UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE CINCIA POLTICA
A ADVOCACIA E O ACESSO JUSTIA NO ESTADO DE SO PAULO(1980-2005)
Frederico Normanha Ribeiro de Almeida
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-graduao do
Departamento de Cincia Poltica da Faculdade de Filosofia,
Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo,
para a obteno do ttulo de mestre em Cincia Poltica.
Orientadora: Prof. Dr. Maria Tereza Aina Sadek
So Paulo
2005
1Agradecimentos
Esse trabalho, a par de meus prprios e exclusivos erros, contou com o apoio
de diversas pessoas, cujos nomes mencionarei, ainda que correndo o risco de ser
injusto com aqueles que no citei.
minha orientadora, professora Maria Tereza Sadek, pelo apoio e incentivo
constantes, e por ter conciliado a diviso generosa de seu vasto conhecimento do
tema, de sua experincia em pesquisa e de sua orientao dedicada, com a total
liberdade intelectual que me foi concedida na conduo de meus estudos e desta
pesquisa.
s professoras Maria DAlva Gil Kinzo, do Departamento de Cincia Poltica
da FFLCH/USP, e Luciana Gross Siqueira Cunha, da Escola de Direito de So Paulo
da Fundao Getlio Vargas, cujos comentrios por ocasio do exame de
qualificao foram fundamentais para aprimorar o objeto e a metodologia desta
pesquisa.
Aos colegas, professores, funcionrias e funcionrios do Departamento de
Cincia Poltica, pela recepo e pelo apoio em todos os momentos do curso de
mestrado.
CAPES, a quem devo o suporte financeiro para a realizao de meus
estudos.
Aos amigos que ganhei na Faculdade de Direito do Largo de So Francisco,
pelas experincias que contriburam fundamentalmente para minha formao
pessoal e poltica, e pelo apoio e incentivo incondicionais.
A toda a equipe do Ncleo de Pesquisas do Instituto Brasileiro de Cincias
Criminais. A Eneida Gonalves de Macedo Haddad e a Jacqueline Sinhoretto, muito
especialmente, porque alm de contriburem enormemente com reflexes e
comentrios para este trabalho, tornaram-se grandes amigas minhas.
Aos meus pais, Maria Inz e Joo Thomaz, que sempre incentivaram em
todos os seus quatro filhos a curiosidade e a vontade de aprender, por meio de uma
educao carinhosa e tica.
Lia. Agradecer pelo amor, pacincia e companheirismo seria insuficiente,
alm de um lugar-comum imperdovel para a crtica de sua inteligncia fina e de seu
humor cido. Chegaste. E desde logo foi vero.
2Resumo
O envolvimento da advocacia nas reformas de ampliao do acesso aos
sistemas de justia tem merecido ateno da literatura comparada, que reala
caractersticas de comprometimento social e engajamento poltico de certos
movimentos de advogados e suas entidades de classe, mas tambm aponta para a
interveno desses profissionais na supresso das insuficincias do mercado de
servios legais. A partir de uma abordagem institucional da advocacia, que destaca
as disposies constitucionais sobre a participao privilegiada da profisso na
administrao e funcionamento do sistema de justia brasileiro, o objetivo do estudo
investigar como a advocacia vem se relacionando com as reformas do acesso
justia no estado de So Paulo, durante a transio para a democracia e a
consolidao democrtica no Brasil. A pesquisa envolve a reconstruo do debate
sobre o tema no interior da profisso, a partir de uma anlise de contedo das
publicaes oficiais das entidades da advocacia.
Palavras-chave: sistema de justia; acesso justia; reformas judiciais;advocacia; advogados.
Abstract
The advocacys evolvement on the reforms to enlarge the access to judicial
systems has deserved attention of comparative literature, which enhances
characteristics of social and political engagement of certain movements of lawyers
and its professional entities, but also indicates the intervention of these professionals
in the suppression of the legal services markets insufficiencies. Using an institutional
approach of advocacy, that detaches the constitutional disposals about the privileged
participation of the profession in the administration and functioning of the Brazilian
judicial system, the objective of this study is investigate how advocacy has been
involved in the access to justices reforms in So Paulo state, during the transition to
democracy and democratic consolidation in Brazil. The research involves the
reconstruction of the discussion about that subject inside the profession, using a
contents analysis of official publications of the advocacys entities.
Keywords: judicial system; access to justice; judicial reforms; advocacy;lawyers.
3Sumrio
1. Apresentao
2. Advocacia e acesso justia
2.1. Acesso justia e reforma institucional
2.2. Acesso justia e transformao da advocacia
2.3. Advocacia e acesso justia no Brasil
3. Hiptese e desenho da pesquisa
4. A identidade profissional dos advogados e da advocacia
4.1. O Governo dos Bacharis
4.2. A profissionalizao da advocacia
4.3. A institucionalizao da advocacia
4.4. Elite, profisso ou instituio?
5. O mercado de trabalho da advocacia
6. O debate sobre acesso justia no interior da advocacia paulista
6.1. Os custos do processo e o aparelhamento do Judicirio
6.2. Desburocratizao de procedimentos judiciais:
6.2.1. Os juizados especiais
6.2.2. Outras reformas processuais e a introduo de
mecanismos de resoluo alternativa de conflitos
6.3. Assistncia judiciria gratuita: a advocacia dativa e a questo
da Defensoria Pblica
6.4. A advocacia pro bono
6.5. Outras iniciativas da OABSP: servios legais e comisses
temticas
7. Consideraes finais
8. Fontes e bibliografia
8.1. Peridicos
8.2. Bancos de dados e pginas de internet
8.3. Bibliografia
4
7
7
11
19
24
29
30
33
36
44
48
61
61
73
74
85
92
106
110
118
125
125
125
127
41. Apresentao
A constituio ainda recente de uma agenda de pesquisa sobre o sistema de
justia brasileiro revela lacunas substantivas e, por vezes, grandes lapsos temporais
entre estudos relacionados. No campo das instituies, tm merecido destaque os
estudos sobre polcia; as anlises do Poder Judicirio, e especificamente, da
composio da magistratura e do funcionamento dos juizados especiais; alm do
Ministrio Pblico, cujo destaque recente na vida poltica brasileira tem justificado
diversos estudos sobre esse rgo1.
Um tema que perpassa diversos desses estudos o do acesso justia, por
representar um problema em termos de democratizao do sistema de justia e de
efetivao da cidadania, no contexto maior da redemocratizao brasileira
(Junqueira, 1996).
Nesse sentido, a advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil OAB tm
sido pouco abordados enquanto instituies do sistema de justia e objetos de
estudo (Sadek, 2002), ressalvadas as excees que sero a seguir detalhadas. O
objetivo geral da presente pesquisa contribuir para o fortalecimento dessa agenda,
ao analisar as relaes entre advocacia e acesso justia. Busca-se, assim,
relacionar o estudo de uma instituio pouco abordada por essas pesquisas a
advocacia com outro tema de enorme relevncia na caracterizao desse campo
de estudos o acesso justia.
O objetivo especfico do presente trabalho analisar o papel da advocacia
privada e da OAB na ampliao de acesso justia no estado de So Paulo. A
escolha do objeto tem duas justificativas, uma de carter mais geral, outra de carter
especfico.
A justificativa geral diz respeito pertinncia da relao entre a advocacia e o
acesso justia nos estudos sobre este ltimo tema. Isso ficar evidente na
descrio dos esquemas de acesso justia verificados por Mauro Cappelletti e
Bryant Garth (1988), e na afirmativa de Boaventura de Sousa Santos (1996) de que
a transformao dos modelos de enfrentamento do problema do acesso justia
significou a transformao da prpria advocacia.
1 Para uma reviso da produo em pesquisa scio-jurdica no Brasil, ver Eliane Botelho Junqueira (1996); Luciano Oliveira eJoo Maurcio Adeodato (1996); Adriana A. Loche, Helder R. S. Ferreira, Lus Antnio F. Souza e Wnia Pasinato Izumino(1999); e Maria Tereza Sadek (2002).
5A justificativa especfica diz respeito situao atual do acesso justia no
estado de So Paulo. O envio Assemblia Legislativa, pelo governador do estado,
de projeto de lei que cria a Defensoria Pblica paulista2, em julho de 2005,
representou uma significativa alterao na situao do acesso justia em So
Paulo. Afinal, at o momento esse estado uma das trs nicas unidades da
federao que at hoje no instalaram suas respectivas defensorias pblicas ao
lado de Gois e Santa Catarina (Ministrio da Justia, 2004). Sob a alegao oficial
de que tudo no passa de uma questo de nome, conforme observado por Luciana
Gross Siqueira Cunha (1999: 108), os servios pblicos de assistncia jurdica no
estado de So Paulo vm sendo prestados pela Procuradoria de Assistncia
Judiciria PAJ, rgo subordinado Procuradoria Geral do Estado PGE,
embora a prpria Constituio estadual estabelea diferentes atribuies para PGE
e Defensoria Pblica (idem). Por outro lado, dentre os convnios mantidos pelo
estado com entidades no-governamentais para o atendimento da demanda no
captada pela PAJ, destaca-se o que envolve a seco paulista da Ordem dos
Advogados do Brasil OABSP. Esse convnio mantido desde a dcada de 1980 e
atualmente mobiliza mais de 43.000 dos 165.521 advogados em atividade no estado
de So Paulo. Vale a pena informar que, dentre as unidades da federao que
possuem defensoria pblica organizadas, se a existncia de convnios para a
prestao de assistncia jurdica gratuita alternativa encontrada em 54,5% dos
casos, a OAB a entidade conveniada em apenas dois dos 22 estados
pesquisados.
Dessa forma, e embora restrita assistncia judiciria, a ilustrao da
situao de So Paulo exposta acima sugere algumas questes importantes para a
compreenso da relao mais ampla entre a advocacia e o acesso justia
globalmente compreendido. Afinal, quais os fatores que levaram o estado de So
Paulo a eleger a advocacia privada como sua parceira preferencial na prestao da
assistncia judiciria gratuita, destoando-se da experincia de outros estados? Num
estado que possui uma das maiores relaes de advogados por habitante3 do pas,
qual o impacto desse modelo de prestao de assistncia gratuita para a ampliao
do acesso justia, de um lado, e para o prprio envolvimento da advocacia na
questo, por outro? Como a advocacia paulista se relaciona com o acesso justia
2 Projeto de Lei Complementar PLC n 18/2005 Lei Orgnica da Defensoria Pblica do Estado de So Paulo.3 Relao de 434,1 advogados para 100.000 habitantes (OAB e IBGE, 2005). Neste sentido, ver tabela 7, abaixo.
6para alm da prestao de assistncia judiciria gratuita? Qual o futuro da parceria
Estado-advocacia aps a implantao da defensoria pblica em So Paulo?
Mais precisamente, o objetivo da investigao testar a hiptese de que
fatores ligados identidade profissional e ao controle sobre o mercado de servios
advocatcios concorrem a fim de determinar a maior ou menor participao da
advocacia na ampliao do acesso justia.
72. Advocacia e acesso justia
2.1. Acesso justia e reforma institucional
Segundo Boaventura de Sousa Santos, o tema do acesso justia aquele
que mais diretamente equaciona as relaes entre igualdade jurdico-formal e
desigualdade socioeconmica (1989: 45). Em perspectiva comparada, o principal
referencial terico da questo do acesso justia encontra-se no chamado Projeto
de Florena, coordenado por Mauro Cappelletti e Bryant Garth na dcada de 1970,
e que buscou fornecer uma viso ampla dos estudos tericos, bem como das
reformas institucionais existentes em diversos pases no sentido de garantir o
acesso da populao ao sistema de justia. Em breve sntese, pode-se dizer que a
principal contribuio do Projeto de Florena foi clarificar a existncia de obstculos
econmicos, sociais e culturais ao acesso justia4, ao passo em que estabeleceu a
idia do acesso justia como movimento de reforma, a partir da metfora das trs
ondas momentos de reformas institucionais mais ou menos equivalentes s
geraes de direitos conquistados no mbito de Estado de bem-estar social5. Nesse
sentido, da mesma forma que acompanhou seu apogeu, o movimento de acesso
justia tambm sofreu as conseqncias da crise do Estado-providncia:
As reformas e o desenvolvimento dos sistemas de acesso ao direito e
justia, assim como a produo legislativa em favor dos mais carenciados,
esto em estreita relao com a consolidao dos Estados-Providncia, a
partir do fim da segunda grande guerra (1945), nos quais surgiram mltiplos
novos direitos os direitos sociais em favor dos cidados e dos grupos mais
desfavorecidos. Consequentemente, nos Estados-Providncia esteve
presente a preocupao de tornar tais direitos efectivos, assegurar o seu
4 Segundo Boaventura de Sousa Santos (1989), embora esses obstculos estejam todos de alguma forma relacionados situao geral de desigualdade social, pode-se definir os obstculos econmicos como aqueles impostos pelos custos dalitigncia judicial, por sua vez determinados no s pelos custos diretos relativos a honorrios advocatcios e taxas judicirias,mas tambm pelas relaes entre custos e valor da causa e custos e tempo do processo. Os obstculos sociais e culturais, poroutro lado, so aqueles relacionados a diferenas de classe social entre operadores e usurios da justia, ao reconhecimentode direitos e de mecanismos de proteo, e ao acesso ao conhecimento jurdico.5 O acesso justia pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental o mais bsico dos direitos humanos de umsistema jurdico moderno e igualitrio que pretenda garantir, e no apenas proclamar os direitos de todos. (Cappelletti e Garth,1988: 12). Da a centralidade do tema do acesso no debate sobre efetivao de direitos, de onde Vianna e outros destacam aimportncia do surgimento da idia de direitos difusos para a democratizao do sistema de justia: Portanto, segundoCappelletti e Garth, a origem da democratizao dos sistemas jurdicos esteve indissociavelmente ligada emergncia doschamados direitos difusos, quando, ento, a concepo que definia o processo civil como um assunto a ser resolvido entre
8respeito e do princpio constitucional da igualdade dos cidados de forma a
garantir o acesso aos tribunais e a outros organismos de regulao de
litgios.
No entanto, nos anos oitenta e noventa assistiu-se ao declnio dos sistemas
de acesso ao direito, com as restries oramentais e as alteraes de
concepo poltica no sentido de limitar o mbito do apoio judicirio,
reservando-os s matrias criminais. A elegibilidade do acesso ao direito e
justia retoma os esquemas caritativos anteriores segunda grande guerra
mundial.
A este pessimismo e declnio dos regimes e meios de acesso ao direito e
justia dos anos oitenta e noventa, suceder-se-, no final do sculo XX e
incio do sculo XXI, um discurso poltico e legislativo de desenvolvimento e
consolidao de todos os meios que permitam aos cidados aceder ao direito
e resoluo de litgios, designadamente na Europa (...) (OPJP, 2002).
Entretanto, conforme ressalta Eliane Botelho Junqueira (1996), no foi a partir
da contribuio terica de Cappelletti e Garth, ou mesmo em relao problemtica
da efetivao de novos direitos que a questo do acesso justia colocou-se entre
ns: no Brasil, se a discusso sobre direitos coletivos e difusos tambm esteve
presente no incio dos anos 80, o problema fundamental que se apresentava
naquele momento era o da extenso grande maioria da populao de direitos
individuais e sociais bsicos. Segundo Celso Campilongo:
Ns tentamos simultaneamente, na mesma conjuntura histrica, afirmar
tanto os direitos civis e individuais quanto os direitos polticos, os diretos
sociais e os coletivos. Ou seja, os desafios para o acesso justia entre ns
so infinitamente mais acentuados. (1995: 15).
Analisando dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domiclios (PNAD)
de 19886, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE),
Wanderley Guilherme dos Santos reala o descompasso existente entre o padro
esperado das instituies democrticas, e seu desempenho real em vrios campos
(eleies, partidos, sindicatos, associativismo civil, etc.). Na questo especfica de
conflituosidade e procura por justia, a pesquisa mostra que apenas 10,5% dos
duas partes precisou ser revista, alternando as regras determinantes da legitimidade dos atores para agir, os procedimentostradicionais e a prpria atuao dos juzes. (1998: 157).6 Essa foi a primeira e nica vez que o levantamento realizado pelo IBGE incluiu questes sobre vitimizao e resoluo deconflitos (Sadek, 2002: 246).
9entrevistados reconheciam envolvimento pessoal em algum tipo de conflito; desses,
67% no procuraram o Judicirio para a resoluo de seu problema. Dos
entrevistados que se reconheciam vtima de roubo ou furto, ou vtimas de agresses
fsicas, 68% e 61%, respectivamente, no procuraram a polcia (Santos, 1994: 101).
Para o autor:
A eloqncia dos dados garante a concluso de que, ademais de existir um
conglomerado social de considervel magnitude que sistematicamente
dispensa o recurso ao voto como mecanismo de participao, que se revela
indiferente participao que vai do partido poltico ao sindicato, passando
pelas associaes comunitrias, e que ignora os laos contratuais entre
polticos e seus eleitores, tambm assustadoramente elevado o nmero
daqueles que ou negam o conflito, qualquer tipo de conflito caracterstico das
sociedades contemporneas e, em particular, das que so atrasadas, ou o
reconhecimento dele no os faz ativar as instituies estatais apropriadas.
(...) Mas a experincia individual de cada um testemunha de que
transitamos com freqncia das instituies polirquicas para as no
polirquicas, como se estivssemos coabitando o mesmo universo
institucional. Quando votamos conforme as regras da cidadania polirquica,
mas no damos queixa polcia de que nosso filho teve seus tnis roubados,
ns automaticamente mudamos de sistema institucional. E se em acrscimo
compramos gs paralisante para que o adolescente possa proteger-se em
futuro que se sabe prximo, escolhemos a via resolver por conta prpria em
desespero da polcia e da justia. Na verdade, toda a populao brasileira
transita permanentemente de um a outro conjunto de instituies, com
repercusses malficas sobre a cultura cvica do pas, em primeiro lugar, e
sobre a probabilidade de sucesso das polticas governamentais. (Santos,
1994; 104)7.
A pesquisa Lei, justia e cidadania, realizada entre 1995 e 1996 pelo Centro
de Pesquisa e Documentao da Fundao Getlio Vargas (CPDOC-FGV) em
parceria com o Instituto de Estudos da Religio (ISER), tambm buscou investigar a
percepo da populao acerca de seus direitos e das instituies responsveis por
sua efetivao e pela resoluo dos conflitos. Os dados, analisados por Dulce
7 Ao utilizar a expresso poliarquia, o autor faz referncia expressa teoria democrtica de Robert Dahl: Define-se poliarquia,sucintamente, por elevado grau de institucionalizao da competio pelo poder (existncia de regras claras, pblicas eobedecidas) associado a extensa participao poltica, s limitada por razovel requisito de idade. A coexistncia de ambas asdimenses supe, minimamente, a garantia dos direitos clssicos de associao, liberdade de expresso, formao departidos, igualdade perante a lei e, afinal, controle da agenda pblica. (Santos, 1994: 80).
10
Chaves Pandolfi (1999), mais uma vez confirmam a distncia existente entre as
instituies formais e a efetivao da cidadania plena:
Ora, se o processo de afirmao da nossa cidadania contribuiu para afirmar
no imaginrio da populao a primazia dos direitos sociais, provocar um certo
descaso pelos direitos polticos e civis, e acentuar a percepo dos direitos
de um modo geral como favores ou privilgios, esse processo contribuiu
tambm para que as instituies oficialmente encarregadas de garantir esses
direitos no sejam reconhecidas como instrumentos garantidores dos
direitos. Por isso, como outras pesquisas demonstraram, muitas vezes, ao
invs de utilizar os canais institucionais, a populao acredita que o acesso
direto s autoridades, apelando-se inclusive para a sua boa vontade, pode
ser o melhor caminho para a obteno dos direitos. (Pandolfi, 1999: 54)8.
Por isso Junqueira (1996) afirma que os motivos para o despertar da questo
do acesso justia como problema poltico e terico no Brasil encontram-se no
processo poltico e social da abertura do regime militar, entre o final da dcada de
1970 e o incio dos anos 80. Trata-se, portanto, de inserir a questo do acesso e,
conseqentemente, da democratizao do sistema de justia no contexto maior da
redemocratizao brasileira, marcado pelo surgimento de novos atores polticos, por
movimentos de reforma institucional e conquista de novos direitos, mas tambm por
demandas bsicas de cidadania.
A questo do acesso pode ser vista, ainda, da perspectiva de acesso
individual ou coletivo justia (Junqueira, 1996). Na primeira perspectiva destaca-se
o debate em torno de mecanismos de desbloqueio das instituies de justia ao
acesso dos cidados individualmente as custas judiciais, as defensorias pblicas e
os servios legais gratuitos, a desburocratizao e a informalizao de
procedimentos judiciais, como no caso dos juizados especiais ; de outro ponto de
vista, o debate se d em torno da relao entre o Judicirio e os novos movimentos
sociais, portadores de novas demandas por novos direitos onde se destacam as 8 Para Pandolfi, a efetivao da cidadania no Brasil no obedeceu mesma seqncia ou lgica de sociedades democrticasconsolidadas, com a conquista de direitos dividida em trs geraes (civis, polticos e sociais), sendo que a aquisio de umagerao de direitos era o ponto de partida para a conquista das prximas geraes (1999: 48). Da a prevalncia, no Brasil, dosdireitos sociais percebida pela pesquisa, em detrimento dos direitos civis e polticos: Aqui, por exemplo, os direitos sociaisforam incorporados por uma parcela da populao nos anos 30 e 40, durante a vigncia do regime autoritrio implantado porGetlio Vargas, perodo de cerceamento dos direitos polticos e civis. Como parte de um bem articulado projeto poltico-ideolgico, o Estado brasileiro no ps-30 buscou definir um novo papel e lugar para o trabalhador na sociedade. (...) Aextenso da cidadania se faz, pois, via regulamentao de novas profisses e/ou ocupaes, em primeiro lugar, e medianteampliao do escopo dos direitos associados a estas profisses, antes que por extenso dos valores inerentes ao conceito de
11
reformas de institutos processuais de titularidade de ao, as novas atribuies
constitucionais do Ministrio Pblico na defesa de interesses coletivos e difusos, e o
desbloqueio do sistema de justia representao coletiva e aos movimentos
sociais organizados.
Outra distino, e que perpassa a anterior, diz respeito diferenciao entre
acesso ao Judicirio e acesso justia (Falco, 1995). O primeiro enfoque diz
respeito ao aperfeioamento do modelo de administrao da justia e tem por
pressuposto o monoplio dessa administrao pelo Estado a discusso centra-se,
portanto, nas instituies formais do sistema de justia e tem por conseqncia o
reforo daquele monoplio ; o segundo enfoque reconhece a insuficincia do
primeiro para a abordagem do problema e pretende ampliar a discusso para uma
noo mais abrangente de acesso justia questiona-se, neste ponto, o prprio
monoplio estatal da administrao da justia, a partir do reconhecimento de formas
alternativas de soluo de conflitos e, principalmente, de novas fontes no-estatais
de produo do direito.
2.2. Acesso justia e transformao da advocacia
De acordo com a descrio feita por Mauro Cappelletti e Bryant Garth (1988),
a evoluo dos esquemas de acesso justia passou necessariamente pela
incluso da advocacia nas alternativas de enfrentamento do problema. Se num
primeiro momento a prestao de assistncia judiciria aos pobres consistia em
dever imposto aos advogados, sem qualquer contraprestao financeira sistema
de munus honorificum , reformas no sentido de estabelecer algum tipo de
remunerao aos profissionais (honorrios e/ou despesas), bem como de
sistematizao dos servios de assistncia levaram os esquemas de acesso
justia ao chamado sistema judicare: nele, a assistncia judiciria gratuita tomada
como direito, e os advogados particulares so remunerados pelo Estado, superando
as caractersticas caritativas dos primeiros esforos; os desenhos das experincias
em cada um dos pases variam, mas em geral h limites de renda para definio da
clientela dos servios, cuja organizao pode contar com a participao em maior ou
membro da comunidade. A cidadania est embutida na profisso e os direitos do cidado restringem-se aos direitos do lugarque ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei. (idem: 53).
12
menor grau das organizaes profissionais de advogados. Entretanto, conforme
ponderam Cappelletti e Garth (1988: 38), se o sistema judicare foi capaz de superar
as barreiras econmicas do acesso justia, mostrou-se incapaz de enfrentar os
problemas coletivos das populaes de baixa renda s quais se destinavam.
Num segundo mpeto de reformas na assistncia judiciria, iniciado nos
Estados Unidos na dcada de 1960, a nfase foi justamente na superao das
barreiras geogrficas e culturais ao acesso justia; os advogados, igualmente
remunerados pelo Estado, organizavam-se em escritrios de vizinhana, e
privilegiavam a informao jurdica, a conscientizao sobre direitos e as demandas
coletivas. Se apresentou vantagens sobre o sistema judicare justamente por essas
caractersticas, o modelo de advogados de equipe (Cappelletti e Garth, 1988: 49)
mostrou-se demasiadamente dependente da ao governamental muitas vezes,
ela prpria alvo das aes desses escritrios e de certa forma negligente em
relao a causas individuais, defesa de direitos civis e sociais bsicos.
Por tal razo, em geral os pases optaram por sistemas mistos, combinando
caractersticas de ambos os modelos. Se essa primeira onda do movimento de
reformas de acesso justia, genericamente chamada por Cappelletti e Garth de
assistncia judiciria para os pobres (1988: 31) representou significativos esforos
por parte de Estados e advogados para a democratizao do acesso ao Judicirio,
ela encontrou limitaes no nmero de advogados necessrios e nos recursos
oramentrios disponveis para sua manuteno, o que se refletiria na qualidade dos
servios prestados:
Para obter os servios de um profissional altamente treinado, preciso
pagar caro, sejam os honorrios atendidos pelo cliente ou pelo Estado. Em
economias de mercado, como j assinalamos, a realidade diz que, sem
remunerao adequada, os servios jurdicos para os pobres tendem a ser
pobres tambm. (Cappelletti e Garth, 1988: 47).
A segunda onda do movimento de reformas de acesso justia deu-se em
torno da representao jurdica dos interesses difusos, e que no estavam direta ou
necessariamente relacionados situao de pobreza (Cappelletti e Garth, 1988: 49).
Nesse momento, foram fundamentais as reformas nos institutos processuais de
titularidade de ao e legitimidade ativa, e a interveno governamental por meio de
13
agncias temticas ou pela ao dos Ministrios Pblicos (e rgos similares), mas
a participao da advocacia continuou sendo de grande importncia. A figura do
advogado pblico, remunerado pelo Estado e surgida nos Estados Unidos na
dcada de 1970, ganhou fora em alguns sistemas jurdicos com a finalidade de
representar interesses at ento no representados ou no organizados, como os
dos consumidores, dos idosos e do meio ambiente (idem: 54).
Por outro lado, as solues governamentais apresentavam os mesmos
inconvenientes de algumas iniciativas da primeira onda de reformas, principalmente
no que se refere sua independncia poltica e aos custos de manuteno. A partir
da, as solues encontradas para viabilizar a representao jurdica foram cada vez
mais no sentido de conferir legitimidade para organizaes da sociedade civil
pleitearem a defesa dos interesses difusos em juzo; a participao da advocacia
nesse conjunto de reformas passou a ser, portanto, secundria e diretamente
dependente da criao de uma demanda, por parte das associaes civis, por novos
servios jurdicos.
Entretanto, e embora de maneira desarticulada em relao s aes
governamentais diretas, a advocacia privada foi capaz de se articular de modo a
suprir a demanda das organizaes da sociedade civil, oferecendo novas opes de
mercado para servios jurdicos. Acompanhando as reformas institucionais em
curso, a advocacia privada norte-americana passou a constituir as sociedades de
advogados do interesse pblico, composta de profissionais liberais e muitas vezes
vinculadas a organizaes sem fim lucrativos, mantidas por contribuies
filantrpicas (Cappelletti e Garth, 1988: 62-3). Embora tenham alcanado conquistas
importantes, as sociedades de advogados de interesse pblico foram criticadas por
no se responsabilizarem efetivamente pelos interesses que representam, muitas
vezes sobrepondo suas vises polticas, prprias ou das organizaes que as
mantm, aos interesses dos grupos por eles defendidos; mais uma vez, e conforme
relatam Cappelletti e Garth, deu-se preferncia a solues mistas, que combinam as
diversas iniciativas de representao de interesses difusos (idem: 65-6).
Mas com a terceira onda do movimento de acesso justia que a prpria
participao da advocacia questionada nas solues propostas. Chamada por
Cappelletti e Garth de novo enfoque do acesso justia, a terceira onda do acesso
justia propugna pela informalizao dos procedimentos judiciais, valorizao da
autonomia das partes em conflito e busca de mecanismos de soluo alternativa de
14
conflitos, como a mediao, a conciliao e a arbitragem. De acordo com aqueles
autores, embora a terceira onda de reformas compreenda tambm a representao
judicial por advogados, a crtica a essa representao est na base da
fundamentao terica desse novo conjunto de medidas. Segundo essa crtica, a
nfase excessiva na representao judicial por advogados valoriza as solues
formais em detrimento das solues substantivamente satisfatrias, bem como as
vitrias judiciais em detrimento de conquistas polticas que consolidem os avanos
substantivos; por outro lado, desvaloriza formas mais simples e menos dispendiosas
de advocacia, como a advocacia leiga ou em causa prpria, e, promovendo os
servios advocatcios, perde a oportunidade de propor reformas e polticas que
eliminem a necessidade de advogados para a defesa de interesses (Cappelletti e
Garth, 1988: 69, nota 142).
Relatrio do Observatrio Permanente da Justia Portuguesa (OPJP, 2002),
sobre as reformas recentes nos esquemas de apoio judicirio no mbito do
Conselho da Europa e em seis pases comparados9, d conta da centralidade da
presena de advogados e da participao das organizaes desses profissionais
nas atuais polticas de acesso justia, em geral caracterizadas pela prestao
descentralizada dos servios que vo da simples consulta e orientao ao
patrocnio efetivo das causas, por meio de escritrios organizados pelo prprio
Estado, pelos colgios de advogados ou por outras organizaes da sociedade civil
e pela remunerao, parcial ou total, dos servios pelo Estado, muitas vezes
combinados com medidas de resoluo extrajudicial de conflitos.
Especificamente sobre o caso de Portugal, o relatrio do OPJP analisou a
perspectiva da Ordem dos Advogados sobre o acesso ao direito e justia a partir
de 1981, e percebeu que, embora a organizao dos profissionais portugueses
tenha desde o incio demonstrado preocupao com a questo, seu envolvimento
efetivo sofreu oscilaes. Assim, se na dcada de 1980 manifestou-se a
preocupao com a qualidade e a amplitude dos servios de apoio judicirio em
Portugal, que contemplasse a informao, a consulta e o patrocnio de causas por
profissionais designados, a dcada de 1990 assistiu a uma interveno da Ordem
dos Advogados mais voltada para os problemas decorrentes da remunerao dos
profissionais disponibilizados para o apoio judicirio e para questes relacionadas
9 Frana, Reino Unido, Canad, Espanha, Holanda e Alemanha.
15
valorizao desses advogados, em detrimento de avanos substantivos ou
transformaes voltadas para ampliao do acesso justia globalmente
compreendido. J sobre o programa da gesto da Ordem dos Advogados no incio
dos anos 2000, o relatrio percebe um empenho na transformao do modelo de
apoio judicirio, que, contudo, continuava a enfatizar a presena e a valorizao do
advogado para a ampliao do acesso justia:
O programa alm de efectuar uma sucinta avaliao do actual modelo,
avana igualmente com propostas de interveno, demonstrando um
empenho inequvoco na sua transformao. Contudo, as propostas
avanadas pressupem, na sua maioria, que o sistema de acesso ao direito
e justia seja assumido quase exclusivamente pelos advogados ou
licenciados em direito, seja na prestao de informaes jurdicas, no
exerccio da arbitragem ou da mediao. Decorrem desta nova estratgia da
Ordem dos Advogados trs idias: a) a importncia da dignificao do
sistema de acesso ao direito e, por conseguinte, da prpria profisso de
advogado; b) a necessidade de alargar as sadas profissionais, atravs da
introduo e distribuio de um conjunto de novas competncias e funes a
desempenhar por advogados e por licenciados em direito, contribuindo, por
um lado, para a melhoria do sistema de acesso e, por outro, para solucionar
a actual crise de abundncia; c) a inevitabilidade do controlo, pela Ordem
dos Advogados, de todo o sistema de acesso ao direito (em colaborao com
o Ministrio da Justia), bem como dos seus fundos e mecanismos de
gesto, controlo e fiscalizao (o proposto Instituto da Advocacia e do
Acesso ao Direito), tornando-o mais dependente desta profisso. (OPJP,
2002: 277).
Relatrio do Observatrio Latino-Americano de Poltica Criminal (OLAPOC,
2004) demonstra que os sistemas de assistncia judiciria em pases da Amrica
Latina variam desde a absoluta ausncia de qualquer previso legal de assistncia
gratuita, at a organizao de servios de defensoria pblica autnomos (Tabela 1).
16
Tabela 1: distribuio dos pases de acordo com o tipo deassistncia judiciria prestada
(Amrica Latina, 2004).
Nmero Percentual
Sem previso legal 3 9,6
Apenas advogados nomeados (*) 7 22,5
Servios pblicos vinculados (**) 16 51,6
Servios pblicos autnomos (***) 5 16,1
Total 31 100
Fonte: OLAPOC (2004).
(*) Advogados nomeados por tribunais ou cortes, para casos especficos,
remunerados pelo Estado.
(**) Servios organizados pelo Estado e vinculados a algum outro rgo estatal.
(***) Autonomia administrativa e financeira.
Os dados demonstram que em 22,5% dos pases latino-americanos a
assistncia judiciria depende exclusivamente da nomeao de advogados
particulares para a defesa de interesses de pessoas de baixa renda. Alm disso, dos
21 pases que possuem algum tipo de servio pblico organizado, vinculado ou
autnomo, h notcia, no relatrio, da coexistncia do sistema de nomeao de
advogados particulares em pelo menos seis deles10.
De acordo com o panorama traado por Cappelletti e Garth, a participao da
advocacia nas ondas de reforma dos sistemas de justia investigados parece ter
sido determinada pela avaliao que se fez, em cada momento, das barreiras
existentes para o acesso individual ou coletivo justia. Assim, se a representao
judicial por advogados teve papel central nas conquistas das duas primeiras ondas
de reformas, foi justamente no seu questionamento que se fundamentou a terceira
onda do acesso justia.
10 Argentina, Belize, Bolvia, Brasil, Chile e Colmbia; na Costa Rica e no Panam h relato da existncia de outros serviosorganizados com a participao de advogados particulares, mas fora do Estado. Por fim, vale a pena informar que Cuba foiaqui classificada dentre os pases que possuem servio pblico autnomo, muito embora tal organizao confunda-se com aprpria organizao profissional dos advogados, j que a advocacia privada foi suprimida pelo Estado (OLAPOC, 2004). Orelatrio do OLAPOC bastante sucinto e o levantamento realizado tinha por foco justamente a institucionalizao dosservios de defensoria pblica na Amrica Latina; por isso, no nos permite avaliar outras formas de participao da advocaciapara alm da prestao tpica da primeira onda de reformas de acesso justia, ou mesmo a exata medida da atuao daadvocacia particular, mesmo nos pases que possuem servios pblicos organizados assumindo-se, obviamente, a quaseinevitabilidade da adoo de solues combinadas para o enfrentamento do problema do acesso. Para maiores detalhesacerca da evoluo da organizao da advocacia em Cuba, ver relatrio especfico (OLAPOC, 2004b); para uma anlisecomparativa da defesa pblica na Guatemala e na Colmbia, ver Antonio Maldonado (2004).
17
Mas parece haver algo alm da simples necessidade ou convenincia
estratgica a determinar a maior ou menor participao da advocacia nas reformas
de acesso justia e isso parece evidente na experincia norte-americana das
sociedades de advogados de interesse pblico, organizadas a partir do
associativismo civil envolvendo profissionais liberais, e ao largo, embora tributria,
das iniciativas governamentais pela representao dos interesses difusos. Para
Sousa Santos:
Em geral, de forma comum a todos os pases, este movimento do legal aid
transformou a advocacia. A par da advocacia tradicional, surgiram a
advocacia social e a advocacia poltica. Estas duas novas faces da
advocacia surgem inseridas em movimentos socialmente comprometidos, em
que a primeira pretende unicamente resolver os problemas jurdicos dos mais
carenciados a ttulo individual (defesa de pobres), e a segunda pretende j
defend-los numa perspectiva coletiva (advogados de sindicatos,
associaes), isto , defender os interesses colectivos dos cidados no
sentido do public interest advocacy. (1996: 488).
Segundo Kim Economides, o movimento de reformas de acesso justia na
Amrica do Norte e na Europa um fenmeno que est ligado tanto s
transformaes econmicas e polticas das ltimas dcadas globalizao e crise
do Estado de bem-estar social, principalmente , quanto a mudanas nas fronteiras
profissionais:
Em primeiro lugar, o problema de acesso justia no simplesmente um
problema de opo individual do cidado: as responsabilidades pela garantia
de que tal acesso seja assegurado a grupos excludos recaem tanto no
governo, quanto nos organismos profissionais. Em segundo, como a
dependncia do mercado pode, de muitas maneiras, perpetuar espaos
vazios na oferta de servios jurdicos, no apenas em termos de reas do
direito, mas tambm de reas geogrficas, preciso uma ao determinada
do governo e das profisses jurdicas (ambos agindo em consonncia) para
que tais espaos vazios sejam um dia preenchidos. (1999: 69).
Nesse sentido, Economides defende uma quarta onda no movimento
contemporneo do acesso justia, identificada pelo que define como acesso dos
operadores do direito justia:
18
Dentro da conscincia da profisso jurdica existe um paradoxo curioso,
quase invisvel: como os advogados, que diariamente administram justia,
percebem e tm, eles mesmos, acesso justia? A experincia quotidiana
dos advogados e a proximidade da Justia cegam a profisso jurdica em
relao a concepes mais profundas de justia (interna ou social) e,
conseqentemente, fazem com que a profisso ignore a relao entre justia
civil e justia cvica. Nossa quarta onda expe as dimenses tica e poltica
da administrao da justia e, assim, indica importantes e novos desafios
tanto para a responsabilidade profissional quanto para o ensino jurdico.
(1999: 72).
Para Roberto O. Berizonce, mudanas das posturas profissionais dos
advogados, voltadas para a ampliao do acesso justia, passam
necessariamente por transformaes na prpria organizao da profisso:
(...) una reforma profunda de los modelos actuales habr de influir sobre la
organizacin de la abogaca signando en adelante, en mayor o menor
medida, el rol de los prestadores que pasarn a ser, ms que nunca,
verdaderos operadores sociales. Como tambin, producir efectos no menos
directos y notrios en la misin de las organizaciones y colegios de
abogados, llamamdos seguramente a desempear un papel protagnico em
la organizacin, regncia y administracin de los servicios asistenciales,
satisfaciendo as su misin esencial al servicio del bien comn. (1992: 68).
H, portanto, duas ordens de fatores a influenciarem no maior ou menor
envolvimento da advocacia privada na ampliao do acesso justia: de um lado,
aqueles relacionados s mudanas na identidade da advocacia, ao seu
comprometimento social (Sousa Santos, 1996), transformao de sua tica
profissional (Economides, 1999) ou misso de suas organizaes profissionais
(Berizonce, 1992); de outro lado, temos um mercado de servios legais regulando a
oferta desses servios, com maior ou menor interveno do Estado ou das
organizaes de advogados no sentido de suprir suas falhas.
19
2.3. Advocacia e acesso justia no Brasil
falta de trabalhos especficos, e a fim de se apreender as relaes entre
advocacia e acesso justia no Brasil, optou-se por uma breve reviso de parte da
literatura sobre o sistema de justia que tenha, ainda que incidentalmente, abordado
tais relaes.
Segundo relata Maria da Glria Bonelli, a criao da assistncia judiciria aos
indivduos pobres envolvidos em inquritos criminais, durante a presidncia de
Nabuco de Arajo frente do Instituto dos Advogados do Brasil IAB (1866-1873),
foi um dos principais avanos no sentido da profissionalizao da advocacia no
perodo imperial (2002: 46).
Conforme observado por Luciana Gross Siqueira Cunha (1999), o primeiro
estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1930, j impunha aos advogados
inscritos o dever de prestao de assistncia judiciria gratuita s pessoas que no
pudessem pagar pelos servios profissionais. Com o advento da lei n 1.060 de 1950
marco institucional da assistncia jurdica no Brasil, embora ainda no
considerasse o acesso justia dever do Estado ou direito do cidado , a
obrigao de prestao de servios de assistncia judiciria foi deixada a cargo da
OAB, por meio da indicao de advogados inscritos ou por nomeao pelo juiz, sem
qualquer forma de remunerao aos profissionais.
Entretanto, conforme o Estado assumia obrigaes no sentido de garantir
servios de assistncia jurdica para as classes populares, estruturando servios
pblicos de assistncia judiciria e organizando a advocacia em carreiras de
defensores pblicos, a profisso parece ter assumido outros papis no seu
envolvimento institucional com a questo do acesso justia.
Analisando a advocacia em direitos humanos no Brasil e na Amrica Latina
no processo de redemocratizao recente do continente, Falco (1989) mostra como
esse exerccio profissional, forjado na defesa judicial de perseguidos polticos e dos
interesses de segmentos afetados pelas polticas econmicas dos regimes
autoritrios, e historicamente praticado sob proteo das igrejas (catlica,
principalmente), dos colgios de advogados e das entidades resistentes da
20
sociedade civil, se caracteriza por paradoxos: de um lado, a defesa judicial dos
interesses por ela representados deveria ser capaz de mobilizar o arcabouo jurdico
existente na contestao das prprias leis vigentes, em geral tidas como autoritrias
ou ilegtimas; em outras palavras, o jurdico contra o legal (1989: 147), e assim,
essa advocacia caracteriza-se por defender certos interesses valendo-se da
legislao vigente, ao mesmo tempo em que a questiona e busca reform-la. O
segundo paradoxo seria decorrente do primeiro, e estaria caracterizado pelo fato de
que, nesse tipo de advocacia, dificilmente a atuao tcnico-jurdica prescinde de
alguma forma de atuao extralegal, esta em geral voltada para a presso poltica
sobre a opinio pblica e sobre as instituies, mas tambm para a conscientizao
e educao sobre direitos.
Utilizando dados da pesquisa Justia em So Bernardo do Campo, realizada
pelo Centro de Estudos Direito e Sociedade da Faculdade de Direito da
Universidade de So Paulo, e partindo de uma tipologia que estabelece a distino
entre servios legais tradicionais voltados para o acesso individual justia,
prestado exclusivamente por advogados, com uma postura paternalista,
assistencialista e pouco esclarecedora do direito, alm de restrita ao uso do aparato
estritamente legal e inovadores voltados para o acesso coletivo justia,
compreendendo a participao e a conscientizao dos usurios sobre seus direitos,
envolvendo equipes multidisciplinares e mobilizando estratgias extralegais , Celso
Fernandes Campilongo (1994) comparou os servios de assistncia jurdica
prestados por advogados e estagirios organizados pela OAB de So Paulo e pelo
Sindicato dos Metalrgicos na cidade paulista de So Bernardo do Campo.
Identificando os servios da OAB como tradicionais, e os do Sindicato como
inovadores, o autor, entretanto, conclui pela relevncia de ambas as intervenes
para a ampliao do acesso justia:
Tanto a conscincia dos direitos individuais presente nas demandas da OAB
quanto a conscincia dos direitos coletivos notada no Sindicato reforam o
mesmo fenmeno, ou seja: setores da base da pirmide social que
compem parte significativa da clientela ganham, talvez pela primeira vez,
conscincia dos seus direitos, de serem cidados. O fato de ambos os
servios legais aqui comparados terem uma grande demanda de trabalhos
reala ainda mais a grandiosidade da novidade. O novo no significa tanto a
utilizao de canais inditos de soluo de conflitos jurdicos ou o recurso a
21
um vago direito alternativo, informal e extra-estatal. O ineditismo est
assentado no dado fundamental de que setores populares, antes
praticamente alijados ou ignorados na arena judicial, vo crescentemente
marcando sua presena e ocupando espaos poltico-jurdicos antes vazios.
(1994: 95).
Junqueira (1996) mostra como a Seco do Rio de Janeiro da OAB foi capaz
de conciliar, na dcada de 1980, uma experincia inovadora de assistncia jurdica
a implantao, pela prpria entidade, de um escritrio-modelo no Morro da Coroa,
na capital do estado com uma preocupao, que se pretendia cientfica, de realizar
uma investigao que apreendesse, de um lado, as dificuldades de acesso ao
Judicirio pelas classes populares, e de outro, as novas formas extrajudiciais de
normatividade e resoluo de conflitos produzidas por aquela comunidade,
especialmente por meio das associaes de moradores e dos grupos responsveis
pelo trfico de drogas11.
Diagnstico das defensorias pblicas realizado pelo Ministrio da Justia
(2004) mostra que dos 27 estados da federao, apenas So Paulo, Gois e Santa
Catarina no organizaram suas defensorias; mostra tambm que o Brasil possui ao
todo 3.154 advogados na condio de defensores pblicos estaduais, numa relao
de 1,86 profissionais para cada 100.000 habitantes (Ministrio da Justia, 2004: 49-
50); desses profissionais, 85% exerceram atividade profissional antes do ingresso na
carreira, mas 29,8% deles gostariam de exercer outra carreira jurdica, sendo que
38,6% dos defensores do pas j estavam se preparando para isso. Ainda segundo o
estudo diagnstico, se a existncia de convnios para a prestao de assistncia
jurdica gratuita alternativa encontrada em 54,5% dos estados pesquisados, a OAB
a entidade conveniada em apenas dois dos 22 estados12.
Descrevendo a experincia de criao dos juizados especiais de pequenas
causas na dcada de 80 que, dentre outras mudanas, inovou ao desobrigar as
11 Segundo Junqueira, a principal referncia terica desse trabalho foi a concepo de pluralismo jurdico, lanada cerca dequinze anos antes a partir de uma pesquisa desenvolvida por Boaventura de Sousa Santos em uma favela carioca, entodenominada Pasrgada: A influncia de Boaventura de Sousa Santos faz-se ainda presente em uma linha completamentedistinta de investigao, desenvolvida pelo Departamento de Pesquisa e Documentao da Ordem dos Advogados do Brasil Seo Rio de Janeiro. Em funo da experincia de implantao de um escritrio modelo de advocacia na favela do Morro daCoroa, nasce a oportunidade de, 15 anos depois, revistar Pasrgada. Duas concluses chamam a ateno. De um lado, apesquisa constata que a grande distncia entre a populao mais subalternizada e o Poder Judicirio, considerado umdispositivo privado das elites, explica a existncia de uma indisponibilidade da populao em relao ao mundo dos ricos, quefunciona como bloqueio simblico do seu acesso a dispositivos estatais de intermediao de conflitos (...). De outro, pde-seperceber, j em meados dos anos 80, que a boca-de-fumo surgia como grupo com pretenses de tutelar direitos e mediarconflitos, ou seja, como um importante operador normativo ao lado da juridicidade da associao de moradores. (1996: 396-7).12 Maranho e Paraba (Ministrio da Justia, 2004).
22
partes no processo de constiturem advogados para a defesa de seus interesses ,
Vianna, Carvalho, Melo e Burgos (1999) destacam as resistncias por parte da OAB,
em geral sob a alegao de que a presena de advogado era fundamental para a
defesa dos interesses das partes, principalmente das pessoas mais humildes e
pouco informadas acerca de seus direitos, mas tambm sob o argumento de que a
informalizao de procedimentos trazida por essa reforma judicial daria espao para
o arbtrio judicial e a precarizao de garantias processuais (idem: 172-177). Alm
disso, a Lei 7.244/84, que criou os juizados de pequenas causas, previa tambm a
instituio, no interior dos juizados, de mecanismos de soluo alternativa de
conflitos, como a conciliao promovida por juzes leigos e a arbitragem; Vianna e
outros (1999: 174) vem nas resistncias por parte da OAB, a quem cabia a
indicao dos rbitros, aliadas s resistncias dos prprios magistrados figura o
juiz leigo, as possveis razes para a pouca aceitao posterior desses mecanismos.
De fato, a articulao de interesses entre setores reformistas da magistratura
e o Ministrio da Desburocratizao13 para a instalao dos juizados especiais se viu
obrigada a travar um debate inevitvel com a OAB, que resultou em solues de
compromisso no debate sobre a constitucionalizao dos juizados, como a elevao
de sua competncia para causas com valor at 40 salrios mnimos (Vianna,
Carvalho, Melo e Burgos, 1999: 177); alm disso, segundo relata Bonelli (2002), a
incluso, no Estatuto da Advocacia, da postulao nos juizados especiais como
atividade privativa da advocacia s foi relativizada com a mediao do Supremo
Tribunal Federal, que vetou parcialmente a previso legal, fundamentando o critrio
ao final includo na Lei dos Juizados Especiais Cveis e Criminais (lei n 9.099/1995)
obrigatoriedade de assistncia de advogado apenas nas causas de valor entre 20
e 40 salrios mnimos:
As tenses entre corporativismo e liberalismo que os advogados brasileiros
viveram nos debates sobre a recente reformulao do Estatuto da Advocacia
tambm foram mediadas pelo Judicirio, que de certa forma atendeu a
ambas as vises. Ao mesmo tempo que manteve o maior acesso da
populao aos Juizados Especiais de Pequenas Causas vetando a
13 No incio dos anos 80, dois movimentos de sinalizao distinta convergiram em torno do projeto de criao dos Juizados dePequenas Causas: o da Associao de Juzes do Rio Grande do Sul AJURIS, interessada no desenvolvimento dealternativas capazes de ampliar o acesso ao Judicirio, canalizando para ele a litigiosidade contida na vida social, e o doExecutivo Federal, cujo Ministrio da Desburocratizao pretendia racionalizar a mquina administrativa, tornando-a mais gil eeficiente. (Vianna, Carvalho, Melo e Burgos, 1999: 167).
23
imposio de advogado, ele regulamentou a obrigatoriedade para causas
entre vinte e quarenta salrios-mnimos. (2002: 76).
Mas, alm da questo de garantir a defesa de direitos das populaes mais
pobres, Vianna e outros viram na posio da OAB na dcada de 1980 uma postura
poltica, de oposio de uma agncia da intelligentzia democrtica (1999: 177) a
uma iniciativa de reforma levada a cabo por um Estado ainda fortemente marcado
por uma estrutura burocrtica autoritria:
Com efeito, a principal bandeira da agenda reformista dos advogados era a
da ampliao da assistncia judiciria aos pobres, capacitando-os a litigar.
Porm, no de todo desprezvel a suposio de que a oposio da OAB
Lei 7.244 [que criou os juizados de pequenas causas] tinha, em parte, uma
inspirao poltica. Aquela entidade, afinal, alinhava-se entre as demais
instituies da sociedade civil que se opunham, desde sempre, ditadura
militar e, ao que parece, via na Lei dos Juizados, no sem razo, uma
iniciativa que, embora liderada pelo Judicirio, tinha tambm a marca de um
Estado autoritrio, empenhado na racionalizao do seu aparato burocrtico.
(1999: 176).
24
3. Hiptese e desenho da pesquisa
As explicaes apresentadas por Vianna e outros para a oposio da OAB
instalao dos juizados especiais no do conta de compreender mais
profundamente as relaes gerais entre advocacia e acesso justia, mesmo
porque no era esse o objetivo de sua anlise. Em primeiro lugar, a hiptese da
oposio democrtica da OAB auto-reforma de um Estado autoritrio-burocrtico
parece estar superada pela emergncia de uma nova ordem constitucional em 1988
e, muito especialmente, pela prpria participao da advocacia nessa ordem,
conforme se ver adiante. Afinal, se a atuao da OAB de defesa da ordem jurdica
democrtica justificou a oposio da entidade ao regime militar, possibilitou tambm
uma nova postura da advocacia ps-1988. Segundo Bonelli:
A bandeira que unificou inicialmente o grupo reforou seu coesionamento na
segunda metade do sculo XX, frente aos freqentes ataques que o estado
de direito sofreu no Brasil, particularmente sob o regime militar de 1964-1985.
O sucesso na construo do regime poltico democrtico, a aprovao da
constituio de 1988, o funcionamento jurdico e a independncia do Poder
Judicirio colocam em primeiro plano o destaque do mundo do Direito no
Brasil atual.
Apesar das dificuldades econmicas, da excluso da cidadania e das
desigualdades sociais no pas, os advogados e a ordem jurdica
conquistaram uma visibilidade pblica que lhes realimentam a identidade
comum e a preservao do entrelaamento em torno de suas associaes,
em especial a OAB. (2002: 75).
Por sua vez, o argumento que associa a representao judicial por advogado
garantia de direitos nos procedimentos de resoluo de conflitos encontra respaldo
nessa vocao institucional da OAB na defesa da ordem jurdica, mas tambm no
prprio papel conferido advocacia pelas disposies constitucionais relativas ao
sistema de justia, conforme se ver. Entretanto, se esse argumento capaz de
explicar a oposio da OAB s iniciativas de ampliao do acesso justia que
afastem a advocacia da administrao dos conflitos, ele no permite entender a
25
participao da advocacia e da OAB nos esforos de superao do problema do
acesso que envolvem justamente a representao judicial por advogado.
Buscando uma explicao alternativa para a experincia brasileira, a hiptese
principal deste trabalho a de que, como mostram os estudos comparados,
converso profissional e controle sobre o mercado concorrem para a definio do
maior ou menor envolvimento da advocacia na ampliao do acesso justia no
Brasil.
A fim de testar essa hiptese, optou-se por uma pesquisa documental capaz
de reconstruir o debate interno advocacia no estado de So Paulo, de 1980 a
2005; mais especificamente, buscou-se, por meio da anlise de contedo de
publicaes de entidades da advocacia paulista, identificar os pontos que
estruturaram a pauta desse debate no perodo. Tal opo metodolgica justifica-se,
em primeiro lugar, pela prpria amplitude de temas que compem o debate sobre
acesso justia globalmente compreendido: os obstculos econmicos, culturais e
sociais; as oposies entre acesso individual e coletivo, e entre acesso justia e ao
judicirio; a diversidade de mecanismos e arranjos institucionais possveis para a
ampliao do acesso, conforme exposto acima. Acreditou-se, assim, que a leitura
orientada por palavras-chave relacionadas a esses temas, de textos publicados na
imprensa da advocacia fosse capaz de dar conta das dimenses desse debate.
Em segundo lugar, a demarcao do perodo histrico compreendido pela
coleta de material justifica-se por representar grande parte do processo recente de
redemocratizao e de consolidao democrtica no Brasil, e por ter assistido aos
principais movimentos de reformas do sistema de justia nesse contexto: a criao
dos juizados de pequenas causas em 1984 e dos juizados especiais em 1995, a
Constituio de 1988 e a reforma do Judicirio aprovada em 2004; especificamente
no estado de So Paulo, a institucionalizao do convnio da PGESP com a OABSP
nos anos 1980 e o movimento pela Defensoria Pblica, que culminou com o envio
Assemblia Legislativa, em julho de 2005, do projeto de lei que cria tal instituio.
O marco inicial do lapso temporal escolhido, datado em janeiro de 1980, tem
por referncia a eleio direta para o governo do Estado, em 1982, de Franco
Montoro do PMDB14 que teve em sua gesto, inclusive como Secretrios da
14 Partido do Movimento Democrtico Brasileiro.
26
Justia e da Segurana Pblica, importantes quadros da advocacia paulista , mas
busca abranger ainda um momento anterior do processo de transio poltica.
Foi coletado material de publicaes oficiais de quatro entidades da
advocacia paulista: o Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil
OABSP, a quem cabe o controle formal sobre o exerccio profissional, e que tem
adeso compulsria de seus membros15; a Associao dos Advogados de So
Paulo AASP, entidade de livre adeso e voltada para a prestao de servios e a
defesa dos interesses da classe16; o Instituto dos Advogados de So Paulo IASP,
a mais antiga das entidades da advocacia paulista, de associao condicionada
indicao e aprovao de seus membros, e voltada para o estudo de temas do
direito e para o aperfeioamento da profisso17; e o Sindicato dos Advogados de
So Paulo SASP, tambm de livre associao e responsvel pela representao
dos interesses profissionais, especialmente nas questes eminentemente
trabalhistas18.
O Jornal do Advogado, publicado pela OABSP com periodicidade mensal,
revelou-se a principal fonte de dados da presente pesquisa, devido ao seu formato
propriamente jornalstico incluindo, assim, editoriais, notas informativas,
15 Segundo o artigo 3 do Estatuto da Advocacia (Lei federal n 8.906/1994), o exerccio da atividade de advocacia no territriobrasileiro e a denominao de advogado so privativos dos inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil; ainda segundo seuartigo 10, a inscrio principal do advogado deve ser feita no Conselho Seccional em cujo territrio pretende estabelecer o seudomiclio profissional. O artigo 44 do Estatuto define a OAB como servio pblico, dotada de personalidade jurdica e formafederativa, tendo como finalidades: defender a Constituio, a ordem jurdica do Estado democrtico de direito, os direitoshumanos, a justia social, e pugnar pela boa aplicao das leis, pela rpida administrao da justia e pelo aperfeioamento dacultura e das instituies jurdicas (inciso I); promover, com exclusividade, a representao, a defesa, a seleo e a disciplinados advogados em toda a Repblica Federativa do Brasil (inciso II). Por fim, o artigo 45 define os rgos que compem aentidade: o Conselho Federal, os Conselhos Seccionais, as Subseces e as Caixas de Assistncia ao Advogado. A OABSP,fundada em 1932, conta, atualmente, com 165.521 advogados e 24.322 estagirios inscritos em seus quadros (OAB, 2005).16 Conforme seu estatuto, a AASP uma associao de fins no econmicos, constituda de advogados e estagirios inscritosna OAB (artigo 1), e tem por finalidade: defender direitos, interesses e prerrogativas de seus associados e dos advogados emgeral; propugnar pela assistncia e previdncia social aos advogados, podendo criar servios prprios ou estabelecerconvnios com terceiros; promover maior convvio entre eles; incrementar a cultura das letras e dos assuntos jurdicos,mediante realizao de debates, conferncias, reunies, cursos, congressos e publicaes de interesse jurdico em geral;oferecer aos associados servios que facilitem o exerccio da profisso; representar judicial e extrajudicialmente seusassociados; impetrar, em favor de seus associados, mandado de segurana coletivo (artigo 2). A AASP foi fundada em 1942.17 O IASP foi fundado em 1827. So fins do Instituto, de acordo com o artigo 6 de seu estatuto: o estudo do Direito, a difusodos conhecimentos jurdicos e o culto Justia; a sustentao do primado do Direito e da Justia; a defesa dos direitos, dadignidade e do prestgio dos advogados e dos juristas em geral; a colaborao com o Poder Pblico no aperfeioamento daordem jurdica e das prticas jurdico-administrativas, especialmente no tocante organizao e administrao da Justia,direitos e interesses de seus rgos; a guarda e a estrita observncia das normas da tica profissional por seus associados epelos demais profissionais das carreiras jurdicas; a colaborao e desenvolvimento de atividades com a Ordem dosAdvogados do Brasil e outras entidades, sem limite territorial; a promoo de cursos e conferncias sobre temas jurdicos e deinteresse pblico; a promoo da defesa do meio ambiente, do consumidor e do patrimnio artstico, cultural, esttico, histrico,turstico e paisagstico; a prestao de servios comunidade em reas de cunho jurdico e cultural, inclusive ligadas divulgao da legislao e da jurisprudncia; o aperfeioamento do exerccio profissional das carreiras jurdicas.18 Suas finalidades esto definidas no artigo 2 de seu estatuto: coordenar e encaminhar as reivindicaes dos advogados;defender os interesses e direitos individuais ou coletivos dos integrantes da categoria; promover o desenvolvimento e oaprimoramento cultural, social e tcnico dos trabalhadores representados; integrar a sociedade civil organizada como entidadecomprometida com o Estado de Direito Democrtico e do Bem-Estar Social. Dentre suas prerrogativas incluem-se arepresentao judicial, a celebrao de acordos e convenes coletivas, a instaurao de dissdios trabalhistas e a mobilizaode greve (artigo 3). O SASP foi fundado em 1951, sofreu interveno do regime militar em 1964, e teve seu registro cassadoem 1968. Foi reativado em 1983.
27
entrevistas, reportagens, artigos assinados, transcries de discursos, debates,
teses, resolues e concluses de seminrios, contedos produzidos no s pela
prpria OABSP, mas tambm pelas outras entidades includas no levantamento. A
mesma gama de contedo foi encontrada na Revista da OAB, embora tenha sido
publicada pela OABSP apenas no perodo de 1982 a 1986, com edies bimestrais.
A Revista do Advogado, da AASP, de periodicidade mensal, rene em geral apenas
artigos assinados sobre temas especficos de cada edio, escritos no s por
advogados, e tendo por foco a atualizao e o debate em torno de questes atuais
relacionadas aplicao do direito positivo e ao aprimoramento das prticas
profissionais; nesse sentido, foram valorizadas as edies que tinham por tema
alteraes legislativas ou institucionais ligadas ampliao do acesso justia,
como por exemplo, a instalao dos juizados especiais e a reforma do Judicirio,
que muitas vezes reproduziam o contedo de debates, eventos e seminrios
realizados pela entidade. O IASP, embora seja a mais antiga das entidades, s teve
uma revista publicada a partir de 1997; com edies semestrais, a Revista do IASP
tem seu contedo voltado fundamentalmente para a atualizao legislativa,
doutrinria e jurisprudencial, com foco no aprimoramento tcnico-profissional e na
valorizao da cultura jurdica, embora reproduza tambm discursos dos dirigentes
da entidade, bem como pareceres aprovados por seu conselho. Assim como a
AASP, o IASP mantm um boletim mensal de atualizao legislativa e
jurisprudencial que por seu carter exclusivamente tcnico, foram descartados
como fonte de dados para esta pesquisa. Por fim, o peridico mensal Voz do
Advogado, editado pelo SASP, publicado desde a dcada de 1990, embora a
entidade no mantenha acervo prprio de suas publicaes, disponibilizando
edies em seu stio na internet, em verso eletrnica, a partir do ano 2000.
Vale a pena, neste ponto, realizar uma crtica das fontes. Assim como ocorre
com outras instituies do sistema de justia, a produo e a sistematizao de
informaes pela advocacia paulista e suas principais entidades bastante frgil.
So raras as pesquisas metodologicamente orientadas sobre o perfil da advocacia e
seu mercado de trabalho. As sistematizaes de dados mais consistentes,
produzidas em geral pela OABSP, referem-se em geral ao ensino jurdico, ao exame
de Ordem e aos balanos e prestaes de contas das atividades administrativas
internas da prpria entidade. Ainda assim, sua disponibilizao para o acesso
pblico fica restrita sua divulgao nas publicaes oficiais, notando-se, durante o
28
levantamento, certa dificuldade de obteno de dados junto OABSP e suas
comisses temticas no h, enfim, banco de dados de acesso livre ao pblico.
Por fim, a inexistncia de um acervo das publicaes do SASP, alm de
revelar certo descaso com a memria da prpria entidade, se junta publicao
tardia da revista pelo IASP como fatos demonstrativos do grau de insero dessas
entidades no debate pblico. As publicaes do SASP demonstram, de um lado, a
atuao extremamente politizada da entidade em questes conjunturais e na pauta
de debates do movimento social como, por exemplo, as campanhas contrrias
Aliana de Livre Comrcio das Amricas (ALCA) e recente interveno norte-
americana no Iraque , mas, por outro, um foco corporativo muito marcado pela
atuao na defesa da advocacia trabalhista, em especial. O IASP, por sua vez,
mostrou-se uma entidade que, embora tradicionalmente aberta participao de
membros da comunidade jurdica que no advogados juzes e promotores,
especialmente manteve seu debate em torno da valorizao da cultura e da
comunidade jurdica, incapaz de ultrapassar essas fronteiras. Em outro extremo,
portanto, estariam as publicaes da OABSP, cujo amplo contedo demonstra a
maior insero e abertura da entidade a questes conjunturais, ao longo do tempo.
As publicaes da AASP, por fim, revelam a receptividade da entidade em relao a
inovaes no mundo do direito, embora demonstrem uma interveno geralmente
marcada pela manuteno de um debate de natureza doutrinria em torno das
questes levantadas.
Por tal razo, a presente pesquisa recorreu a outras fontes de informaes
disponveis, que incluram, alm de documentos e de informaes coletadas nos
stios das prprias entidades na internet, contatos com advogados a elas ligados, e
bancos de dados sobre a atividade judicial e sobre a educao superior no pas.
A reconstruo do debate foi feita a partir dos principais temas que emergiram
dessa leitura, expostos a seguir. Entretanto, o material coletado tambm forneceu
importantes subsdios para o desenvolvimento das duas variveis que compem a
hiptese desse trabalho: converso profissional e controle sobre o mercado de
trabalho.
29
4. A identidade profissional dos advogados e da advocacia
Fernando Ruivo (1989) aponta trs movimentos de resposta crise de
legitimao do Judicirio: a converso profissional do magistrado; o desbloqueio das
instituies judicirias ao acesso da populao, por meio da superao dos
obstculos econmicos, sociais e culturais; bem como iniciativas de simplificao e
desburocratizao dos procedimentos e da atividade judicial.
Basicamente, pode-se entender como converso profissional a mudana na
identidade profissional do operador do direito, que baseada em uma aplicao
menos formalista da lei e mais aberta a valores, princpios e a determinantes da
realidade social, tem por objetivo a transformao e a legitimao das instituies
jurdicas.
A converso profissional dos operadores do direito um dos mais complexos
aspectos das reformas do sistema de justia, porque toca simultaneamente em
diversos pontos relevantes o ensino jurdico, o recrutamento dos operadores, o
debate sobre sua sindicalizao e posicionamento poltico, bem como novas
possibilidades de aplicao do direito positivo e, em geral, os debates na literatura
esto voltados para a magistratura, mais sensvel ao conflito entre neutralidade
tcnica e engajamento poltico19.
No esforo de definio da identidade profissional dos advogados e da
advocacia, recorreu-se s duas principais correntes verificadas nos estudos das
cincias sociais sobre o tema: o bacharelismo e a profissionalizao da advocacia.
Por fim, apresenta-se uma abordagem alternativa para a compreenso desta
identidade, dada principalmente pelas disposies constitucionais vigentes sobre as
instituies de justia: a institucionalizao da advocacia.
19 Nesse sentido ver Jos Eduardo Faria e Jos Reinaldo Lima Lopes (1989), Jos Eduardo Faria (1991) e Ricardo Guanabara(1996).
30
4.1. O Governo dos Bacharis20
Os advogados aparecem no pensamento poltico brasileiro inseridos nas
anlises do fenmeno chamado de bacharelismo. Srgio Buarque de Holanda,
embora tenha identificado j em Portugal o prestgio social do bacharel, atribuiu
valorizao da personalidade individual e ao amor pronunciado pelas formas fixas e
pelas leis genricas - tpicas do carter brasileiro a origem da seduo exercida
pelas profisses liberais e pelo ttulo de doutor (2002: 1059).
Para Raymundo Faoro (1958), o prestgio dos letrados no Brasil teria razes
na colonizao; a valorizao social do bacharel estaria associada educao
jesutica e refletiria a valorizao poltica, na medida em que a educao era
condio da nobilitao, e logo, do ingresso do indivduo no estamento burocrtico
(1958: 224-5). A relao entre o ensino jurdico e a burocracia seria ntima e
deliberada, segundo Faoro, pela diligncia governamental de educar a juventude
para o emprego pblico (1958: 227). Da o sentido da crtica de Tavares Bastos
educao pblica, especialmente no ensino superior, que produziria, segundo ele,
uma abundncia de mdicos e bacharis, outros tantos solicitadores de emprego,
outros tantos braos perdidos para o trabalho livre e para a empresa individual
(Bastos, 1976: 37).
Nesse aspecto, seria impossvel para os estudiosos de nossa formao
nacional ignorarem os reflexos de certos aspectos da cultura jurdica na prtica de
nossas instituies. Para Holanda, alm do j mencionado apego s formas fixas e
leis genricas, outro trao tpico da cultura bacharelesca e letrada em nosso pas,
fortemente tributria da influncia positivista, seria a crena no poder milagroso das
idias, baseada em verdade, em seu avesso da mesma moeda: um secreto horror
realidade (2002: 1060). Decorrncia do predomnio de tal cultura em nosso meio
poltico seria, portanto, a inadequao de instituies exgenas e ideais,
transplantadas para uma realidade qual no se adaptariam.
Entretanto, com Oliveira Vianna (1987), e no contexto de um pensamento
autoritrio e antiliberal que se d a crtica mais incisiva e sistemtica influncia da
20 A expresso d nome a um dos captulos de Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro (1958).
31
cultura jurdica na formao da elite poltica brasileira21. Em sua anlise da formao
das elites do Imprio os Homens de 1000 (1987, v. 1: 283) e na sua crtica a
Rui Barbosa um modelo dos juristas do Imprio e dos juristas da Repblica
(1987, v. 2: 32) possvel destacar as manifestaes e as origens do que o autor
chama de idealismo utpico das elites e seu marginalismo poltico (idem: 15).
Segundo Vianna, a nossos homens pblicos a conscincia nacional chegaria
como idia, e no como cultura (1987, v. 1: 294); no viria do povo, mas dos livros
universitrios e da prpria figura do Imperador e de seu Poder Moderador que os
nomeava, educado para as imparcialidades do governo pela natureza de seu
prprio cargo e possudo inteiramente da conscincia da Nao (1987: 300). Se
no deviam nada ao seu povo, os homens da elite iam buscar na cultura e na
tradio poltica dos pases europeus as fontes de sua atuao esse o sentido
do que Vianna chama de marginalismo22.
O idealismo utpico de nossos constitucionalistas legisladores, publicistas,
tratadistas e polticos, tanto no Imprio, como na Repblica (Vianna, 1987, v. 2; 21)
derivaria, segundo o autor, de um idealismo jurdico, caracterstica da metodologia
de nosso direito pblico, impermevel apreenso da realidade circunstante e
experimental; esta seria possvel apenas nas novas cincias sociais, construdas
pelo mtodo objetivo e sociolgico de observao. Para os homens pblicos
formados na cultura jurdica, ao contrrio, a metodologia de estudo e trabalho
resumir-se-ia hermenutica dos textos legais. Para Vianna, o amor de tais homens
s Tbuas da Lei seria quase religioso, e o recurso ao Direito Comparado,
constante, denunciando o j citado marginalismo (1987, v. 2: 21).
De qualquer forma, foi na crtica a Rui Barbosa, modelo dos juristas do
Imprio e da Primeira Repblica, que Vianna detalhou as caractersticas da
formao jurdica que influenciariam nossos homens pblicos: a influncia 21 A sistematizao do pensamento autoritrio da Primeira Repblica feita por Bolvar Lamounier em torno do modelo deideologia de Estado (1978: 356), revela o carter marcadamente antiliberal desse pensamento poltico: de um lado, a visoorgnico-corporativa da sociedade, tendente erradicao do conflito social e desmobilizao da sociedade civil; de outro, opredomnio do principio estatal sobre o de mercado, e a viso do Estado como coordenador da sociedade e da ao poltica.Para Maria Hermnia Tavares de Almeida, a obra de Oliveira Vianna ora citada trata justamente da inadequao do modeloliberal de organizao poltica efetiva cultura poltica da sociedade brasileira: O tema , pois, o da distncia ocenica quesepara o pas legal do pas real, para usar uma expresso cara aos contemporneos de Oliveira Vianna. O primeiro o pasdas elites cosmopolitas e metropolitanas, entre as quais se destacam os juristas liberais. O segundo a terra do povo-massaesmagadoramente rural, com suas normas, comportamentos e tradies prprios e ignorados pelas elites. (2001: 295).22 Justamente por isto que eu cheguei convico de que os homens da elite intelectual do Brasil, no s os que possuempreparao jurdica, como os que possuem preparao literria e cientfica os chamados homens de pensamento(doutrinadores, propagandistas, idealistas, publicistas etc.) podem ser, mui legitimamente, dentro da grande categoria doshomens marginais (marginal man) da classificao de Park. Porque como o tipo de Park vivem todos eles entre duasculturas: uma a do seu povo, que lhes forma o subconsciente coletivo; outra a europia ou norte-americana, que lhes d
32
predominante de doutrinas estrangeiras, especialmente jurdicas, em detrimento
brasiliana, ou seja, as obras de conhecimento da realidade brasileira e da formao
nacional; a viso do direito como tecnologia, e no como cincia social; o gosto pela
erudio, decorrente de uma metodologia escolstica e formalista e da necessidade
de ascendncia e autoridade intelectual; decorrncia desta ltima caracterstica seria
o recuso constante ao bordo do autor estrangeiro e ao argumento de autoridade;
por fim, a influncia do mundo anglo-saxo e dos princpios da doutrina liberal (1987,
v. 2: 32-4).
Esta ltima caracterstica da personalidade de Rui, e segundo Vianna, dos
bacharis juristas em geral, merece ateno, e no pode, ao contrrio das outras
marcas dessa elite intelectual, ser tratada como mera decorrncia das
caractersticas anteriores. Afinal, a ideologia liberal, fortemente arraigada na ordem
legal constitucional, esteve presente de maneira mais ou menos direta na formao
dos bacharis juristas. Segundo Srgio Adorno (1988), o papel do Estado nacional,
enquanto ente administrativo responsvel pela manuteno dos cursos universitrios
nesta opo talvez seja questionvel, mas se no incutiu diretamente a doutrina
liberal nas atividades curriculares, teria ao menos permitido que esses ideais se
desenvolvessem nas atividades extracurriculares, principalmente na militncia dos
estudantes e no jornalismo acadmico, reproduzindo na vida intelectual e na
formao dessas geraes, a sntese entre patrimonialismo e liberalismo
caracterstica da vida do Imprio:
impossvel, de igual modo, analisar a militncia poltica acadmica
independentemente de suas projees ideolgicas. No foi sem razo que os
princpios liberais se sobrepuseram aos democrticos e que a imprensa
acadmica se constituiu em poderoso instrumento de difuso do pensamento
liberal. Desde a criao dos cursos jurdicos, o jus-naturalismo e os princpios
bsicos do liberalismo econmico e poltico introduziram-se pelos labirintos
da vida acadmica, expressando-se enquanto ideologia capaz de representar
os interesses, algo antagnicos, dos homens brancos, livres e proprietrios.
Carregando em seu bojo o mesmo princpio que norteara a revoluo
descolonizadora a liberdade e a luta permanente contra tudo que a
contivesse e a cerceasse , a vida acadmica no comportou o aprendizado
as idias, as diretrizes do pensamento, os paradigmas constitucionais, os critrios do julgamento poltico. (Vianna, 1987, v. 2:16).
33
de uma militncia poltica voltada para a democratizao da sociedade
brasileira. (Adorno, 1988: 238).
Entretanto, a diversificao de formaes superiores e a massificao do
ensino universitrio, o predomnio de tecnocratas na gesto pblica (Martins e
Barbuy, 1999), bem como o surgimento de uma nova elite intelectual com a criao
dos cursos de cincias sociais na dcada de 1930 (Santos, 1978), fizeram com que
os bacharis cedessem ao menos parte de seu protagonismo na vida pblica. Essa
nova condio do bacharel, e especialmente do bacharel-advogado, evidencia, no
dizer de Joaquim Falco, uma tenso, que molda o desempenho profissional como
uma convivncia contraditria entre o bacharel-burocrata, funcionrio pblico e o
profissional advogado liberal. (1984: 11).
4.2. A profissionalizao da advocacia
Aos estudos propriamente de elites, Maria da Glria Bonelli (2002) ope uma
viso da advocacia calcada na sociologia das profisses, destacando seu aspecto
efetivamente profissional, e especificamente analisando o processo por meio do qual
os advogados foram gradualmente se distanciando do Estado e do mercado, a fim
de delimitar seu campo profissional. Segundo Bonelli, na estruturao de carreiras e
ocupaes, profissionalismo, mercado livre e burocracia concorrem entre si no
mundo do trabalho (2002: 19). O primeiro valoriza o conhecimento especializado e
abstrato, adquirido em cursos superiores; o controle do mercado de trabalho pelos
pares; e a autonomia, qualidade e independncia na prestao de servios. A
ideologia do mercado livre se caracteriza pelo predomnio do saber prtico;
mobilidade ocupacional e geogrfica; diviso cotidiana (e no padronizada) do
trabalho; abertura para o ingresso no mercado de trabalho e estmulo concorrncia
e livre escolha pelos clientes. Por fim, o modelo burocrtico valoriza o carter
administrativo e a eficincia; possui diviso mecnica do trabalho, controle
hierrquico da carreira e administrativo do ingresso na ocupao (2002: 16-8).
Descrevendo a trajetria institucional do Instituto dos Advogados do Brasil
IAB e, posteriormente, da Ordem dos Advogados do Brasil OAB, Bonelli percebe
como a organizao da profisso de advogado mudou de uma associao de elite
34
o IAB fundado em 1843 para uma associao de massa, com a criao da OAB
em 1930. Mais especificamente, o que o estudo de Bonelli mostra que os
caminhos da profissionalizao da advocacia esto intimamente ligados transio
de uma associao inicialmente identificada com uma contra-elite liberal, desalojada
do poder pela centralizao conservadora do Segundo Reinado, a um modelo de
organizao da profisso por meio de uma associao de massa, que adquirindo
gradualmente maior controle sobre o exerccio profissional, delimitou fronteiras
razoavelmente ntidas entre a advocacia e o Estado.
Portadores do conhecimento especializado necessrio, legitimado por seus
diplomas superiores a expertise23 , os 26 fundadores do IAB tinham por objetivo
imprimir uma autoridade distintamente qualificada sua ao junto ao Estado, ao
mesmo tempo em que reivindicavam para o Instituto a fiscalizao do mercado da
advocacia, com poder disciplinar sobre os profissionais (Bonelli, 2002: 41-2).
Mas a principal misso institucional do IAB era mesmo a criao da Ordem
dos Advogados do Brasil, o que por longo perodo encontrou resistncias (idem: 40).
Em 1917 foi instalado o Conselho da Ordem, com funo disciplinar apenas sobre
os scios do IAB. Segundo Bonelli:
H uma clara intencionalidade por parte dos membros do IAB em criar uma
corporao com controle dos pares e do mercado, com nfase muito distinta
daquela que motivou a fundao do Instituto, como asilo para os feridos nas
revolues. A fundamentao para a instalao da Ordem de carter moral,
embora trouxesse ganhos materiais. (2002: 55).
A OAB foi criada pelo decreto n 19.408 de 18 de novembro de 1930 e
regulamentada pelo decreto n 22.478 de 20 de fevereiro de 1933, com adeso
compulsria, organizada em mbito nacional e inspirada pela idia de profisso
autogovernada (Bonelli, 2002: 57-8) o que parece explicar o carter moral da
fundao da OAB, presente no s na organizao da representao dos interesses
dos advogados, mas principalmente no controle mais especfico do prprio exerccio
profissional de cada advogado individualmente. A postura de oposio da OAB ao
Estado Novo, marcada pelo objetivo de resgate da ordem jurdica atacada pelo
golpe de 1937, permitiu a ligao entre a atuao estritamente profissional e a
23 Expertise refere-se ao conhecimento especializado de carter abstrato, produzido nas universidades e obtido atravs dodiploma superior. (Bonelli, 2002: 17, nota 2).
35
atuao institucional da entidade, caracterizando o que Bonelli chama de dupla
vocao. Na verdade, esse o principal argumento da autora para a explicao do
processo de delimitao do campo profissional da advocacia em relao aos do
mercado e da poltica:
Isso definiu o aspecto central do profissionalismo e unificou os advogados
no Brasil, at ento divididos nas disputas entre a neutralidade cientfica e a
politizao que marcaram os perodos precedentes. A polarizao entre
estes dois iderios persistiu, mas os freqentes ataques ordem jurdica
mantiveram o vnculo dos advogados na busca da normalidade
constitucional, gerando a identidade da OAB como possuidora de uma dupla
vocao a profissional e a institucional. (2002: 34).
O crescimento do nmero de advogados e de novos campos de atuao
profissional como a advocacia preventiva, a consultoria jurdica a empresas e de
negcios imprimiu novo ritmo ao processo de ampliao dos mecanismos de
controle da OAB sobre o exerccio da advocacia a partir da dcada de 1950. As
Conferncias Nacionais da OAB de 1958 e 1960 discutiram e aprovaram medidas
como a reserva de mercado da consultoria jurdica para a profisso e o
estabelecimento de um piso salarial para os advogados empregados esta, ao final,
includa no novo Estatuto da Ordem de 1963, juntamente com a criao do Exame
de Ordem como requisito para ingresso na profisso, o que, apesar de previsto, no