PREFÁCIO-TUDO É EMOÇÃO Maria Inês Teixeira de Queiroz Aguiar Marçalo é uma escritora que antes de mais nada é poeta. Uma mulher cuja percepção da vida e das circunstâncias se transforma num torrente de sensibilidade capaz de distorcer a falsa sensatez com que os humanos tratamos de disfarçar a dor, o desamor, a frustração, a recordação ou singelamente a natural tristeza de sentir-se singelamente triste. Desta forma tão sublime é capaz de reflectir sem nenhuma distorção nem artifício o sentimento puro. Bem seja o sentimento aberto, pleno e desolador da alma ferida, da entranha mais profunda que só o coração conhece. Bem seja o alento etéreo, reconfortante e subtil da beleza das recordações, da luminosidade da alma em cada enamoramento. As palavras se deslizam nestes sonetos com a naturalidade da chuva, com a precisão do desejo… sempre alimentado delicadamente com a superior espiritualidade que só algumas almas reflectem tão nitidamente. Sentimento puro em estado puro, não é coisa diferente ser poeta… desde a introdução, onde podemos ler, quase respirar o seguinte parágrafo: Sou actriz de mim mesma, Daí a surménage e o cansaço. Os meus cenários são as situações reais da vida E os meus figurantes são os outros. Desde este mesmo ponto de partida o leitor é transportado ao universo da intimidade na que tudo se reconhece e se reflecte profundamente...actores de nossa vida, somos talvez algo diferente os palcos de cada dia com os figurantes de cada dia? Certamente, não. Aguarela de Silêncio, leva por título uno dos poemas que integram este manuscrito de ausências e de presenças e de voltas e de chegadas e de presenças…aguarela de silêncio, é “quando a gente cala e a pedra sente”…e um pode fazer-se pedra pacientemente à espera de não ser mais do que pedra quando 1
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AGUARELA DO SILÊNCIO DE MARIA INÊS TEIXEIRA DE QUEIROZ AGUIAR MARÇALO.
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Transcript
PREFÁCIO-TUDO É EMOÇÃO
Maria Inês Teixeira de Queiroz Aguiar Marçalo é uma escritora que antes de mais nada é poeta. Uma mulher cuja percepção da vida e das circunstâncias se transforma num torrente de sensibilidade capaz de distorcer a falsa sensatez com que os humanos tratamos de disfarçar a dor, o desamor, a frustração, a recordação ou singelamente a natural tristeza de sentir-se singelamente triste. Desta forma tão sublime é capaz de reflectir sem nenhuma distorção nem artifício o sentimento puro. Bem seja o sentimento aberto, pleno e desolador da alma ferida, da entranha mais profunda que só o coração conhece. Bem seja o alento etéreo, reconfortante e subtil da beleza das recordações, da luminosidade da alma em cada enamoramento. As palavras se deslizam nestes sonetos com a naturalidade da chuva, com a precisão do desejo… sempre alimentado delicadamente com a superior espiritualidade que só algumas almas reflectem tão nitidamente. Sentimento puro em estado puro, não é coisa diferente ser poeta… desde a introdução, onde podemos ler, quase respirar o seguinte parágrafo:
Sou actriz de mim mesma,Daí a surménage e o cansaço. Os meus cenários são as situações reais da vida E os meus figurantes são os outros.
Desde este mesmo ponto de partida o leitor é transportado ao universo da intimidade na que tudo se reconhece e se reflecte profundamente...actores de nossa vida, somos talvez algo diferente os palcos de cada dia com os figurantes de cada dia? Certamente, não. Aguarela de Silêncio, leva por título uno dos poemas que integram este manuscrito de ausências e de presenças e de voltas e de chegadas e de presenças…aguarela de silêncio, é “quando a gente cala e a pedra sente”…e um pode fazer-se pedra pacientemente à espera de não ser mais do que pedra quando o ruído da gente cessa em nossa mente. Angola está também muito presente…não poderia ser de modo diferente quanto vive e sente… poetizando a existência desde o início até a morte. E sempre a saudade, esta saudade única da alma portuguesa, do sentir português, do dizer pausado e sonoro desta maravilhosa língua. Uma saudade que é filosofia da vida, filosofia da experiência, filosofia do ser e do não ser. Tenho aqui a originalidade e profundidade destes escritos: A verdade nua da verdade mesma.
Em Madrid, a 20 de Abril de 2010. Por Francisco Javier Pavón Arenas. (Colegiado de Número do Real Colégio Heráldico de Espanha)
1
Dedicatória
A meus Pais com todo o meu amor.
Maria Inês.
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Apresentação
Sou actriz de mim mesma
E represento os papéis mais variados;
Daí, a surménage e o cansaço.
Os meus cenários são as situações reais da vida
E os meus figurantes,são os outros.
E sendo eu a autora dos dramas e comédias,
Das farsas e tragédias em que entro,
Isso me basta.
3
Aguarela do silêncio”
Quando o silêncio fala, fala à gente,
Como a presença de uma mão querida,
Como um sorriso numa despedida,
Como a saudade de um amigo ausente…
Quando o silêncio fala, a pedra sente
E em abraços ternos, toda a vida
Se expande, docemente colorida,
Desde o amanhecer ao sol poente…
Então, em tons de verde eu deito a alma
E beijo o meu azul ardentemente…
Bebo o vinho vermelho do poente
E espraio-me na noite e nessa calma,
Abarco tudo e todos no presente…
Quando o silêncio fala e a pedra sente…
“Convergência”
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Tenho de mim a mistura trepidante
De um contraste de vida ou de ideal,
De uma pureza extrema alada ao mal
E de uma paz que vem e passa adiante…
Bato as asas num gesto radiante
E sou o mundo e sonho e sou real…
... Mas logo, grão de areia em areal,
De mim, me vou ficando tão distante,
Se um dia eu me perder neste universo
De sons, imagens, cores de que sou parte,
De algo que eu procuro e não alcanço,
Que o meu caixão, Senhor, seja um só verso
Do meu desejo imenso de encontrar-Te
Para que eu tenha, enfim, algum descanso!
“Tudo passa, menos eu.”
Passa no rio a corrente,
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Passa o vento pelo ar,
Passa o sonho pela gente
E o sossego ao despertar…
Passam trens, passam cantigas,
Passam belas raparigas,
Passam velhos a arquejar…
Passa o luto e a desgraça,
Passa o medo e ameaça
Da coragem
Nesta vida soçobrar…
Gritos, guerras e canhões,
Atropelos, empurrões,
Paz, doçura e harmonia…
Tudo passa, tudo passa,
Tudo treme e ameaça
Decompor-se
Nesta luta fugidia…
Tudo passa?! Ou tudo fica?!
6
Se esta amálgama bendita
Se renova em cada hora…
Como passa o sentimento?
Donde vem este lamento
Que em minh'alma sempre mora?
Fito um barco regressando,
Um lenço branco acenando,
Uma gaivota no ar…
E o sol no horizonte,
Mai-lo mar e mai-la ponte…
Lá vem o trem a apitar…
Pedras, montes, arvoredos,
Céus sem fim, ó amplidão!
Corpos nus, desamparados,
Dizei-me: “sentis ou não?”
Tudo passa menos eu.
O sol baixa e já nasceu,
O mar, esse não tem fim;
7
Na ponte o trem apitou,
Amanhã outro voltou…
Tudo passa e pára em mim…
E eu amo como gente,
Como pedra, sol poente,
Como aves a adejar…
Amo tudo e tudo sou
Pois que em mim tudo morou
E p’ra sempre há-de morar!
“Espelho de Amor”
Fui pedacinho de rocha,
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Fui a verdura baloiçando,
Fui a sombra que se esboça
E pelas paredes roça
Quando a noite vem chegando…
Fui feliz: pó, cinza ou vento,
Uma onda me tragou;
Eu fui tudo num momento
E apanhei com o pensamento
O instante que passou…
No azul me dissolvi,
No azul quente do mar…
Se aquilo que eu recebi
E me foi dado por ti
Me fizesse a ti chegar…
Há como que um grande espelho
Diluído nos espaços:
No azul, verde e vermelho,
Em tudo o que é novo ou velho
Ligando o mundo em abraços…
Espelho de puro Amor
Fazendo parte de nós…
9
E que até na própria dor
Nos deixa ver-Te, Senhor,
Quando aos poetas dás voz!
“Viver”
Viver é rir, chorar, sentir Amor,
Ter dúvidas, desejos, esperança;
Entrar na doce paz, sentir bonança…
10
P’ra logo ultrapassar a maior dor.
Deixar vir a saudade do presente
E engolir, de um trago, o bem futuro;
Olhar, sem o temer, o alto muro
Do solitário andar por entre a gente...
Saber tirar de tudo bom proveito,
Não ter em vista um fim, mas muitos mais
E nunca contentar-se do já feito;
Unir a tudo Amor e deste jeito,
Saborear os risos e os ais:
Sentir bater um coração no peito!
“Fado”
Quando, ao cair da tarde, o sol poente
Cai sobre nós e sobre a natureza,
Cai sobre mim o véu de uma tristeza
E atrás de mim eu sigo, docemente.
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Chamo por mim: “Inês!” E a voz tão quente
De toda a minha infância e a beleza
De toda a minha terra, é uma certeza
Que tudo permanece, em mim, p’ra sempre.
Em cada sol poente há meu passado,
Em cada sol nascente há o meu presente
E os dias vão trinando em mim seu fado…
Guitarra sou. Se a forma me não mente,
É neste coração que hoje é cantado
O fado que se escuta noutra gente!
“O meu reino”
Nasci num reino de oiro à beira mar
Onde os meus Pais reinavam com bondade
E havia nele tanta humanidade
Que chegava p’ra nós e para a dar…
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De tal modo que hoje, ao despertar
Eu vivo ainda a única verdade
Que a vida me deixou: esta saudade
Do reino que persiste à beira mar…
Como a saudade é feita de Luanda!
Ai, como a chuva cai e brilha o sol!
Olha essas ondas nesse azul sem fim!
Esta saudade que em meu peito anda
Ai, ela é de oiro como um girassol
E se agiganta muito além de mim!...
“Recordações de Angola”
Perdi todo o passado no caminho…
Quero vivê-lo hoje novamente,
Mas as recordações de tanta gente
Deslizam-me entre as mãos, devagarinho…
Minha Mãe era o sol da nossa casa
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E o meu Pai, suave entardecer…
Os meus Irmãos, a brisa que perpassa
Suave e perfumada em meu viver…
Meu Pai segura agora a minha mão…
Brito Godins, Baía e a Mutamba
Coloridos de amigos que lá estão…
Luanda vem sorrindo e na quitanda,
Traz com amor, em jeito de oração,
Todo o meu coração que por lá anda!...
“A propósito de morte de alguém”
Havia um dia de sol tão ardente
Que, de repente, se sentiu no ar
A trovoada pronta a desabar…
E uma nuvem negra foi presente!
E a nuvem negra tem forma de gente,
E a nuvem negra tapa o verbo amar
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E a nuvem negra põe-nos a chorar
Que, não se vendo o sol, `inda se sente!
O coração humano estala agora
E a noite cai em nós, abruptamente…
Tudo é silêncio e dor na escuridão…
Mas vem nascendo o dia que em nós mora
E à luz do sol, a morte é, simplesmente,
Dos dias pelas noites sucessão…
“A Florbela Espanca”
Desfolhando o teu livro, um destes dias,
Vi um retrato teu que me atraiu
E, quando em ti, minh’alma se reviu,
Uma pergunta já tu me fazias…
Olhei bem para ti, olhei p’ra nós:
Sentimos ambas medo e nostalgia…
Depois… As duas rimos de alegria
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Por podermos, enfim, falar a sós…
Repara na mentira deste mundo...
O teu, mais verdadeiro e mais profundo,
Já te tirou a ânsia desse olhar…
No desencontro, encontro desta vida
Uma tristeza paira em mim perdida:
Não ter a tua voz para a escutar!.
“ Se espero por ti, não sei.”
Se espero por ti, não sei…
Se há tanto tempo deixei
De saber o que pretendo,
De gritar que não entendo,
De dizer quanto te amei…
Se espero por ti, não sei…
Meus dias passam ceguinhos,
Deslizam agarradinhos
Ao passado que morreu…
E em frente de toda a gente,
Eu vou sorrindo, doente, 16
Vou fingindo que sou eu…
Que espero da vida agora?!
Que ela enfim se vá embora
P’ra eu me juntar a ti?
O que faço eu nesta hora
Se em minh’alma és tu quem mora
Se foi em ti que eu vivi?
Porquê as quimeras loucas,
Pobrezinhas e tão poucas
Que eu agarro com paixão?
Porquê o medo de mim,
O de por um breve fim
Ao que eu sou: uma ilusão?!
O tédio é presente em tudo…
E eu sou um sorriso mudo
A que já me habituei…
Vivo dum ópio passivo
E penso sempre comigo:
Se espero por ti não sei…
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“Contorno”
Silêncio… Venha a paz junto de mim
P’ra eu poder sentir, poder pensar…
Já te não quero a ti… Vai-te, não voltes…
O teu sorriso só, me há-de bastar…
Desfilam as imagens, os desejos,
O abandono, o medo e tudo o mais…
Perpassam sobre mim teus doces beijos,
Dissolvem-se no eco de meus ais…
Nada mais quero. Dá-me só ternura;
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Dá-me o contorno do que já passou
E fique tão somente o que perdura…
Saudade de um olhar que em mim poisou…
Sorriso de um momento de ventura
Que para a vida encher, Amor, bastou!
“Ao nosso Pai”
Foi em Setembro o mês em que eu nasci
E em que o teu Amor, mais uma vez,
Se desdobrou em outra filha, Inês,
Que, p`ra sempre, ficou ligada a Ti.
E como tantas vezes renasci
De Ti, meu Pai, de Ti qu`inda em mim crês,
Mesmo p`ra além de alguma insensatez
De todos estes anos que eu vivi!
Ao rezar o “Pai – Nosso” em cada dia
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Tu ressaltas, meu Pai, na harmonia
Destas três letras com que escrevo PAI.
E assim, encontro a Paz que me fugia
E sigo o Teu Amor como meu guia,
E toco o Infinito que em mim cai!
“Amor de dar.”
Tu és a rosa e a tua ausência espinho
Que a minh` alma feriu e fez sangrar;
E é dessa dor que eu, hoje, a chorar
Te falo, quando cruzas meu caminho…
A rosa permanece: é uma criança,
É um sorriso e uma palavra amiga,
É um perfume intenso que me obriga
A manter com o mundo uma aliança.
A rosa permanece, mesmo ainda,
Quando perdida em mim vou naufragar
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E a negra solidão me faz ninguém…
Nos outros reconheço a tua vinda
E entrego aquele amor todo p`ra dar
Que nos deixaste um dia, ó minha Mãe!
“Cadeia partida”
Havia um elo na cadeia “Espaço”
Tão igual aos demais como um abraço
Entre o que é a acção e o pensamento;
Havia um elo na cadeia “Tempo”.
Ele era uma das cores da luz do dia,
Era o cantar de amor da cotovia
E o perfume azul duma flor;
Ele era um elo da cadeia “Amor”.
Ora o elo tentou viver sozinho,
Mas foi-se o arco-íris lá do céu;
E a cotovia, triste e de mansinho,
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Seu canto, no azul, esmoreceu…
Murcharam as flores pelo caminho
E só, com seu amor, ele morreu.
“A minha Mãe”
Abro o caderno e a folha branca em frente
Faz-me um sorriso e um convite mudo,
P`ra que eu escreva nela o que se sente
Quando a gente está só e sente tudo.
E eu noto nesta minha confidente
Uma atenção igual à de um alguém
Com quem eu conversava antigamente
E este silêncio atento é minha Mãe.
Falámos, num minuto, várias horas
E a folha já tem lágrimas, Tu choras
Tal como eu, de enternecimento…
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Mas numa dor estranha de momento
Deixo na folha branca o pensamento
De que é em mim, não nela, que Tu moras…
“À nossa Mãe”
Nos tempos em que havia o Teu sorriso
E a doce luz de paz do Teu olhar,
Só isso, querida Mãe, era preciso
Para a nossa alma inteira aquietar.
No mundo em que estiveste tão presente,
Tão pronta a socorrer-nos cada hora,
Deixaste uma saudade que se sente
Aqui, no coração, que chora agora…
Mas nestes versos tristes de saudade,
Por não Te termos já perto da gente,
Sobressai um sorriso, uma verdade:
Agora , mais que nunca, estás presente
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E o Teu amor por nós já nos invade
Que, quanto mais nos faltas, mais se sente!
A propósito do terramoto em Itália na noite de 23 para 24 de Nov. de 1980.
O que eu senti:
O dia decorreu e noite adiante,
Tremeu a terra toda e destruiu
Terras, montanhas, quando nela viu…
E adormeceu cansada e soluçante.
Tal como a terra, um grito delirante
Pesando em mim, aos poucos explodiu
E a mim, parte de um todo, destruiu
E o todo me abafou com mão possante…
Enterrada, `inda viva, em vão tentei
Ser mais que o nada a que me reduzira
Mas todo o meu esforço foi banal…
Ficou-me só de mim o que falhei
E como num espelho que se vira,
24
Nem mesmo a imagem minha foi real…
O que eu deveria ter sentido:
O dia decorreu e, noite adiante,
Tremeu a terra toda e destruiu
Terras, montanhas, tudo quanto viu
E adormeceu cansada e soluçante…
Tal como a terra, um grito delirante,
´inda abafado em mim, explodiu
E o meu auto-retrato destruiu
E eu fiquei mais eu, de mim distante…
E eu fiquei mais eu, acomodada
No todo a que pertenço e já distante
Da que fui eu (em mim amortalhada…)
Senhor, meu Deus, meu Astro Radiante,
Possa eu eternamente a Ti ligada
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Fazer parte de Ti, a cada instante!
“Eu”
Sou o calor, a brisa e o perfume
Das noites de verão…
Sou cânticos das aves pelas tardes,
Murmúrios dos ribeiros, sou paixão…
Sou onda, sou espuma, sou quimera,
Sou tudo o que morreu e torna a vir…
Sou renovada e linda primavera
Que se contenta só com existir…
Sou trevas, negras trevas se adensando
Antes do temporal…
Sou o inferno, a morte , a derrocada,
Sou tudo, por meu bem e por meu mal…
E sou tristeza infinda em não saber
Tudo aquilo que sou
Pois, cada dia, julgo ver nascer
Parcelas do que sempre em mim morou…
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“Saudade I”
Saudade é uma lágrima dos céus
Que nos permite a um tempo a luz do dia
E o temporal da noite e a acalmia…
Saudade é uma dádiva de Deus!
É ter, em dia claro, os densos véus
Da noite e tiritar por ser tão fria…
É experimentar o sol de uma alegria
Enquanto a alma dói nos vários “eus”…
É ter as mãos suspensas no infinito
E os pés prisioneiros do deserto…
É como quem se atreve a dar um grito
E o apanha inteiro no seu eco…
É como ser-se expulso por maldito
E a mão de Deus chamar-nos p` ra mais perto!
27
“Saudade II”
Saudade é uma lágrima dos céus
Que nos permite a um tempo a luz do dia
E o temporal da noite e a acalmia…
Saudade é uma dádiva de Deus!
É ter em dia claro os densos véus
Da noite e tiritar por ser tão fria…
É experimentar o sol de uma alegria
Enquanto a alma dói nos vários “eus”…
Saudade somos nós, de nós tão perto,
Neste areal da vida, ao pretendermos
O nosso enquadramento na Verdade…
E ao cair da chuva no deserto,
A um oásis lindo o convertemos
E assim, sorrindo em nós, nasce a saudade!
28
“Mãe.”
Em versos feitos só de cor brilhante
As tuas qualidades quis pintar,
Mas em lugar nenhum, perto ou distante
Os tons precisos eu logrei achar.
Porque Mãe só há uma neste mundo,
Porque Mãe nossa vida quer dizer,
Porque és tudo o que há de mais profundo:
Tu és os nossos filhos a crescer…
E ao dar-te os parabéns, Mãezinha querida,
Eu venho oferecer-te o nosso amor
A Ti e ao Pai, nossa árvore da vida.
Que este dia feliz se encha de flor
E a seiva que nos uniu à partida
Corra em nós, sempre e mais com mais calor!
29
Redondilhas
Fui dar um passeio e vi
Aquela mulher sombria,
Sombria de solidão…
Aquela mulher que ri
P`ra esconder a alma vazia,
Procurando a minha mão…
E vi olhos de criança
Interrogando os demais…
De lábios roxos, sorrindo,
Flores sem calor de esperança…
Senti-os como punhais…
De lábios roxos sorrindo…
Voltei a casa e vivi
30
A companhia dos sós
E eu fui uma multidão:
Fui todo o Irmão que ri
Por ser mais digno que nós:
P` ra esconder a solidão…
E fui a flor bizarra
De toda a infância despida
Com olhos de interrogar…
A flor que Deus agarra
Bem no princípio da vida
Para não poder murchar!
“O dia em que eu morrer.”
31
O dia em que eu morrer terá de ser,
Em tudo, semelhante àquele dia
Que me deixou tamanha nostalgia
Do berço donde vim para viver.
Nesse meu fim de tempo, a harmonia
Entre o partir e o permanecer
Fará que, como outrora, eu chore e ria
E a morte será só um renascer.
Misturarei as lágrimas saudosas
Da gestação do mundo em que vivi
Ao riso radiante de outra luz…
E as Tuas mãos queridas, ansiosas,
Virão p`ra me afagar e junto a Ti,
Tal como outrora, ó Mãe! Está Jesus!
“O Milagre do chafariz”
Foi na invicta cidade
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Num dia de sol ardente…
Passeava a mocidade
Com os oitenta anos de idade
Do Avô de alma contente…
O Avô, que segue andando,
Ouve um marulhar que diz
Que há ali um chafariz…
Ouve as pombas arrulhando,
Ouve e vê o que não diz…
Não diz que os olhos de outrora
A saudade lh`os deixou
E é assim que, cego embora,
O Avô vê, nesta hora,
Tudo quanto já amou…
Vê a Praça da Trindade
E os bancos que lá estão;
Vive nele a claridade
33
E o coração da cidade.
O neto interrompe então:
“Está ali, num banco sentado,
Um mendigo a comer pão
E de pombas rodeado,
Distribui o seu bocado,
Reparte o que tem na mão…”
O Avô segue calado
Com o seu grande coração…
Leva o do neto a seu lado
E o do mendigo sentado:
É Avô e é Irmão…
O mendigo da Trindade
Não é mais mendigo, não…
Vivendo da caridade,
Retribui com amizade
34
A esmola que lhe dão.
E não tendo mais que dar
Por ser mais pobre que os seus,
Vai dentro dele encontrar
O peito, para o doar
Às criaturas de Deus.
O mendigo da Trindade
Não é mais mendigo, não…
Chegou a nós, na verdade,
E deu-nos, com Amizade,
Novo conceito de Irmão.
E a esta narração
De tudo o que aconteceu
Num dia quente de verão,
Com um mais quente coração
De um mendigo que se deu,
35
Algo há a acrescentar
Àquilo que aqui se diz:
Um hino sobe no ar,
- O da alegria de amar
Que torna o homem feliz.
E um milagre acontece
Em redor do chafariz:
Um novo Irmão aparece
E o hino agora cresce…
- É S. Francisco de Assis!... (Poema publicado no “Primeiro de Janeiro”