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Questo Nacional e Questo Racial no Pensamento Social
Brasileiro
Alexandro Dantas Trindade1
O objetivo do texto apresentar algumas das principais
controvrsias a respeito da formao social brasileira, atravs da
leitura que intelectuais, considerados intrpretes do Brasil,
elaboraram ao longo dos sculos XIX e XX. Temos como foco central a
formao da nao e a chamada questo racial, explorando suas dimenses
intelectuais e os efeitos polticos de certas teses sobre nossa
constituio nacional.
1 INTRODUO
O objetivo deste texto percorrer algumas leituras do pensamento
social
brasileiro desde o sculo XIX, tendo como foco central a formao
da nao e a
questo racial no Brasil. Exploraremos como esta dimenso foi
pensada por alguns
intelectuais que se colocaram como intrpretes do Brasil e da
formao do povo.
Especificamente, buscaremos compreender como a chamada questo
racial foi lida
ao longo do sculo XX no Brasil, tanto pelo pensamento social
mais amplo como pelas
anlises sociolgicas comprometidas em entender nossa complexa
formao social.
Alm disso, discutiremos as pesquisas mais recentes sobre as
relaes raciais, o papel
e a trajetria dos movimentos sociais de combate s desigualdades,
assim como os
efeitos das recm-implantadas polticas pblicas que visam
reduzi-las, como as aes
afirmativas, por exemplo. No entanto, para que possamos comear a
discutir os temas
acima propostos, acreditamos que uma breve introduo aos temas da
construo da
1 Professor Associado I do Departamento de Cincia Poltica e
Sociologia da Universidade Federal do
Paran (UFPR). Doutor em Cincias Sociais pela Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), em 2004, com a tese intitulada:
Andr Rebouas: da Engenharia Civil Engenharia Social. Coordenador do
Grupo de Pesquisa CNPq Pensamento Social, Intelectuais e Circulao
de Ideias (UFPR) e membro do Ncleo de Estudos Afrobrasileiros (NEAB
/ UFPR). (E-mail: [email protected])
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nao, da escravido e das interpretaes elaboradas pelo pensamento
social acerca
da miscigenao e da formao do povo so fundamentais para
entendermos tanto o
alcance e os limites das pesquisas sobre as relaes raciais como
o papel dos
movimentos sociais e as respostas do Estado frente a esse
fenmeno. Assim,
esperamos que este texto possa contribuir como uma leitura
preliminar para esta
tarefa.
2 PECULIARIDADES DA FORMAO SOCIAL BRASILEIRA: O BRASIL-NAO
COMO
IDEOLOGIA
Para entendermos o alcance e o sentido que o tema das relaes
raciais teve e
ainda tem na sociedade brasileira, no poderamos deixar de
compreender um aspecto
que tem apresentado desafios s cincias sociais e historiografia
contemporneas: o
processo de construo da identidade nacional. Como entender,
afinal, o Brasil-
nao. Mais precisamente, o que entender por nao?
A rigor, no h uma definio unvoca, unnime e universalmente aceita
para o
termo nao. Embora saibamos que a humanidade subdivide-se em
diversas
culturas, que se diferenciam por lnguas, costumes, religies, e
que comportam
unidades polticas, cujos grupos comprometem-se com a ajuda mtua
e submetem-se
a estruturas de autoridade, nem por isso podemos identificar,
com nitidez absoluta,
suas fronteiras culturais ou polticas - as tradies culturais,
como linguagem, devoo
religiosa ou costume popular, frequentemente se entrecruzam; as
jurisdies polticas
podem sobrepor-se umas as outras; e, de maneira geral, as
fronteiras polticas e
culturais raramente so convergentes.
De acordo com um terico poltico contemporneo, Ernest Gellner,
num verbete
para o Dicionrio do Pensamento Social do Sculo XX (1996),
impossvel aplicar o
termo nao a todas as unidades que so cultural ou politicamente
caracterizveis,
j que isso implicaria tanto num nmero excessivo de naes, como no
fato de que
vrios indivduos teriam mltiplas identidades nacionais
(OUTHWAITE; BOTTOMORE,
1996, p. 507). A pergunta sobre como um grupo que compartilha
uma identidade
lingustica, cultural, religiosa, tnica etc., poderia se
constituir numa nao, ou em que
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medida uma unidade poltica pudesse representar uma ou mais
identidades culturais,
a rigor, s teria sentido a partir de um processo histrico
especfico. Mais
precisamente, com o advento da modernidade e do Estado-nao. Isto
, a sociedade
urbana e industrial, palco da mobilidade social e de um estado
organizado, ao
substituir comunidades locais, tribais, baseadas em grupos de
parentesco ou
desprovidas de uma autoridade central, construiu igualmente a
ideia de nao como
aspecto central para garantir a legitimidade diante destas
transformaes na estrutura
social.
Assim, foi na virada do sculo XVIII para o XIX que o termo nao
passou a ter
uma importncia central para a vida de milhes de indivduos, a
ponto de legitimar
rebelies em massa, processos de independncia poltica, domnio de
outros povos,
formas de resistncia a outros grupos, e assim por diante.
Segundo a filsofa Marilena Chau, a etimologia da palavra nao
remonta ao
verbo latino nascor (nascer), e de um substantivo derivado deste
verbo, natio ou
nao. Originalmente significou indivduos nascidos ao mesmo tempo
de uma mesma
me, e, depois, os indivduos nascidos num mesmo lugar (CHAU,
2006, p. 14). No
final da Antiguidade e no incio da Idade Mdia, a Igreja Catlica
passou a usar
nationes, no plural, para se referir aos pagos e distingui-los
do populus Dei, o povo
de Deus. Ou seja, enquanto a palavra povo designava um grupo de
indivduos
organizados institucionalmente, obedientes a regras e leis
comuns, traduzindo,
portanto, um conceito jurdico-poltico, a nao era um conceito
biolgico, que
significava apenas um grupo de descendncia comum, usado para
referir-se tanto aos
pagos (em contraposio aos cristos), como aos estrangeiros (os
judeus, que eram
os homens da nao em Portugal, por exemplo, ou as naes indgenas
que viviam
sem f, sem rei e sem lei, segundo a tica dos colonizadores).
Assim, antes da inveno histrica da nao, como fruto do processo
de
unificao poltica e do advento do Estado-nao, os termos polticos
empregados
eram povo e ptria. Esta ltima era derivada do vocbulo latino
pater, pai,
entendido no como genitor dos filhos, mas como senhor, chefe ou
aquele que
possui a propriedade absoluta da terra e do que nela existe,
isto , do patrimonium.
(Idem, p. 15). A partir do sculo XVIII, com as revolues
norte-americana, holandesa e
francesa, ptria passou a significar o territrio cujo senhor o
povo organizado sob
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a forma de Estado independente, e este vocbulo esteve presente
tambm nas
revoltas que antecederam o processo de Independncia no Brasil,
quando se falava em
ptria mineira, ptria pernambucana, e no em uma ptria brasileira
(Idem, p.
16).
Todavia, o significado etimolgico de palavras como nao,
nacionalidade,
nacionalismo, em si mesmas, nos diz muito pouco acerca dos usos
polticos, das
representaes com que foram usadas, em suma, dos processos
histricos que as
tornaram uma referncia ideolgica central no mundo moderno.
Contudo, a escassez
de teorias plausveis sobre o fenmeno da nao e do nacionalismo no
tem sido
obstculo para que autores como Eric Hobsbawm (1990) e Benedict
Anderson (2008),
para citarmos talvez os mais influentes, realizassem estudos
importantes visando sua
compreenso.
Para o primeiro, alm da nfase quanto ideia de vincular a nao
ao
desenvolvimento do Estado moderno, o elemento de artefato, da
inveno e da
engenharia social que entra na formao das naes de fundamental
importncia. A
viso da nao como algo natural, divino, ou como destino poltico
de um povo,
presente em muitos discursos nacionalistas, no passa de um mito.
Na verdade, o
discurso nacionalista do Estado o que cria as possibilidades
para se pensar a nao, e
no o oposto. (HOBSBAWM, 1990, p. 19).
Esta ideia de construo, inveno ou artefato , digamos,
radicalizada em
Benedict Anderson (2008), para quem tanto a condio nacional
quanto o
nacionalismo so entendidos enquanto produtos culturais
especficos do final do
sculo XVIII. Mais precisamente, o autor prope definir nao,
antropologicamente,
como sendo uma comunidade poltica imaginada: ela imaginada,
porque mesmo
os membros da mais minscula das naes jamais conhecero,
encontraro, ou sequer
ouviro falar da maioria de seus companheiros, embora todos
tenham em mente a
imagem viva da comunho entre eles (ANDERSON, 2008, p. 32). Neste
exerccio de
imaginao da nao, os intelectuais desempenharam e continuam a
desempenhar um
papel destacado, pois so os artfices dessa construo de
imaginrios coletivos
(COSTA, 2008, p. 10).
Seguindo essa ltima ideia, cabe-nos agora indagar sobre como
teria sido o
processo de constituio do Brasil-nao, sendo um caminho possvel o
estudo das
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distintas representaes elaboradas pelos intelectuais. Na
verdade, um tema que tem
intrigado socilogos, historiadores, economistas, cientistas
polticos e outros
pesquisadores tem sido o tema do descompasso entre a criao do
Estado e a
formao da Nao brasileira, ou mais exatamente, da complexidade da
nossa
identidade nacional.
O fascnio pela chamada questo nacional algo que perpassa a
histria do
pensamento brasileiro. Sobretudo em pocas de crise, a questo
nacional mobiliza
diversos intelectuais, geraes inteiras que se voltam para tentar
repensar a nao,
esboar-lhe um sentido, dar-lhe alguma coerncia.
Algumas representaes tm sido mais vigorosas, mais frequentes
ou
hegemnicas, tais como o motivo ednico, isto , a viso paradisaca
do Brasil. Esta
viso presente, pelo menos desde a carta de Pero Vaz de Caminha,
em 1500, foi
expressa de modo exemplar por Rocha Pita, em Histria da Amrica
Portuguesa,
publicado em 1730:
Em nenhuma outra regio se mostra o cu mais sereno, nem madruga
mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfrio tem raios to
dourados, nem os reflexos noturnos to brilhantes; as estrelas so
mais benignas e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasa o
sol, ou se sepulte, esto sempre claros; as guas, ou se tomem nas
fontes pelos campos, ou dentro das povoaes nos aquedutos, so as
mais puras; enfim o Brasil Terreal Paraso descoberto, onde tem
nascimento e curso os maiores rios; domina salutfero clima; influem
benignos astros e respiram auras suavssimas, que o fazem frtil e
povoado de inumerveis habitadores. (ROCHA PITA, 1730, p. 3-4, apud
CARVALHO, 1998, p. 2).
A ideia de que o Brasil gigante pela prpria natureza, terra de
um povo
pacfico e ordeiro, sem revolues, terremotos ou grandes rupturas,
igualmente
parte deste grande mito sobre a identidade nacional. Da mesma
forma que a ideia
de sermos um povo formado pela mistura de trs raas unidas por
uma democracia
racial. Entretanto, ao lado destas, houve diversas outras
representaes,
correspondentes a momentos distintos do nosso processo de formao
social. Foram
vrios os smbolos e emblemas criados pelas elites intelectuais ao
longo do tempo. Em
momentos de crise das instituies, de mudanas sociais intensas,
ou em tempos de
incerteza, elas podem ser vistas como tentativas de se criar uma
narrativa que d
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sentido e uma certa homogeneidade ao que, na verdade, catico e
contraditrio,
sujeito a vrias leituras possveis.
Segundo Octvio Ianni, visto numa perspectiva histrica ampla, o
Brasil revela-se
como uma formao social caleidoscpica, um arquiplago, uma espcie
de
labirinto de elementos culturais e tnicos, simultaneamente s
diferentes formas de organizao do trabalho e da produo. Essa uma
formao social em que convivem formas de sociabilidade constitudas
em distintas pocas e em diferentes regies; regies que por muito
tempo, at meados do sculo 20, compunham uma espcie de arquiplago,
em lugar de um pas socialmente articulado. (IANNI, 2004, p.
160).
Uma nao em busca de um conceito - ainda segundo o autor, o
Brasil ainda
no propriamente uma nao, embora possa ser um Estado nacional, no
sentido de
um aparelho estatal organizado, abrangente e forte, que acomoda,
controla ou
dinamiza tanto estados e regies como grupos raciais e classes
sociais (IANNI, 2004, p.
199). Em suma, o Brasil revela uma vasta desarticulao, a
despeito de seus
smbolos, como a lngua, a bandeira, a moeda, o mercado, seus
santos e heris, etc.
Apenas aparentemente podemos pensar uma cultura brasileira.
Todavia, a
identidade nacional forte o suficiente a ponto de naturalizarmos
nossa condio de
brasileiros.
Este aspecto contraditrio , na verdade, produto de uma situao
paradoxal
que se verificou no apenas no Brasil, mas que foi extensivo s
naes do Novo
Mundo. que, diferentemente das naes europeias, cuja estratgia
fora a de
estreitar os vnculos com um passado tanto mais glorioso quanto
mais remoto, na
Amrica a Independncia significou o rompimento poltico com
metrpoles que eram
importantes matrizes identitrias (COSTA, 2008, p. 4). Ou seja,
ao mesmo tempo em
que os pases americanos rompiam com suas metrpoles, no podiam
renunciar sua
ligao com o mundo europeu do ponto de vista cultural e poltico,
tampouco afastar-
se do sistema mundial de Estados-naes, mas teriam que pertencer
a ele de outra
maneira.
No caso brasileiro, o paradoxo deste processo de Independncia
foi at mais
evidente, pois a manuteno da unidade territorial do domnio
portugus
correspondeu muito mais a uma viso da antiga metrpole do que a
uma demanda
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dos prprios colonos, ao contrrio do que aconteceu no restante do
continente sul-
americano. A Amrica Espanhola fragmentou-se em tantos pases
independentes
quanto eram suas antigas subdivises administrativas coloniais.
Alm disto, enquanto
aqueles pases experimentaram processos mais ou menos intensos de
balcanizao,
caudilhismo e instabilidade poltica, embora com maior mobilizao
popular, o Brasil
assistiu a um processo de reduo do conflito nacional, juntamente
com a limitao da
mobilidade social e da participao poltica. O resultado foi que o
Estado brasileiro se
constituiu numa espcie de flor extica no contexto
latino-americano ao manter-se,
ao longo da maior parte do sculo XIX, como uma monarquia e um
pas escravista ao
lado de repblicas formalmente livres.
Uma explicao para o fenmeno dada por Jos Murilo de Carvalho,
para quem
tal quadro teria sido o resultado da maior unidade ideolgica da
elite poltica
brasileira, em comparao com as dos demais pases (CARVALHO, 1996,
p. 209).
Segundo o autor,
a maior continuidade com a situao pr-independncia levou a
manuteno de um aparato estatal mais organizado, mais coeso, e tambm
mesmo mais poderoso. Alm disso, a coeso da elite, ao reduzir os
conflitos internos aos grupos dominantes, reduziu tambm as
possibilidades ou a gravidade de conflitos mais amplos da
sociedade. A ausncia de conflitos polticos que levassem a mudanas
violentas de poder tinha tambm como conseqncia a reduo de um dos
poucos canais disponveis de mobilidade social ascendente. Em vrios
outros pases da Amrica Latina, os caudilhos eram frequentemente
recrutados em camadas populares. A manuteno da escravido, um
compromisso da elite com a propriedade da terra, reforou mais ainda
o aspecto de reduo da mobilidade social. (Idem, p. 36).
exatamente sobre esta questo que Carvalho aponta um trao
singular do
processo poltico brasileiro: tratar-se-ia do paradoxo de o canal
de mobilidade mais
importante para os elementos no inseridos no sistema econmico
agrrio-escravista
ter sido a prpria burocracia. O Estado, ao mesmo tempo em que
dependia da
manuteno da grande agricultura e da escravido, tornava-se refgio
para os
elementos mais dinmicos que no encontravam espao de atuao dentro
dessa
agricultura. Tal quadro, entretanto, tendia a favorecer a atuao
da prpria elite
poltica: Instalava-se dentro do prprio Estado uma ambigidade
bsica que dava
elite poltica certa margem de liberdade de ao (Idem, p. 38).
Isso permitiu a
concordncia acerca de pontos bsicos, tais como a manuteno da
unidade do pas, a
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condenao dos governos militares, a defesa do sistema
representativo e da
monarquia, e, sem dvida, tambm a necessidade de preservar a
escravido.
Tais questes estavam no cerne da reflexo e da ao poltica de um
funcionrio
de alto escalo do Imprio Portugus que, pela fora das
circunstncias, acabou
ficando frente do processo de independncia do Brasil, em 1822:
Jos Bonifcio de
Andrada e Silva (1763-1838). Podemos dizer que o pensamento
poltico e social de
Bonifcio exemplar de um tipo de reflexo, ou de um estilo de
pensamento, que tem
como pressuposto uma sociedade civil que carece de formas de
auto-organizao,
dependendo por sua vez de um Estado forte. Nesta representao, a
sociedade, o
povo, a nao, devem ser orquestrados, tutelados por este ator
poltico fundamental
que o Estado.
Vejamos um pouco o contexto em que este autor formulou
questes
posteriormente retomadas pelos intelectuais. Entre 1808 e 1821,
o Rio de Janeiro fora
a capital de Portugal e das possesses portuguesas na frica e na
sia. Este
acontecimento, sem precedentes na histria colonial, marcaria
profundamente a
evoluo nacional brasileira. A transferncia da administrao e da
Coroa portuguesas
lanava as bases da Independncia do Brasil, numa relao direta com
o
enfraquecimento do sistema colonial metropolitano. Alm disto,
assolada pelas
guerras napolenicas, a Dinastia de Bragana s pde ser salva
mediante a interveno
da Inglaterra, e isto traria graves desdobramentos polticos, o
principal deles incidindo
sobre a manuteno do trfico negreiro. Um fato at ento incomum no
mundo
colonial seria responsvel por meio sculo de atritos diplomticos
entre Inglaterra,
Portugal e Brasil: a internacionalizao da questo do trfico
negreiro. As presses
britnicas pela sua abolio deslocariam aquele comrcio do mbito
exclusivo da
poltica colonial portuguesa para um domnio internacional,
sujeito covigilncia
britnica. Presses essas que levaram Portugal a coibir o comrcio
de escravos, mas
que tiveram uma consequncia imprevista: sua clandestinidade.
(ALENCASTRO, 1986,
p. 430). Ao longo da primeira metade do sculo XIX, e a despeito
da mquina de guerra
naval britnica, a sndrome da falta de africanos do Brasil levou
o comrcio negreiro
ilcito a propores jamais vistas at ento. Desde o sculo XVI, o
Brasil era, de
longe, o agregado poltico e econmico que recebeu o maior nmero
de escravos
africanos. Todavia, entre 1810 e 1850, o Brasil exerceu um quase
monoplio na
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compra de escravos: do sculo XVI at 1850, perto de 10 milhes de
africanos foram
transportados para o outro lado do Atlntico, sendo que desta
cifra, perto de 38%
vieram para o Brasil, 17% para a Amrica espanhola, 17% para as
Antilhas francesas,
17% para as Antilhas britnicas, 6% para as Antilhas holandesas,
e 6% para os Estados
Unidos. No perodo entre 1810-1850, dos cerca de 1.900.000
africanos
clandestinamente desembarcados na Amrica, o Brasil captou 80%
daquele conjunto
(Idem, passim).
A importncia do trfico negreiro e da escravido, mais do que
simples heranas
da era colonial, repercutiriam diretamente sobre a ordem poltica
da nova nao. O
projeto civilizador de Jos Bonifcio pretendia viabilizar este
novo pas, e tinha que
contar com a adeso dos proprietrios de terra e de escravos e com
os traficantes e
escravos, isto , a base econmica essencial de uma economia
agrcola montada sobre
o trabalho escravo africano. E isso num momento em que esta
mesma base de
sustentao poltica e econmica comeava a ser posta em causa pelo
contexto
internacional, fator que trazia problemas para a legitimidade da
soberania nacional.
Assim, de um lado, como obter o consenso dos poderosos
proprietrios rurais e
dos traficantes de escravos? De outro lado, como viabilizar uma
ordem poltica com a
presena de escravos africanos de diversas procedncias, escravos
estes que, ao
compor a essncia das relaes de trabalho e, portanto, fator
constitutivo dos
interesses da classe senhorial, isto , interesses privatistas
por excelncia, punham em
causa a prpria sobrevivncia do Estado moderno e da ordem
liberal, calcada na
igualdade poltica? Em suma, como fazer com que estes interesses,
que se excluam
mutuamente e, mais do que isto, expressavam a mais gritante
heterogeneidade e
desigualdade, constitussem uma s e mesma nacionalidade?
Assim que a reflexo de Jos Bonifcio situa-se num momento mpar
da
histria do Brasil. Nos dois anos em que esteve frente dos
principais acontecimentos
polticos entre 1821 e 1823, como ministro de Estado , Bonifcio
teve um papel
fundamental na articulao da Independncia, da construo de um
Estado nacional e
da conquista de um imprio brasileiro (DOLHNIKOFF, 1998, p.
19).
O conjunto fragmentado de seus escritos, reunidos sob o ttulo de
Projetos para
o Brasil, expressam muito bem suas oscilaes e ambiguidades, mas
tambm suas
convincentes certezas. Em sua Representao Assemblia Geral
Constituinte e
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Legislativa do Imprio do Brasil sobre a Escravatura, escrito em
1823, Bonifcio atenta
para a essncia do que seria uma nao homognea. Sua crtica
dirige-se
diretamente contra o trfico negreiro para, a partir de sua
extino, ir constituindo
uma ordem social e poltica que subvertesse, gradualmente, o
legado da escravido.
Afirma Bonifcio:
tempo pois, e mais que tempo, que acabemos com um trfico to
brbaro e carniceiro; tempo tambm que vamos acabando gradualmente at
os ltimos vestgios da escravido entre ns, para que venhamos a
formar em poucas geraes uma nao homognea, sem o que nunca seremos
verdadeiramente livres, respeitveis e felizes. da maior necessidade
ir acabando tanta heterogeneidade fsica e civil; cuidemos pois
desde j em combinar sabiamente tantos elementos discordes e
contrrios, e em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um
todo homogneo e compacto, que se no esfarele ao pequeno toque de
qualquer nova convulso poltica. (ANDRADE E SILVA, 1998, p.
48-9).
O sistema colonial teria fomentado um povo mesclado e
heterogneo, sem
nacionalidade, e sem irmandade porque interessava sua prpria
manuteno.
Todavia, uma vez nao independente, como poderia haver uma
Constituio liberal
e duradoura em um pas continuamente habitado por uma multido
imensa de
escravos brutais e inimigos? (Idem, p. 48). Com efeito, Bonifcio
compreende que
sem a abolio do trfico negreiro e a gradual emancipao da
escravatura, no
apenas a liberal Constituio, como a prpria estrutura do Estado
moderno, ficariam
comprometidos.
No entanto, o que nos parece ilustrar melhor sua argumentao,
embora no se
esgote nela, est na sua perspectiva sobre a formao nacional. O
incentivo
miscigenao, a proteo famlia num sentido amplo, fosse ela
composta por
escravos, por negros livres, brancos ou ndios , bem como o
incentivo imigrao
europeia, delineiam uma poltica populacional que deveria
estabelecer os parmetros
da nacionalidade. Nesse sentido, o Estado, para Bonifcio,
deveria ser uma espcie de
escultor prudente, que de pedaos de pedra faz esttuas.
Misturemos os negros com
as ndias, e teremos gente ativa e robusta tirar do pai a
energia, e da me a doura
e bom temperamento (idem, p. 155-6).
Esta preocupao tambm est presente nos seus Apontamentos para
a
civilizao dos ndios bravos do Imprio do Brasil, apresentado
Assembleia
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Constituinte em 1823. Dentre as medidas do Tribunal Conservador
dos ndios, que
tambm postula, est a de introduzir nas aldeias j civilizadas
brancos e mulatos
morigerados para misturar as raas, ligar os interesses recprocos
dos ndios com a
nossa gente, e fazer deles todos um s corpo da nao, mais forte,
instruda e
empreendedora, e destas aldeias assim amalgamadas [ir]
convertendo algumas em
vilas (...) (idem, p. 119).
Bonifcio considerava que o Estado deveria ser o gerenciador dos
conflitos e das
relaes de trabalho, anulando o arbtrio senhorial. Defende uma
espcie de
despotismo esclarecido que daria ao governo a legitimidade da
tutela de uma
sociedade que, a seu ver, era profundamente heterognea, disforme
e incapaz de
guiar-se por si mesma.
Algumas reflexes de Jos Bonifcio seriam recuperadas no final do
sculo XIX
por um poltico e intelectual que, comprometido em recriar o pas
altura do que se
considerava a civilizao, buscou compreender as condies e
possibilidades de
progresso, de industrializao, urbanizao, modernizao; em suma,
buscou explorar
as diversas possibilidades de civilizar o pas. Assim, Joaquim
Nabuco (1849-1910) fez
da anlise sobre os efeitos sociais e polticos da escravido seu
principal tema. Em seu
livro O Abolicionismo, escrito em 1883, Nabuco percebia a
necessidade de um projeto
civilizatrio nos trpicos. A escravido, segundo ele, operava uma
ciso social, poltica
e jurdica entre a boa sociedade, assimilada ao modelo europeu e
projetada como o
que deveria ser a nao, e sua base social real, identificada com
a natureza e a
barbrie. Mais importante, Nabuco percebeu que a escravido
produzia efeitos
perversos no apenas sobre o escravo, mas principalmente sobre as
camadas livres da
sociedade, resultando com isso a ausncia efetiva de cidadania.
Nabuco entendia a
escravido como uma instituio totalizante, e tal interpretao era,
em si, uma
intuio quase sociolgica. Mais do que isso, tratava-se de uma
perspectiva radical,
reveladora de um pensamento liberal democrtico: ao compreender a
escravido
como um fato global, e demandando, portanto, uma reforma global,
Nabuco teria
introduzido, segundo Marco Aurlio Nogueira, uma novidade
poltica: considerando
com inteligncia a distino entre escravido visvel e escravido que
no se v,
[Nabuco] realizou uma devastadora crtica da instituio e de seu
regime social, dando
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ao abolicionismo uma consistncia doutrinria at ento inexistente
(NOGUEIRA,
1984, p. 111).
Segundo Nabuco, a escravido em si constitua o principal
obstculo
construo da nao. Citando Jos Bonifcio, afirmava que com a
escravido no
haveria patriotismo nacional, mas somente patriotismo de casta,
ou de raa. Assim,
o sentimento que serv[iria] para unir todos os membros da
sociedade subverter-se-
ia com a presena da escravido, passando a ser explorado para o
fim de dividi-los:
Para que o patriotismo se purifique, preciso que a imensa massa
da populao livre, mantida em estado de subservincia pela escravido,
atravesse, pelo sentimento da independncia pessoal, pela convico da
sua fora e do seu poder, o longo estagio que separa o simples
nacional que hipoteca tacitamente, por amor, a sua vida defesa
voluntria da integridade material e da soberania externa da ptria
do cidado que quer ser uma unidade ativa e pensante na comunho a
que pertence. (NABUCO, 1999, p. 188).
Entretanto, a perspectiva de Nabuco a despeito de sua plataforma
poltica
liberal-democrtica, de sua esperana na difuso da cidadania e do
diagnstico dos
entraves para a modernidade, recai no mesmo dilema de Jos
Bonifcio: diante de
uma sociedade civil dilacerada por interesses conflitantes,
amorfa e fragilizada, no
restaria seno ao Estado a incumbncia de destruir a escravido,
instaurar a cidadania
e formar a nao. Na verdade, o poder da escravido era de tal
magnitude que o
Governo no seria mais do que o resultado da abdicao geral da
funo cvica por
parte do nosso povo. Contudo, mesmo sendo o resultado desta
apatia poltica, o
Governo seria a nica fora capaz de destruir a escravido,
da qual, alis, dimana, ainda que, talvez, venham a morrer
juntas. Essa fora, neste momento, est avassalada pelo poder
territorial, mas todos vem que um dia entrar em luta com ele, e que
a luta ser desesperada, quer este pea a abolio imediata, quer pea
medidas indiretas, quer queira suprimir a escravido de um jato ou,
somente, fechar o mercado de escravos. (NABUCO, 1999, p. 211).
A representao do Brasil-nao em Jos Bonifcio e Joaquim Nabuco,
para
ficarmos apenas com estes dois autores emblemticos do sculo XIX,
figurava numa
perspectiva modernizadora, ainda que em compasso de espera:
diante de uma
sociedade em processo de formao, de uma nacionalidade heterognea
e amorfa,
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sem identidade, restava a promessa de um futuro moderno a ser
conduzido pelo
Estado, Estado este tutelar para Bonifcio, civilizador para
Nabuco. Apesar do
diagnstico negativo sobre a sociedade, no lhes ocorria deixar de
apostar numa
perspectiva positiva de superao do atraso.
3 MOTIVOS IBRICOS E A MODERNIDADE NO BRASIL
Contudo, um outro conjunto de representaes sobre o povo e a
nao
sinalizava para algo diverso ao desta perspectiva progressista.
Embora tambm possua
razes nos momentos chave da construo do Estado brasileiro isto ,
durante a
Independncia e ao longo dos anos 1850, quando o Estado
consolidou-se, viabilizado
mediante um processo de centralizao poltica e administrativa ,
tal representao
foi melhor exposta ao longo das primeiras dcadas do sculo
XX.
Em geral, atribui-se a certas representaes que avaliam
positivamente a
herana portuguesa e o legado colonial, ou ainda que os
consideram como ilustrao
inequvoca de uma cultura genuinamente luso-brasileira, o nome de
iberismo.
Sinteticamente, podemos entender o iberismo como sendo a
valorizao ou a
recuperao das razes ibricas da nacionalidade brasileira, caminho
trilhado por
autores que desconfiavam que a modernizao das relaes sociais,
que o liberalismo
poltico, ou que o princpio da representao poltica e mesmo da
democracia
pudessem ser adotados no Brasil, uma vez que estas instituies no
corresponderiam
realidade das nossas tradies e costumes polticos. O iberismo
pressupe a ideia de
que Portugal e Espanha no teriam sido formaes culturais e
polticas tipicamente
europeias ou ocidentais, mas regies nas quais valores centrais
do mundo
moderno, como o individualismo, o contratualismo, o mercado, a
competio, o
conflito de interesses e a democracia burguesa no teriam sido
importantes no
estabelecimento de suas tradies polticas. Ao invs destes
valores, estabelece outros
ideais para a sociedade, tais como a cooperao, a integrao, o
predomnio do
interesse coletivo e comunitrio sobre o individual, o
personalismo, o patriarcalismo,
etc. Pode-se dizer que o iberismo uma tradio alternativa ao
Ocidente anglo-
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saxo, puritano, calcado numa tica do trabalho de matriz
protestante. (CARVALHO,
1991, p. 89). Trata-se, portanto, de uma tese antiliberal.
Um dos autores mais influentes desta linha de reflexo foi
Paulino Jos Soares
de Souza, o visconde de Uruguai (1807-1866). Escrevendo e
atuando politicamente em
meados do sculo XIX, Uruguai foi uma das principais figuras do
ncleo duro do
Partido Conservador durante o Imprio. Partido este que tinha
tambm Rodrigues
Torres e Eusbio de Queirz como os membros do que se entende por
Trindade
Saquarema: este grupo se notabilizou como um rduo defensor do
processo de
centralizao do Estado e da manuteno da unidade territorial,
contra as ideias
federalistas e as teses liberais representadas pelas elites
regionais. (FERREIRA, 1999).
Para estadistas como Uruguai, os usos, costumes, hbitos,
tradies, carter nacional
e educao cvica de cada povo eram particularidades que deveriam
ser levadas em
conta para a ao poltica. Isto , os povos tinham diferentes
tradies polticas, e
implantar instituies de uns em outros podia ser desastroso ou,
no mnimo, incuo
(CARVALHO, 1991, p. 87).
Um autor muito representativo desta tradio saquarema, j nos anos
1920,
foi Oliveira Viana (1883-1951). Pode-se dizer que sua obra
revela orientaes comuns
a vrios intelectuais do perodo compreendido entre a Abolio da
Escravatura, em
1888, e os primeiros anos da Repblica Velha. Em vrias
interpretaes do Brasil,
embora com resultados analticos diversos, os intelectuais se
debruaram sobre a
colonizao portuguesa, procurando os nexos fundamentais que
constituram a
formao do Pas. A pergunta fundamental era esta: somos ou no uma
efetiva nao?
A originalidade de Oliveira Viana foi a de, ante ao desafio de
desvendamento colocado
acima, ter elaborado uma anlise da realidade que transcendeu os
limites do discurso
de seu tempo, predominantemente de carter jurdico, debruando-se
antes num
amplo leque de disciplinas que ia da Antropologia Histria, da
Sociologia ao Direito e
Etnologia. Neste sentido, poderamos situar a mesma pergunta sob
dois registros
diferentes: o que constitui uma nao? e, concomitantemente a ela,
quais as tarefas
necessrias para a sua constituio?, de tal forma que a
originalidade do autor estaria
em equacion-las e elaborar uma viso prospectiva e de conjunto do
Brasil.
Ao lado de uma atitude fatalista e racialista, ponto comum do
debate intelectual
daquele contexto, Viana superou alguns dos dilemas de seu tempo.
De uma forma
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geral, apontou solues mais otimistas, dadas particularmente pela
eugenia e pelo
papel destinado s elites. Vem dele uma atitude nova perante a
heterogeneidade da
populao brasileira. Alm disto, prescreveu uma nova ordem social
que pudesse
superar o que entendia ser o divrcio entre o Brasil legal e o
Brasil real, isto ,
entre as instituies e a realidade, entre a letra da Lei e a
frgil e amorfa sociedade.
Para isso, Viana criticou os pressupostos do evolucionismo de
cunho darwinista, que
concebia uma linha evolutiva nica para a humanidade, com povos
superiores e
inferiores.
Na verdade, o autor descarta esta vertente universalista ao
postular uma
pluralidade de linhas evolutivas, cujas raas se desenvolveriam a
partir de um conjunto
de causas, como o espao geogrfico, a histria, as instituies, a
cultura, alm do
aspecto propriamente biolgico. Deste particularismo, Vianna
conclua ser impossvel
uma perfeita integrao intertnica: cada agregado humano hoje,
para a crtica
contempornea, um caso particular, impossvel de assimilao
integral com qualquer
outro agregado humano, e a atuao de todo um complexo causal
acabaria por
promover entre eles diferenas irredutveis, mesmo entre os que
vivem mergulhados
na mesma atmosfera de civilizao (VIANA, 1933, p. 19-24). que das
diferenas de
estrutura social, histrica, etc., surgiriam diferenas sutis de
mentalidade que o
autor denomina de complexos. Uma decorrncia fundamental desta
afirmao a
crtica transplantao das ideias e das instituies. A defesa que
faz do realismo
e da objetividade frente s solues idealistas e liberais desta
ordem. Da ao
poderosa de uma complexidade de agentes resultaria a
singularidade de um povo, e,
portanto, a no intercambialidade de seus valores e modos de
vida;
consequentemente, de suas instituies polticas:
O grande movimento democrtico da Revoluo Francesa; as agitaes
parlamentares inglesas; o esprito liberal das instituies que regem
a Repblica Americana, tudo isto exerceu e exerce sobre os nossos
dirigentes polticos, estadistas, legisladores, publicistas, uma
fascinao magntica, que lhes daltoniza completamente a viso nacional
dos nossos problemas. Sob esse fascnio inelutvel, perdem a noo
objetiva do Brasil real e criam para uso deles um Brasil
artificial, e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in
Europe sorte do cosmorama extravagante, sobre cujo fundo de
florestas e campos, ainda por descobrir e civilizar, passam e
repassam cenas e figuras tipicamente europias. (VIANA, 1987a, p.
19).
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Por fim, a defesa da eugenia foi outro aspecto importante nas
teses de Oliveira
Viana: atravs dela, fez consideraes sobre a potencialidade do
branqueamento da
populao (via imigrao europeia), e estabeleceu uma interpretao
sobre a
formao da sociedade brasileira que passava pela valorizao
positiva do papel do
latifndio. Este, por exemplo, era assim concebido por Vianna, em
sua obra mais
conhecida, Evoluo do Povo Brasileiro, escrita em 1923:
O latifndio cafeeiro, como o latifndio aucareiro, tem uma
organizao complexa e exige capitais enormes: pede tambm uma
administrao hbil, prudente e enrgica. , como o engenho de acar, um
rigoroso selecionador de capacidades. S prosperam, com efeito, na
cultura dos cafezais as naturezas solidamente dotadas de aptides
organizadoras, afeitas direo de grandes massas operarias e concepo
de grandes planos de conjunto. O tipo social dela emergente , por
isso, um tipo social superior, tanto no ponto de vista das suas
aptides para a vida privada, como no ponto de vista das suas
aptides para a vida pblica. Da formar-se, nas regies onde essa
cultura se faz a base fundamental da atividade econmica, uma elite
de homens magnificamente providos de talentos polticos e
capacidades administrativas. (VIANA, 1933, p. 104).
Com base nestas consideraes, a identidade nacional brasileira
passaria pela
prpria histria do latifndio, como organizador e selecionador dos
indivduos no
brancos, de acordo com suas potencialidades. O latifndio seria
assim, o grande
medalhador do povo brasileiro, cuja essncia era e permaneceria
rural aos olhos de
Viana. Alm disto, em funo mesmo do papel do latifndio, o autor
elabora uma
histria do Brasil na qual no existem rupturas, conflitos,
revolues, e que culminaria
na fixao de uma particular psicologia poltica no povo. Ou seja,
Oliveira Viana
defende explicitamente a adoo de formas autoritrias de poder
poltico, com base
num suposto diagnstico de fragilidade da sociedade, das
instituies liberais, da
ausncia de esprito de associao. Seno, vejamos:
O nosso homem do povo procura um chefe, e sofre sempre uma como
que vaga angstia secreta todas as vezes que, por falta de um
condutor ou de um guia, tem necessidade de agir por si,
autonomamente. (...). essa certeza intima de que algum pensa por
ele e, no momento oportuno, lhe dar o santo e a senha de ao, essa
certeza ntima que o acalma, o assegura, o tranqiliza, o refrigera.
Do nosso campnio, do nosso homem do povo, o fundo da sua
mentalidade esta. Esta a base de sua conscincia social. Este o
temperamento do seu carter. Toda a sua psicologia poltica est
nisso. (VIANA, 1987b, p. 67).
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H um aspecto importante a ser analisado aqui. As chamadas
ideias
raciolgicas ou racistas, tiveram sua origem por volta de 1840,
mas estavam sendo
severamente questionadas j no final do sculo XIX na Europa, de
onde tambm
haviam surgido. Elas haviam exercido uma forte influncia
intelectual e poltica nos
discursos nacionalistas de ento, discursos estes que fizeram dos
estudos raciais
uma chave importante de legitimao para a valorizao de uns e
inferiorizao de
outros povos. Mas o que dizer a respeito de autores brasileiros
que escreveram ainda
em 1920, como no caso de Oliveira Viana, com base em
pressupostos questionados
cientificamente?
Segundo Renato Ortiz, tais teorias raciolgicas tornavam-se
precisamente
hegemnicas no Brasil no mesmo momento em que entravam em declnio
na Europa,
onde a explicao sociolgica e cultural ganhava fora frente ao
discurso biolgico das
raas humanas (ORTIZ, 2006, p. 29). que parte da elite
intelectual brasileira
preocupava-se, na passagem do sculo XIX para o XX, em
efetivamente construir uma
identidade nacional, e para isso, tinham que se reportar s
condies reais de
existncia do pas, isto , a Abolio, o aproveitamento do
ex-escravo como
proletrio, a imigrao estrangeira, a consolidao da Repblica,
questes particulares
daquele contexto no Brasil. Se a nao vivia, por exemplo, a
questo da imigrao
estrangeira, at como forma de resolver a transio para a ordem
capitalista,
a questo da raa [era] a linguagem atravs da qual se apreend[ia]
a realidade social, ela reflet[ia] inclusive o impasse da construo
de um Estado nacional que ainda no se consolid[ara]. Nesse sentido,
as teorias importadas [tinham] uma funo legitimadora e cognoscvel
da realidade. (ORTIZ, 2006, p. 30).
Este cenrio comea a mudar ainda em 1920, com a ascenso do
modernismo
enquanto movimento intelectual, e se cristaliza ao longo de
1930. Com a Revoluo
que levou Getlio Vargas ao poder, o Brasil viveu uma espcie de
precipitao das
potencialidades das crises e controvrsias herdadas do passado,
delineando mais
claramente distintas correntes de pensamento.
A marcha do processo poltico e das lutas sociais, de par com a
crise da cafeicultura, os surtos de industrializao, a urbanizao, a
emergncia de um proletariado incipiente, os movimentos sociais de
base agrria, tais
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como o cangao e o messianismo, tudo isso repunha, desenvolvia e
criava desafios urgentes para cada setor e o conjunto da sociedade
nacional. (IANNI, 2004, p. 24).
Assim, ao longo daquela dcada, algumas das interpretaes clssicas
sobre a
sociedade brasileira foram desenvolvidas tendo como fio condutor
um processo de
sistematizao do conhecimento sociolgico acerca da identidade
nacional.
Paralelamente, aquela dcada foi decisiva para a reorientao da
historiografia e das
cincias sociais. Ao lado de grandes transformaes polticas, de
acelerao do
processo de urbanizao, de complexificao das relaes sociais, um
Estado
centralizado procurava ento orientar o prprio desenvolvimento
social e econmico.
Neste quadro, as teorias raciolgicas tornavam-se obsoletas,
precisavam ser superadas
em razo de novas demandas sociais e polticas.
Precisamente naquele contexto histrico, um autor se destacava no
conjunto
dos chamados intrpretes do Brasil por recuperar e revalorizar a
representao da
nao nos termos do iberismo: Gilberto Freyre (1900-1987). Com a
publicao de seu
Casa Grande & Senzala, em 1933, Freyre reeditou a temtica
racial e a identidade
nacional, constituindo-as em chave para a compreenso do Brasil.
Contudo, no as faz
a partir do critrio racista, ou raciolgico, como na abordagem de
Oliveira Viana.
Tampouco elegeu o Estado como o agente central do processo de
formao social. Ao
contrrio, Gilberto Freyre opera uma dupla inverso de termos: ao
invs da raa,
pensa a cultura; ao invs do Estado, pensar a Sociedade.
No que diz respeito questo racial, a utilizao do conceito de
cultura
permite a superao de uma srie de dificuldades anteriormente
encontradas a
respeito da herana atvica negativa da mestiagem, e Freyre a
transforma em valor
extremamente positivo. Na verdade, muito mais do que ter
superado alguns temas
anteriores baseado em novos recursos metodolgicos, Freyre foi o
primeiro a lanar
mo de uma viso positiva sobre o pas, tal qual ele era de fato.
De um lado, rejeita as
consideraes de ordem racial, particularmente a sociobiologia, e
introduz novos
instrumentos tericos como as anlises culturalistas. No sem razo
que grande
parte de sua popularidade tenha advindo da desconstruo, ao menos
em tese, do
discurso racista da inferioridade atvica por conta da
hereditariedade biolgica de
negros e ndios. Ao menos em tese, porque, na verdade, h um
remanejamento da
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questo racial: Freyre adota, segundo Ricardo Benzaquem Arajo,
uma noo
neolamarckiana de raa, segundo a qual se admite a
hereditariedade de caracteres
adquiridos, isto , a possibilidade de raas artificiais ou
histricas (ARAJO, 1994, p.
39). Por exemplo, Freyre alude experincia colonial portuguesa no
Brasil atribuindo
ao brasileiro o carter de ser quase outra raa, com apenas um
sculo de distncia
da pennsula ibrica (FREYRE, 2005, p. 36). Alm disto, supe uma
hierarquia, no mais
racial, mas cultural, vale dizer, tendo como parmetro a maior ou
menor complexidade
cultural ou grau de cultura. Assim sendo, empreendeu um estudo
das etnias africanas
presentes no Brasil, tendo em vista a caracterizao deste grau
cultural. Ser escravo
ladino ou boal (isto , j aclimatado ou recm-chegado) seria
precisamente uma
referncia origem e ao grau desta cultura. Da a refutao do
argumento racista que,
todavia, repunha a desigualdade, embora aparentemente disfarada.
Diz ele,
revelando sua ambiguidade em relao a esta temtica:
Fique bem claro, para regalo dos arianistas, o fato de ter sido
o Brasil menos atingido que os Estados Unidos pelo suposto mal da
raa inferior. Isto devido ao maior nmero de fula-fulos e
semi-hamitas falsos negros e, portanto, para todo bom arianista, de
estoque superior ao dos pretos autnticos entre os emigrantes da
frica para as plantaes e minas do Brasil. (FREYRE, 2005, p.
388).
Evidentemente, permanece a distino entre maior e menor
capacidade
intelectual, a meno a vocaes profissionais, a valores e
orientaes religiosas como
marcas e elementos que no se alteram, mas que, postos em contato
com outros
povos e etnias, resultam numa composio hbrida. Isto porque uma
outra
particularidade da anlise gilbertiana acerca da miscigenao
precisamente a ideia
de que no haveria uma fuso de valores e aptides entre etnias
distintas: a
miscigenao seria antes de tudo um processo de hibridizao, sob a
qual
permaneceriam as caractersticas e propriedades de cada
agrupamento humano.
(ARAJO, 1994, p. 44).
Outra questo importante refere-se reinterpretao da eugenia.
Percebe-se
que a preocupao com a mobilidade e o carter eugnico da
participao do negro na
sociedade brasileira constantemente colocado. Concorreria para
isso o carter
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liberal do patriarcalismo, liberalidade esta entendida no
sentido de certa frouxido
moral, promovendo o livre
intercurso sexual de brancos dos melhores estoques inclusive
eclesisticos, sem dvida nenhuma, dos elementos mais seletos e
eugnicos na formao brasileira com escravas negras e mulatas (...).
Resultou da grossa multido de filhos ilegtimos mulatinhos criados
muitas vezes com a prole legtima, dentro do liberal patriarcalismo
das casas-grandes; outros sombra dos engenhos de frades; ou ento
nas rodas e orfanatos. (FREYRE, 2005, p. 531).
A miscigenao teria promovido ainda a construo de um elemento
social e
eugenicamente superior que seria o mestio. Percebe-se, todavia,
que a questo da
inter-relao entre etnias e culturas acompanha a caracterizao que
o autor faz da
famlia patriarcal. Sua importncia concorreria para a constituio
no pas de uma
democracia racial, e questes como a eugenia podem ser lidas a
partir da anlise do
papel da famlia patriarcal, precisamente, do sistema patriarcal
e do complexo da
casa grande. A importncia deste sistema decorreria de sua
capacidade singular em,
face escravido, ter mantido a harmonia e o equilbrio
sociais.
Para Gilberto Freyre, a escravido no Brasil, longe de fortalecer
a desigualdade e
estabelecer um fosso intransponvel entre dominantes e dominados,
teria sido
desenvolvida de maneira singular, diferenciando-se, por exemplo,
daquela praticada
no sul dos Estados Unidos, alis comparao bastante recorrente.
Freyre chama a
ateno para a lenincia, ou brandura, do regime escravocrata por
conta da ao
eficaz da famlia senhorial em contemporizar dominantes e
dominados, brancos e
no brancos, reduzindo as distncias entre a casa grande e a
senzala.
Em suma, para Freyre, a histria da formao do povo brasileiro
confunde-se
com a histria da famlia patriarcal. Responsvel pelo clima
edulcorado do regime
escravo, teria sido a base essencial para a miscigenao em larga
escala, criando
zonas de confraternizao entre vencedores e vencidos, e promoveu
a eugenia dos
negros ladinos ou islmicos, bem como a das mulheres,
possibilitando sua ascenso
social. A meno ao equilbrio pode ser lida aqui como a evidncia
de uma cultura
poltica da conciliao: ela seria expresso da competncia da famlia
senhorial em
no permitir que momentos de crise desembocassem em rupturas
profundas. Alis, o
prprio mtodo de anlise de Freyre condiz com esta interpretao:
foca sempre o
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espao da casa, a esfera ntima, as cartas e os dirios deixados
pelas grandes famlias
senhoriais. Assim, as transformaes que culminaram na Repblica so
interpretadas
por Freyre tendo como referncia, no a mudana vinda das ruas, dos
movimentos
sociais, das novas relaes sociais advindas com a transio para a
modernidade, mas
to somente como indcios da decadncia da famlia patriarcal frente
aos processos
de urbanizao. Embora profundas, tais transformaes no chegariam a
romper com
esta cultura da conciliao. Pelo contrrio, para Freyre a casa
grande no
desapareceu, mas continuou influenciando, como nenhuma outra
fora, a formao
social do brasileiro, agora no espao urbano.
Por fim, h um ltimo aspecto em Gilberto Freyre que revela seu
compromisso
com certos motivos ibricos, qual seja, a defesa da rusticidade
como um trao,
aparentemente ingnuo, dos portugueses vindos ao Brasil. Atravs
da rusticidade,
Freyre revela sua resistncia homogeneizao burguesa, admitindo
contudo a
aceitao de inmeras formas culturais dificilmente assimilveis
dentro do gabarito
estreito da civilizao (BASTOS, 1998, p. 51), conforme definida
pelas sociedades
industriais. Assim, para Freyre o analfabetismo no seria um
problema, na medida em
que culturas grafas, isto , sem escrita, seriam transmitidas
oralmente e mesmo
beneficiadas pelo Rdio e pela TV. A rigor, o processo de
alfabetizao em massa era
visto por Freyre como potencial destruidor da riqueza
imaginativa de formas
culturais pr-modernas.
Por um lado, como resultado da leitura leniente da escravido e
da ao sbia do
patriarcado em contemporizar dominantes e dominados, pode-se
perceber o quanto
para Freyre a democracia poltica seria desnecessria, substituvel
pela democracia
racial, resultado, esta sim, da sabedoria com que o
patriarcalismo exerceu a
conciliao entre dominantes e dominados; por outro lado,
resultante da defesa da
rusticidade, encontramos uma leitura desconfiada da modernizao,
entendida por
Freyre como destruidora de formas culturais mais ricas em nome
da homogeneidade e
igualdade entre os indivduos. Em suma, trata-se da formulao de
que haveria certas
vantagens do atraso, tais como a conciliao e a acomodao frente a
processos que
poderiam desencadear rupturas e conflitos agudos na
sociedade.
Todavia, vale pena observar que tanto a tese de que o Estado
seria o formador
da sociedade, presente, por exemplo, em Oliveira Viana, como a
de que a sociedade
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civil seria patriarcal, como a exposta em Gilberto Freyre,
complementam-se e servem-
se reciprocamente. Como afirma Octvio Ianni, se a sociedade
inocente, logo se
depreende que o Estado se defronta com uma misso excepcional:
construir, orientar,
administrar ou tutelar a sociedade, isto , o povo, os setores
sociais subalterno.
Justifica-se que o Estado seja patriarcal, oligrquico,
benfeitor, punitivo, deliberante,
onisciente, ubquo (IANNI, 2004, p. 46). Em suma, so ambas
manifestaes distintas
de uma mesma perspectiva iberista quanto formao do Brasil-nao, e
que como tal
impem resistncias s mudanas e rupturas em direo ideia de um
Brasil moderno.
4 MODERNISMO E IDENTIDADE NACIONAL
Como pudemos notar, desde as ltimas dcadas do sculo XIX,
quando
importantes teorias cientficas foram incorporadas pelos
intelectuais, estes se
empenharam em compreender as condies de modernizao do pas.
Tornava-se
cada vez mais evidente a preocupao com as implicaes sociais,
econmicas,
polticas e culturais da extino do regime de trabalho escravo, do
trmino da
monarquia, da imigrao europeia, da implantao da Repblica.
As diferentes ideias de Brasil moderno tornam-se ainda mais
explcitas conforme
determinadas regies do pas se industrializavam, se urbanizavam e
se tornavam cada
vez mais complexas em sua estrutura social. Na passagem do sculo
XIX, assiste-se ao
avano do capital nas florestas da Amaznia, com a extrao da
borracha, a construo
da ferrovia Madeira-Mamor, a urbanizao de Manaus e Belm; a
economia cafeeira
expande-se para alm do Vale do Paraba e do oeste de So Paulo; o
Rio de Janeiro
vivencia sua primeira grande reforma urbana, expulsando do urbe
a populao pobre
para dar lugar ao panorama de uma higinica e saneada capital do
pas; a cidade
de So Paulo crescia a taxas galopantes, dobrando de tamanho a
cada ano (20.000
habitantes em 1872, 70.000 em 1890, 300.000 em 1919, 1 milho em
1931), tornando-
se o destino da maioria dos estrangeiros que ingressavam no pas;
tambm em So
Paulo assistem-se s primeiras greves gerais de 1917 a 1919 e
emergncia da
questo social. Diversas regies do pas engrenavam na esteira da
Segunda
Revoluo Industrial, ou revoluo cientfico-tecnolgica, iniciada em
meados do
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sculo anterior na Europa, em que a base eram os avanos
tecnolgicos que tornaram
possvel a utilizao de novas fontes de energia, sobretudo o
petrleo, o gs e a
eletricidade.
Vivenciava-se, ao menos naquelas regies do pas melhor
sintonizadas com o
capitalismo internacional, um novo ritmo: ferico, galopante,
cosmopolita; mas
tambm explosiva, revelando novos mecanismos de explorao da fora
de trabalho e
reiterando padres histricos de desigualdades. Uma nova forma de
compreenso
igualmente se fazia presente, uma atitude melhor condizente com
esse esprito do
tempo. O centro da vida nacional tambm se deslocava com o avano
do capital: do
nordeste, simbolicamente Recife, para o centro-sul,
simbolicamente So Paulo.
Em certa medida, a realizao da Semana de Arte Moderna em So
Paulo, em 1922, simboliza a emergncia de outras inquietaes e
propostas, que passaro a predominar. Mas o deslocamento no nem
rpido nem drstico. Alguns escritores revelam dvidas, ambigidades,
vacilaes, falta de clareza. Foi complicado esse processo de
deslocamento do centro da vida nacional, desde o nordeste at o
centro-sul, simbolizado por Recife e So Paulo. (IANNI, 2004, p.
32).
O ano de 1922 uma data carregada de dramaticidade e peso
simblico: ano do
Centenrio da Independncia, da fundao do Partido Comunista e do
Centro Dom
Vital, de orientao catlica, do episdio do Forte de Copacabana,
indicando a
ascenso do movimento tenentista, da Semana de Arte Moderna.
Episdios que
demandavam aos intelectuais uma nova narrativa da nao. O
movimento modernista
surge neste contexto, e de certa forma pode ser visto como a
expresso de uma
ruptura histrica.
como se a sociedade como um todo, e em alguns de seus setores em
especial, estivesse entrando em outro patamar, quando se abrem
outros dilemas e horizontes. Est em curso o desafio de compreender,
esclarecer ou explicar a formao da sociedade brasileira.
Procuram-se as razes do que teria sido o Brasil Colonial, quais as
peculiaridades do Brasil Monrquico e quais as dificuldades e
perspectivas do Brasil Republicano. Escritores, cientistas sociais
e filsofos buscam as origens e as transformaes, de modo a
esclarecer os momentos decisivos da formao sociocultural e
poltico-econmica do Brasil. So vrias e notveis as narrativas que
expressam e instituem o Modernismo na arte e no pensamento. (IANNI,
2004, p. 181).
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24
Estar sintonizado com este esprito do tempo , na verdade, abraar
a
modernidade. Esta pode ser lida como uma determinada experincia
de tempo e
espao, de situaes, vivncias etc., que tm unificado a espcie
humana desde o
momento em que um conjunto de grandes transformaes permitiu aos
homens e
mulheres reinterpretarem o mundo, a natureza e a prpria ideia de
indivduo e
humanidade. Segundo o Dicionrio do Pensamento Social do Sculo
XX, a modernidade
um conceito de contraste: extrai seu significado tanto do que
nega como do que
afirma, e seu dinamismo implica necessariamente conflito. Ao
contrrio das
sociedades tradicionais, a sociedade moderna sente que o passado
no tem lies para
ela, seu impulso constantemente em direo ao futuro, ao novo, s
potencialidades
transformadoras do homem, ainda que esse mesmo movimento ponha
em risco todas
as conquistas materiais, cientficas e culturais criadas em
virtude da modernidade
(OUTHWAITE; BOTTOMORE, 1996, p. 473).
Este aspecto contraditrio j se manifestava nos primeiros textos
dos jovens
escritores modernistas: compreender a exigncia de modernizao com
uma
caracterizao mais precisa da prpria identidade nacional, ou, em
suma, conciliar a
modernidade com a tradio, o universal com o particular.
Tratava-se de acertar as
contas com o passado, no caso, representado pelas manifestaes
artsticas
classicistas, como o parnasianismo e o romantismo, assumindo
muito do que as
vanguardas estticas europeias elaboravam (futurismo, cubismo,
impressionismo,
etc.). Vejamos melhor como ocorreu esta configurao.
De um lado, a exigncia da incorporao ordem moderna requisitava o
acesso
racionalidade. Nesse sentido, os primeiros escritos modernistas
faziam uma crtica ao
Romantismo, interpretando-o como o estgio pr-moderno da
civilizao e como
sentimento irracional.
O Romantismo brasileiro pode ser lido como o incio de uma
literatura nacional,
cujo trao mais marcante foi o indianismo. Por exemplo, Jos de
Alencar, alicerado
no iderio romntico europeu, expunha em Iracema, de 1865, uma
representao
heroicizada do ndio, sacralizando uma historiografia que, ao
idealizar os tipos
formadores da nao brasileira, o alava condio de smbolo de origem
do nosso
povo. Outra caracterstica do romantismo era a valorizao do amor
terra,
paisagem ancestral, comunidade, em suma, a formulao de um carter
nacional.
-
25
Nesse sentido, o romantismo de Jos de Alencar aproveitava essa
valorizao do
passado mtico para fundamentar o sentido de identidade do
brasileiro, que, assim,
poderia se orgulhar de sua ascendncia (nobre e bela) (BALBO,
2006, p. 2). Tambm
Silvio Romero e Euclides da Cunha podem ser inscritos neste
contexto romntico, ao
elegerem, respectivamente, o mestio e o sertanejo como smbolos
da nao.
J em seus primeiros desdobramentos, o movimento modernista
propunha
construir uma outra narrativa, no mais a da valorizao deste
passado mtico e
paradisaco, mas a captao do prprio fluxo desconexo, catico e
intenso da vida
moderna. Estar sintonizado com a modernidade enquanto o esprito
de uma poca
era captar a vida em movimento, marcada de forma impressionista
pelo ritmo da
cidade onde se abrigam desordenadamente os mais variados
elementos. Velocidade e
variedade so atributos da vida urbana e moderna e como tal
positivamente
qualificada (MORAES, 1988, p. 225). Assim, num primeiro momento,
o modernismo
se propunha a estabelecer uma literatura que pudesse inscrever o
Brasil no concerto
das naes, al-lo altura das exigncias da condio moderna, da a
crtica ao
passadismo, ao romantismo, etc.
Contudo, no podemos entender o movimento modernista como uma
corrente
de pensamento homognea, sem conflitos internos. Havia inmeras
polmicas acerca
do sentido da modernidade, assim como da misso que deveria ser
empreendida pelos
intelectuais, e aos poucos, o modernismo foi ganhando novas
dimenses.
Na tica de Mrio de Andrade, um dos expoentes do movimento
modernista, o
que estava em jogo era a necessidade de dessacralizar ou
desconstruir, sobretudo, o
olhar estrangeiro com que se imaginava o Brasil e os
brasileiros. Por exemplo, ao
escrever Macunama, em 1928, Mrio de Andrade retratava o
brasileiro como sendo o
heri sem nenhum carter, criado a partir da integrao entre os
mitos indgenas e
africanos e a presena do colonizador branco. Na verdade, a
ausncia de carter do
heri brasileiro indicaria um carter ainda em formao, que
representaria a cultura
brasileira e seu carter inacabado. Em Macunama inexistem,
portanto, traos
inalterveis de carter, nele, como na mentalidade cultural
brasileira, o escritor v
inmeras possibilidades de mudana (BALBO, 2006, p. 10). Enquanto
o ndio, o
mestio ou o sertanejo eram concebidos como
personagens-modelo
exclusivamente virtuosos, o anti-heri modernista possua
virtudes, mas, igualmente,
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26
defeitos, pois, supostamente livre de ideologias, no precisaria
se restringir a nenhum
modelo pr-concebido. Esta destruio de modelos ritualizados foi
uma das primeiras
propostas do movimento modernista, caracterizando a
Antropofagia:
termo utilizado pelos modernistas, cujo sentido metafrico
consistiu em devorar e digerir os valores culturais herdados dos
colonizadores, ou seja, sob uma viso crtica, assimilar ou rejeitar
estes valores e ainda destacar os valores nacionais anulados pela
situao de dependncia cultural do Brasil. (BALBO, 2006, p. 10).
Entretanto houve, ao longo da dcada de 1920, uma reorientao do
movimento
modernista. Recuperava-se aos poucos um iderio nacionalista e
uma proposta de
brasilidade, mantendo, contudo, o reconhecimento da dimenso
moderna da ordem
mundial. Era como se o ingresso do Brasil nesta ordem exigisse
uma produo cultural
prpria, tornando sua literatura um caso particular e especfico
de modernidade. Era
assim que se expressava Mrio de Andrade em 1924, numa carta a
Joaquim Inojosa:
(...) ns temos que criar uma arte brasileira. Esse o nico meio
de sermos artisticamente civilizados. (...) Veja bem:
abrasileiramento do brasileiro no quer dizer regionalismo nem mesmo
nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. No isso. Significa s que
o Brasil pra ser civilizado artisticamente, entrar no concerto das
naes que hoje em dia dirigem a civilizao da Terra, tem que
concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o que o
singulariza e individualiza, parte essa nica que poder enriquecer e
alargar a Civilizao. (...) ns teremos nosso lugar na civilizao
artstica humana no dia em que concorrermos com o contingente
brasileiro, derivado das nossas necessidades, da nossa formao por
meio da nossa mistura racial transformada e recriada pela terra e
clima, pro concerto dos homens terrestres. (MRIO DE ANDRADE apud
MORAES, 1988, p. 232-3).
Este impulso levou escritores, artistas, cientistas sociais e
historiadores a
elaborarem uma srie de retratos do Brasil, valorizando a dupla
sensibilidade:
quanto ao sentido de modernidade e quanto releitura da nossa
histria cultural. Era
preciso, portanto, desvendar os prprios fundamentos da
nacionalidade, e atingir o
pas para alm das aparncias, da superfcie, e da viso calcada na
importao de
ideias estrangeiras. Como prova da impossibilidade de
concebermos o modernismo
como uma corrente homognea de pensamento, possvel perceber que,
apesar de
suas diferenas explcitas, autores como Oliveira Viana e Gilberto
Freyre podem ser
entendidos como beneficirios desta produo de retratos do Brasil.
Todavia, talvez
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27
o autor que em 1930 pode ser considerado um representante tardio
do modernismo
seja Srgio Buarque de Holanda (1902-1982).
Em seu livro Razes do Brasil, publicado em 1936, Srgio Buarque
procurou
identificar quais traos arcaicos e tradicionais estavam sendo
superados, e quais as
perspectivas de mudana avistavam-se no horizonte. Srgio Buarque
no reconstruiu
historicamente a sociedade brasileira, mas examinou, em cada
perodo histrico
distinto, formas de sociabilidade, padres culturais, inquietaes
intelectuais,
instituies e mentalidades, que tiveram continuidade e/ou foram
ou estavam sendo
superados. Buscou compreender a cultura personalista, presente
nas sociedades
ibricas (Portugal e Espanha), e como elas foram difundidas
atravs da colonizao nas
Amricas; os efeitos da ausncia de uma tica do trabalho e o
predomnio de uma
tica da aventura sobre as relaes sociais, originando com isso
formas de
associao extremamente frgeis entre os indivduos; o peso que o
patriarcalismo
teve na cristalizao de nossas heranas rurais; o valor dado pelos
brasileiros s
relaes pessoais em detrimento dos valores tipicamente burgueses,
tais como o
princpio da impessoalidade, do individualismo etc., os quais
tinham pouco a ver com
uma sociedade tipicamente liberal e burguesa. Srgio Buarque
preocupava-se com a
implantao efetiva e segura de uma ordem social e poltica
plenamente democrtica.
No Brasil, afirma o autor, a democracia sempre foi um mal
entendido, visto
predominarem traos personalistas, clientelistas, autoritrios e,
portanto, ibricos,
distantes de um padro ideal anglo-saxo democrtico e
universalista. Em terra onde
todos so bares no possvel acordo coletivo durvel, a no ser por
uma fora
exterior respeitvel e temida (HOLANDA, 2006, p. 21), dizia o
autor.
Contudo, uma lenta revoluo acontecia. Propiciada pela
independncia poltica,
pelo contnuo processo de urbanizao, pela substituio da
aristocracia aucareira
pela cultura empresarial da cafeicultura, pela abolio da
escravatura, Srgio Buarque
percebia uma nova mentalidade emergindo, deixando para trs
as
[...] sobrevivncias arcaicas, que o nosso estatuto de pas
independente at hoje no conseguiu extirpar. Em palavras mais
precisas, somente atravs de um processo semelhante teremos
finalmente revogada a velha ordem colonial e patriarcal, com todas
as conseqncias morais, sociais e polticas que ela acarretou e
continua a acarretar. (HOLANDA, 2006, p. 199).
-
28
Em suma, pudemos notar o quanto a temtica da identidade nacional
tem sido
no apenas uma construo simblica, mas, igualmente, uma questo
poltica,
implicando tanto no passado quanto no presente, perspectivas que
remetem a
distintas formas pelas quais possvel conceber formas de
solidariedade ou conflito,
manuteno ou mudana. O prximo item tem como objetivo, de um lado,
concluir
este texto, e de outro, iniciar nossa discusso sobre o alcance
das pesquisas sobre as
relaes raciais, entendendo que elas no podem ser desvinculadas
do debate acerca
da identidade nacional e do processo de modernizao por que
passou a sociedade
brasileira.
5 OS DILEMAS DO BRASIL MODERNO E A GNESE DAS PESQUISAS SOBRE
AS
RELAES RACIAIS
Acompanhamos nos itens anteriores o seguinte fato: entre o incio
do sculo XIX
e meados do ano de 1930, um conjunto de representaes, ideias e
teorias sobre a
sociedade brasileira foram formuladas por escritores dos mais
distintos campos do
conhecimento (Direito, Medicina, Engenharia, Histria, Geografia,
etc.). Esses
indivduos no tinham preocupaes puramente intelectuais, mas tambm
polticas.
Tambm vimos as primeiras reflexes de carter scio-histrico ou
pr-sociolgico
presentes nas grandes snteses sobre o Brasil no incio do sculo
XX. Em todas elas, os
dilemas a respeito da formao da sociedade, da identidade
nacional e das
expectativas de um futuro a ser construdo cruzavam-se com as
cogitaes que se
faziam a respeito do processo de modernizao do Brasil.
Esse processo de modernizao foi acelerado entre o final de 1930
e 1970. Neste
perodo, o Brasil passou por vrias transformaes polticas: a
ditadura do Estado
Novo (1937-1945), a redemocratizao a partir de ento, os
sucessivos governos com
perfil industrialista e modernizante (segundo governo de Vargas,
governo JK) e a
instaurao de uma ditadura militar em 1964. Nessa mesma
temporada, sofremos
profundas modificaes em nossa dinmica demogrfica, duplicamos
nossa populao
e nos tornamos urbanos em pouco mais de 30 anos: em 1940, ramos
41,2 milhes de
habitantes, j em 1970, 93 milhes; em 1940, 28 milhes de pessoas
(68,7%) viviam no
-
29
campo, contra 12,8 milhes nas cidades (31,2%); J em 1970 a
populao urbana
ultrapassaria em 11 milhes a populao rural (55,9% urbana, 44%
rural). Alm disso,
vivenciamos um intenso processo de migraes internas,
principalmente do Nordeste
para o Sudeste, mas tambm do Sul para o Centro-Oeste.
No plano econmico, o Brasil diversificou sua produo deixando de
ser uma
economia exclusivamente agrria: no final de 1950 completou-se o
processo de
substituio de importaes de bens de consumo no durveis e uma
infraestrutura de
transportes e energia foi construda. Durante o governo JK
(1956-1961), intensificou-se
a produo industrial, que cresceu a uma taxa mdia de 10% ao ano e
ramificou-se em
setores como produo de ao, petrleo, metais, celulose, papel,
qumica pesada, etc.
Esse processo se desacelerou no incio de 1960, e foi retomado de
forma intensa entre
os anos 1969 e 1973, quando se assiste ao que ficou conhecido
como o milagre
brasileiro, perodo em que o PIB cresceu a uma mdia anual de
11,2%.
Podemos refletir aqui no tanto sobre essas mudanas em si
(assunto
preferencial da economia, da demografia, ou da geografia
urbana), mas sobre a
compreenso sociolgica que se construiu sobre elas.
A anlise sociolgica foi uma das formas privilegiadas para a
compreenso desse
processo todo de modernizao. A partir dos anos 1930, a
Sociologia passou a ter um
discurso prprio, no mais comprometido com preocupaes filosficas,
morais,
jurdicas ou polticas. A Sociologia brasileira converteu-se num
tipo de anlise crtica,
realizada atravs de instrumentos metodolgicos de alcance
universal. O que ela
buscava era, basicamente, explicar as dimenses estruturais do
processo de mudana
social do pas.
Neste sentido, cabe a pergunta: como a Sociologia acadmica
interpretou o
processo de modernizao capitalista do Brasil? A partir da obra
de Florestan
Fernandes (1920-1995), pode-se dizer que um novo estilo de
pensar a realidade social,
bem como os dilemas da mudana social, inaugurado entre ns.
Seus primeiros estudos, ainda em 1940, so reveladores desse
interesse: ao
pesquisar o papel do folclore na cidade de So Paulo, Florestan
preocupava-se com a
funo social dos antigos costumes, trocadilhos, brincadeiras
infantis, cantigas,
prticas de cura numa cidade que se urbanizava rapidamente e
congregava imigrantes
das mais distintas nacionalidades (italianos, japoneses,
srio-libaneses, etc.).
-
30
Os estudos anteriores sobre o folclore valorizavam costumes e
prticas
ancestrais como se esses fossem representativos apenas de
pessoas analfabetas e das
reas rurais. Para Florestan, ao contrrio, o folclore era parte
do conjunto maior da
sociedade, e deveria ser analisado a partir de suas funes para o
processo de
socializao dos indivduos. Assim, atravs de pesquisas sobre o
folclore na cidade de
So Paulo, de urbanizao recente e de populao heterognea,
Florestan
demonstraria que sua presena tinha uma funo precisa: garantir a
ordem social.
Numa sociedade cuja estrutura social no correspondia mais aos
laos de
parentesco, vizinhana e identidades locais, mas que se abria
para novas formas de
convivncia (maior individualismo, racionalizao, secularizao,
etc.), o folclore
permitia, por exemplo, integrar os imigrantes, reproduzir certos
esteretipos, manter
e recriar hierarquias sociais. Longe de ser uma mera
sobrevivncia do passado, um
resto cultural, ou se restringir s pessoas pobres e analfabetas,
o folclore perpassava
todas as classes sociais, embora com funes diferentes em cada
uma delas. Um dos
aspectos do folclore que mais tarde receberia um tratamento
aprofundado por
Florestan Fernandes seria o preconceito racial.
A sociologia da mudana social no se restringiu ao estudo das
cidades. Alm de
Florestan Fernandes, autores como Antonio Candido (1918-) e Jos
de Souza Martins
(1938-) tambm focaram as transformaes por que passava o mundo
rural.
No caso de Antonio Candido, seu livro Os parceiros do Rio
Bonito, publicado em
1964, mas reunindo pesquisas feitas entre 1948 e 1954 no
interior do estado de So
Paulo, um estudo clssico sobre o lugar ocupado pela cultura
tradicional camponesa,
mais precisamente caipira, no processo de modernizao. Segundo
Antonio
Candido, a sociedade caipira caracteriza-se por sua estrutura
simples, pela
precariedade dos recursos materiais, pelo cunho coletivo das
invenes, pela
obedincia estrita a certas normas religiosas. A sociedade
caipira tradicional no Brasil,
tendo assimilado traos culturais indgenas e portugueses, havia
elaborado tcnicas
que permitiam estabilizar as relaes do grupo com o meio, atravs
do conhecimento
satisfatrio dos recursos naturais, de sua explorao sistemtica e
de uma dieta
compatvel com o mnimo vital, formando em seu conjunto uma
economia de
subsistncia de tipo fechado, isto , sem trocas com o exterior. A
convivncia, o auxlio
-
31
mtuo e as atividades ldico-religiosas (festas, principalmente)
eram componentes
fundamentais da sociedade/cultura caipira.
Essa cultura caipira de subsistncia, contudo, convivia em graus
diversos de
contato com as primeiras vilas e, sobretudo, com as grandes
fazendas de cana, gado e,
depois, caf, cujos proprietrios tinham uma relao mais direta com
as cidades e seus
circuitos de troca. A grande agricultura mercantil, embora
predominantemente de
base escravista ao longo da Colnia e do Imprio, abrigava tambm
essa categoria de
sitiantes, posseiros e agregados que define a economia caipira
de subsistncia. O
caipira, vivendo sem garantias jurdicas mnimas quanto ocupao da
terra, tambm
no conseguiu desenvolver uma cultura que o predispusesse ao
progresso e
mudana. Ou seja, o acesso terra era fundamental para a manuteno
da cultura
camponesa em seu estado tradicional de isolamento, trabalho
domstico, cooperao,
lazer, etc. Com a expanso da lavoura cafeeira e mais tarde das
cidades mdias em seu
entorno, e diante da impossibilidade da posse ou ocupao de fato
da terra, o caipira
ou se tornava agregado nas grandes fazendas, ou era empurrado
para as reas
despovoadas do serto, ou ainda se tornava retirante, vivendo nos
subrbios das
grandes cidades. Tais condies eram responsveis pela
desestruturao social que,
em linguagem sociolgica, se conhece por anomia social.
No imaginrio social, a figura do caipira preguioso, desleixado,
morando em seu
casebre precrio, desconfiado e ressentido em relao ao comrcio do
turco, ou a
operosidade do italiano, uma representao forjada pela literatura
de Monteiro
Lobato (1882-1948), particularmente em seu livro Urups (1918), e
ganha ampla
repercusso nos filmes de Amncio Mazzaropi (1912-1981).
Ao longo dos anos 1950 e 1960, o pensamento sociolgico
paulista
problematizou as razes, o perfil e os efeitos do atraso no
Brasil. Em linhas gerais, as
vrias pesquisas dessa escola tinham como pressuposto a recusa da
viso dualista. A
viso dualista concebia o processo de modernizao a partir da
oposio entre
princpios bsicos: o tradicional e o contemporneo; o atrasado e o
adiantado; o rural
e o urbano; o industrial e o comercial, etc. Esses princpios
dessemelhantes seriam
essencialmente antagnicos e o desenvolvimento de um (da economia
industrial, por
exemplo) implicaria na decadncia de outro (da economia rural, no
caso).
-
32
Segundo a viso dualista, haveria dois Brasis, um atrasado e
outro moderno.
Para a escola sociolgica paulista, tal distino era incorreta: as
transformaes
afetavam de maneira desigual as classes, os grupos sociais e as
diferentes regies do
pas, e isso tanto no espao urbano como no rural. Assim, a
reproduo da
desigualdade social mesmo num contexto de mudana estrutural
intenso era o x da
questo.
Em A integrao do negro na sociedade de classes (1964), Florestan
Fernandes
voltou a um tema caro aos intrpretes do Brasil que escreveram na
dcada de 1930: a
questo racial. Nessa obra, Florestan entende que a integrao do
negro um
problema numa sociedade de classes como a brasileira. O autor
busca explicar o
porqu a prpria sociedade de classes no Brasil foi, ela mesma,
problemtica. Para
isso, analisa o entrelaamento entre a sociedade de castas e a
sociedade de classes,
pois uma no teria sucesso sem a outra. Assim, a integrao precria
dos ex-escravos
na sociedade de classes se deu em funo de obstculos estruturais
plena vigncia
daquilo que Florestan denomina de ordem social competitiva, isto
, uma ordem
social que contemplasse as virtudes da meritocracia, da
igualdade de oportunidades,
da competio justa, etc. Ao contrrio, o que o Brasil conheceu
logo aps a Abolio
da escravatura foi a completa desateno ao antigo contingente de
trabalhadores
cativos que, sem condies materiais e morais para competir com os
trabalhadores
imigrantes j acostumados tica do trabalho, tiveram o pior ponto
de partida no
contexto de emergncia da sociedade capitalista. Segundo
Florestan:
Evidencia-se, a, como a modernizao tem ocorrido, na esfera das
relaes raciais, como um fenmeno heterogneo, descontnuo e
unilateral, engendrando um dos problemas sociais mais graves para a
continuidade do desenvolvimento da ordem social competitiva na
sociedade brasileira. Por conseguinte, a anlise converte-se em um
estudo da formao, consolidao e expanso do regime de classes sociais
no Brasil do ngulo das relaes raciais e, em particular, da absoro
do negro e do mulato. (FLORESTAN, 2008, p. 22).
O verdadeiro dilema do processo de transio para a modernidade no
Brasil
que, para Florestan, nossa sociedade nunca chegou a se
constituir, efetivamente,
como uma sociedade de classes. Isto , a ordem social competitiva
enfrentou
obstculos quase intransponveis. No caso da pesquisa, ela revelou
que o negro
-
33
encontrou pela frente toda sorte de dificuldades em seu processo
de ascenso social.
Entre tais dificuldades, talvez a principal fosse o preconceito
racial, que se traduzia em
resistncias abertas ou dissimuladas para sua admisso em p de
igualdade com os
brancos. Em outras palavras, o preconceito de cor e a
discriminao racial atuaram
como elementos impeditivos, verdadeiros obstculos formao de uma
sociedade de
classes. Na verdade, tais manifestaes eram indicadores de padres
socioculturais
tradicionalistas, conservadores, muitas vezes opostos
racionalidade capitalista.
Contudo, atuavam como mecanismos sutis de reproduo de
desigualdades em meio
ao processo de modernizao.
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Murat, 2004) 5 vezes Favela (as duas verses) Relao com Integrao do
Negro na Sociedade de Classes Cadillac Records Para discutir
mobilidade social Hans Staden Como era gostoso meu Francs Para
discutir a questo indgena, inclusive a partir do texto de Jos
Bonifcio O Som ao Redor Para discutir o patriarcalismo, as relaes
entre classe media e pobres, etc