232 Anticoagulação: Heparina e Protamina 14 É essencial que a coagulação do san- gue seja inibida, para impedir a formação de trombos, durante os procedimentos com circulação extracorpórea. O sangue perma- nece na forma líquida enquanto estiver em contato com as superfícies internas do co- ração (endocárdio) e dos vasos sanguíne- os (endotélio), graças à um equilíbrio físi- co-químico complexo, onde se anulam for- ças que, por um lado favorecem a coagulação e forças que, por outro lado, favorecem a anticoagulação ou a dissolu- ção dos coágulos formados. Quando, em contato com qualquer outro tipo de super- fície, biológica ou de outra natureza, aquele equilíbrio se altera e o sangue tende a coa- gular. Durante a circulação extracorpórea o sangue circula através de aparelhos e tu- bos, em cuja construção são utilizados di- versos materiais que, apesar de relativa- mente biocompatíveis são, na realidade, su- perfícies estranhas, capazes de estimular os processos da coagulação. Embora numerosos problemas da cir- culação extracorpórea tenham sido resol- vidos, os efeitos do contato do sangue com as superfícies estranhas persistem, inclusi- ve a coagulação. Quando o sangue entra em contato com qualquer superfície não revestida pelo endotélio, ocorre um con- junto de alterações que resultam na con- versão de uma proteina, o fibrinogênio, em um complexo de proteinas insolúveis, a fibrina, que é a matriz do coágulo, etapa fi- nal dos fenômenos da coagulação. Para se inibir a coagulação do sangue nos procedimentos com circulação extra- corpórea, usa-se uma substância anticoa- gulante, a heparina. A heparina é a droga escolhida para essa finalidade, porque é específica, tem poucos efeitos colaterais, é bem tolerada pelo organismo, pode ser usa- da, sem inconvenientes, por longos perío- dos e existe um antídoto específico dispo- nível. Ao final da perfusão, neutraliza-se o efeito anticoagulante da heparina com uma outra substância, o antídoto específico, a protamina. Estas duas substâncias, usadas em todos os procedimentos de circulação extracorpórea, devem ser administradas com precisão e cautela; o efeito de ambas é indispensável e a segunda, a protamina, pode desencadear reações colaterais impor- tantes no organismo [1-3] . HEPARINA A heparina foi descoberta acidental- mente, em 1916, por um estudante de Medicina, Jay McLean [4] que, na época, investigava extratos de tecidos do coração
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232
Anticoagulação:
Heparina e Protamina 14
É essencial que a coagulação do san-
gue seja inibida, para impedir a formação
de trombos, durante os procedimentos com
circulação extracorpórea. O sangue perma-
nece na forma líquida enquanto estiver em
contato com as superfícies internas do co-
ração (endocárdio) e dos vasos sanguíne-
os (endotélio), graças à um equilíbrio físi-
co-químico complexo, onde se anulam for-
ças que, por um lado favorecem a
coagulação e forças que, por outro lado,
favorecem a anticoagulação ou a dissolu-
ção dos coágulos formados. Quando, em
contato com qualquer outro tipo de super-
fície, biológica ou de outra natureza, aquele
equilíbrio se altera e o sangue tende a coa-
gular. Durante a circulação extracorpórea
o sangue circula através de aparelhos e tu-
bos, em cuja construção são utilizados di-
versos materiais que, apesar de relativa-
mente biocompatíveis são, na realidade, su-
perfícies estranhas, capazes de estimular os
processos da coagulação.
Embora numerosos problemas da cir-
culação extracorpórea tenham sido resol-
vidos, os efeitos do contato do sangue com
as superfícies estranhas persistem, inclusi-
ve a coagulação. Quando o sangue entra
em contato com qualquer superfície não
revestida pelo endotélio, ocorre um con-
junto de alterações que resultam na con-
versão de uma proteina, o fibrinogênio, em
um complexo de proteinas insolúveis, a
fibrina, que é a matriz do coágulo, etapa fi-
nal dos fenômenos da coagulação.
Para se inibir a coagulação do sangue
nos procedimentos com circulação extra-
corpórea, usa-se uma substância anticoa-
gulante, a heparina. A heparina é a droga
escolhida para essa finalidade, porque é
específica, tem poucos efeitos colaterais, é
bem tolerada pelo organismo, pode ser usa-
da, sem inconvenientes, por longos perío-
dos e existe um antídoto específico dispo-
nível. Ao final da perfusão, neutraliza-se o
efeito anticoagulante da heparina com uma
outra substância, o antídoto específico, a
protamina. Estas duas substâncias, usadas
em todos os procedimentos de circulação
extracorpórea, devem ser administradas
com precisão e cautela; o efeito de ambas
é indispensável e a segunda, a protamina,
pode desencadear reações colaterais impor-
tantes no organismo [1-3]
.
HEPARINA
A heparina foi descoberta acidental-
mente, em 1916, por um estudante de
Medicina, Jay McLean [4]
que, na época,
investigava extratos de tecidos do coração
233
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
e do fígado, buscando substâncias trombo-
plásticas, diferentes da cefalina existente
nos extratos de cérebro. Naquelas investi-
gações foi encontrado um extrato de teci-
do hepático, capaz de retardar a coagula-
ção do plasma. A substância responsável
por aquele efeito foi denominada heparfos-
fatide [4,5]
, em virtude de ter sido encon-
trada no fígado e, posteriormente, batiza-
da como heparina, pela mesma razão.
Em 1937, Chargaff e Olson [6]
desco-
briram que um peptídeo, a protamina,
neutralizava os efeitos anticoagulantes da
heparina. Gibbon [1]
em 1939, apresen-
tou seu primeiro trabalho experimental
testando a viabilidade da circulação ex-
tracorpórea, em que usava a heparina
como anticoagulante. Na primeira ope-
ração em seres humanos, a heparina e a
protamina foram utilizadas para o manu-
seio da coagulação.
Sob o ponto de vista químico, a
heparina é um mucopolissacarídeo sulfa-
tado, com grande quantidade de cargas
elétricas negativas e constitui o ácido
macromolecular mais forte existente no
organismo. Pode ser distinguida de outros
polissacarídeos pela sua extrema acidez,
decorrente da grande quantidade de radi-
cais sulfatados na sua molécula [7]
.
A heparina existe nos pulmões, no fí-
gado e, principalmente, nos mastócitos do
sistema retículo-endotelial [8]
. A heparina
para uso clínico é extraída do pulmão de
bovinos ou da mucosa intestinal de
porcinos. Algumas propriedades, bem como
o grau de pureza da heparina variam com
o tecido do qual ela é extraída e com o
método de extração e preparo, mais do que
com a espécie animal usada para a extra-
ção [9,10]
. A heparina extraida da mucosa
intestinal tem um peso molecular mais bai-
xo e seu método de preparo é mais barato
que a heparina extraida dos pulmões [11,12]
.
Em virtude das variações das seqüên-
cias e do comprimento das cadeias de
hidratos de carbono nos mucopolissacarí-
deos, a heparina não é uma substância pura,
única, e sim uma mistura de diversas subs-
tâncias afins com pesos moleculares que
variam de 3.000 a 40.000 Daltons. A gran-
de maioria das moléculas, contudo, se si-
tua na faixa ente os 10.000 e 20.000 Dalton.
A atividade anticoagulante da heparina se
deve às moléculas de maior peso molecular;
as moléculas menores não tem efeito anti-
coagulante.
Existem algumas diferenças entre a
heparina extraida da mucosa intestinal
porcina e a heparina extraida do pulmão
bovino. A heparina da mucosa intestinal
porcina é mais barata, suas moléculas tem
o peso molecular na faixa entre 3.000 e
25.000 Daltons, é menos efetiva na inibi-
ção da trombina, produz mais sangramen-
to pós-operatório e é neutralizada por do-
ses menores de protamina. A heparina do
pulmão bovino é mais cara, tem o peso
molecular na faixa entre 5.000 e 40.000
Daltons, é mais eficaz inibidor da trombina
e tem um risco pouco mais elevado de pro-
duzir trombocitopenia tardia [12,13]
. Como
resultado dessa variabilidade, cada prepa-
ração comercial da heparina representa, na
realidade, um conjunto de substâncias e a
sua potência pode variar entre os diferen-
tes fabricantes e entre os diferentes lotes
produzidos por um mesmo fabricante. A
234
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
heparina extraída do pulmão bovino, com
maior grau de pureza e maior proporção
de macromoléculas é a mais recomendada
para uso na circulação extracorpórea [9,10]
.
Nos anos setenta foi descorberta uma va-
riante da doença de Creutzfeldt-Jacob, mais
popularmente conhecida como o “mal da
vaca louca”, capaz de afetar seres huma-
nos e produzir alterações neurológicas pro-
gressivas e fatais, caracterizadas por uma
degeneração espongiforme do encéfalo. A
última epidemia dessa doença ocorreu na
Inglaterra entre 1991-1992 e, para preser-
var a exportação de carne bovina, as auto-
ridades sanitárias inglesas divulgaram que
a doença era restrita aos animais e não tra-
zia riscos ao ser humano. O consumo da
carne bovina contaminada com a variante
do agente etiológico causou mais de oitenta
óbitos. O receio de que a proteína (príon)
causadora da doença de Creutzfeldt-Jacob
fosse capaz de contaminar os produtos ex-
traídos do pulmão bovino, fez com que
numerosos serviços cirúrgicos abandonas-
sem o emprego da heparina de origem bo-
vina. Em alguns paises, como os Estados
Unidos, a heparina bovina praticamente
desapareceu do mercado [14-16]
.
As heparinas extraidas da mucosa in-
testinal ou do pulmão, apresentam ca-
racterísticas e propriedades químicas, far-
macocinéticas e farmacodinâmicas seme-
lhantes; ambas provêm anticoagulação e
prevenção de trombose [12,17]
, embora al-
guns estudos demonstrem que o uso da
heparina da mucosa intestinal, pode ge-
rar um sangramento maior no pós-ope-
ratório [18,19]
.
As funções da heparina normalmente
existente no organismo ainda não estão
bem esclarecidas; acredita-se que ela não
seja responsável pela manutenção da flui-
dez do sangue circulante, supondo-se que
a inibição da trombina na circulação, seja
desempenhada por uma outra substância
assemelhada, com menor quantidade de
radicais sulfurados, chamada heparan.
Admite-se que a heparina do organismo
funcionaria nos mecanismos de defesa
imunológica contra infecções bacterianas,
como auxiliar na geração de neocapilares
e no metabolismo dos lipídeos [20,21]
.
MECANISMO DE AÇÃO
DA HEPARINA
A formação do coágulo de fibrina é ini-
ciada por estímulos de diversas naturezas,
que culminam na ativação sequencial de
um conjunto de treze fatores proteicos do
plasma, os fatores da coagulação, que po-
dem ainda ser acelerados ou inibidos em
suas ações, por outras substâncias ou co-
fatores. Os mecanismos da cascata da co-
agulação são múltiplos, íntimamente rela-
cionados e de grande complexidade, ha-
vendo a atuação simultânea dos diversos
fatores e co-fatores em cada uma das fases
do fenômeno. A coagulação do sangue é
estudada com mais detalhes no capítulo 6,
que trata da fisiologia do sangue.
A heparina administrada à um indiví-
duo, interfere nas etapas finais da cascata
da coagulação, que consiste na conversão
da protrombina (fator II) em trombina que,
por sua vez, promove a conversão do fibri-
nogênio (fator I) em fibrina, originando o
coágulo. A heparina impede a transforma-
ção da protrombina em trombina; dessa
235
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
forma a conversão do fibrinogênio em
fibrina, não ocorre (Fig. 14.1).
A trombina (fator II ativado), por
ação enzimática, converte o fibrinogênio
em fibrina, além de ativar os co-fatores
V e VIII, o que acentua a velocidade da
formação do coágulo de fibrina, através
as vias intrínseca e comum da coagula-
ção. A ação enzimática da trombina é im-
pedida por uma glicoproteina do plasma,
a antitrombina III. A heparina se une à
antitrombina III, tornando a sua molé-
cula muito mais ativa em relação à inibi-
ção da trombina, o que impede a con-
versão do fibrinogênio. A heparina au-
menta a potência inibitória da
antitrombina III em cerca de 1.000 vêzes
[20,22]
. A antitrombina III é também um
inibidor dos produtos ativados dos fato-
res IX, X, XI e XII e, por estes mecanis-
mos, a heparina também impede a ação
daqueles fatores, nos mecanismos da co-
agulação. As moléculas de maior peso
molecular, da heparina, inibem a
trombina mais efetivamente que as mo-
léculas menores. A heparina também se
liga à protrombina (fator II) inativando-
a, por um mecanismo independente da
ação da antitrombina III [23]
.
Apesar da grande eficiência da
heparina em impedir a coagulação do san-
gue, cerca de dois terços das moléculas de
heparina, presentes em qualquer prepara-
ção comercial, não tem efeito anticoagu-
lante [24]
.
Algumas proteínas, como a proteina C,
a proteina S e a trombomodulina formam
um complexo protéico capaz de inativar os
fatores VIII e V. Esse complexo protéico
entretanto é ativado pela trombina. A an-
titrombina III bloqueia a ação de diversos
fatores da cascata da coagulação. Na au-
sência de antitrombina III a heparina não
exerce qualquer efeito anticoagulante. A
deficiência congênita ou adquirida de an-
titrombina III torna seus portadores resis-
tentes à ação da heparina [25]
.
OUTRAS AÇÕES DA HEPARINA
A heparina não tem apenas ação anti-
coagulante. Ela tem ainda uma ação
hemorrágica e uma ação antitrombótica. Os
três principais mecanismos da formação e
dissolução do coágulo são: a coagulação do
plasma, a formação do tampão plaquetá-
rio e a dissolução ou lise da fibrina que for-
ma o coágulo (fibrinólise). O principal efei-
to da heparina, na circulação extracorpó-
rea é a inibição da formação da fibrina à
partir do fibrinogênio. Além desse efeito,
a heparina pode induzir dissolução de coá-
gulos formados, por excitação da fibrinólise.
Como, durante a circulação extracorpóre-
a, ocorre a ativação do sistema fibrinolítico,
postula-se que a heparina pode estar en-
Fig. 14.1 Diagrama do mecanismo da coagulação, indi-
cando a ação da heparina sobre a antitrombina III que,
em ultima análise, impede a transformação do fibrinogê-
nio em fibrina.
236
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
volvida naquela ativação [3,26]
. A heparina
também exerce algumas ações sobre as pla-
quetas, das quais as principais são: a libe-
ração de serotonina, aumento da agrega-
ção plaquetária, aumento do tempo de san-
gramento e da liberação do fator plaque-
tário III, e pequena redução do número de
plaquetas circulantes. Acredita-se que
aquelas ações da heparina, também podem
ocorrer durante a perfusão [27]
.
DISTRIBUIÇÃO E ELIMINAÇÃO
DA HEPARINA
A duração dos efeitos da heparina de-
pende da velocidade da sua remoção da
circulação. Os níveis plasmáticos da
heparina se reduzem, consideravelmen-
te, nas primeiras duas horas após a ad-
ministração; à partir daí, a redução é mais
lenta [28]
. Alguns autores observaram que
a velocidade de eliminação da heparina
aumenta com a dose. Senning [29]
, em
1959, demonstrou que após a dose de 4
mg/Kg, a concentração inicial no plas-
ma variou entre 4,6 e 7,8 U.I./ml e a ve-
locidade de desaparecimento da heparina
do sangue foi estimada em aproximada-
mente 50% por hora [29,30]
.
Em estudos com animais e voluntários
humanos, Olson [30]
demonstrou que após
a dose inicial de 400 U/Kg a meia-vida da
heparina é de 126 ± 24 minutos e após a
dose de 200 U/Kg a meia-vida é de 93 ± 6
minutos.
A estrutura macromolecular da hepa-
rina sugere a sua distribuição quase que li-
mitada à corrente sanguínea e às células
endoteliais. Entretanto, a heparina pode
ser detectada em vários tecidos. Uma par-
te da heparina é captada pelos pulmões e
fígado; uma outra parte é filtrada para a
urina e uma parte é inativada por uma
enzima, a heparinase, ou é absorvida na su-
perfície das hemácias. Uma pequena parte
da heparina captada pelos tecidos é
excretada pela urina em vários dias [3,28,31]
.
Os tecidos que captam a heparina, podem
liberá-la em circulação, após a administra-
ção da protamina, constituindo o efeito
“rebound”, que pode dificultar a reconsti-
tuição da coagulação e da hemostasia.
A hipotermia, especialmente abaixo
dos 25o
C, retarda a eliminação da hepari-
na [23,32,33]
. A insuficiência renal também
pode prolongar o efeito anticoagulante da
heparina, enquanto as lesões hepáticas pra-
ticamente não tem influência na sua du-
ração. A maior parte da metabolização da
heparina ocorre no sistema retículo-
endotelial [34]
.
O efeito anticoagulante da heparina
administrada por via venosa é muito rápi-
do, surgindo em cerca de um minuto.
PADRONIZAÇÃO DA HEPARINA
Em função da extrema acidez, a
heparina para uso clínico é preparada como
um sal de sódio ou cálcio. A heparina sódica
é a mais extensamente usada na circula-
ção extracorpórea.
Por se tratar de um produto de extra-
ção biológica, os preparados da heparina
podem apresentar variações da atividade
entre os diferentes lotes. Existem padrões
para determinar a potência de um extrato
de heparina. O padrão mais usado é o da
farmacopéia internacional (Unidades In-
ternacionais). O padrão internacional re-
237
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
presenta a média de outros padrões exis-
tentes e, por essa razão, pode haver varia-
ções na potência de uma mesma solução
determinada por diferentes padrões. A
farmacopéia americana define 1 unidade
de heparina (1 USP), como a quantidade
de heparina que mantém a fluidez de 1ml.
de plasma de carneiro, por uma hora, após
a sua recalcificação.
As variações da quantidade absoluta
de heparina ativa em diferentes lotes de
uma mesma preparação não tem grande
importância clínica, já que a intensidade
da resposta anticoagulante, depende de
fatores individuais.
A heparina usada em circulação extra-
corpórea é a heparina sódica; a prepara-
ção comercial mais adequada ao uso na
CEC, contém 5.000 U.I. em cada mililitro
da solução.
Como a potência da heparina pode va-
riar nas diferentes extrações e preparações,
a relação entre a massa de heparina, deter-
minada em miligramas e a sua potência,
determinada em Unidades Internacionais,
não é sempre a mesma. Embora se consi-
dere que 1 miligrama da solução de hepa-
rina corresponde à atividade de 100 U.I., a
relação não é válida para todas as prepara-
ções. O mais indicado, embora menos usa-
do, é especificar a heparina administrada
em unidades internacionais, ao invés da
massa do sal. A referência mais usada no
nosso meio é o miligrama e, para todos os
efeitos, admite-se que cada 1 mg. de hepa-
rina corresponde à atividade de aproxima-
damente 100 U.I. Devemos, entretanto,
criar o hábito de nos referirmos à heparina
em termos de unidades internacionais.
As doses de heparina usadas na circu-
lação extracorpórea são de 3 a 4 mg./Kg de
peso corporal do paciente [34,33]
, ou, em ter-
mos mais precisos, 300 a 400 U.I./Kg de
peso. As doses podem variar entre as dife-
rentes equipes, em virtude de diferenças
nos protocolos de controle da anticoagu-
lação. Raras equipes usam a dose inicial
de 2 mg/Kg e poucas equipes administram
5 mg/Kg. As doses mais elevadas não ofe-
recem riscos; o excesso da heparina pode
ser neutralizado, sem dificuldades; doses
insuficientes, contudo, podem precipitar a
coagulação intravascular disseminada [36]
.
É da observação prática, entretanto, que
os pacientes que recebem doses mais ele-
vadas apresentam maior sangramento,
mesmo após a completa neutralização da
heparina.
A heparina, em geral, é injetada pelo
cirurgião, diretamente no interior do átrio
direito, antes das canulações. O efeito an-
ticoagulante é detectável, após um minu-
to da administração por aquela via.
A duração do efeito da heparina de-
pende da dose administrada e da velocida-
de da eliminação da droga. Há variações
da intensidade do efeito anticoagulante, em
relação à dose, entre diferentes indivíduos
[37-39]
. Alguns pacientes necessitam de do-
ses maiores que outros e esse fenômeno é
conhecido como resistência à heparina.
A anticoagulação não visa apenas evi-
tar a formação de trombos nos equipamen-
tos da perfusão mas, manter o sistema de
coagulação intacto, para a adequada
hemostasia após a circulação extracorpó-
rea [23]
. Sabemos, contudo, que a heparina
apenas age nas etapas finais da cascata da
238
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
coagulação; as fases iniciais ocorrem nor-
malmente, mesmo na presença desse anti-
coagulante.
MONITORIZAÇÃO DO
EFEITO ANTICOAGULANTE
O efeito anticoagulante da heparina na
circulação sistêmica, durante a circulação
extracorpórea, é monitorizado através de
testes de coagulação, como o tempo de coa-
gulação ativado (TCA) ou o tempo parcial
de tromboplastina (PTT). A anticoagula-
ção considerada eficaz, corresponde ao
tempo de coagulação, 4 ou 5 vêzes superi-
or ao valor basal.
O teste de coagulação mais usado é o
tempo de coagulação ativado (TCA), que
consiste em acelerar o tempo de coagula-
ção do sangue, pela mistura com óxido de
silício (celite). A aceleração do ponto da
coagulação torna o teste mais rápido e prá-
tico que o tempo de coagulação convenci-
onal. O teste foi desenvolvido em 1966, e
apenas em 1974 foi introduzido na cirur-
gia cardíaca [40,41]
. O TCA pode ser feito
manualmente, ou através de aparelhos
semi-automatizados.
O teste manual consiste na mistura de
uma amostra de 2 a 2,5 ml de sangue, em
tubos de vidro siliconizado, contendo 12
mg de celite. O tubo é manualmente agi-
tado e o tempo decorrido entre a retirada
do sangue e o primeiro indício da forma-
ção do coágulo, é o tempo de coagulação
ativado [38]
. Os testes sofrem a influência
de alguns fatores como hemodiluição, hi-
potermia e a sua própria metodologia [42]
.
Nos aparelhos semi-automatizados, o
tubo de vidro pode conter peças plásticas,
que são imobilizadas pela formação do co-
águlo e auxiliam na sua detecção. O tubo
com a amostra de sangue é aquecido e co-
locado no aparelho, que gira e agita o san-
gue; a formação do coágulo é detectada
através de sensores e o tempo gasto é indi-
cado num visor digital [43,44]
(Fig. 14.2).
Existem diversos aparelhos que au-
tomatizam o teste; sua principal vanta-
gem é padronizar o teste para efeito com-
parativo dos resultados. A variação dos
aparelhos na avaliação da concentração
da heparina é de 4 a 8% [17,45]
. Alguns
aparelhos usam dois cartuchos com o
acelerador; o TCA é o tempo médio ava-
liado nas duas amostras.
A última geração do aparelho
Hemocron (Fig. 14.3), recentemente
lançada na sua versão Modelo 8.000, rea-
liza o TCA, o tempo parcial de trombina,
avalia o fibrinogênio e outros testes simul-
tâneos, constituindo um sistema de manu-
seio da anticoagulação, inteiramente
automatizado, com microprocessadores,
visor digital e impressora.
Fig. 14.2 Foto do aparelho semi-automatizado para a
determinação do tempo de coagulação ativado. O motor
gira o tubo com a amostra do sangue, e o visor digital
indica o tempo gasto para a coagulação da amostra. Exis-
tem vários aparelhos desse tipo no mercado.
239
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
O valor normal do TCA varia de 80 a
120 segundos. A heparinização sistêmica
é considerada adequada para a circulação
extracorpórea, quando o TCA alcança um
mínimo de 480 segundos [36,46]
.
A coagulação do sangue é alterada pela
hipotermia. O teste em amostras hipotér-
micas mostra tempos de coagulação extra-
ordinariamente prolongados, que não re-
fletem apenas o efeito da heparina [47,48]
. O
teste correto exige o aquecimento da amos-
tra até os 37o
C.
Em geral, recomenda-se determinar o
TCA, antes e logo após a administração
da primeira dose da heparina e, a seguir, a
cada 30 minutos [17,36,46]
.
Quando se administram agentes anti-
fibrinolíticos durante a circulação extracor-
pórea, os resultados do TCA com o celite
são alterados e deixam de refletir a ação
da heparina. Para esses casos costuma-se
utilizar um outro agente acelerador da co-
agulação, o caolim. Este agente é um mi-
neral alcalino extraído da argila. O caolim
atua exatamente como o celite. Entretan-
to, os agentes antifibrinolíticos, como a
aprotinina, não interferem na determina-
ção do TCA. A técnica e os aparelhos usa-
dos para determinar o TCA com o caolim
são semelhantes à técnica convencional
usada para o celite. Os valores normais do
TCA com o caolim também equivalem aos
valores obtidos com o celite. O caolim ati-
va a via intrínseca da coagulação por ati-
vação direta do fator XI [49]
PROTOCOLOS DE HEPARINIZAÇÃO
A administração da heparina e o con-
trole da sua atividade, durante a circula-
ção extracorpórea, podem ser realizados de
diversos modos. Existem vários protocolos
para a heparinização sistêmica; eles dife-
rem nas doses iniciais administradas, no
controle da anticoagulação, no tempo para
a administração das doses de reforço e na
neutralização pela protamina. Em geral, os
protocolos que indicam as doses mais bai-
xas, incluem o controle mais rígido da an-
ticoagulação. A maioria dos protocolos visa
elevar o tempo de coagulação ativado, aci-
ma de 400 a 480 segundos e administra a
protamina nas menores doses necessárias
à neutralização da heparina circulante.
O protocolo mais usado, com peque-
nas variações, consiste em:
1. Administrar 3 a 4 mg/Kg, como dose
inicial de heparinização, após a determi-
nação do TCA basal, para controle;
Fig. 14.3 Aparelho automatizado para a determinação do
TCA e outros testes de coagulação. Última geração da
linha Hemochron 8.000. Aparelho com micro-processador
e impressora.
240
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
2. Administrar doses de 1mg/Kg, a cada
hora de perfusão ou da administração da
dose inicial;
3. Somar a heparina administrada ao paci-
ente com a heparina colocada no perfusa-
to, para a neutralização, pela protamina,
na proporção de 1:1.
4. Controlar o TCA a intervalos variáveis,
durante a perfusão e ao seu final. A maio-
ria das equipes verifica o TCA a cada 20 a
30 minutos. Raramente é necessário inter-
valos maiores ou menores. Os intervalos
menores são usados em pacientes resisten-
tes à heparina, enquanto os intervalos mai-
ores são reservados aos pacientes sob hi-
potermia profunda.
Bull [36]
e colaboradores propuseram um
protocolo de heparinização, baseado na
relação linear entre a dose de heparina
administrada e a resposta anticoagulante,
medida pelo TCA. Essa relação linear pa-
rece existir apenas nas doses habitualmente
usadas para a circulação extracorpórea [50]
.
Apesar disso, a prática tem demonstrado
que a relação entre a dose de heparina ad-
ministrada e o efeito anticoagulante não é
linear e é particular para cada paciente.
O protocolo de Bull, modificado para
uso prático (Fig. 14.4), consiste em:
1. Determinar o TCA basal, representado
no gráfico como o ponto A;
2. Administrar ao paciente 2mg/Kg de he-
parina e, após alguns minutos, determinar
o TCA, representado como o ponto B;
3. Traçar uma linha à partir do ponto A,
que passa pelo ponto B e se prolonga, além
daquele ponto;
4. O ponto C representa a quantidade de
heparina necessária para obter um TCA
de 480 segundos, para aquele paciente es-
pecífico; é obtido pela transecção da linha
que parte do ponto 480 com a linha que
une A e B;
5. A projeção da linha vertical D, indica a
dose de heparina necessária para produzir
um TCA de 480 segundos;
6. A seta(S) que une as perpendiculares
aos pontos B e C, mostra a dose adicional
de heparina necessária para elevar o TCA
para 480 segundos.
Após o final da perfusão, a determina-
ção do TCA permite traçar outra perpen-
dicular ao eixo das doses. O ponto da in-
terseção indica a quantidade de heparina
circulante, e serve para o cálculo da dose
da protamina.
Outras variações baseadas na relação
direta entre a dose da heparina e a respos-
Fig. 14.4. Gráfico para administração e neutralização da
heparina, pelo protocolo de Bull modificado. O TCA basal é
anotado no ponto A da linha de segundos; administrar 2mg/
Kg de heparina e após 3 minutos repetir o TCA, cujo valor
corresponde à linha que une o ponto B à linha de segundos.
Traçar uma linha que une o ponto A e B e se prolonga, traçar
a linha correspondente a 480 segundos, determinando o
ponto C. A vertical D que une o ponto C à linha das doses,
mostra o valor adicional de heparina a ser administrado,
para alcançar o TCA de 480 segundos, representado pela
seta S. O gráfico pode ser iniciado à partir de uqalquer dose
de heparina. Ao final da perfusão o valor do TCA é traçado
sobre a linha ABC e a sua projeção, na linha das doses, re-
presenta a quantidade de heparina circulante, para o cál-
culo da dose de protamina a ser administrada.
241
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
ta anticoagulante são utilizadas, com re-
sultados semelhantes.
Estudos controlados de diversos pro-
tocolos [51-52]
apontam variações nas do-
ses da heparina administradas e nas
quantidades de protamina necessárias à
sua neutralização, conforme o controle
adotado para a anticoagulação. A nor-
malização da atividade do sistema de co-
agulação e a perda sanguínea pós-ope-
ratória, entretanto, foram semelhantes,
em todos os protocolos.
A melhor qualidade dos aparelhos e
circuitos e o melhor controle da anticoa-
gulação permite, na atualidade, o empre-
go de doses menores de heparina. Isso tem
sido muito usado pelas equipes que utili-
zam os circuitos revestidos com heparina
(Carmeda) ou outros agentes capazes de
acentuar a biocompatibilidade dos oxige-
nadores e circuitos.
EFEITOS COLATERAIS DA HEPARINA
A heparina pode suscitar algumas res-
postas do organismo, independentes do
efeito anticoagulante. O efeito colateral
mais frequente é o sangramento, que pode
ocorrer em 1 a 37% dos casos operados, e
se deve ao efeito hemorrágico da hepari-
na, e não à sua neutralização inadequada
[20,53]
. A heparina pode participar da ativa-
ção do sistema fibrinolítico, provavelmen-
te por excitação de um ativador do plas-
minogênio [26]
.
Seltzer [54]
e Bzoraker [50]
chamaram a
atenção para a redução da pressão arterial
e da resistência vascular periférica em cer-
ca de 10 a 20% dos pacientes, sem afetar o
débito cardiaco.
Algumas alterações metabólicas e da
resposta imunológica do organismo podem
ser relacionadas à presença da heparina
[24]
, bem como a elevação dos níveis de li-
poproteinas plasmáticas [21]
.
Na atualidade, a atenção dos perfusi-
onistas se concentra em dois efeitos cola-
terais capazes de produzir complicações
severas: a resistência à heparina e a trom-
bocitopenia induzida pela heparina.
RESISTÊNCIA Á HEPARINA
A resistência à heparina consiste na
necessidade de doses crescentes da droga
para a obtenção do mesmo efeito anticoa-
gulante. Sabemos que a heparina atua em
combinação com a antitrombina III (AT-
III) e, na ausência de AT-III, a heparina
não tem efeito anticoagulante. Os pacien-
tes que recebem tratamentos prolongados
com heparina podem apresentar resistên-
cia à heparina, causada por redução dos
níveis de AT-III. Na eventualidade de ne-
cessitar heparinização sistêmica para a cir-
culação extracorpórea estes pacientes
mantém níveis de TCA normais ou pou-
cos elevados apesar de receberem doses
elevadas de heparina.
A deficiência de AT-III nunca é to-
tal e pode ser de natureza congênita ou
adquirida. A deficiência congênita pode
ser leve, quando o indivíduo recebe o
gene causador apenas de um dos proge-
nitores ou, pode ser severa, quando os
genes são herdados do pai e da mãe. A
deficiência de AT-III adquirida pode ter
várias causas. A que mais nos interessa
é causada pelo uso prolongado da hepa-
rina, quando a velocidade de reposição
242
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
do organismo não é suficiente para man-
ter os níveis de AT-III dentro da faixa
normal. Os valores normais de AT-III no
sangue correspondem a uma atividade
entre 80 e 120%, equivalente aos níveis
de 17 a 30 mg/dl de sangue. Os recém-
natos tem 60 a 80% dos níveis normais
de AT-III do indivíduo adulto e, por essa
razão, tem necessidade de uma maior
quantidade de heparina para obter o efei-
to anticoagulante desejado.
Os pacientes submetidos a angio-
plastias, uso de balão intra-aórtico, porta-
dores de próteses valvares mecânicas e os
pacientes com isquemia coronariana agu-
da costumam receber heparina para pre-
venir tromboses e, quando encaminhados
para tratamento cirúrgico, são potenciais
portadores de deficiência de AT-III.
Costuma-se classificar como resisten-
te à heparina os indivíduos que neces-
sitam de doses superiores a 500 UI/Kg
para elevar o TCA acima de 480 se-
gundos. De acordo com este conceito,
cerca de 22% dos pacientes que usam
o balão intra-aórtico com hepariniza-
ção sistêmica antes da cirurgia, apre-
sentam resistência à heparina [56,57]
.
O tratamento da deficiência de AT-II
pode ser feito mediante a administração de
plasma fresco (1 a 3 unidades para um adul-
to). Um concentrato liofilizado estável,
denominado trombate, produzido pela
empresa Bayer é apresentado em frascos
contendo 500 ou 1000 UI. Esse concen-
trado eleva o AT-III em aproximadamente
30% por cada 1000 UI. Seu custo, entre-
tanto, é extremamente elevado e o produ-
to é de difícil obtenção.
TROMBOCITOPENIA INDUZIDA
PELA HEPARINA
O uso prolongado da heparina tem
sido associado à redução do número de
plaquetas circulantes. Essa trombocito-
penia na maioria dos casos é assintomá-
tica. Entretanto, em determinadas cir-
cunstâncias, os pacientes podem apresen-
tar complicações significativas, de
natureza hemorrágica ou trombótica. As
complicações dessa trombocitopenia po-
dem ser fatais em até 10% dos pacientes
que desenvolvem sintomas [58]
.
Alguns pacientes em uso prolongado
de heparina podem necessitar de tratamen-
to cirúrgico. Nesses pacientes, a presença
de trombocitopenia induzida pela hepari-
na (TIH) acrescenta um considerável fa-
tor de risco, em relação à ocorrência de he-
morragias e/ou tromboses. Pacientes por-
tadores de TIH assintomática e não
diagnosticada, ao receberem novo curso de
tratamento com heparina apresentaram
complicações de extrema gravidade [59]
. A
presença de TIH em candidatos à trata-
mento cirúrgico com emprego de circula-
ção extracorpórea requer protocolos espe-
ciais de anticoagulação, para evitar as com-
plicações advindas da exposição repetida
à heparina.
Muitos pacientes submetidos ao uso
prolongado de heparina desenvolvem um
quadro de trombocitopenia conhecida
como TIH tipo I, benigna e que não acar-
reta qualquer complicação. Essa forma de
trombocitopenia resulta de ação direta da
heparina sobre as plaquetas. Alguns paci-
entes, entretanto, desenvolvem uma for-
ma mais severa de trombocitopenia, do
243
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
tipo imune, conhecida como TIH tipo II.
Esta forma costuma ocorrer 5 a 15 dias
após a administração continuada da hepa-
rina. Sua incidência ainda não é bem co-
nhecida. Alguns estudos demonstram que
a heparina de origem bovina produz a
síndrome de TIH cinco vezes mais que a
heparina de origem porcina [60-62]
.
A TIH se diferencia de outras trom-
bocitopenias de natureza imunológica e
induzidas por drogas, pelas seguintes ca-
racterísticas [61,63,64]
:
1. Os anticorpos associados à produção da
TIH, com frequência desaparecem algumas
semanas após a interrupção do uso da he-
parina;
2. A síndrome clínica nem sempre reapa-
rece quando a heparina é novamente ad-
ministrada ao paciente;
3. A continuação do tratamento, algumas
vêzes, produz o desaparecimento da
síndrome;
4. A agregação plaquetária in vitro é paci-
ente-específica;
5. Alguns pacientes apresentam trombo-
ses e coagulação intravascular dissemina-
da; e
6. Não há resposta favorável à terapia com
corticosteroides.
A TIH parece estar relacionada ao apa-
recimento gradual de anticorpos (fração
IgG das imunoglobulinas) anti-heparina.
Uma parte das moléculas da heparina ad-
ministrada aos pacientes liga-se à membra-
na das plaquetas.
A formação dos aglomerados plaque-
tários é parte fundamental dos mecanis-
mos de produção da síndrome e, por esta
razão, a TIH também é conhecida como
Trombose Associada à Heparina (TAH).
A TIH pode ser caracterizada como
uma resposta imune estimulada pela pre-
sença de um complexo de heparina com o
fator plaquetário 4 (PF4), que se manifes-
ta clinicamente por trombocitopenia, com
ou sem trombose. Os eventos trombóticos
nos pacientes com TIH são predominan-
temente venosos e não arteriais. O desen-
volvimento dos anticorpos, contudo, nem
sempre resulta em trombocitopenia ou em
eventos catastróficos. Os anticorpos, que
são dos isotipos IgG, IgM e IgA podem ser
facilmente quantificados por um teste
ELISA que contém um complexo de he-
parina e fator plaquetário 4. A formação
de anticorpos pode ser reduzida pelo uso
da heparina não fracionada ou da hepari-
na de baixo peso molecular [65]
.
Para os pacientes que necessitam an-
ticoagulação e tem anticorpos ao com-
plexo heparina-PF4, existe o danaparoid
(Orgaran), um heparinoide de baixo
peso molecular que não reage com os an-
ticorpos e o argatroban, um inibidor es-
pecífico da trombina.
As manifestações clínicas podem ser
ausentes e, nesses casos, o quadro de TIH
consiste apenas da trombocitopenia; esta
é a forma habitual do aparecimento do tipo
I de TIH. A contagem das plaquetas geral-
mente oscila entre 50.000 e 100.000/ml;
contudo, valores de 12.000 plaquetas/ml
já foram registrados.
O tipo II da TIH pode ser acompanha-
do de significativas morbidade e mortali-
dade. Cerca de 20% dos seus portadores
apresentam fenômenos trombóticos que
podem estar limitados aos vasos cutâneos
244
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
ou podem acometer os vasos centrais e ori-
ginar embolias pulmonares ou periféricas.
Alguns pacientes apresentam extensas
tromboses e coagulação intravascular dis-
seminada. A mortalidade nesse subgrupo
de pacientes pode alcançar 35%. Em de-
terminados pacientes há oclusão intra-ope-
ratória imediata das pontes aorto-
coronárias, por trombos brancos. Muitos
desses apresentam embolia pulmonar fa-
tal, no pós operatório imediato. A confir-
mação do diagnóstico, em geral, é feita pela
detecção de anticorpos antiplaquetas no
soro dos indivíduos suspeitos.
A presença de trombocitopenia
induzida pela heparina constitui contra-
indicação absoluta à administração de he-
parina. Quando estes pacientes necessitam
de cirurgia com circulação extracorpórea,
a anticoagulação deve ser obtida median-
te condutas alternativas, que não incluem
a administração da heparina.
Não há, até o momento, uma conduta
claramente identificada como a mais efi-
caz para o manuseio da CEC nos portado-
res de TIH. Quando possível, recomenda-
se simplesmente adiar a cirurgia por cerca
de 1 a 2 meses. Nesse período os anticorpos
anti-heparina desaparecem e a heparini-
zação aguda da CEC não costuma causar
reativação do processo de trombocitope-
nia. Nos pacientes candidatos à revascu-
larização do miocárdio, quando as lesões
são favoráveis, a operação pode ser reali-
zada sem o emprego da CEC. Nos pacien-
tes em que o procedimento cirúrgico é de
urgência ou não pode ser adiado, e a utili-
zação da CEC se impõe, há algumas con-
dutas alternativas, como a remoção seleti-
va das plaquetas, o uso de oxigenadores e
tubos revestidos por aminas quaternárias,
sem heparinização sistêmica, o uso de
heparinoides como o Orgaran ou a
desfibrinação pelo Ancrod.
Nos dias atuais, 3 anticoagulantes al-
ternativos são indicados para os pacientes
portadores de TIH: lepidurina, argatroban
e danaparoide. Os protocolos de uso des-
ses agentes são especiais, devido ao fato de
que, ao contrário do que ocorre com a he-
parina, não há antídotos específicos para a
neutralização do efeito anticoagulante [66]
.
A lepidurina é a hirudina recombinante
e tem sido a droga mais usada nos pacien-
tes que não podem receber heparina. A
lepidurina interage com o fibrinogênio e
inibe a trombina. Sua meia vida é de 80
minutos e, portanto, a simples suspensão
da droga pode ser suficiente para a norma-
lização da coagulação. A dose inicial é de
0,25 mg/kg seguida da infusão contínua de
0,5 mg/min. Adiciona-se 0,2 mg/kg de peso
ao prime do sistema. A concentração ide-
al de lepidurina é superior a 2,5 mcg/ml e
seu efeito pode ser monitorizado pelo tem-
po de coagulação com o ecarin, ainda em
uso restrito, quase experimental. A
lepidurina tem oferecido bons resultados
nos pacientes em que seu uso é indicado.
HEPARINA NOS
MATERIAIS SINTÉTICOS
Os problemas do contato do sangue
com materiais sintéticos, tem suscitado a
busca de alternativas para a anticoagula-
ção sistêmica. Diversos projetos incluem a
produção de cânulas, tubos, oxigenadores
e reservatórios, com superfícies impregna-
245
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
das de moléculas de heparina, ou com as
moléculas da heparina quimicamente liga-
das aos materiais, com o objetivo de redu-
zir as necessidades de anticoagulação [67,68]
.
Alguns relatos de bons resultados, não fo-
ram suficientes para introduzir aqueles ma-
teriais na prática diária. Até o presente, o
uso da heparina e outras substâncias para
modificar as propriedades das superfícies
dos circuitos, permanece na esfera da ex-
perimentação [69-71]
.
PROTAMINA
A protamina é o antídoto específico
para a neutralização do efeito anticoagu-
lante da heparina; é a única substância em
uso, na circulação extracorpórea, com
aquela finalidade.
A protamina é um complexo proteico
com cargas elétricas fortemente positivas,
de baixo peso molecular, encontrada no
esperma ou testiculos de peixes, mais es-
pecificamente do salmão. As protaminas
são fortemente alcalinas, em virtude do
elevado teor de arginina (67%), na com-
posição dos seus aminoácidos [72]
. A prota-
mina é preparada sob a forma de sulfato,
que combina ionicamente com a heparina
para formar um complexo estável, despro-
vido de atividade anticoagulante. Livre na
circulação, não combinada à heparina,
exerce um pequeno efeito anticoagulante,
independente do efeito da heparina [73]
.
Quando a sua quantidade ultrapassa a ne-
cessária à neutralização da heparina
circulante, a protamina pode produzir um
complexo com o fibrinogênio [74]
.
A protamina é apresentada comerci-
almente em ampolas de 5 ml contendo
50 mg de protamina, ou seja, 10 mg para
cada 1 ml.
A quantidade de protamina necessá-
ria para a neutralização da heparina após a
circulação extracorpórea varia entre 75 e
120% da dose de heparina. A heparina ex-
traída dos tecidos do intestino do porco
requer maiores quantidades de protamina,
para a sua neutralização [75]
.
A neutralização da heparina pela pro-
tamina na circulação extracorpórea é ha-
bitualmente feita à razão de 1:1, admitin-
do-se que cada 1mg de protamina neutra-
liza 1mg de heparina. Alguns protocolos
indicam a proporção de 1:3 ou 1:5, admi-
nistrando um pequeno excesso que visa
neutralizar também a heparina absorvida
em determinados tecidos e que, eventual-
mente, volta à circulação.
NEUTRALIZAÇÃO DA HEPARINA
A neutralização da heparina é feita pela
administração venosa lenta de uma solu-
ção diluída de protamina. As doses da pro-
tamina, variam com o protocolo de anti-
coagulação adotado. Em geral, a dose
neutralizante da protamina corresponde à
proporção de 1:1, em relação à massa da
heparina administrada durante todo o pro-
cedimento.
A determinação do TCA ao final da
perfusão, pode auxiliar na determinação da
dose necessária à neutralização adequada
do efeito anticoagulante da heparina. A
derivação da dose, pelo protocolo de Bull
[33]
, também é recomendada. A dose da pro-
tamina deve ser a menor dose possível,
capaz de normalizar as fases finais da coa-
gulação do sangue [76]
.
246
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
O efeito da protamina é observado pela
formação de coágulos, no campo operató-
rio e pela normalização do tempo de coa-
gulação ativado, determinado ao final da
sua administração.
VIAS DE ADMINISTRAÇÃO
DA PROTAMINA
Na tentativa de obviar os inconveni-
entes das reações adversas induzidas pela
administração venosa da protamina, ao fi-
nal da perfusão, diversas vias alternativas
foram propostas, como a injeção no átrio
esquerdo ou na aorta ascendente, veia cava
inferior e veias periféricas. Goldman [70]
relatou que quando a protamina alcança a
circulação pulmonar excita a liberação de
substâncias vasoativas. A protamina admi-
nistrada por via venosa, aumenta a libera-
ção de histamina, pelo tecido pulmonar [75]
.
Casthely [78]
demonstrou que a injeção da
dose total da protamina em veias periféri-
cas ou no átrio esquerdo, durante um perí-
odo de 4 minutos é bem tolerada, enquan-
to a administração em veias centrais pro-
duz hipotensão arterial, redução da
resistência vascular sistêmica e elevação da
pressão e da resistência pulmonares. A in-
jeção da protamina no coração esquerdo,
não tem vantagem apreciável sobre a infu-
são venosa lenta [79,80]
. A velocidade da
infusão é o fator mais importante no
desencadeamento das reações hemodinâ-
micas da protamina. As reações alérgicas
e anafiláticas, podem ocorrer com qualquer
via de administração.
A velocidade da administração da pro-
tamina deve ser lenta. Morel [81]
determi-
nou uma relação direta entre o tempo da
infusão e o aparecimento das reações in-
desejáveis, que corresponderam à libera-
ção do troboxano plaquetário, vasocons-
trição pulmonar e hipotensão arterial.
Recomenda-se administrar a protami-
na à velocidade de 5 mg/min. Moderna-
mente, tem sido sugerida a administração
de um reforço de 50 mg em adultos, lenta-
mente em infusão venosa, nas primeiras
horas do pós-operatório.
REAÇÕES ADVERSAS DA PROTAMINA
Desde o início da cirurgia cardíaca, são
conhecidas as reações colaterais da prota-
mina. Lowenstein [82]
publicou cinco casos
fatais, por efeitos hemodinâmicos, consis-
tindo de hipertensão pulmonar e venosa
central e hipotensão arterial severa; o mes-
mo autor relata que 1,5% das cirurgias car-
díacas em adultos, se acompanham de re-
ações à protamina.
Kurusz [83]
e colaboradores revisaram
573.785 casos de operações com circula-
ção extracorpórea; o acidente mais fre-
quente foi a “reação à protamina”, encon-
trado em 1606 casos, dos quais 133, cerca
de 8%, foram fatais.
A deterioração hemodinâmca também
pode ocorrer por outras razões, nos primei-
ros quinze minutos após o término da per-
fusão, além da reação à protamina.
Diversos tipos de reações à protamina,
tem sido descritos, como as alérgicas ou
anafiláticas [75, 84]
, as reações por liberação do
complemento [85, 86]
, a ação anticoagulante
[74]
, ou as reações hemodinâmicas [77, 87, 88]
.
As reações à protamina podem ser
agrupadas, de acordo com os seus meca-
nismos de produção, em:
247
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
Reação anticoagulante,
Reação hemodinâmica,
Reação anafilática,
Reação sobre o sistema do comple-
mento.
A Reação ou efeito anticoagulante da
protamina, já analisado, depende da ação
sobre o fibrinogênio e pode perpetuar
sangramentos; está relacionada à adminis-
tração de doses excessivas de protamina,
para a neutralização da heparina, ou aos
efeitos do complexo com o fibrinogênio.
A reação hemodinâmica, consiste em
hipotensão arterial, hipertensão pulmonar
e vasodilatação sistêmica. A causa da rea-
ção parece ser a liberação de histamina. A
administração da protamina sem a admi-
nistração prévia da heparina, não produz
aqueles efeitos hemodinâmicos [88,89]
. O
principal efeito, pode, portanto, estar rela-
cionado à presença do complexo protami-
na-heparina [90,91]
.
Estudos com animais tem demonstra-
do que os níveis de tromboxano B2 estão
aumentados, na presença do complexo pro-
tamina-heparina; o tromboxano é um po-
tente vasoconstritor que atua na
vasculatura pulmonar [91,92]
.
Pacientes com pobre reserva miocár-
dica são mais suscetíveis aos efeitos cola-
terais hemodinâmicos da protamina; aque-
les pacientes não conseguem compensar a
vasodilatação produzida com aumento do
débito cardíaco [93,94]
. Os efeitos são mais
acentuados na presença de hipovolemia,
hipocontratilidade miocárdica, lesões
multivalvares e hipertensão pulmonar.
A reação anafilática à protamina de-
pende da presença de anticorpos específi-
cos anti-protamina. Estas reações ocorrem
em indivíduos previamente sensibilizados
à protamina ou aos seus componentes. Os
anticorpos são formados na primeira expo-
sição à protamina, no cateterismo cardía-
co ou em operações cardíacas prévias.
Sharath [84]
descreveu casos de pacientes
diabéticos que usavam insulina lenta, por
longos períodos, e que desenvolveram
anticorpos anti-protamina, na fração IgG
das imunoglobulinas.
Ocasionais relatos de reações alérgicas
em pacientes vasectomizados, parecem ter
relação com o desenvolvimento de
anticorpos contra frações do esperma [95,96]
.
Pacientes alérgicos à peixe podem apre-
sentar reações cruzadas com a protamina,
em virtude da presença de anticorpos es-
pecíficos, nas frações IgE e IgG [97-99]
.
As reações alérgicas ou anafiláticas
independem da via de administração e po-
dem ser leves, extremamente graves, ou
mesmo fatais [79,80,100]
.
A reação sobre o sistema do comple-
mento tem sido atribuida ao complexo pro-
tamina-heparina, ou à protamina isolada-
mente, como capazes de ativar aquele sis-
tema, em pacientes submetidos à cirurgia
cardíaca. Kirklin [86]
demonstrou que a pro-
tamina, independente da circulação extra-
corpórea, é capaz de ativar o sistema do
complemento, cujo resultado, é um con-
junto de alterações que incluem hipoten-
são arterial, hipertensão pulmonar e podem
produzir broncospasmo. Embora a adminis-
tração da protamina possa elevar os níveis
de c3a e c4a do plasma, na maioria dos in-
divíduos, apenas alguns pacientes desen-
volvem reação pulmonar vasoconstritiva
248
FUNDAMENTOS DA CIRCULAÇÃO EXTRACORPÓREA
[81,101,102]
. As frações do complemento
ativadas pela protamina, participam da
gênese da reação inflamatória generaliza-
da do organismo.
A frequência, intensidade e gravidade
das reações à protamina, suscitaram o de-
senvolvimento dos mais diversos protoco-
los de uso e controle, incluindo-se a não
neutralização da heparina [103]
.
O uso judicioso, a administração das
doses essenciais à normalização da ativida-
de do sistema de coagulação e a infusão
lenta, após a estabilização hemodinâmica
do paciente, parecem ser os meios mais efi-
cazes de reduzir a incidência das reações
indesejáveis.
Os pacientes com maiores riscos de
desenvolverem aquelas reações, são os pa-
cientes submetidos à reoperações, diabéti-
cos, alérgicos à peixe e vasectomizados,
além dos pacientes com baixa reserva mi-
ocárdica.
O aparecimento de qualquer reação,
durante a administração da protamina, in-
dica a suspensão imediata da sua infusão e
outras medidas, que podem incluir a ad-
ministração de sangue ou substitutos,
cloreto de cálcio, corticosteroides, antia-
lérgicos e vasopressores. Utley [97]
relatou
um caso em que os efeitos indesejáveis ape-
nas desapareceram após a administração
de heparina.
249
CAPÍTULO 14 – ANTICOAGULAÇÃO: HEPARINA E PROTAMINA
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