoséculoxxireapareceadiscussão sobremétodosnaalfabetização, relativamentemarginalizadaduranteasduasúltimasdécadasdoséculoxx,eenfrentam-sedenovopolê-micas,agoramaiscomplexas:nãoapenasdivergênciasemtornodediferentesmétodosdealfabetização,mastambém,etalvezsobretudo,dúvidassobreapossibilidadeouanecessidadedemétodoparaalfabetizar–ummovimentoderecuperaçãodométodoemconflitocomatendênciaàdesmetodização,consequênciadainterpretaçãoquesedeuaoconstrutivismo.11
11 Embora sepretenda,neste capítulo, focalizar a questãodosmétodosde alfabetização apenasno brasil, éprecisomencionarqueessaquestãonãoéumaexclusividadebrasileira:tambémemoutrospaísesmétodosdealfabetizaçãovêmconstituindoumaquestão,eumaquestãocomasmesmascaracterísticasidentificadasnabrasileira.NosEstadosUnidosenaFrança,paracitarapenaspaísesquesempreexerceraminfluênciasobreoBrasilnaáreadaeducação,identifica-seomesmomovimentopendularentremétodosdealfabetização:desdeofinaldoséculoxixeaolongodoséculoxx,opêndulooscilou,nessespaíses,comoocorreunoBrasil,entremétodossintéticosemétodosanalíticos;métodosalternaram-se,emummomentoconsiderados“inovadores”,emoutromomentoconsiderados“tradicionais”;etambémnessespaíses,comonoBrasil,aprimeiradécadadoséculoxxienfrentadificuldadesepolêmicasarespeitodosmétodosdealfabetização.ParaahistóriadosmétodosdealfabetizaçãonaFrança,sugerem-seKrick,ReichstadteTerrail(2007),ChartiereHébrard(2001);comfocoempaísesdelínguainglesa,obranãorecente,masconsiderada“clássica”,éMathews(1966);umaanáliseatualizadapodeserencontradaemAdams(1990;1999),Stahl(2006)eSadoski(2004);emAlexandereFox(2004),encontra-seumaanáliseexaustivadepesquisaepráticadaalfabetizaçãonasegundametadedoséculoxx,nosEstadosUnidos,emquepodemseridentificadascoincidênciascomahistóriadaalfabetizaçãonoBrasil,nesseperíodo.
Alfabetização: o método em questão • 25
MéTOdOS dE ALfABETIzAçãO – SEMPrE UMA questão: POr qUê?
Historicamente,aleiturafoioobjetoprivilegiadodaalfabetização,oqueserevelanareferênciafrequente,atéosanos1980,a“métodosde leitura”ea“livrosde leitura”,independentementedopressupostopedagógicoadotado:métodossintéticosouanalíticos,predominantesnesseperíodo,privilegiavamaleitura,limitandoaescritaàcópiaouaoditado;aescritareal,autêntica,istoé,aproduçãodetextos,eraconsideradacomoposterioraodomíniodaleitura,oucomodecorrêncianaturaldessedomínio.Confirmandoessatendência, a bibliografia sobre a aprendizagem inicial da língua escrita,durantequasetodooséculoxx, refere-sepredominantementeaoensinoda leitura;atémesmonasdefiniçõesdedicionáriosparatermosrelativosàalfabetizaçãoaleituraéprivilegiada:Maciel(2002),analisandodefiniçõesdecartilhaemdiferentesdicionários,evidenciaque,emtodoseles,atribui-seàcartilhaafunçãodeensinara ler.13
13 Esteprivilégioàleituranãoéfenômenoapenasbrasileiro.Bastalembrarque,nosEstadosUnidos,denomina-sereading–leitura–aaprendizageminicialdalínguaescrita;tambémnaFrançaareferênciaaessaaprendizagemsefazcomaexpressão“apprendre à lire”.FarnaneDahl(2003)mostram,comdadosdoEducational Resource Information Center(Eric),quemesmonapesquisaacadêmicaseverificaapredominânciadointeressepelaleituraemrelaçãoàescrita;segundoessasautoras,entreos950.000artigosedocumentosqueencontraramcatalogadosnessebancodedados,116.621tinhamaleituracomotema,enquantoapenas63.480,ouseja,poucomaisqueametadedaproduçãosobreleitura,tinhamaescritacomotema.
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Éapartirdemeadosdosanos1980queoprivilégioatéentãoatribuídoàleitura,nosmétodosdealfabetização,torna-seumaquestão.14NoBrasil,comodecorrênciadamudançadeparadigmaqueoconstrutivismorepre-sentou,aescrita,paraalémdacópia,doditado,istoé,aescritaentendidacomoproduçãotextual,passaadesempenharpapelimportantenaalfabe-tização.Aocontráriodosmétodossintéticoseanalíticos,querejeitavamaescritanãocontrolada–acriançasódeveriaescreverpalavrasquejáhouvesseaprendidoaler–,oconstrutivismoenfatizouopapeldaescrita,sobretudodeumaescrita“espontânea”ou“inventada”,15consideradacomoprocessopormeiodoqualacriançaseapropriariadosistemaalfabéticoedasconvençõesda escrita, tornandodesnecessárioo ensinoexplícito e sistemáticodessesistemaedessasconvenções;tambémaocontráriodosmétodossintéticoseanalíticos,queadiavamoconvíviodacriançacomosusosefunçõesdalínguaescrita,propôs,aolongomesmodoprocessodeaprendizageminicialdalínguaescrita,aescritadetextosdediferentesgêneros.
Umasegundacausadedivergênciasquantoaoobjetodaalfabetizaçãoéaintrodução,naáreadaculturadoescrito,doconceitodeletramento.Nosanos1980,oslimitesdoensinoeaprendizagemdalínguaescritaseampliam:emdecorrênciadodesenvolvimentosocial,cultural,econômi-co,políticoemnossopaís,duranteoséculoxx,ganhamcadavezmaiorvisibilidade asmuitas e variadas demandas de leitura e de escrita naspráticassociaiseprofissionais,gerandoanecessidadedemaisavançadasediferenciadashabilidadesdeleituraedeescrita(Soares,1986),oqueexigiu, consequentemente, reformulação de objetivos e introdução denovaspráticasnoensinodalínguaescritanaescola,dequeéexemploagrandeênfasequesepassaaatribuiraodesenvolvimentodehabilidadesdeleituraedeescritadeumagamaamplaevariadadegênerostextuais.
Surgeentãootermoletramento,queseassociaaotermoalfabetizaçãoparadesignarumaaprendizagem inicial da língua escritaentendidanãoapenascomoaaprendizagemdatecnologiadaescrita–dosistemaalfabéticoesuasconvenções–,mastambémcomo,deformaabrangente,aintroduçãodacriançaàspráticassociaisdalínguaescrita.16
Essadivergênciasobreoobjetodaaprendizageminicialdalínguaescritaserevelaquandoseconsideraoconceitodealfabetizaçãoquefundamentaosdiferentesmétodos.Alfabetização,noestadoatualdasciênciaslinguísticas,daPsicologiaCognitiva, daPsicologia doDesenvolvimento, é processocomplexoqueenvolvevárioscomponentes,oufacetas,edemandadiferentescompetências.Dessacomplexidadeeconsequentemultiplicidadedefacetasdecorremdiferentesdefiniçõesdealfabetização,cadaumaprivilegiandoumoualgunsdoscomponentesdoprocesso.Sirvacomoexemplooverbete
16 Paraessaampliaçãodoconceitodeaprendizageminicialdalínguaescritajávinhacontribuindooconstrutivis-mo,quedefendeaconstruçãodosistemaalfabéticopelacriançapormeiodeseuconvíviocommaterialescritoreal,enãoartificialmenteelaboradoparapromoveraaprendizagemdessesistema.Issoexplicaaresistênciadepartidáriosdoconstrutivismoaaceitarotermoletramento.Naverdade,talvezapalavraletramentonãofossenecessáriasesepudesseatribuir,comopretendeoconstrutivismo,umsentidoampliadoàpalavraalfabetização.Entretanto,natradiçãodalíngua,nosensocomum,nousocorrente,emesmonosdicionários,alfabetizaçãoécompreendidacomo,restritamente,aaprendizagemdosistemaalfabético-ortográficoedasconvençõesparaseuuso,aaprendizagemdoleredoescreverconsideradosverbossemcomplemento(Soares,2005);ampliaro significadodapalavraalfabetização,paraquedesignemaisqueoque tradicional e correntementevemdesignando,seria,comofoi,umatentativainfrutífera,peladificuldade,oumesmoimpossibilidade,dopontodevistalinguístico,deintervirartificialmenteemumsignificadojáconsolidadonalíngua.Ferreiro(2001:71-2),aoresponderaumaperguntasobrecomotraduzirialiteracy,esclarecequeevitaessetermo,apenas“emmuitoscasos,traduzo‘literacy’como‘culturaescrita’,porquefazsentidoesabemosdoqueestamosfalando”;destaque-seotítuloderecentelivrodeFerreiro(2013),O ingresso na escritae nas culturas do escrito,queparecereferir-seàalfabetização–ingresso na escrita–eaoletramento–culturas do escrito.Ésignificativoque,noiníciode2015,atradicionalInternational Reading Association(ira)tenhamudadoseunomeparaInternational Literacy Association,comajustificativadequereadinglimitavaofocodaAssociação.
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“leitura”doDicionário de alfabetização17organizadoporHarriseHodges(1999):sãotrezeasdefiniçõesapresentadasnoverbete,18diferenciadassegun-doafasededesenvolvimentodoaprendizesegundoasdistintasconcepçõesdeleitura;segundoHarriseHodges(1999:160),“asdefiniçõesdevemservistasnocontextodasorientaçõesteóricasepragmáticasdodefinidor”.
Conclui-sequeconcepçõesdeaprendizagemdaescritadiferenciam-sepelafacetadoprocessoqueelegemcomoobjetodaaprendizagem;conse-quentemente,diferenciam-seascompetênciasquecadaconcepçãoestabelececomoobjetivosaperseguir,ouseja:distinguem-seosmétodosdealfabeti-zação–deformamaisampla,etalvezmaisadequadamente,osmétodosdeorientaçãodaaprendizagem inicial da língua escrita.
Dessastrêsfacetasdecorremtrêsobjetosdeconhecimentodiferentesna composição do processo de aprendizagem inicial da língua escrita,objetosaquecorrespondemdomínioscognitivoselinguísticosdistintose,consequentemente,trêscategoriasdecompetênciasaseremdesenvol-vidas:sesepõeofoconafaceta linguística,oobjetodeconhecimentoéaapropriaçãodosistemaalfabético-ortográficoedasconvençõesdaes-crita,objetoquedemandaprocessoscognitivoselinguísticosespecíficose,portanto,desenvolvimentodeestratégiasespecíficasdeaprendizageme,consequentemente,deensino–nestelivro,aalfabetização.Sesepõeofocona faceta interativa,oobjetosãoashabilidadesdecompreensãoeproduçãodetextos,objetoquerequeroutrosediferentesprocessoscog-nitivoselinguísticoseoutrasediferentesestratégiasdeaprendizagemedeensino.Finalmente,sesepõeofoconafaceta sociocultural,oobjetosãooseventossociaiseculturaisqueenvolvemaescrita,objetoqueimplicaconhecimentos,habilidadeseatitudesespecíficosquepromovaminserçãoadequadanesseseventos,istoé,emdiferentessituaçõesecontextosdeusodaescrita.Essatricotomiaexplicaaquestão–ascontrovérsias–entreosmétodos,mencionadaanteriormente.
Umaoutraexplicaçãoparaofatodeosmétodosdeaprendizageminicialdalínguaescritaconstituíremumaquestãoé,decertaforma,resultadodaexplicaçãoanterior:comofoidito,asdiferentes facetasda línguaescritaimplicamseleçãodediferentesobjetosparaoprocessodeaprendizagem,ge-randocontrovérsiassobreosmétodos.Comodesenvolvimentodapesquisasobreaaprendizagemdalínguaescritaemdécadasrecentes,cadafacetadalínguaescritatemgeradoestudoseinvestigaçõessobreobjetosdiferentes,apartirdequadrosteóricosespecíficos;multiplicam-seediversificam-se,assim, resultados de pesquisa e quadros teóricos, e, consequentemente,multiplicam-seediversificam-setambémasimplicaçõesparaosmétodosdeintroduçãodacriançaàlínguaescrita.
Nosanos1970,umsegundofatorsurgecomocausamotrizdodesen-volvimentodapesquisasobrealfabetização:outrasáreas,alémdaPedagogia,passaramatomaraalfabetizaçãocomoobjetodepesquisa.ComoafirmamShankweilereFowler(2004:483),se,noiníciodoséculoatual,omovimen-topendularnaspráticasdealfabetizaçãonãorepresentanovidade,“nova é a importância atribuída à pesquisa na ciência da alfabetização para decisões sobre como ensinar a leitura e a escrita”.
Emsíntese,arespostaàperguntaquedátítuloaestetópico:métodos de alfabetização – sempre uma questão: por quê?,foiadiantadaemseuprimeiroparágrafo:métodosdealfabetizaçãotêmsidosempreumaquestãoporque
Como emqualquer temamultifacetado, tambémna aprendizageminicial da língua escrita o todo só pode ser compreendido se cadaumadesuaspartesécompreendida;porisso,paraaciência,paraapesquisa,énecessáriofragmentaressaaprendizagem,tomarcadaumadesuasfacetasseparadamente,afimdeapreenderascaracterísticasespecíficasacadauma,construirprincípioseteoriasqueelucidemcadauma.Assimfazemoslin-guistas,ospsicolinguistas,ossociolinguistas,ospsicólogos...
MarilynJagerAdams,umadasmaisconceituadaspesquisadorasnaáreadaalfabetização,emobraquesetornouum“clássico”nessaárea(Adams,1990), após desenvolver uma interessante analogia entre o processo deconstruçãoefuncionamentodeumautomóveleoprocessodeconstruçãoefuncionamentodas“partes”,noensinodalínguaescrita,diferenciaosdoisprocessos,jáque,nosegundo,
25 Adverte-seoleitordequeapalavramétodo,nestecapítuloenosseguintes,temosentidoquelhefoiatribuídono iníciodestecapítulo:método comoconjunto de procedimentos.Umamelhorexplicitaçãodoconceito de métodoserápropostanocapítulo“Métodosdealfabetização:umarespostaàquestão”,depoisdeapresentadosnoscapítulosanterioresosprincípioseasteoriasquefundamentamoconceitoqueseproporá.
Para terminaresta seção,citam-semaisumavezpalavrasdeAdams,aquelascomqueiniciasuaobrade1990,beginning to Read:
Alfabetização: o método em questão • 37
Antesdecomeçaralerestelivro,vocêdeveterplenoconhecimentodequeotemanelediscutidoéaleituradepalavras.Entretanto,antesdeterminaraleituradestelivro,vocêdeveterplenoconhecimentodequeahabilidadedelerpalavrasrapidamente,corretamenteesemesforçoéfundamentalparaacompreensãocompetentedetextos–nossentidosóbvioseemváriosoutrossentidos,maissutis.Leitura competente não é umahabilidadeunitária.Éum completo ecomplexo sistema de habilidades e conhecimentos.No interior dessesistema,osconhecimentosehabilidadesenvolvidosnoreconhecimentovisualdepalavrasescritassãoinúteisemsimesmos.Sótêmvalore,deformaabsoluta,sósãopossíveisseorientadoseaprendidospormeiodeconhecimentoscomplementareseatividadesdecompreensãodalíngua.Poroutrolado,seosprocessosenvolvidosnoreconhecimentoindividualdepalavrasnãofuncionaremadequadamente,nadamaisnosistemafun-cionaráadequadamente.(Adams,1990:3)
Assim,nafacetaaquesereservaaquiacaracterizaçãode“linguísti-ca”,oobjetodeconhecimentoéessencialmente linguístico–osistemaalfabético-ortográficodeescrita.Asduasoutrasfacetasimplicamoutrosobjetosdeconhecimentoquevãoalémdolinguístico:nafacetainterativa,oobjeto de conhecimento éousoda língua escritapara a interação–acompreensãoeaproduçãodetextos,oqueenvolve,paraalémdadi-mensãolinguística,elementostextuaisepragmáticos,nãoexclusivamentelinguísticos;nafacetasociocultural,oobjetodoconhecimentosãoosusoseasfunçõesdalínguaescritaemdiferentescontextossociaiseculturaiseemdiferenteseventosdeletramento,estandopresentes,portanto,inú-meroselementosnãolinguísticos.
Noiníciodosanos1970,umateoriadaleitura,propostaporFrankSmithnoslivrosUnderstanding Reading: a Psycholinguistic Analysis of Reading and Learning to Read(1971)26ePsycholinguistics and Reading(1973),passouaexercergrandeinfluêncianaalfabetização,nospaísesdelínguainglesa.Combasenateoriadeque“toda leituradoescritoé interpretação,atribuiçãodesentidoaoescrito”(Smith,2004:3),oautorargumentaqueacriançaaprenderiaaler–aprenderiaadarsentidoaumtexto–deformatãonaturalquantoaprendeadarsentidoaomundoquearodeia,tãonaturalquantoaprendea falar.Aaprendizagemda escrita seria,portanto,umprocessosemelhanteàaquisiçãodafala,diferenciando-sedestaapenasporterporobjetoalínguavisível,enãoalínguasonora.Consequentemente,noquadrodessateoria,talcomoacriançaadquireafalapormeiodeoportunidadesdeouvirefalaremumcontextomotivador,receptivoesignificativo,gerandoetestandohipóteses,damesmaformaelaaprenderiaalereescrever;naspalavrasdeFrankSmith(1989:237):
Compare-seessacitaçãocomaanterior,deFrankSmith,everifica-sequeosautoresassumemamesmateoria–aprenderalereescreverénatural,acriançaaprendeaescritatalcomoaprendeafalareouvir,construindoe testandohipóteses–,e inferem,dessa teoria,amesmapropostaparaoensinodaescrita:proporcionaràcriançaumambienteemque haja oportunidades e necessidade de ler e escrever de formasignificativa.Nessequadro,nãoseprevêensinosistemáticoeexplícitodafacetalinguísticadaalfabetização,nopressupostodequeacriançadescobriráoprincípioalfabéticoeseapropriarádosistemaalfabéticodeescritaedesuasconvençõesporprocessosemelhanteàquelepeloqualseaproprioudacadeiasonoradafala.27Assim,Goodman(1986:24)afirma,sobreaaprendizagemdalínguaescrita:
Nospaísesdelínguainglesa,esseposicionamentoemrelaçãoàfacetalinguísticadaalfabetizaçãofoiassumidonapropostapedagógicadawhole language;noBrasil,napropostapedagógicadoconstrutivismo.Emboraasduaspropostassediferenciememoutrosaspectos,ambasassumemomesmopressuposto–apropriar-sedosistemadeescritaéumprocessonatural – e ambas conduzem àmesma orientação pedagógica – essaapropriaçãoocorrenaturalmente emumcontextodeinserçãodacrian-ça emsituações emquehaja razãoeobjetivopara compreender e sercompreendidopormeiodaescrita.Assim,paraFerreiro(1992:29-32),coerentementecomafundamentaçãopsicogenéticadesuateoria,dequesetrataráadiante,oquenãoénatural noaprendizadodalínguaescrita,eodistinguedoaprendizadodalínguaoral,nãoéfundamentalmenteumadiferençaentreosobjetosdeconhecimento–línguaoraloulínguaescrita–massãoas“atividadessociaisfrenteàsduasaprendizagens” (1992:29): enquantoosadultosrespondemcomcompreensãoeentusiasmoàstentativasdeexpressãooraldacriança,aceitando-ascomo integrantesdeumprocessodeconstruçãodaaprendizagemdalínguaoral,reagemdemaneiraoposta–particularmenteosprofessores–às tentativasdeleituraeescrita,desqualificando-aseconsiderando-ascomoerros,nãocomoaproximaçõesàescrita;poroutrolado,talcomonaaquisiçãodalínguaoral,“nãoseaprendeumfonema,nemumasílabaenemumapalavra por vez, também a aprendizagem da língua escrita não é umprocesso cumulativo simples, unidade por unidade,mas organização,desestruturaçãoereestruturaçãocontínua” (1992:31).
Mais recentemente (1993-1994),28KeithStanovich (2000:400), re-conhecidopesquisadornaáreadaPsicologiaCognitivadaleitura,afirmouque“aideiadequeaprenderaleréexatamenteigualaaprenderafalarnãoéaceitapornenhumlinguista,psicólogooucientistacognitivoresponsá-vel,nacomunidadedepesquisadores”;segundoele,osqueafirmamqueaaprendizagemdaescritaocorredamesmaformaqueaaquisiçãodafala
Subjacenteaessesindiscutíveisargumentoshistórico-culturaisepsico-cognitivosemquesebaseiaaargumentaçãodeStanovich,estáoconceitochomskyanodoinatismodafala:afalaéumacapacidadeinata,enquantoa escrita, segundoStevenPinker (2002: 6), é “claramenteumacessórioopcional;overdadeiromotordacomunicaçãoverbaléalínguafaladaqueadquirimosquandocrianças”.Essasdiferençasentreonatural(afala)eocultural(aescrita)sugeremumenigmaqueoneurocientistafrancês,StanilasDehaene(2012:17-8),denomina“oparadoxodaleitura”:
Nossacapacidadedeaprenderalercolocaumcuriosoenigma,quedenomi-nooparadoxodaleitura:comopodeserquenossocérebrodeHomo sapienspareçafinamenteadaptadoàleitura,quandoestaatividade,inventadaemtodosseuscomponentes,nãoexistesenãoháalgunsmilharesdeanos?Aescritanasceuháaproximadamente5.400anosentreosbabilônios,eoalfabetopropriamenteditonãotemmaisque3.800anos.Estasduraçõesnãosãomaisdoqueuminstanteaosolhosdaevolução.Nossogenomanão teve tempode semodificarparadesenvolveroscircuitoscerebraisprópriosàleitura.[...]Nada,emnossaevolução,nospreparouparareceberasinformaçõeslinguísticaspelaviadoolhar.Contudo,aimagemcerebralnosmostra,noleitoradulto,mecanismosaltamenteevoluídoseadaptadosàsoperaçõesrequeridaspelaleitura.
Nossa história evolutiva, pelo viés do patrimônio genético, especificasuaarquiteturacerebral limitada,masparcialmentemodificável.Novasinvenções culturais são possíveis,mas somente namedida emque seajustaremaoslimitesdaarquiteturadenossocérebroeentraremnoen-velopedaplasticidade.Essesobjetosnovosdeculturapodemseafastarconsideravelmentedosobjetosnaturaispormeiodosquaisnossocérebroevoluiu–nada,nomundonatural,separeceaumapáginadetexto.Maselesdevem,nomínimo,encontrarseu“nichoecológico”nocérebro:umcircuitocujopapelinicialémuitopróximo,ecujaflexibilidadeésuficienteparaserconvertidoaessenovouso.
circuitosdalinguagemedavisão,paraoutrosfins,oque,obviamente,exigeaprendizagem.30NaspalavrasdeMaryanneWolf(2007:11),emlivro emque faz análise abrangente e instigantedas várias facetasdaleitura,sobaperspectivadaneurociência:
Emdecorrência,seafalanãoé,nemprecisaser,ensinadadeformaex-plícita,consciente–nãohánecessidadedemétodosparaorientaraaquisiçãodofalaredoouvir–,aescritaprecisaserensinadapormeiodemétodosqueorientemoprocessodeaprendizagemdoleredoescrever.Nessesentido,éinteressanteoresultadoaquechegaramCrain-ThoresoneDale(1992)que,empesquisa longitudinal, investigaramsecrianças linguisticamenteprecoces aos20meses, isto é, comnível de linguagemoral superior aonormalnessaidade,manifestariamtambémprecocidadenaescritanapré-escola,tendoconcluídoque,seaprecocidadenalinguagemoralsemanteveaolongodosanos,nãoseestendeuàescrita,quandoascriançasaelaforamintroduzidas.Esseresultadoreforçaosargumentosanteriormenteapresen-tados,evidenciandoadissociaçãoentreaquisiçãodafala,processonatural,
A fACETA LINGUÍSTICA dA ALfABETIzAçãO: A APrENdIzAGEM dA ESCrITA ALfABéTICA
Ao contrário de escritas logográficas ou ideográficas, que grafamossignificados–oconteúdosemânticodafala–,aescritaalfabéticagrafaossignificantes–ossonsdafala–,decompondo-osemsuasunidadesmíni-mas,os fonemas,que,emborasejamentidadesabstratas,nãoobserváveisdiretamente, nãoaudíveisenãopronunciáveisisoladamente,setornam,noentanto,visíveissobaformadeletrasougrafemas.31
Dessa forma, aprender a escrita alfabética é, fundamentalmente,umprocessodeconvertersonsdafalaemletrasoucombinaçãodele-tras–escrita–,ouconverterletras,oucombinaçãodeletras,emsonsdafala–leitura.Essa“conversão”desonsemletras,deletrasemsons,queéaessênciadeumaescritaalfabética,é,comoditoanteriormente,umainvençãoculturalquetemsidocaracterizadaoracomoainvençãodeumcódigo, oracomoainvençãodeumsistema de representação,oraaindacomoainvençãodeumsistema notacional.
Acaracterizaçãodosistemadeescritaalfabéticocomoumcódigo,emboratalvezamaiscomum,e,emdecorrênciadisso,ousofrequentedosverboscodificaredecodificartêmsidoapontadospormuitoscomoimpróprios.Na verdade, um código é, em seu sentido próprio, umsistemaque substitui (comoocódigoMorse, a escritaemBraille)ouesconde(comocódigosdeguerra,criadosparagarantirasegurançadecomunicações)ossignosdeumoutrosistemajáexistente–porexemplo,épossível criarumcódigopara substituirou esconderosgrafemasdosistemaalfabéticoporoutrossignos.Consequentemente,seseconsidera
seusignificadoliteral,overbocodificardenotaautilizaçãodeumsistemadesinaisousignosquesubstituemosgrafemasdosistemaalfabético,eoverbodecodificardenota,literalmente,adecifraçãodesinaisousignostraduzindo-osparaosistemaalfabético.Assim,este,osistemaalfabético,éosistemaprimeiro,nãoéumsistemadesubstituiçãodeoutropreexis-tente–nãoéumcódigo,anãoserqueseconsiderassequeosgrafemas“substituem”ossonsdafala,oquenãoélinguisticamenteverdadeiro:osgrafemasrepresentamossonsdafala,eosistemadeescritaalfabéticofoiinventadocomoumsistema de representação,nãocomoumcódigo.ParaFerreiro(1985:12),adiferençaessencialéque
[...]nocasodacodificação,tantooselementoscomoasrelaçõesjáestãopredeterminados; onovo códigonão faz senão encontraruma repre-sentaçãodiferenteparaosmesmoselementoseasmesmasrelações.Nocasodacriaçãodeumarepresentação,nemoselementosnemasrelaçõesestãopredeterminados.[...]Ainvençãodaescritafoiumprocessohis-tóricodeconstruçãodeumsistemaderepresentação,nãoumprocessodecodificação.
Em síntese, pode-se dizer que a escrita alfabética foi historicamenteconstruída comoum sistema de representação externa, que sematerializacomoumsistema notacional, nãocomoumcódigo.Naperspectivadoensino,queéaqueseadotanestelivro,emqueofocoéaquestãodosmétodosdealfabetização,assume-sequeaescrita,paraacriança,emseuprocessodedesenvolvimentoeaprendizagem,étantoum sistema de representaçãoquantoumsistema notacional.
Éumsistema de representaçãoporque,emseuprocessodecompreensãodalínguaescrita,queseiniciaantesmesmodainstruçãoformal,acriançadecertaforma“reconstrói”oprocessodeinvençãodaescritacomorepresen-tação,oquenãoquerdizer,conformealertaTolchinsky(2003:20),que“háumarecapitulaçãodahistóriasocialnoprocessoindividualdeaquisição”. Eexplica,justificandoarevisãoquefazdaorigemehistóriadaescritaedosnumerais: “oqueocorreéqueessarecapitulaçãopodeiluminarmuitosproblemasqueascriançasenfrentamnoprocessodeseapropriaremdessesobjetossociais” (apesquisadorarefere-seaossistemasdeescritaedenume-ração).ÉoqueafirmatambémFerreiro(1985:12-3):
Por outro lado, a escrita é, para a criança, um sistema notacionalporque,aocompreenderoqueaescritarepresenta(acadeiasonoradafala,nãoseuconteúdosemântico),precisatambémaprenderanotaçãocomque,arbitráriaeconvencionalmente,sãorepresentadosossonsdafala(osgrafemasesuasrelaçõescomosfonemas,bemcomoaposiçãodesseselementosnosistema).
Aoanalisara faceta linguísticadaalfabetização,este livroanalisa,emoutraspalavras,aaprendizagemdalínguaescritacomoumsistema de re-presentaçãoeumsistema notacional.33Nocontextodasmuitasecomplexasquestõesqueperturbamaáreadoensinoparaaaprendizageminicialdalínguaescrita,estelivroserestringe,pois,aumadasfacetasdoprocessodeaprendizageminicialda línguaescrita, focalizandoseus fundamentosteóricoseasimplicaçõesdestesparaaquestão dos métodos.
Assim, os capítulos “Fases de desenvolvimento no processo deaprendizagemdaescrita”,“Aprendizagemdalínguaescritaemdiferentesortografiasenaortografiadoportuguêsbrasileiro”e“Consciênciameta-linguísticaeaprendizagemdalínguaescrita”apresentamosfundamentosepressupostosquecontextualizameconfiguramafacetalinguísticadaaprendizageminicialdalínguaescrita.Anaturezadessafaceta,umdosdoistemascentraisdestelivro,édiscutidanoscapítulos“Consciênciafonológica e alfabetização”, “Consciência fonêmica e alfabetização”,“Leituraeescritadepalavras”e“Oefeitoderegularidadesobrealei-
turaeaescrita”,enquantoosegundotemacentraléobjetodocapítulofinal,“Métodosdealfabetização:umarespostaàquestão”:asconclusõese inferências que, decorrentes dos capítulos anteriores, sugeremumarespostaparaaquestãodosmétodosdealfabetizaçãoeinferênciassobreaformaçãodealfabetizadores(as).Aindanessecapítulofinal,busca-serecuperar a totalidadedoprocessodeaprendizagem inicialda línguaescrita,apresentandoapossibilidadee,maisqueisso,anecessidadedeconjugarafacetalinguísticacomasduasoutrasfacetas,paraumapráticabem-sucedidadealfabetizaçãoeletramento.
Entretanto,paraque,naleituradospróximoscapítulos,aquestão dos métodossejaconsideradanoslimitesdarelativaimportânciaquetem,busca-secontextualizá-lanotópicoseguinte,queencerraestecapítulo.
MéTOdOS SãO uMa qUESTãO, NãO SãO a qUESTãO
Inseridanocampodaeducaçãoescolar,aaprendizageminicialdalínguaescritasofreainfluênciadosfatoresquecondicionam,epodematémesmodeterminar, esse campo: fatores sociais, culturais, econômicos,políticos;éilusóriosuporquemétodosatuemindependentementedainterferênciadesses fatores.Assim,a fimdeevitarque,nos capítulosque se seguem,sejaatribuídoumvalorabsolutoouindependenteaosmétodossugeridosemdecorrênciadeprincípioseteoriasquesãotemasdoscapítulosqueseseguem,destacam-se aqui aspectos que, atuando sobre eles, evidenciamoutras questõesqueinterferememsuapráticaerelativizamseupodercomofatordeterminantedaalfabetização.
Métodosparaaaprendizageminicialdalínguaescrita,segundoocon-ceitoadotadonestelivro,sãoconjuntosdeprocedimentosque,combaseemteoriaseprincípioslinguísticosepsicológicos,orientamessaaprendizagem,emcadaumadesuasfacetas.Noentanto,métodosnãoatuamautonoma-mente, sem limitaçõesouobstáculos; constituídosdeprocedimentosdeinteraçãoentrealfabetizador(a)ealfabetizandos,efetivam-senainter-relaçãoentreparticipantesdiferenciados,emsituaçãodeaprendizagemcoletiva,emumcontextoescolarinseridoemdeterminadacomunidadesocioeconômica
Deoutro,osalfabetizandostambémsedistinguemporcaracterísticaspessoais–entreoutras,classesocial,gênero,idade,traçosdepersonali-dade,contextofamiliar,domíniodalínguaoral,variantelinguística–,eporexperiênciasdeaprendizagemprévia–convívio,ounão,comalíngua escritano ambienteda família eda comunidade,habilidades,conhecimentos, atitudesdesenvolvidasemrelaçãoàescolaeà línguaescrita.Destaque-se, ainda,o impacto, emsituaçãodeaprendizagemcoletiva, das diferenças individuais entre os alfabetizandos, tanto emrelaçãoàscaracterísticaspessoaisquantoemrelaçãoàsexperiênciasdeaprendizagemanterioresàalfabetização.
Emsegundolugar,asaladeaulaemquesedesenvolveaaprendizagemestáinseridaemumaescolaqueédedeterminadotamanho,temdetermi-nadascondiçõesfísicasemateriais,orienta-seporcertocurrículoecertaorganizaçãodo tempo, é dirigidapordeterminado gestor, está sujeita a
Assim, reconhecendoquemétodosnão sãoaquestão,masumadasquestõesnaaprendizageminicialdalínguaescrita,eaindaquemétodosdevem fundamentar-se empesquisas e teorias sobre essa aprendizagem,estelivro,comoobjetivodeesclareceraquestão dos métodos,apresentaumarevisãodealicercesteóricosdequesepodeminferirmétodosdealfabetiza-ção,istoé,métodosqueorientemodesenvolvimentoeaaprendizagemdafaceta linguísticadaalfabetização,recorteessencialdaaprendizageminicialdalínguaescritaedaintroduçãodacriançaàculturaletrada.