-
Afrescos urbanos: a arte de Eduardo Kobra
Este artigo pretende considerar as representaes do artista
brasileiro Eduardo Kobra,
analisando brevemente suas influncias a partir da arte muralista
mexicana no
desenvolvimento do trabalho ao ar livre, onde peas artsticas
experimentam trocas de
informaes com o espao urbano e se fundem arquitetura da cidade,
explorando as
possibilidades de interpretao deste meio urbano.
Ser feita, no decorrer do texto, a anlise de algumas obras do
projeto entitulado Muros
da memria, onde Kobra retrata nos muros de diversos pontos de So
Paulo, cenas do
passado da cidade.
Esta sntese ir trazer tambm o pensamento do historiador Peter
Burke e do filsofo
Vilm Flusser, por possurem traos de misturas de tempo e cultura,
alm de caractersticas de
interveno nos espaos, que podem enriquecer o cotidiano de locais
que esto em constante
mudana. Tambm se pretende trazer conceitos do artista Paulo
Laurentiz, visando
fundamentar as anlises das tcnicas utilizadas e seus insights
crticos e sociais nas obras
relacionadas.
Este trabalho pretende contribuir para o conhecimento deste
talentoso artista brasileiro
assim como sugerir o olhar atento para a concepo de alguns modos
de explorao de um
espao que muitas vezes est abandonado ou simplesmente
despercebido, espao este que,
quando transformado, tem a fora de democratizar a arte em vrias
camadas sociais.
Palavras-chave: arte, muralismo, histria, cidade.
1 Introduo
Nascido no Brasil em 1976, Eduardo Kobra um artista paulistano.
Comeou a pintar
muros no bairro de Campo Limpo em So Paulo.
Ao longo dos anos, seu estilo se aperfeioou e seus traos
ganharam detalhes e cores
expressivas e realistas. Autodidata, utiliza diversas tcnicas
dependendo da superficie ou da
textura, que vo desde tintas automotivas a pincis e
aergrafos.
O projeto Muros da memria visa modificar a paisagem urbana por
meio da arte e
mostra, de forma nostlgica, as lembranas da cidade. Suas obras
remontam o passado e
-
retratam cenas histricas, de forma realista, das primeiras
dcadas do sculo XX por meio da
arte muralista.
O muralismo como forma de arte e expresso no uma tcnica que pode
ser
considerada nova. Na dcada de 1920, desenvolveu-se no Mxico um
movimento artstico da
pintura mural que tinha como ideal a popularizao da arte. Uma
arte pblica, de cunho
poltico e mais conectada com a sociedade. As transformaes
sociais produzidas pela
revoluo mexicana em 1910 contriburam para o movimento muralista
e para uma renovao
da arte mexicana. Conforme Vasconcelos (2007, p. 156):
A incorporao das tradies populares na arte do sculo XIX, a
laicizao
dos temas, a busca de um perfil cultural prprio e a revalorizao
da arte
pr-hispnica prepararam o terreno ou deixaram a mesa posta,
conforme
Orozco, para que o movimento muralista eclodisse com todo o seu
impacto no
sculo XX.
O muralismo difere de outras formas de arte em diversos
sentidos. Sua conexo com a
rea em que a obra foi produzida diretamente ligada ao seu
processo de produo. Sua
vinculao com a arquitetura da regio e o efeito que a obra produz
no espao o modifica e,
por muitas vezes, enriquece e d formas a locais que foram
esquecidos.
Para o artista Paulo Laurentiz (1991, p.21), o momento de
inspirao (insight) uma
traduo para o conhecimento humano das manifestaes do mundo,
sejam elas naturais ou
culturalmente produzidas. Desta forma, podemos supor que o
artista muralista
efetivamente inspirado pela paisagem que o cerca, pois o
conjunto de suas habilidades e
referncias mescla-se com os insights das imagens do local em que
a obra est sendo
concebida.
Outro fator que este tipo de arte no pode ser transportado, ele
s pode ser visto
naquele ponto e regio, e todos os elementos que o cercam
(edifcios, avenidas parques e
afins) o compe e so a moldura desta obra, criando uma
peculiaridade na forma de ver a arte.
Assim como no muralismo mexicano, onde alguns artistas como
Diego Rivera e David
Siqueros abordavam temas histricos ou polticos, Kobra utiliza os
muros da cidade com um
pensamento socialmente engajado, resultando em uma grande
exposio de arte democrtica a
cu aberto.
-
2 Intervenes urbanas
Uma imagem pode trazer muitos significados e interpretaes para o
espectador. Uma
simples propaganda em um outdoor talvez tenha a fora de
comunicar e induzir sensaes
mediadas pela imagem. O poder que a imagem tem sobre o ser
humano pode talvez
representar tanto uma vantagem quanto uma barreira. Sobre isso,
Vilm Flusser (1985, p. 7)
comenta:
Imagens so mediaes entre homem e mundo. O homem existe,
isto , o mundo no lhe acessvel imediatamente. Imagens tm o
propsito de representar o mundo. Mas, ao faz-lo, entrepem-se
entre
mundo e homem. Seu propsito serem mapas do mundo, mas passam
a ser biombos. O homem, ao invs de se servir das imagens em
funo
do mundo, passa a viver em funo de imagens. No mais decifra
as
cenas da imagem como significados do mundo, mas o prprio
mundo
vai sendo vivenciado como conjunto de cenas. Tal inverso da
funo
das imagens idolatria. Para o idlatra o homem que vive
magicamente -, a realidade reflete imagens. Podemos observar,
hoje,
de que forma se processa a magicizao da vida: as imagens
tcnicas,
atualmente onipresentes, ilustram a inverso da funo imaginstica
e
remagicizam a vida.
O carter interventor dos artistas de murais algo que pode ser
pensado como uma
percepo de espaos urbanos um pouco diferente. Podemos afirmar
que uma imagem pode
fazer parte de uma composio de certo local, que por muitas vezes
est esquecido, e que essa
interveno no espao pode agregar valores enriquecendo o ambiente.
Por este pensamento, a
capacidade de fazer e decifrar imagens pode possuir formas que
passem a ser consideradas
extremamente poderosas quando se trata de veiculaes que atingem
muitas pessoas ao
mesmo tempo, pois cada ser humano pode fazer uma mediao e uma
construo diferente da
mesma imagem veiculada. O ser humano experimenta capturar
momentos e exprimi-los de
diversas formas, s vezes icnicas, s vezes conceituais. O
pensamento do presente artigo
sugere que a imagem, alm de ser uma necessidade do ser humano de
se comunicar e
expressar possui tambm construes tecnolgicas complexas e ricas
dotadas de diversos
tipos de tcnicas e pensamentos.
-
3 O hibridismo artstico e o arquitetnico
No ensaio Hibridismo Cultural, de 2003, Peter Burke mostra uma
linha de
pensamento relativo ao fenmeno de miscigenao cultural entre os
povos atravs de
perspectivas histricas, msica, literatura, linguagens e
elementos do cotidiano. O autor
afirma que no existe fronteira cultural ntida ou firme entre
grupos, e sim, ao contrrio, um
continuum cultural que aos poucos vai se modificando,
misturando.
Exemplos de Hibridismo Cultural podem ser encontrados em toda
parte, no
apenas em todo globo como na maioria dos domnios da
cultura-religies
sincrticas, filosofias eclticas, lnguas e culinrias mistas e
estilos hbridos na
arquitetura, na literatura ou na msica. (p.23).
Porm, alguns elementos deste hibridismo s vezes podem gerar
mudanas na
histria e na constituio de um local, de tal forma que
simplesmente no existam mais
vestgios de sua evoluo, trazendo a noo para o espectador de que
o local nasceu com este
formato.
Considerando que artistas como Kobra possuem influncias das
artes mexicanas, do
grafite norte-americano e que o prprio muralismo fruto das
tcnicas renascentistas de
afrescos, podemos afirmar que este tipo de hibridismo artstico
acaba por contestar o
hibridismo arquitetnico. Para Peter Burke esse tipo de influncia
existe desde os tempos
em que os seres humanos trocam experincia e integram valores de
outros povos aos seus:
Alguns exemplos de hibridismo arquitetnico ainda conseguem
nos
surpreender, quando no nos chocar, como no caso das igrejas da
Espanha
com ornamentos geomtricos dos sculos XV e XVI lembrando aqueles
das
mesquitas feitos por artesos que eram quase que certamente
aberta ou
dissimuladamente muulmanos. Por sua vez, na ndia no sculo XV,
algumas
mesquitas foram construdas por artesos hindus que utilizaram
frmulas
decorativas que haviam aprendido em seus prprios templos.
Igrejas jesutas
-
de Goa e Cuzco empregaram artesos locais e combinaram
estruturas
renascentistas italianas ou barrocas com detalhes decorativos de
tradies
locais, hindus, islmicas ou incas. (Burke, 2003 p. 24)
Mas, assim como existe a integrao, existe tambm a contestao e no
caso da arte
muralista este tipo de pensamento vem socialmente engajado e
estampado na prpria
superfcie que se quer criticar. Desde edifcios a muros, a arte
visa contestar e fazer pensar por
meio da imagem.
4 Muros da Memria
O projeto Muros da memria iniciado em 2008 em conjunto com os
profissionais
que fazem parte de seu estdio, o Studio Kobra, fundado em 1990,
visa resgatar este
passado perdido e artisticamente mostrar a riqueza da histria de
um pas que aos poucos
pode se apagar. O projeto j conta com mais de 20 obras
espalhadas por cidades do mundo
todo, sendo que o maior deles est localizado na Avenida 23 de
Maio em So Paulo e possui
mais de 1000m.
Figura 1. Imagem do projeto Muros da memria, Avenida 23 de Maio
So Paulo Brasil
A obra e o local podem ser visualizados via Google Street View
no endereo http://goo.gl/maps/w7TzU.
A tcnica para a produo da obra foi conseguida por meio de tintas
spray, pincis e
-
mscaras. A riqueza de detalhes d impresso ao espectador de que a
pintura so fotos de
verdade coladas como um papel de parede nos muros. Cada obra
demora no mnimo trs
meses para ser concluda, dependendo do tamanho, do local e do
acesso.
Figura 2. Imagem do projeto Muros da memria, Avenida Morumbi So
Paulo Brasil A obra e o local podem ser visualizados via Google
Street View no endereo http://goo.gl/maps/sS9oo
-
Figura 3. Imagem do projeto Muros da memria, Avenida Sumar So
Paulo Brasil
A obra e o local podem ser visualizados via Google Street View
no endereo http://goo.gl/maps/GVskL.
Outro fator interessante deste tipo de arte que com ferramentas
como o Google Street
View, que permite navegar pelas ruas de vrias cidades do mundo
para quem possui acesso a
um computador com internet, existe a possibilidade de ter um
museu virtual com as obras
expostas. Obviamente a sensao de ver algo ao vivo um pouco
diferente, mas mesmo assim
uma experincia vlida.
4 Concluso
A arte muralista, dependendo de seu autor, algo que possui uma
gama de
significados. Sua mensagem atravs da arte no s ilustra e
embeleza o cotidiano, como
tambm a entrega para o mundo, ou seja, deixa de ser propriedade
do artista. A partir do
momento em que a obra est ali, cada espectador a v e a
resignifica de alguma forma e assim
torna-se proprietrio desta, como destaca Laurentiz:
O artista, quando acaba de produzir um trabalho, automaticamente
deixa a
posio de produtor e passa para a condio de primeiro espectador
da obra,
passando a observ-la com olhos crticos de interprete. (1991,
p.125)
-
As imagens so peas fundamentais de mediao para a comunicao entre
o autor da
obra e quem a visualiza. A caracterstica interventora nos espaos
urbanos exige uma aguada
percepo do artista na identificao com o local e para a tcnica
que vai ser utilizada. Se no
existirem essas percepes, a imagem pode mais sujar o lugar como
uma pichao do que vir
a ser uma arte propriamente dita. importante para o muralista
ser interventor em um espao
e mais importante ainda saber intervir nele.
Como analisado durante o texto, as paisagens se modificam e em
diversas vezes o
novo acaba sobrepondo o antigo, deixando poucos traos de histria
no local. Mas essas
mudanas e hibridizaes por vezes so consequncias do tempo e da
mudana, assim
como a alma do artista de buscar referncias nos mais diversos
pontos da histria e das
culturas. E essa cultura est sempre se modificando, sempre em
mutao como analisa
Laurentiz:
Toda vez que o homem pratica uma ao, no interior desta, pode-se
encontrar
a experincia de uma prtica anterior, mostrando que o
conhecimento
evolutivo, no num sentido progressista, mas adaptado s outras
condies
emergentes. (1991, p. 111)
Quando vamos a um museu olhar um acervo especfico ou visitar uma
exposio de
um artista, todos entramos com a idia do que queremos observar,
e j estamos focados no
tipo de imagem que iremos ver. A arte de rua no possui essas
amarras. como a diferena
entre colocar uma msica de um CD ou um mp3 escolhido por ns ou
escutar uma msica em
uma rdio local. Obviamente que a msica que escolhemos tem o
nosso gosto e j sabemos o
que ir tocar, s vezes sabemos at a ordem, mas escutar algo no
rdio descobrir e conhecer
o inusitado, que por muitas vezes pode no agradar, mas s vezes
fascina e nos traz
conhecimento de algo novo e belo.
A arte de Eduardo Kobra talvez seja uma dessas msicas inusitadas
ouvidas em uma
rdio que podem causar paixo. Ao dobrar em uma esquina de uma rua
da cidade sem maiores
pretenses nos deparamos com imagens realistas e com forte carga
emocional e nostlgica,
que nos traz uma gama de relaes culturais e estticas que, se
olharmos com ateno, talvez
possamos ver que a arte no vem apenas para embelezar ou
ilustrar. Ela possui cincia no
olhar, na tcnica e na forma de representar.
-
5 Bibliografia
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. So Leopoldo: Editora
Unisinos, 2008
FLUSSER, Vilm. A Filosofia da Caixa Preta. 1 Edio. So Paulo:
Hucitec Editora, 1985
LAURENTIZ, Paulo. A Holarquia do Pensamento Artstico. Campinas:
Editora Unicamp,
1991
VASCONCELLOS, Camilo de Mello. Imagens da Revoluo Mexicana. O
Museu Nacional
de Histria do Mxico (1940-1982), So Paulo: Alameda, 2007.