- 1. Ao propor-me analisar as rela
- No petrarquismo, todavia, para alem do ludismo e da
exaspera
-
empreenderam escrever a hist6ria das suas vidas - por exemplo,
Gandhi -, s6 0fizeram porque foram anexados a uma mentalidade que
nao era a sua.
o impulso autobiografico aparece imemorialmente associado
apoesia lfrica,desde os poetas elegiacos gregos aos poetas
alexandrinos, desde os poetas elegiacoslatinos aos trovadores
provenc;:ais, desde Petrarca aos romanticos. Quando, na se-gunda
metade do seculo XVI, se reconheceu a lfrica 0 estatuto de genero
literariocomparavel, pela sua relevancia intrinseca e extrinseca,
ao genero epico e ao generodramatico, foram-lhe atribuidos
caracteres tecnico-formais e semanticos manifes-tativos, ou
indiciadores, daquele impulso autobiografico: na lfrica, apenas
fala apersona do poeta e 0 objecto da mimese lirica identifica-se
com urn conceitodo poeta(em vez do termo maneirista e barroco de
conceito, os pre-romanticos eromanticos falarao de sentimento e de
paixao).3
Os teorizadores e preceptistas literarios da segunda metade do
seculo XVI,como Minturno, que assim caracterizaram a lfrica com
marcas semicas e formaispr6prias do modo da escrita autobiografica,
tinham em mente, como paradigmaticarealizac;:aohist6rica do genero
lfrico, a poesia do Canzoniere de Petrarca e a poesiados grandes
petrarquistas quatrocentistas e quinhentistas. Na hist6ria das
literaturaseuropeias, como e sabido, 0 petrarquismo representa urn
dos mais singularesfen6menos de pervivencia de uma concreta
tradic;:ao literaria - uma tradic;:aoliteraria rigidamente
codificada sobretudo no ambito da poesia lfrica, mas tambeminBuente
nourros generos literarios, desde a comedia ao poema epico, a
novela eao romance, embora manifestando-se algumas vezes sob a
forma de par6dia ou deuma intertextualidade ironicamente
manipulada. Nesta complexa tradi
- 3. Em Cam6es, ocorrem com alguma frequencia afirma
-
como poeta que modelarmente realizara a sua obra poetica como
urn espelho devida (nao se excluindo deste juizo uma positiva
valora~o etica).
A difusao do principio da imitatio vitae no petrarquismo
quinhentista pres-sup6e, em primeiro lugar, a convic~o de que a
poesia irrompe da histOria dumhomem, modelada pelos acontecimentos
da sua biografia intima; em segundolugar, implica a ideia de que a
poesia de Petrarca esta placentariarnente vinculada 11matriz da sua
vida, 11matriz de urna exemplar historia de arnor realmente
acontecidae as vicissitudes psicologicas, morais e espirituais que
entretecerarn esse romancede arnor.
o proprio Petrarca, como e sabido, perante as cepticas
interroga
-
Pili volte Arnor m'avea gia detto: Scrivi,scrivi quel che
vedesti in 1ettre d'oro [... ] (XCIII)
Gran tiempo ha que arnor me dice: Escribe,escribe 10 que en ti
yo tengo escritode letra que jarnas sera borrada.16
De modo semelhante, Cam6es concebe 0 poema como urn
textooriginariarneme escrito na alma pelo arnor, pela saudade ou
por algum secretoageme, cabendo ao poeta a tarefa de copiar ou
transcrever esse texto assimmisteriosarneme conformado:
Nem eu escrevo mal tao cosrumado,mas n' alma minha, triste e
saudosa,a saudade escrevo, e eu tras1ado. (pag. 238)
A tao 10nga historia de tragico e paradoxal desconcerto arnoroso
evocada eanalisada na canyao Manda-me AmOT que cante docemente e
trans1adada pelo poetade urna escrita processada na sua
imerioridade por urn inominado ageme:
Despois que ja semi desfalecer-me,em 1ugar do semido que
perdia,nao sei que[m] m'escreviadenuo n'alma co as 1etras da
memoria,o mais deste processoco claro gesto jumarneme impressoque
foi a causa de tao 10nga historia.Se bem a declarei,eu nao a
escrevo, d'alma a tras1adei. (pag. 218)
E nas redondilhas imituladas Carta a ua dama, cogitando 0 poeta
no textoque escreveria, eo proprio Arnor, represemado como fietio
personae, quem enunciaesta poetica em que 0 autor se converte em
medium de urna voz que nasce demrodele e que se idemifica com 0
mais profundo da sua vida afectiva:
Querendo escrever urn diao mal que tanto estimei,
-
e biografico da lfrica camoniana, condenando, ao mesmo tempo, a
poesia que secompraz em requintes e low;:anias verbais: Quiere
dezir, pues, el P. que en estaexpression de sus penas amorosas
trata de la verdad, y no de cernir palabras espejadas,o joyantes:
porque el no atender a esto es la mayor sefial de fino enamorado.
Estaes la verdad; y todo 10 otro es embeleco. No se hallad cosa de
espiritu en hombreque ande a caza de palabras.12
3. No Canzoniere de Petrarca, a facticidade autobiografica
subjacente - ouficcionalmente subjacente - ao alor lfrico compona
como elemento relevante anarrativa da cena do enamoramento e a
referencia ao tempo e ao lugar em que elatera decorrido: 0 soneto
III (Era il giorno ch 'alsol si scowraro) eo soneto CCXI (Vogliami
sprona, Amor mi guida e scorge) assinalam a este episodio, nuclear
tanto na historiaautobiografica como na urdidura lfrica, a data de
6 de Abril de 1327, sexta-feira dapaixao de Cristo.13
Cam6es, sem minudenciar como Petrarca as circunstancias
cronologicas doevento, inscreveu na sua lfrica, no soneto 0 culto
divinal se celebrava e na estancia2. a da canc;:aoVII (No Touro
entrava Febo e Progne vinha), 0 topos petrarquista dadata e do
lugar do seu enamoramento14 - enamoramento que tambem
teriaacontecido em Abril, mes simbolico por nele ocorrer, em regra,
a celebrac;:aolitlirgicada paixao e da ressurreic;:ao de Cristo e
por nele se manifestar, em conformidadecom os dados astronomicos e
0 evolver da Natureza, a plena eflorescencia daPrimavera, a
estac;:aoque, desde a lfrica proven
-
cuidando no que poria,vi Arnor que me dizia:- Escreve, que eu
notarei. (pag. 7)
Tal poetica pressup6e necessariarnente a anterioridade do vivido
- quasesempre do sofrido - em rela'rao ao escrito, ou, para nos
servirmos de umahomologia lexematica e semantica estabelecida pelo
proprio Carn6es, a anterioridadedo sangue e do peito em relao a
tinta e ao pape!. 17 E e porque a poesiapromana de uma hipertensao
vivencial que a objectivao do texto poetico, docanto harmonioso que
transfigura em concerto 0 desconcerto da alma, constituipara 0
autor urn meio privilegiado de autocatarse ou, segundo a
terminologiaconsagrada desde Dante e Petrarca,18 de desafogo aos
tormentos e as agonias doarnor:
N'alma tenho contino urn fogo vivo,que, se nao respirasse no que
falo,estaria ja feita cinza a pena; (pag. 304)19
Se a criao poetica se autentica e ganha fundura humana pela sua
ligaooriginaria e substantiva com as verdades puras
existencialmente vividas peloarnante sujeito da enunciao lirica, de
analogo modo a recepo dos textos assimproduzidos se encontra
condicionada e regulada pelo substrato das experienciasvitais do
arnor que os seus eventuais leitores possuarn:
E sabei que, segundo 0 arnor tiverdes,tereis 0 entendimento de
meus versos! (pag. 117)
17 Cfr. Luis de Cam6es, Rimas, pag. 3.18 Pettatca tefere-se com
frequencia ao efeito catartico da escrita e do canto poeticos:
perche
cantando il duol si disacerba (XXIII); ed in sospiri e'n rime I
sfogo il mio incarco (CCLII); Ecerto ogni mi studio in quel tempo
era I pur d'isfogare il doloroso core (CCXCIII), etc. A ideia deque
0 canto poetico lenifica 0 sofrimenro - e, em particular, 0
sofrimento amoroso - e liberta 0homem, encontra-se expressa em
poetas como Te6criro, Horacio, Propercio, Ovidio, etc. (cfr.
HugoFriedrich, op. cit., pags. 146 e 199).
19 Na canio X, cuja confessionalidade aurobiografica ja coloquei
em relevo, encontra-se aexpressao mais complexa e profunda desta
poetica camoniana do desafogo. A intensidade dosofrimenro de que
nasce a canio e a necessidade de buscar correlativo desafogo no
texro poeticoexplicam a pr6pria extensao do poema: E se acaso I te
culparem de larga e de pesada, I nao pode ser([he dize) limitada I
a agua do mar em tao pequeno vaso (pag. 229). Todavia, a
intensidade extremado sofrimento pode impedir a eflorescencia do
canto poetico: vejo tao triste genero de vida I que,se Ihe nao
valerem tantos olhos, I nao posso imaginar qual seja a pena I que
traslade esra pena comque vivo (pag. 304); eu porei teu desejo em
doce efeito, I se a dor me nao congela a voz no peiro(pag.310).
-
o biograflsmo psicologista que explica a genese do poema
volve-se destemodo em factor determinante da inteligibilidade e da
comunicabilidade do mesmopoema.
5. A poesia petrarquiana, porque e - ou pretende esteticamente
ser - espelhode uma vida e das vicissitudes psicologicas e morais
de uma historia de amor eporque a vida humana, sujeita aos
acidentes do tempo e do destino, e labil e incerta,tern na
recordayao do passado, na recuperayao pela memoria dos dados
existenciaisirremediavelmente consumidos pelo fluir do tempo
biografico e cosmico, urn dosseus nucleos tematicos mais
significativos e urn dos mais fecundos e sortilegosinstrumentos da
sua retorica e da sua estillstica. Como observa urn dos mais
sagazeshermeneutas da experiencia poetica" de Petrarca, perante a
fungibilidadeangustiante da vida e a violencia assoladora do tempo
e da morte, la salvezza, lasoluzione e offerta dalla 'memoria': una
capacita davvero di fermare il tempo intornoa certi punti vivi,
riscattarli, in una diversa esistenza, ormai assoluti e
sicuri".20
Nos poetas petrarquistas dos seculos XV e XVI, frequentemente
fascinadoscom 0 preciosismo e 0 ludismo estillstico-formais e as
argucias e subtilezaspsicologicas que diversos estudiosos tern
caracterizado como uma manifestayaoantecipada do estilo barroco,
perde-se ou deteriora-se muitas vezes a profundidadee ao mesmo
tempo aquelas classicita e aulicita formale,,21 com que
Petrarcaexprimira os tormentos e os deleites da memoria. Na obra de
alguns poetaspetrarquistas, todavia - e basta citar Boscia e
Garcilaso, ambos bem conhecidose admirados por Cam6es -, 0 tema da
memoria manifesta-se nio soreiteradamente, mas tarnbem com a
melancolia pungente, 0 dramatismo psicologicoe a elegancia formal
da mais pura tradiyao petrarquiana.
Na llrica de Cam6es, 0 tema da memoria desempenha uma funyao
caorelevante que requer uma analise demorada e minudente,
incompativel com 0teor e os limites materiais desta conferencia. E
significativo observar que, segundourn computo atento, mas decerto
sujeito a pequena margem de erro, que realizeisobre 0 texto das
Rimas na ediyao elaborada pelo Professor Costa Pimpio,
olexemamemoria" ocorre na llrica camoniana sessenta e nove vezes
(cinco vezes na formaplural) e 0 lexema lembran~" sob a forma
singular e sob a forma plural, trinta eseis vezes, embora os campos
semanticos directa ou indirectarnente relacionadoscom 0 tema da
memoria nio se configurem apenas com fundamento na ocorrenciados
referidos lexemas.
Se se exceptuar 0 seu significado eminentemente ftlosofico,
metafisico, nocontexto neoplatonico das redondilhas Sobolos rios
que viio e do soneto Na ribeirado Eufrates assentado, eo
significado epico que apresenta nalguns poemas laudatorios
20 Cfr. Adelia Noferi, L 'esperienza poetica del Petrarca,
Firenze, 1962, pag. 65.21 Cfr. G. G. Ferrero, Ilpetrarchismo del
Bembo e Ie RimediMichelangelo, Torino, 1935, p. 20.
- de ilustres personagens historicos, 0 tema da memoria, na
Hricacamoniana, estadrarnaticamente associado a ac
-
fundamentos e pelos efeitos que procura alcanc;:ar, tanto na
estrutura do poemacomo na consciencia do leitor, esra
inextricavelmente conexionada com a concepoda poesia como imitatio
vitae.
5. A hermeneutica awis delineada de alguns aspectos do
petrarquismo deCam6es contribui para esclarecer, segundo penso, a
razao por que ao longo dosseculos, desde Faria e Sousa ate Aquilino
Ribeiro e Jose Hermano Saraiva, se ternverificado tao repetidamente
a tentao de ler a Urica camoniana em clave biografica,ao mesmo
tempo que ajuda a compreender uma das raz6es fundamentais por
que,nao obstante a agudeza analitica e a engenhosidade exegetica de
algumas dessasleiruras, tal tentao tern redundado sistematicamente
em inexitos interpretativose crfticos.
Os exegetas e comentaristas da Ifrica camoniana tern sido
frequentementeobjecto daquela tentao, porque os proprios textos da
Ifrica camoniana, atravesde numerosos sinais, quer da forma do
conteudo, quer da forma da expressao, eatraves de algumas
afirmac;:6es que se podem considerar como conformantes deuma
poetica explfcita, insinuam, solicitam - solicitam em termos
ilocutivospeculiares da ficcionalidade literaria - urna decodificao
de teor biografista. Se,todavia, as marcas de confessionalidade e
de autobiografismo da Ifrica de Cam6esprocedem, pelo men os em
parte, da adesao do poeta a logica de urn determinadocodigo
literario, da sua aceitao de urn modelo poetico historica e
culturalmenteproduzido e adquirido, compreende-se entao a
ineviravel desadequao das leirurasque procuram explicar apenas
pelas vicissitudes da vida do autor - vida de quepouco se sabe, mas
sobre a qual muito se conjecrura ... - e pelas caracterfsticas
deurn temperamento - deduzido e adivinhado, em continuo drculo
vicioso, a partirde textos poeticos depois dilucidados com
fundamento em tais caracteristicas ...- elementos textuais de
natureza tematica, estilfstica e retorica que requerem
urnadecodificao bem diferente.
A ilusao biografista resulta do espelho literario e dos efeitos
espedficos-reflexos, refracc;:6es, anamorfoses ... - que ele
origina ou intensifica. Com efeito,a poetica petrarquista da
imitatio vitaee indissociavel de urna poetica da imitatio stili,faz
parte de urn codigo literario - cuja actualizao em cada escritor e
em cadatexto pode comportar modulac;:6es, desvios, transgress6es -
segundo 0 qual 0poema, produzido em conformidade com paradigmas
bastante rfgidos de estilemas,imagens, simbolos, processos
retoricos e configurac;:6es tematicas, deve espelhar abiografia do
autor empirico, identificado ou confundido com 0 eu Ifrico. Nao
e,deste modo, a biografia que gera a poesia, mas a poesia que,
segundo determinadasnormas e convenc;:6es semioticas, constroi uma
biografia. Haved decerto naopequena surpresa para muitos leitores
de Cam6es quando se realizar, com rigor eminucia, urn inventario e
uma analise dos fenomenos de intertextualidade hetero--autoral de
poemas aparentemente tio saturados de confessionalismo
autobiografico
-
como a cans;ao X (Vinde cd, meu tilo certo secretdrio) eo soneto
0 dia em que eu nascimoura eperera ...
6. No termo deste breve estudo de alguns aspectos do
petrarquismo da lfricacamoniana, nao posso deixar de sublinhar a
relevancia do principio tea rico, taopertinemememe fundamemado e
analisado pela semi6tica da escola de T artu,pela lingufstica
textual e pela estetica da receps;ao, segundo a qual a conceps;ao
dotexto literario tao-so como co-texto, para utilizar a
terminologia de Pet6fi, comoemidade monadica que apenas em si
comeria a sua ratio, como urn dado substantivoe originario sem
conex6es semioticas com a instancia da sua produs;ao e a
instanciada sua receps;ao, constitui uma tese falsa do formalismo
(formalismo que,curiosameme, se mescla muitas vezes com urn estrito
positivismo). Urn formalismotao esteril, no plano hermeneutico,
como a nova ortodoxia fundada naindeterminas;ao do texto literirio
e que dissolve 0 co-texto numa vertiginosa eincomrolavel
proliferas;ao de leituras ...