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Abecedario Gille Deleuze

Mar 03, 2018

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  • 7/26/2019 Abecedario Gille Deleuze

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    O ABECEDRIO DE GILLES DELEUZETRANSCRIO INTEGRAL DO VDEO, PARA FINS EXCLUSIVAMENTE DIDTICOS

    A de Animal

    B de Beber

    C de Cultura

    D de Desejo

    E de Enfance [Infncia]

    F de Fidelidade

    G de Gauche [Esquerda]

    H de Histria da Filosofia

    I de Idia

    J de Joie [Alegria]

    K de Kant

    L de Literatura

    M de Maladie [Doena]

    N de Neurologia

    O de pera

    P de Professor

    Q de Questo

    R de Resistncia

    S de Style [Estilo]

    T de Tnis

    U de Uno

    V de Viagem

    W de Wittgenstein

    X de Desconhecido

    Y de Indizvel

    Z de Ziguezague

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    A clusula

    Claire Parnet [1994]: Gilles Deleuze sempre se negou a aparecer na TV. Mas atualmente

    ele acha sua doena to parecida com apetite mort, da cano de A. Souchon, que mudoude opinio. Mantive, porm, sua declarao [a clusula], feita em 1988, no incio da

    filmagem:

    Gilles Deleuze [1988]: Voc escolheu um abecedrio, me preveniu sobre os temas, no

    conheo bem as questes, mas pude refletir um pouco sobre os temas... Responder a uma

    questo, sem ter refletido, para mim algo inconcebvel. O que nos salva a clusula. A

    clusula que isso s ser utilizado, se for utilizvel, s ser utilizado aps minha morte.

    Ento, j me sinto reduzido ao estado de puro arquivo de Pierre-Andr Boutang, de folha de

    papel, e isso me anima muito, me consola muito, e quase no estado de puro esprito, eu falo,falo ...aps minha morte... e, como se sabe, um puro esprito, basta ter feito a experincia da

    mesa girante [do espiritismo], para saber que um puro esprito no d respostas muito

    profundas, nem muito inteligentes, um pouco vago, ento est tudo certo, tudo certo para

    mim, vamos comear: A, B, C, D... o que voc quiser.

    A de Animal

    CP: Ento comeamos com A. A Animal. Poderamos considerar sua a frase de W. C.

    Fields: Um homem que no gosta nem de crianas, nem de animais no pode ser

    totalmente ruim. Por enquanto, deixemos de lado as crianas, sei que voc no gosta muito

    de animais domsticos, e nem prefere, como Baudelaire ou Cocteau, os gatos aos

    cachorros. Em compensao, voc tem um bestirio, ao longo de sua obra, que bastante

    repugnante, ou seja, alm das feras, que so animais nobres, voc fala muito do carrapato,

    do piolho, de alguns pequenos animais como esses, repugnantes, e alm disso, que os

    animais lhe serviram muito desde O anti-dipo. Um conceito importante em sua obra o

    devir-animal. Qual , ento, sua relao com os animais?

    GD: Os animais no so... O que voc disse sobre minha relao com os animais

    domsticos, no o animal domstico, domado, selvagem, o que me preocupa. O problema que os gatos, os cachorros, so animais familiares, familiais, e verdade que desses

    animais domados, domsticos, eu no gosto. Em compensao, gosto de animais

    domsticos no-familiares, no-familiais. Gosto, pois sou sensvel a algo neles. Aconteceu

    comigo o que acontece em muitas famlias. No tinha gato, nem cachorro. Um de meus

    filhos com Fanny trouxe, um dia, um gato que no era maior que sua mozinha. Ele o tinha

    encontrado, estvamos no campo, em um palheiro, no sei bem onde, e a partir desse

    momento fatal, sempre tive um gato em casa. O que me incomoda nesses bichos? Bem, no

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    foi um calvrio, eu suporto, o que me incomoda... no gosto dos roadores, um gato passa

    seu tempo se roando, roando em voc, no gosto disso. Um cachorro diferente, o que

    reprovo, fundamentalmente, no cachorro, que ele late. O latido me parece ser o grito maisestpido. E h muitos gritos na Natureza! H uma variedade de gritos, mas o latido ,

    realmente, a vergonha do reino animal. Suporto, em compensao, suporto mais, se no

    durar muito, o grito, no sei como se diz, o uivo para a lua, um cachorro que uiva para a

    lua, eu suporto mais.

    CP: O uivo para a morte.

    GD: Para a morte, no sei, suporto mais que o latido. E, quando soube que cachorros e

    gatos fraudavam a previdncia social, minha antipatia aumentou. Ao mesmo tempo, o que

    digo bem bobo, porque as pessoas que gostam verdadeiramente de gatos e cachorros tm

    uma relao com eles que no humana. Por exemplo, as crianas, tm uma relao com

    eles que no humana, que uma espcie de relao infantil ou... o importante ter uma

    relao animal com o animal. O que ter uma relao animal com o animal? No falar

    com ele... Em todo caso, o que no suporto a relao humana com o animal. Sei o que

    digo porque moro em uma rua um pouco deserta e as pessoas levam seus cachorros para

    passear. O que ouo de minha janela espantoso. espantoso como as pessoas falam com

    seus bichos. Isso inclui a prpria psicanlise. A psicanlise est to fixada nos animais

    familiares ou familiais, nos animais da famlia, que qualquer tema animal... em um sonho,

    por exemplo, interpretado pela psicanlise como uma imagem do pai, da me ou do filho,ou seja, o animal como membro da famlia. Acho isso odioso, no suporto. Devemos

    pensar em duas obras primas de Douanier Rousseau: o cachorro na carrocinha que

    realmente o av, o av em estado puro, e depois o cavalo de guerra, que um bicho de

    verdade. A questo : que relao voc tem com o animal? Se voc tem uma relao animal

    com o animal... Mas geralmente as pessoas que gostam dos animais no tm uma relao

    humana com eles, mas uma relao animal. Isso muito bonito, mesmo os caadores, e no

    gosto de caadores, enfim, mesmo eles tm uma relao surpreendente com o animal. Acho

    que voc me perguntou, tambm, sobre outros animais. verdade que sou fascinado por

    bichos como as aranhas, os carrapatos, os piolhos. to importante quanto os cachorros e

    gatos. E tambm uma relao com animais, algum que tem carrapatos, piolhos. O que

    quer dizer isto? So relaes bem ativas com os animais. O que me fascina no animal? Meu

    dio por certos animais nutrido por meu fascnio por muitos animais. Se tento me dizer,

    vagamente, o que me toca em um animal, a primeira coisa que todo animal tem um

    mundo. curioso, pois muita gente, muitos humanos no tm mundo. Vivem a vida de

    todo mundo, ou seja, de qualquer um, de qualquer coisa, os animais tm mundos. Um

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    mundo animal, s vezes, extraordinariamente restrito e isso que emociona. Os animais

    reagem a muito pouca coisa. H toda espcie de coisas...

    Essa histria, esse primeiro trao do animal a existncia de mundos animais especficos,particulares, e talvez seja a pobreza desses mundos, a reduo, o carter reduzido desses

    mundos que me impressiona muito. Por exemplo, falamos, h pouco, de animais como o

    carrapato. O carrapato responde ou reage a trs coisas, trs excitantes, um s ponto, em

    uma natureza imensa, trs excitantes, um ponto, s. Ele tende para a extremidade de um

    galho de rvore, atrado pela luz, ele pode passar anos, no alto desse galho, sem comer, sem

    nada, completamente amorfo, ele espera que um ruminante, um herbvoro, um bicho passe

    sob o galho, e ento ele se deixa cair, a uma espcie de excitante olfativo. O carrapato

    sente o cheiro do bicho que passa sob o galho, este o segundo excitante, luz, e depois

    odor, e ento, quando ele cai nas costas do pobre bicho, ele procura a regio com menos

    plos, um excitante ttil, e se mete sob a pele. Ao resto, se se pode dizer, ele no d a

    mnima. Em uma natureza formigante, ele extrai, seleciona trs coisas.

    CP: este seu sonho de vida? isso que lhe interessa nos animais?

    GD: isso que faz um mundo.

    CP: Da sua relao animal-escrita. O escritor, para voc, , tambm, algum que tem um

    mundo?

    GD: No sei, porque h outros aspectos, no basta ter um mundo para ser um animal. O que

    me fascina completamente so as questes de territrio e acho que Flix e eu criamos umconceito que se pode dizer que filosfico, com a idia de territrio. Os animais de

    territrio, h animais sem territrio, mas os animais de territrio so prodigiosos, porque

    constituir um territrio, para mim, quase o nascimento da arte. Quando vemos como um

    animal marca seu territrio, todo mundo sabe, todo mundo invoca sempre... as histrias de

    glndulas anais, de urina, com as quais eles marcam as fronteiras de seu territrio. O que

    intervm na marcao , tambm, uma srie de posturas, por exemplo, se abaixar, se

    levantar. Uma srie de cores, os macacos, por exemplo, as cores das ndegas dos macacos,

    que eles manifestam na fronteira do territrio... Cor, canto, postura, so as trs

    determinaes da arte, quero dizer, a cor, as linhas, as posturas animais so, s vezes,

    verdadeiras linhas. Cor, linha, canto. a arte em estado puro. E, ento, eu me digo, quando

    eles saem de seu territrio ou quando voltam para ele, seu comportamento... O territrio o

    domnio do ter. curioso que seja no ter, isto , minhas propriedades, minhas propriedades

    maneira de Beckett ou de Michaux. O territrio so as propriedades do animal, e sair do

    territrio se aventurar. H bichos que reconhecem seu cnjuge, o reconhecem no

    territrio, mas no fora dele.

    CP: Quais?

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    GD: uma maravilha. No sei mais que pssaro, tem de acreditar em mim. E ento, com

    Flix, saio do animal, coloco, de imediato, um problema filosfico, porque... misturamos

    um pouco de tudo no abecedrio. Digo para mim, criticam os filsofos por criarem palavrasbrbaras, mas eu, ponha-se no meu lugar, por determinadas razes, fao questo de refletir

    sobre essa noo de territrio. E o territrio s vale em relao a um movimento atravs do

    qual se sai dele. preciso reunir isso. Preciso de uma palavra, aparentemente brbara.

    Ento, Flix e eu construmos um conceito de que gosto muito, o de desterritorializao.

    Sobre isso nos dizem: uma palavra dura, e o que quer dizer, qual a necessidade disso?

    Aqui, um conceito filosfico s pode ser designado por uma palavra que ainda no existe.

    Mesmo se se descobre, depois, um equivalente em outras lnguas. Por exemplo, depois

    percebi que em Melville, sempre aparecia a palavra: outlandish, e outlandish, pronuncio

    mal, voc corrige, outlandish , exatamente, o desterritorializado. Palavra por palavra.

    Penso que, para a filosofia, antes de voltar aos animais, para a filosofia surpreendente.

    Precisamos, s vezes, inventar uma palavra brbara para dar conta de uma noo com

    pretenso nova. A noo com pretenso nova que no h territrio sem um vetor de sada

    do territrio e no h sada do territrio, ou seja, desterritorializao, sem, ao mesmo

    tempo, um esforo para se reterritorializar em outra parte. Tudo isso acontece nos animais.

    isso que me fascina, todo o domnio dos signos. Os animais emitem signos, no param de

    emitir signos, produzem signos no duplo sentido: reagem a signos, por exemplo, uma

    aranha: tudo o que toca sua tela, ela reage a qualquer coisa, ela reage a signos. E elesproduzem signos, por exemplo, os famosos signos... Isso um signo de lobo? um lobo ou

    outra coisa? Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caadores, no os

    de sociedades de caa, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, a eles

    so animais, tm, com o animal, uma relao animal. isso ter uma relao animal com o

    animal. formidvel.

    CP: essa emisso de signos, essa recepo de signos que aproxima o animal da escrita e

    do escritor?

    GD: . Se me perguntassem o que um animal, eu responderia: o ser espreita, um ser,

    fundamentalmente, espreita.

    CP: Como o escritor?

    GD: O escritor est espreita, o filsofo est espreita. evidente que estamos espreita.

    O animal ... observe as orelhas de um animal, ele no faz nada sem estar espreita, nunca

    est tranqilo.

    Ele come, deve vigiar se no h algum atrs dele, se acontece algo atrs dele, a seu lado.

    terrvel essa existncia espreita. Voc faz a aproximao entre o escritor e o animal.

    CP: Voc a fez antes de mim.

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    GD: verdade, enfim... Seria preciso dizer que, no limite, um escritor escreve para os

    leitores, ou seja, para uso de, "dirigido a". Um escritor escreve "para uso dos leitores".

    Mas o escritor tambm escreve pelosno-leitores, ou seja, no lugar de e no "para usode". Escreve-se pois "para uso de" e "no lugar de". Artaud escreveu pginas que todo

    mundo conhece. Escrevo pelos analfabetos, pelos idiotas. Faulkner escreve pelos idiotas.

    Ou seja, no para os idiotas, os analfabetos, para que os idiotas, os analfabetos o leiam, mas

    no lugar dos analfabetos, dos idiotas. Escrevo no lugar dos selvagens, escrevo no lugar dos

    bichos. O que isso quer dizer? Por que se diz uma coisa dessas? Escrevo no lugar dos

    analfabetos, dos idiotas, dos bichos. isso que se faz, literalmente, quando se escreve.

    Quando se escreve, no se trata de histria privada. So realmente uns imbecis. a

    abominao, a mediocridade literria de todos as pocas, mas, em particular, atualmente,

    que faz com que se acredite que para fazer um romance, basta uma historinha privada, sua

    historinha privada, sua av que morreu de cncer, sua histria de amor, e ento se faz um

    romance. uma vergonha dizer coisas desse tipo. Escrever no assunto privado de

    algum. se lanar, realmente, em uma histria universal e seja o romance ou a filosofia, e

    o que isso quer dizer...

    CP: escrever "para" e "pelo", ou seja, "para uso de" e "no lugar de". o que disse em

    Mil plats, sobre Chandos e Hofmannsthal: O escritor um bruxo, pois vive o animal

    como a nica populao frente qual responsvel.

    GD: isso. por uma razo simples, acredito que seja bem simples. No uma declaraoliterria a que voc leu de Hofmannsthal. outra coisa. Escrever , necessariamente, forar

    a linguagem, a sintaxe, porque a linguagem a sintaxe, forar a sintaxe at um certo limite,

    limite que se pode exprimir de vrias maneiras. tanto o limite que separa a linguagem do

    silncio, quanto o limite que separa a linguagem da msica, que separa a linguagem de algo

    que seria... o piar, o piar doloroso.

    CP: Mas de jeito algum o latido?

    GD: No, o latido no. E, quem sabe, poderia haver um escritor que conseguisse. O piar

    doloroso, todos dizem, bem, sim, Kafka. Kafka A metamorfose, o gerente que grita:

    Ouviram, parece um animal. Piar doloroso de Gregor ou o povo dos camundongos, Kafka

    escreveupelo povo dos camundongos, pelo povo dos ratos que morrem. No so os

    homens que sabem morrer, so os bichos, e os homens, quando morrem, morrem como

    bichos. A voltamos ao gato e, com muito respeito, tive, entre os vrios gatos que se

    sucederam aqui, um gatinho que morreu logo, ou seja, vi o que muita gente tambm viu,

    como um bicho procura um canto para morrer. H um territrio para a morte tambm, h

    uma procura do territrio da morte, onde se pode morrer. E esse gatinho que tentava se

    enfiar em um canto, como se para ele fosse o lugar certo para morrer. Nesse sentido, se o

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    escritor algum que fora a linguagem at um limite, limite que separa a linguagem da

    animalidade, do grito, do canto, deve-se ento dizer que o escritor responsvel pelos

    animais que morrem, e ser responsvel pelos animais que morrem, responder por eles...escrever no para eles, no vou escrever para meu gato, meu cachorro. Mas escrever no

    lugar dos animais que morrem levar a linguagem a esse limite. No h literatura que no

    leve a linguagem a esse limite que separa o homem do animal. Deve-se estar nesse limite.

    Mesmo quando se faz filosofia. Fica-se no limite que separa o pensamento do no-

    pensamento. Deve-se estar sempre no limite que o separa da animalidade, mas de modo que

    no se fique separado dela. H uma inumanidade prpria ao corpo humano, e ao esprito

    humano, h relaes animais com o animal. Seria bom se terminssemos com o A.

    B de Beber

    CP: Vamos passar para o B.

    CP: B um pouco particular, sobre a bebida. Voc bebeu e parou de beber. Eu gostaria de

    saber quando voc bebia, o que era beber? Tinha prazer, ou o qu?

    GD: Bebi muito, bebi muito. Parei, bebi muito... Seria preciso perguntar a outras pessoas

    que beberam, perguntar aos alcolatras. Acho que beber uma questo de quantidade, por

    isso no h equivalente com a comida. H gulosos, h pessoas... comer sempre me

    desagradou, no para mim, mas a bebida uma questo... Entendo que no se bebe

    qualquer coisa. Quem bebe tem sua bebida favorita, mas nesse mbito que ele entende aquantidade. O que quer dizer questo de quantidade? Zomba-se muito dos drogados, ou dos

    alcolatras, porque eles sempre dizem: Eu controlo, paro de beber quando quiser.

    Zombam deles, porque no se entende o que querem dizer. Tenho lembranas bem claras.

    Eu via bem isso e acho que quem bebe compreende isso. Quando se bebe, se quer chegar ao

    ltimo copo. Beber , literalmente, fazer tudo para chegar ao ltimo copo. isso que

    interessa.

    CP: sempre o limite?

    GD: Ser que o limite? complicado. Em outros termos, um alcolatra algum que estsempre parando de beber, ou seja, est sempre no ltimo copo. O que isto quer dizer? um

    pouco como a frmula de Pguy, que to bela: no a ltima ninfia que repete a

    primeira, a primeira ninfia que repete todas as outras e a ltima. Pois bem, o primeiro

    copo repete o ltimo, o ltimo que conta. O que quer dizer o ltimo copo para um

    alcolatra? Ele se levanta de manh, se for um alcolatra da manh, h todos os gneros, se

    for um alcolatra da manh, ele tende para o momento em que chegar ao ltimo copo. No

    o primeiro , o segundo, o terceiro que o interessa, muito mais, um alcolatra

    malandro, esperto. O ltimo copo quer dizer o seguinte: ele avalia, h uma avaliao, ele

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    avalia o que pode agentar, sem desabar... Ele avalia. Varia para cada pessoa. Avalia,

    portanto, o ltimo copo e todos os outros sero a sua maneira de passar, e de atingir esse

    ltimo. E o que quer dizer o ltimo? Quer dizer: ele no suporta beber mais naquele dia. o ltimo que lhe permitir recomear no dia seguinte, porque, se ele for at o ltimo que

    excede seu poder, o ltimo em seu poder, se ele vai alm do ltimo em seu poder para

    chegar ao ltimo que excede seu poder, ele desmorona, e est acabado, vai para o hospital,

    ou tem de mudar de hbito, de agenciamento. De modo que, quando ele diz: o ltimo copo,

    no o ltimo, o penltimo, ele procura o penltimo. Ele no procura o ltimo copo,

    procura o penltimo copo. No o ltimo, pois o ltimo o poria fora de seu arranjo, e o

    penltimo o ltimo antes do recomeo no dia seguinte. O alcolatra aquele que diz e

    no pra de dizer: vamos... o que se ouve nos bares, to divertida a companhia de

    alcolatras, a gente no se cansa de escut-los, nos bares quem diz: o ltimo, e o ltimo

    varia para cada um. E o ltimo o penltimo.

    CP: tambm quem diz: amanh paro.

    GD: Amanh eu paro? No, ele no diz: amanh eu paro; diz: paro hoje para recomear

    amanh.

    CP: Ento, j que beber sempre parar de beber, como se pra de beber totalmente, j que

    voc parou?

    GD: muito perigoso, me parece que acontece rpido. Michaux disse tudo, os problemas

    de droga e os problemas de lcool no esto to separados. H um momento em que isso setorna perigoso demais, porque, a tambm uma crista, como quando eu dizia "a crista

    entre a linguagem e o silncio", ou a linguagem e a animalidade, uma crista, um estreito

    desfiladeiro. Tudo bem beber, se drogar, pode-se fazer tudo o que se quer, desde que isso

    no o impea de trabalhar, se for um excitante normal oferecer algo de seu corpo em

    sacrifcio. Beber, se drogar so atitudes bem sacrificais. Oferece-se o corpo em sacrifcio.

    Por qu? Porque h algo forte demais, que no se poderia suportar sem o lcool. A questo

    no suportar o lcool, , talvez, o que se acredita ver, sentir, pensar, e isso faz com que,

    para poder suportar, para poder controlar o que se acredita ver, sentir, pensar, se precise de

    uma ajuda: lcool, droga, etc. A fronteira muito simples. Beber, se drogar, tudo isso

    parece tornar quase possvel algo forte demais, mesmo se se deve pagar depois, sabe-se,

    mas em todo caso, est ligado a isto, trabalhar, trabalhar. E evidente que quando tudo se

    inverte, e que beber impede de trabalhar, e a droga se torna uma maneira de no trabalhar,

    o perigo absoluto, no tem mais interesse, e, ao mesmo tempo, percebe-se, cada vez mais,

    que quando se pensava que o lcool ou a droga eram necessrios, eles no so necessrios.

    Talvez se deva passar por isso, para perceber que tudo o que se pensou fazer graas a eles

    podia-se fazer sem eles. Admiro muito a maneira como Michaux diz: agora, tornou-se, tudo

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    isso ... ele pra. Eu tenho menos mrito, porque parei de beber por razes de respirao, de

    sade, etc., mas evidente que se deve parar ou se privar disso. A nica justificao

    possvel se isso ajuda o trabalho. Mesmo se se deve pagar fisicamente depois. Quantomais se avana, mais a gente diz a si mesmo que no ajuda o trabalho...

    CP: Por um lado, como Michaux, preciso ter se drogado, bebido muito para poder se

    privar em um estado desses. Por outro lado, voc diz: quando se bebe, isso no deve

    impedir o trabalho, mas porque se entreviu algo que a bebida ajudava a suportar. E esse

    algo no a vida. A h a questo dos escritores de que se gosta.

    GD: Sim, a vida.

    CP: a vida?

    GD: algo forte demais na vida, no algo terrificante, algo forte demais, poderoso

    demais na vida. Acredita-se, de modo um pouco idiota, que beber vai coloc-lo no nvel

    desse algo mais poderoso. Se pensar em toda a linhagem dos grandes americanos. De

    Fitzgerald a... um dos que mais admiro Thomas Wolfe. uma srie de alcolatras, ao

    mesmo tempo que isso o que lhes permite, os ajuda, provavelmente, a perceber algo

    grande demais para eles.

    CP: , mas tambm porque eles perceberam algo da potncia da vida, que nem todos

    podem perceber, porque sentiram algo da potncia da vida.

    GD: O lcool no o far sentir...

    CP: ... que havia uma potncia da vida forte demais para eles, e que s eles podiamperceber.

    GD: Certo.

    CP: E Lowry tambm?

    GD: Certo. Claro, eles fizeram uma obra e o que foi o lcool para eles? Eles se arriscaram,

    arriscaram porque pensaram, com ou sem razo, que isso os ajudava. Eu tive a sensao de

    que isso me ajudava a fazer conceitos, estranho, a fazer conceitos filosficos. Ajudava,

    depois percebi que j no ajudava, que me punha em perigo, no tinha vontade de trabalhar

    se bebesse. Ento se deve parar. simples.

    CP: uma tradio americana, so poucos os escritores franceses que confessaram sua

    queda pelo lcool. Alm disso, h algo que faz parte da escrita...

    GD: Os escritores franceses no tm a mesma viso de escrita. No sei se fui to marcado

    pelos americanos, uma questo de viso, de vidncias, aqui considera-se que a filosofia, a

    escrita, uma questo... De maneira modesta, ver algo, que os outros no vem, no esta

    a concepo francesa da literatura, mas note, houve tambm muitos alcolatras na Frana.

    CP: Mas eles param de escrever, na Frana. Tm muita dificuldade, os que conhecemos.

    Poucos filsofos confessaram sua queda pela bebida.

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    GD: Verlaine morava na rua Nollet, aqui ao lado.

    CP: Exceto Rimbaud e Verlaine.

    GD: Aperta o corao, pois quando pego a rua Nollet, digo: era este o percurso de Verlainepara ir beber seu absinto. Parece que morou em um apartamento horrvel.

    CP: Os poetas e o lcool, conhecemos mais.

    GD: Um dos maiores poetas franceses, que andava pela rua Nollet. Uma maravilha.

    CP: Na casa dos amigos?

    GD: Provavelmente.

    CP: Enfim, os poetas, sabemos que houve mais etlicos. Bem, terminamos com o lcool.

    GD: Puxa, estamos indo rpido!

    CP: Vamos passar ao C. O C vasto.

    C de Cultura

    CP: Se se pode abusar um certo tempo do lcool, da cultura no se deve ir alm da dose.

    at um pouco repugnante. Bem, terminamos com o lcool.

    GD: Puxa, estamos indo rpido!

    CP: Vamos passar ao C. O C vasto.

    GD: O que ?

    CP: C de Cultura.

    GD: Sim, por que no?CP: Voc diz no ser culto. Diz que s l, s v filmes ou s olha as coisas para um saber

    preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que est fazendo, mas,

    ao mesmo tempo, voc vai todos os sbados a uma exposio, a um filme do grande campo

    cultural, tem-se a impresso de que h uma espcie de esforo para a cultura, que voc

    sistematiza e que tem uma prtica cultural, ou seja, que voc sai, faz um esforo, tende a se

    cultivar e, entretanto, diz que no culto. Como explica tal paradoxo? Voc no culto?

    GD: No, quando lhe digo que no me vejo, realmente, como um intelectual, no me vejo

    como algum culto por uma razo simples: que quando vejo algum culto, fico assustado,no fico to admirado, admiro certas coisas, outras, no, mas fico assustado. A gente nota

    algum culto. um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles

    sabem tudo, bem, no sei, sabem tudo, esto a par de tudo, sabem a histria da Itlia, da

    Renascena, sabem geografia do Plo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem

    tudo, podem falar de tudo. abominvel. Quando digo que no sou culto, nem intelectual,

    quero dizer algo bem fcil, que no tenho saber de reserva. Pelo menos no tenho esse

    problema. Com minha morte, no se precisar procurar o que tenho para publicar, nada,

    pois no tenho reserva alguma. No tenho nada, proviso alguma, nenhum saber de

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    proviso, e tudo o que aprendo, aprendo para certa tarefa, e, feita a tarefa, esqueo. De

    modo que, se dez anos depois, sou forado, isso me alegra, se sou forado a me colocar em

    algo vizinho ou no mesmo tema, tenho de recomear do zero. Exceto em alguns casosraros, pois Spinoza est em meu corao, no o esqueo, meu corao, no minha cabea,

    seno... Por que no admiro essa cultura assustadora? Pessoas que falam...

    CP: erudio ou opinio sobre tudo?

    GD: No erudio, eles sabem falar, primeiro viajaram, viajaram na Histria, na

    Geografia, sabem falar de tudo. Ouvi na TV, assustador, ouvi nomes, ento, como tenho

    muita admirao, posso dizer, gente como Umberto Eco, prodigioso, o que quer que lhe

    digam, pronto, como se apertassem em um boto, e ele sabe, alm disso... No posso

    dizer que invejo isso. Fico assustado, mas no invejo. O que a cultura? Ela consiste em

    falar muito, no posso me impedir de... sobretudo agora que no dou mais aula, estou

    aposentado, falar, acho cada vez mais, falar um pouco sujo. um pouco sujo, a escrita

    limpa. Escrever limpo e falar sujo. sujo porque fazer charme. Nunca suportei

    colquios, estive em alguns quando era jovem, mas nunca suportei colquios. No viajo.

    Por que no? Porque... os intelectuais... eu viajaria se... enfim, no. Alis, no viajaria,

    minha sade me probe, mas as viagens dos intelectuais so uma palhaada. Eles no

    viajam, se deslocam para falar, partem de um lugar onde falam e vo para outro para falar.

    E, mesmo no almoo, eles vo falar com os intelectuais do lugar. No vo parar de falar.

    No suporto falar, falar, falar, no suporto. Como me parece que a cultura est muito ligada fala. Nesse sentido, odeio a cultura, no consigo suport-la.

    CP: Voltaremos a falar disso, a escrita limpa, a fala suja, pois voc foi um grande professor

    e a soluo...

    GD: diferente.

    CP: Voltaremos a isso. A letra P est ligada a seu trabalho de professor. Falaremos da

    seduo. Queria voltar a algo que voc evitou, que seu esforo, a disciplina que voc se

    impe, mesmo no precisando dela, para ver, por exemplo, nos ltimos 15 dias, a exposio

    de Polcke, no Museu de Arte Moderna. Voc vai com freqncia, ou semanalmente, ver um

    grande filme ou uma exposio de pintura. Voc no erudito, no culto, no tem

    admirao por pessoas cultas, como acaba de dizer. A que corresponde tal esforo?

    prazer?

    GD: Claro, prazer, enfim, nem sempre, mas penso nessa histria de estar espreita. No

    acredito na cultura; acredito, de certo modo, em encontros. E no se tm encontros com

    pessoas. As pessoas acham que com pessoas que se tm encontros. terrvel, isso faz

    parte da cultura, intelectuais que se encontram, essa sujeira de colquios, essa infmia, mas

    no se tem encontros com pessoas, e sim com coisas, com obras: encontro um quadro,

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    encontro uma ria de msica, uma msica, assim entendo o que quer dizer um encontro.

    Quando as pessoas querem juntar a isso um encontro com elas prprias, com pessoas, no

    d certo. Isso no um encontro. Da os encontros serem decepcionantes, uma catstrofeos encontros com pessoas.

    Como voc diz, quando vou, sbado e domingo, ao cinema, etc., no estou certo de ter um

    encontro, mas parto espreita. Ser que h matria para encontro, um quadro, um filme,

    ento formidvel. Dou um exemplo, porque, para mim, quando se faz algo, trata-se de sair

    e de ficar. Ficar na filosofia tambm como sair da filosofia? Mas sair da filosofia no quer

    dizer fazer outra coisa, por isso preciso sair permanecendo dentro. No fazer outra

    coisa, escrever um romance, primeiro eu seria incapaz, e mesmo se fosse capaz, isso no

    me diria nada. Quero sair da filosofia pela filosofia. isso o que me interessa.

    CP: O que isso quer dizer?

    GD: Dou um exemplo, como isso para depois de minha morte, posso deixar de ser

    modesto. Acabo de escrever um livro sobre um grande filsofo chamado Leibniz e

    insistindo em uma noo que me parece importante nele, mas que muito importante para

    mim: a noo de dobra. Considero que fiz um livro de filosofia sobre essa noo, um pouco

    estranha, de dobra. O que me acontece depois? Recebo cartas, como sempre, h cartas

    insignificantes, mesmo se so encantadoras e calorosas, e me toquem muito. So cartas que

    me dizem, muito bem... so cartas de intelectuais que gostaram ou no do livro. E ento

    recebo duas cartas, dois tipos de cartas, em que esfrego os olhos... H cartas de pessoas quedizem: Mas sua histria de dobra, somos ns. E percebo que so pessoas que fazem parte

    de uma associao que agrupa 400 pessoas na Frana, hoje, e deve crescer. a associao

    de dobradores de papis, eles tm uma revista, me enviam a revista e dizem: Concordamos

    totalmente, o que voc faz o que fazemos. Digo para mim: isso eu ganhei. Recebo outra

    carta, e falam da mesma maneira e dizem: A dobra somos ns. uma maravilha.

    Primeiro isso lembra Plato, porque em Plato... os filsofos, para mim, no so pessoas

    abstratas, so grandes escritores, grandes autores bem concretos. Em Plato h uma histria

    que me enche de alegria, e est ligada ao incio da filosofia, voltaremos a isso depois. O

    tema de Plato : ele d uma definio, por exemplo, o que o poltico? O poltico o

    pastor dos homens, e sobre isso h muita gente que diz: o poltico somos ns, por exemplo,

    o pastor chega e diz: visto os homens, logo sou o verdadeiro pastor dos homens. O

    aougueiro diz: alimento os homens, sou o pastor dos homens. Os rivais chegam... Tive

    esta experincia, os dobradores de papis chegam e dizem: a dobra somos ns. Os outros,

    que me enviaram o mesmo tipo de carta, incrvel, foram os surfistas. primeira vista no

    h relao alguma com os dobradores de papis. Os surfistas dizem: concordamos

    totalmente, pois, o que fazemos? Estamos sempre nos insinuando nas dobras da natureza.

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    Para ns, a natureza um conjunto de dobras mveis. Ns nos insinuamos na dobra da

    onda, habitar a dobra da onda a nossa tarefa. Habitar a dobra da onda e, com efeito, eles

    falam disso de modo admirvel. Eles pensam, no se contentam em surfar, eles pensam oque fazem. Voltaremos a falar disto se chegarmos ao esporte [sport], ao S...

    CP: Est longe. Partimos do encontro, so encontros, os dobradores de papis?

    GD: So encontros. Quando digo sair da filosofia pela filosofia... Sempre me aconteceu

    isso, so encontros, encontrei os dobradores de papis, no preciso v-los, alis, ficaramos

    decepcionados, provavelmente, eu ficaria, e eles ainda mais. No preciso v-los, mas tive

    um encontro com o surfe, com os dobradores de papis, literalmente, sa da filosofia pela

    filosofia, isso um encontro. Acho que os encontros... quando vou ver uma exposio,

    estou espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova,

    quando vou ao cinema, no vou ao teatro, o teatro longo demais, disciplinado demais,

    demais. E no me parece uma arte... a no ser Bob Wilson e Carmelo Bene. No acho que o

    teatro seja voltado para nossa poca, exceto nesses casos extremos. Mas ficar quatro horas

    sentado em uma poltrona ruim, primeiro por motivos de sade, isso liquida o teatro para

    mim. Uma exposio de pintura, ou o cinema... Sempre tenho a impresso que posso ter o

    encontro com uma idia.

    CP: Mas o filme, por mera distrao, no existe?

    GD: Isso no cultura.

    CP: No cultura, mas no h distrao?GD: Minha distrao ...

    CP: Tudo est em seu trabalho.

    GD: No um trabalho, a espreita, estou espreita de algo que passa dizendo para mim...

    isso me perturba. muito divertido.

    CP: Mas no Eddie Murphy que vai te perturbar?

    GD: No ...?

    CP: Eddie Murphy um...

    GD: Quem ?

    CP: Um ator cmico americano, cujos ltimos filmes so verdadeiros sucessos. Nunca vai

    ver...?

    GD: No conheo. S vi Benny Hill na TV. Benny Hill me interessa, no escolho,

    necessariamente, coisas muito boas, tenho razes para me interessar.

    CP: Mas quando sai, para um encontro?

    GD: Quando saio, se no h idia para tirar da, se no digo: havia uma idia... O que um

    grande cineasta? Vale tambm para cineastas, o que me toca na beleza, por exemplo, um

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    grande como Minnelli ou como Losey, o que me toca neles? Eles so perseguidos por

    idias, uma idia...

    CP: Est queimando a letra I.GD: Idia...

    CP: Est queimando a letra I, pare logo.

    GD: Paramos a, mas isso o que me parece ser um encontro. Temos encontros com coisas,

    antes de os ter com pessoas.

    CP: Nesse momento, para falar de um perodo preciso, que o do momento, voc tem

    muitos encontros?

    GD: Acabo de dizer: os dobradores, os surfistas, o que mais quer? No so encontros com

    intelectuais. Ou ento, se encontro um intelectual por outras razes, no porque gosto

    dele, por aquilo que ele faz, seu trabalho atual, seu charme, tudo isso. Temos encontros

    com o charme, com o trabalho das pessoas, e no com as pessoas, no dou a mnima para

    elas.

    CP: Alm disso eles podem roar, como os gatos?

    GD: Se s tiverem isso, o roar, o latido, terrvel.

    CP: Retomamos os perodos ricos e os perodos pobres da cultura. Voc acha que no

    estamos em um perodo to rico, vejo voc sempre irritado diante da TV, dos programas

    literrios, que no citaremos, embora no momento em que isso for exibido os nomes sero

    outros, acha que um perodo rico ou um perodo pobre, o que vivemos?GD: pobre, e, ao mesmo tempo, no angustiante. Me faz rir. Na minha idade, digo para

    mim: no a primeira vez que h perodos pobres. Digo: o que vivi desde que tenho idade

    para me entusiasmar um pouco. Vivi a Liberao. A Liberao foi um dos perodos mais

    ricos que se possa imaginar. Descobria-se ou redescobria-se tudo, na Liberao. Tinha

    havido a guerra, etc. No era pouco. Descobria-se tudo: o romance americano, Kafka, havia

    uma espcie de mundo da descoberta, havia Sartre, no se pode imaginar o que foi,

    intelectualmente, o que se descobria ou redescobria em pintura, etc.

    CP: No cinema?

    GD: preciso entender coisas como a grande polmica: deve-se queimar Kafka?

    inimaginvel, hoje parece um pouco infantil, mas era uma atmosfera criadora. Ento

    conheci o antes de 68, que foi um perodo muito rico at depois de 68, enquanto que, nesse

    entremeio havia perodos pobres. So normais, perodos pobres. No a pobreza que

    incmoda, a insolncia ou a impudncia daqueles que ocupam os perodos pobres. Eles

    so mais maldosos do que as pessoas geniais que se animam nos perodos ricos.

    CP: So geniais ou obedientes, pois se fala da polmica sobre Kafka na Liberao... Vi

    fulano de tal dizer, contente e rindo, que nunca havia lido Kafka.

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    GD: Claro, so contentes, quanto mais bobos, mais contentes. So os que consideram,

    voltamos a isso, que literatura contar uma histria pessoal. Se se acha isso, no preciso

    ler Kafka. No h necessidade de se ler muita coisa, pois se se tem uma escrita bonitinha, se, por natureza, igual a Kafka. No trabalho. Como te explicar? Para falar de coisas mais

    srias que esses tolos: fui ver, h pouco tempo, um filme...

    CP: De Paradjanov.

    GD: No, esse admirvel, mas um filme emocionante, de um russo... que fez seu filme h

    trinta anos, e ele s passou agora.

    CP:La commissaire?

    GD: La commissaire. Entendi algo que me pareceu emocionante, o filme era muito bom,

    perfeito, mas eu pensava, com terror ou com uma espcie de compaixo, que era um filme

    como os russos faziam antes da guerra.

    CP: Do tempo de Eisenstein?

    GD: Do tempo de Eisenstein, de Dovjenko, estava tudo ali: a montagem paralela, sublime,

    etc., como se nada tivesse acontecido desde a guerra, como se nada tivesse acontecido no

    cinema. Dizia para mim: foroso, o filme bom, mas estranho.

    CP: No muito bom.

    GD: Por isso no era bom. Era algum que trabalhava to sozinho que... filmava como h

    vinte anos. No que fosse ruim, era muito bom, prodigioso, h vinte anos... E tudo o que

    havia acontecido depois, ele no soubera, crescera em um deserto, terrvel, atravessar umdeserto no grande coisa, no atravessar um perodo de deserto. O terrvel nascer nele,

    crescer em um deserto, horrvel, suponho, pois deve-se ter uma impresso de solido.

    CP: Para os que tm 18 anos agora?

    GD: Sim, sobretudo porque... esse o problema nos perodos pobres. Quando as coisas

    desaparecem ningum se d conta, por uma razo simples, quando alguma coisa

    desaparece, ela no faz falta. O perodo staliniano fez desaparecer a literatura russa, mas os

    russos no se deram conta, o grosso dos russos, o conjunto dos russos no se deu conta,

    uma literatura que foi perturbadora em todo o sculo 19, desaparece. Dizem: agora h os

    dissidentes, etc., mas no mbito do povo, do povo russo, sua literatura, sua pintura

    desapareceram, e ningum se deu conta. Para se dar conta do que acontece hoje, h, claro,

    novos jovens que so, com certeza, geniais. Suponhamos, a expresso no boa, os novos

    Beckett de hoje...

    CP: Tive medo, pensei que fosse dizer osNovos Filsofos.

    GD: Mas os novos Beckett hoje, suponhamos que no sejam publicados. Afinal, por pouco

    Beckett no foi publicado. evidente que no faltaria nada. Por definio, um grande autor

    ou um gnio algum que faz algo novo, se esse novo no aparece, isso no incomoda, no

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    faz falta a ningum, j que no se tinha idia disso. Se Proust, Kafka no tivessem sido

    publicados, no se pode dizer que Kafka faria falta. Se o outro tivesse queimado toda a obra

    de Kafka, ningum poderia dizer: Ah, como faz falta! Pois no se teria idia do quedesapareceu. Se os novos Beckett so impedidos de ser publicados pelo sistema atual da

    edio, no se poder dizer: Ah, como fazem falta! Ouvi uma declarao, que talvez seja a

    mais descarada que j ouvi em minha vida. No ouso dizer quem. algum ligado ao ramo

    editorial que, em um jornal, atreveu-se a declarar: Hoje no arriscamos mais cometer os

    erros da Gallimard...

    CP: No tempo de Proust?

    GD: Recusando Proust, pois com os meios que se tem hoje...

    CP: Os caadores de cabeas...

    GD: Acredita-se que se tm, hoje, os meios para encontrar os novos Proust, e os novos

    Beckett. Significa que se teria um contador Geiger e o novo Beckett, ou seja, algum

    perfeitamente inimaginvel, j que no se sabe o que ele faria de novo, ele emitiria um

    som...

    CP: Se o passassem sobre sua cabea?

    GD: O que define a crise hoje, pois h todas essas bobagens? Vejo a crise hoje ligada a trs

    coisas, mas ela no durar, sou muito otimista, o que define um perodo de deserto ,

    primeiramente, que os jornalistas conquistaram a forma-livro. Eles sempre escreveram,

    acho bom que escrevam. Mas quando comearam a escrever livros, eles se deram conta deque passavam a outra forma, que no era a mesma coisa que escrever seu artigo.

    CP: Antes os escritores que eram os jornalistas. Mallarm podia fazer jornalismo. O

    inverso no aconteceu.

    GD: Agora o inverso, o jornalista como jornalista conquistou a forma-livro, acha normal

    escrever um livro, como se fosse s um artigo. Isso no bom. A segunda razo que se

    generalizou a idia de que qualquer um pode escrever, pois a escrita vista como uma

    historinha de cada um, contada a partir dos arquivos de famlia, sejam eles constitudos de

    anotaes ou guardados na memria. Todo mundo teve uma histria de amor, todo mundo

    teve uma av doente, uma me que morria de modo terrvel. Dizem: isso d um romance.

    Mas isso no d um romance de modo algum... A terceira razo que, os verdadeiros

    clientes mudaram, e percebe-se isso, exceto as pessoas... Vocs esto a par, os clientes

    mudaram, quero dizer, quem so os clientes da televiso? No so mais os ouvintes, so os

    anunciantes. So eles os verdadeiros clientes. Os ouvintes tm o que os anunciantes

    querem.

    CP: Os telespectadores. Qual a terceira razo?

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    GD: Os anunciantes so os verdadeiros clientes, eu dizia, na edio h um risco de que os

    verdadeiros clientes dos editores no sejam os leitores em potencial, que sejam os

    distribuidores, quando eles forem, realmente, os clientes dos editores, o que acontecer? Oque interessa aos distribuidores a rotao rpida, quer dizer, coisas de grandes mercados

    de rpida rotao, regime do best-seller, etc.; ou seja, que toda a literatura, se ouso dizer,

    la Beckett, toda a literatura criadora ser esmagada por natureza.

    CP: Isso j existe, pr-formam-se as necessidades de um pblico.

    GD: Sim, mas isso que define o perodo de seca, modelo Pivot. a nulidade, a

    literatura, o desaparecimento de qualquer crtica em nome da promoo comercial, mas

    quando digo: no grave, quero dizer, evidente que haver circuitos paralelos, ou um

    circuito onde haver um mercado negro, etc., no possvel que um povo viva... A Rssia

    perdeu sua literatura, ela vai reconquist-la, tudo se ajeita, os perodos ricos sucedem aos

    perodos pobres. Ai dos pobres!

    CP: Ai dos pobres? Sobre essa idia de mercado paralelo ou negro, j faz muito tempo que

    os sujeitos so pr-formados, ou seja, um ano v-se, claramente, nos livros publicados, a

    guerra, no ano seguinte a morte dos pais, no outro a ligao com a natureza, mas nada

    parece se formar. Como isso ressurge? J viu ressurgir um perodo rico de um pobre?

    GD: J.

    CP: Voc assistiu?

    GD: Sim, depois da Liberao, a coisa no ia bem, e ento houve 68. Entre o grandeperodo criador da Liberao e o incio daNouvelle Vague...

    CP: Quando foi? Em 60?

    GD: 60, e mesmo antes. Entre 60 e 72 houve, de novo, um perodo rico. E isso se reformou

    em... um pouco o que diz Nietzsche, algum lana uma flecha, uma flecha no espao, ou

    ento um perodo, uma coletividade lana uma flecha e depois ela cai, depois algum a

    pega e a reenvia para outro lugar. A criao funciona assim, a literatura passa sobre

    desertos.

    D de Desejo

    CP: D de Desejo. Tudo o que sempre quiseram saber sobre o desejo. Primeira lio: S se

    pode desejar em um conjunto. Ento, sempre se deseja um todo. Vamos passar a D. Para D,

    preciso de meus papis, pois vou ler o que h no Petit Larousse Illustr, em Deleuze, que

    tambm se escreve com D. L-se: "Deleuze, Gilles, filsofo francs, nascido em Paris, em

    1925".

    GD: Talvez hoje esteja noLarousse.

    CP: Hoje, estamos em 1988.

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    GD: Eles mudam todo ano.

    CP: Com Flix Guattari, ele mostra a importncia do desejo e seu aspecto revolucionrio

    frente a toda instituio, at mesmo psicanaltica. E indicam a obra que demonstra tudoisso: O anti-dipo, em 1972. Como voc , aos olhos de todos, o filsofo do desejo, eu

    gostaria que falssemos do desejo. O que era o desejo? Vamos colocar a questo do modo

    mais simples: quando O anti-dipo...

    GD: No era o que se pensou, em todo caso. Estou certo disso, mesmo naquele momento,

    ou seja, as pessoas mais encantadoras que eram... foi uma grande ambigidade, um grande

    mal-entendido, um pequeno mal-entendido. Queramos dizer uma coisa bem simples.

    Tnhamos uma grande ambio, a saber, que at esse livro, quando se faz um livro porque

    se pretende dizer algo novo. Achvamos que as pessoas antes de ns no tinham entendido

    bem o que era o desejo, ou seja, fazamos nossa tarefa de filsofo, pretendamos propor um

    novo conceito de desejo. As pessoas, quando no fazem filosofia, no devem crer que um

    conceito muito abstrato, ao contrrio, ele remete a coisas bem simples, concretas. Veremos

    isso. No h conceito filosfico que no remeta a determinaes no filosficas, simples,

    bem concreto. Queramos dizer a coisa mais simples do mundo: que at agora vocs

    falaram abstratamente do desejo, pois extraem um objeto que , supostamente, objeto de

    seu desejo. Ento podem dizer: desejo uma mulher, desejo partir, viajar, desejo isso e

    aquilo. E ns dizamos algo realmente simples: vocs nunca desejam algum ou algo,

    desejam sempre um conjunto. No complicado. Nossa questo era: qual a natureza dasrelaes entre elementos para que haja desejo, para que eles se tornem desejveis? Quero

    dizer, no desejo uma mulher, tenho vergonha de dizer uma coisa dessas. Proust disse, e

    bonito em Proust: no desejo uma mulher, desejo tambm uma paisagem envolta nessa

    mulher, paisagem que posso no conhecer, que pressinto e enquanto no tiver desenrolado

    a paisagem que a envolve, no ficarei contente, ou seja, meu desejo no terminar, ficar

    insatisfeito. Aqui considero um conjunto com dois termos, mulher, paisagem, mas algo

    bem diferente. Quando uma mulher diz: desejo um vestido, desejo tal vestido, tal chemisier,

    evidente que no deseja tal vestido em abstrato. Ela o deseja em um contexto de vida

    dela, que ela vai organizar o desejo em relao no apenas com uma paisagem, mas com

    pessoas que so suas amigas, ou que no so suas amigas, com sua profisso, etc. Nunca

    desejo algo sozinho, desejo bem mais, tambm no desejo um conjunto, desejo em um

    conjunto. Podemos voltar, so fatos, ao que dizamos h pouco sobre o lcool, beber. Beber

    nunca quis dizer: desejo beber e pronto. Quer dizer: ou desejo beber sozinho, trabalhando,

    ou beber sozinho, repousando, ou ir encontrar os amigos para beber, ir a um certo bar. No

    h desejo que no corra para um agenciamento. O desejo sempre foi, para mim, se procuro

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    o termo abstrato que corresponde a desejo, diria: construtivismo. Desejar construir um

    agenciamento, construir um conjunto, conjunto de uma saia, de um raio de sol...

    CP: De uma mulher.GD: De uma rua. isso. O agenciamento de uma mulher, de uma paisagem.

    CP: De uma cor...

    GD: De uma cor, isso um desejo. construir um agenciamento, construir uma regio,

    realmente agenciar. O desejo construtivismo. O anti-dipo, que tentava...

    CP: Espere, eu queria...

    GD: Sim?

    CP: por ser um agenciamento, que voc precisou, naquele momento, ser dois para

    escrever por ser em um conjunto, que precisou de Flix, que surgiu em sua vida de escritor?

    GD: Flix faria parte do que diremos, talvez, sobre a amizade, sobre a relao da filosofia

    com algo que concerne amizade, mas, com certeza, com Flix, fizemos um agenciamento.

    H agenciamentos solitrios, e h agenciamentos a dois. O que fizemos com Flix foi um

    agenciamento a dois, onde algo passava entre os dois, ou seja, so fenmenos fsicos,

    como uma diferena, para que um acontecimento acontea, preciso uma diferena de

    potencial, para que haja uma diferena de potencial precisa-se de dois nveis. Ento algo se

    passa, um raio passa, ou no, um riachinho... do campo do desejo. Mas um desejo isso,

    construir. Ora, cada um de ns passa seu tempo construindo, cada vez que algum diz:

    desejo isso, quer dizer que ele est construindo um agenciamento, nada mais, o desejo no nada mais.

    CP: um acaso se... porque o desejo sentido, enfim, existe em um conjunto ou em um

    agenciamento, que O anti-dipo, onde voc comea a falar do desejo, o primeiro livro

    que voc escreve com outra pessoa, com Flix Guattari?

    GD: No, voc tem razo, era preciso entrar nesse agenciamento novo para ns, escrever a

    dois, que ns dois no vivamos da mesma maneira, para que algo acontecesse, ou seja, e

    esse algo era, finalmente, uma hostilidade, uma reao contra as concepes dominantes do

    desejo, as concepes psicanalticas. Era preciso ser dois, foi preciso Flix, vindo da

    psicanlise, eu me interessando por esses temas, era preciso tudo isso para dizermos que

    havia lugar para fazer uma concepo construtiva, construtivista do desejo.

    CP: Voc poderia definir, de modo sucinto, como v a diferena entre o construtivismo e a

    interpretao analtica?

    GD: Acho que bem simples. Nossa oposio psicanlise mltipla, mas quanto ao

    problema do desejo, ... que os psicanalistas falam do desejo como os padres. No a

    nica aproximao, os psicanalistas so padres. De que forma falam do desejo? Falam

    como um grande lamento da castrao. A castrao pior que o pecado original. uma

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    espcie de maledicncia sobre o desejo, que assustadora. O que tentamos fazer em O anti-

    dipo? Acho que h trs pontos, que se opem diretamente psicanlise. Esses trs pontos

    so... isso por meu lado, acho que Flix Guattari tambm no, no temos nada para mudarnesses trs pontos. Estamos persuadidos, achamos em todo caso, que o inconsciente no

    um teatro, no um lugar onde h dipo e Hamlet que representam sempre suas cenas. No

    um teatro, uma fbrica, produo. O inconsciente produz. No pra de produzir.

    Funciona como uma fbrica. o contrrio da viso psicanaltica do inconsciente como

    teatro, onde sempre se agita um Hamlet, ou um dipo, ao infinito. Nosso segundo tema

    que o delrio, que muito ligado ao desejo, desejar delirar, de certa forma, mas se olhar

    um delrio, qualquer que seja ele, se olhar de perto, se ouvir o delrio que for, no tem nada

    a ver com o que a psicanlise reteve dele, ou seja, no se delira sobre seu pai e sua me,

    delira-se sobre algo bem diferente, a que est o segredo do delrio, delira-se sobre o

    mundo inteiro, delira-se sobre a histria, a geografia, as tribos, os desertos, os povos...

    CP: ... o clima.

    GD: ... as raas, os climas, em cima disso que se delira. O mundo do delrio : Sou um

    bicho, um negro!, Rimbaud. : onde esto minhas tribos? Como dispor minhas tribos?

    Sobreviver no deserto, etc. O deserto ... O delrio geogrfico-poltico. E a psicanlise

    reduz isso a determinaes familiares. Posso dizer, sinto isso, mesmo depois de tantos anos,

    depois de O anti-dipo, digo: a psicanlise nunca entendeu nada do fenmeno do delrio.

    Delira-se o mundo, e no sua pequena famlia. Por isso que... Tudo isso se mistura. Eudizia: a literatura no um caso privado de algum, a mesma coisa, o delrio no sobre

    o pai e a me. O terceiro ponto... Significa isso, o desejo se estabelece sempre, constri

    agenciamentos, se estabelece em agenciamentos, pe sempre em jogo vrios fatores. E a

    psicanlise nos reduz sempre a um nico fator, e sempre o mesmo, ora o pai, ora a me, ora

    no sei o que, ora o falo, etc. Ela ignora tudo o que mltiplo, ignora o construtivismo, ou

    seja, agenciamentos. Dou um exemplo: falvamos de animal, h pouco. Para a psicanlise,

    o animal uma imagem do pai. Um cavalo uma imagem do pai. ignorar o mundo!

    Penso no pequeno Hans. O pequeno Hans uma criana sobre a qual Freud d sua opinio,

    ele assiste um cavalo que cai na rua, e o charreteiro que lhe d chicotadas, e o cavalo que d

    coices para todos os lados. Antes do carro, era um espetculo comum nas ruas, devia ser

    uma grande coisa para uma criana. A primeira vez que um garoto via um cavalo cado na

    rua e que um cocheiro meio bbado tentava levant-lo com chicotadas, devia ser uma

    emoo, era a chegada da rua, a chegada na rua, o acontecimento da rua, sangrento, tudo

    isso... E ento ouvem-se os psicanalistas, falar, enfim, imagem de pai, etc., mas na cabea

    deles que a coisa no vai bem. O desejo foi movido por um cavalo que cai e batido na rua,

    um cavalo morre na rua, etc. um agenciamento fantstico para um garoto, perturbador

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    at o fundo. Outro exemplo, posso dizer... Falvamos de animal. O que um animal? Mas

    no h um animal que seria a imagem do pai. Os animais, em geral, andam em matilhas,

    so matilhas. H um caso que me alegra muito. um texto que adoro, de Jung, que rompeucom Freud, depois de uma longa colaborao. Jung conta a Freud que teve um sonho, um

    sonho de ossurio, sonhou com um ossurio. E Freud no compreende nada, literalmente,

    ele diz o tempo todo: se sonhou com um osso, a morte de algum, quer dizer a morte de

    algum. E Jung no pra de lhe dizer: no estou falando de um osso, sonhei com um

    ossurio... Freud no compreende. No v a diferena entre um ossurio e um osso, ou seja,

    um ossurio so centenas de ossos, so mil, dez mil ossos. Isso uma multiplicidade, um

    agenciamento, ... passeio em um ossurio, o que significa isso? Por onde o desejo passa?

    Em um agenciamento sempre um coletivo. Coletivo, construtivismo, etc. isso o desejo.

    Onde passa meu desejo entre os mil crnios, os mil ossos? Onde passa meu desejo na

    matilha? Qual minha posio na matilha? Sou exterior matilha? Estou ao lado, dentro,

    no centro dela? Tudo isso so fenmenos de desejo. isso o desejo.

    CP: Como o O anti-dipo foi escrito em 72, esse agenciamento coletivo vinha a calhar

    depois de 68, era toda uma reflexo... daqueles anos e contra a psicanlise, que continuava

    seu negcio de pequena loja...

    GD: S o fato de dizer: o delrio delira as raas e as tribos, delira os povos, delira a histria

    e a geografia, me parece ter estado de acordo com 68. Ou seja, parece-me ter trazido um

    pouco de ar so a todo esse ar fechado e malso dos delrios pseudo-familiais. Vimos queera isso, o desejo. Se comeo a delirar, no para delirar sobre minha infncia, a tambm,

    sobre minha histria privada. Delira-se... O delrio csmico... Delira-se sobre o fim do

    mundo, delira-se sobre as partculas, os eltrons e no sobre papai-mame... evidente.

    CP: Sobre esse agenciamento coletivo do desejo, penso em certos contra-sensos. Lembro-

    me que em Vincennes, em 72, na faculdade, havia pessoas que punham em prtica esse

    desejo e isso acabava em amores coletivos, no tinham compreendido bem. Houve muitos

    loucos em Vincennes, como vocs partiam de uma esquizo-anlise para combater a

    psicanlise, todo mundo achava que era legal ser louco, ser esquizo. Vamos cenas

    inverossmeis entre os estudantes. Queria que contasse casos engraados ou no desses

    contra-sensos sobre o desejo.

    GD: Eu poderia falar dos contra-sensos abstratamente. Consistiam em duas coisas, havia

    dois casos, que d no mesmo. Havia os que pensavam que o desejo era o espontanesmo, e

    havia todo tipo de movimentos espontneos, o espontanesmo.

    CP: Os clebres maos-spontex...

    GD: E os outros que pensavam que o desejo era a festa. Para ns, no era nem um nem

    outro, mas no tinha importncia, pois, de qualquer modo, havia agenciamentos que

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    aconteciam, havia coisas que mesmo os loucos... havia tantos, de todos os tipos. Fazia parte

    do que acontecia naquele momento, em Vincennes. Mas os loucos tinham sua disciplina,

    tinham sua maneira de... faziam seus discursos, suas intervenes, entravam em umagenciamento, tinham seu agenciamento, mas entravam em agenciamentos. Tinham uma

    espcie de astcia, de compreenso, de grande benevolncia, os loucos. Se quiser, na

    prtica, eram sries de agenciamentos que se faziam e desfaziam. Na teoria, o contra-senso

    era dizer: o desejo a espontaneidade. De modo que ramos chamados de espontanestas,

    ou ento era a festa, mas no era isso. Era... a filosofia dita do desejo consistia, unicamente,

    em dizer para as pessoas: no vo ser psicanalizados, nunca interpretem, experimentem

    agenciamentos, procurem agenciamentos que lhes convenham. O que era um

    agenciamento? Um agenciamento, para mim, e Flix, no que ele pensasse diferentemente,

    pois era, talvez... no sei. Para mim, eu manteria que havia quatro componentes de

    agenciamento. Por alto, quatro, no prefiro quatro a seis... Um agenciamento remetia a

    estados de coisas, que cada um encontre estados de coisas que lhe convenha. H pouco,

    para beber... gosto de um bar, no gosto de outro, alguns preferem certo bar, etc... Isso um

    estado de coisas. Nas dimenses do agenciamento, enunciados, tipos de enunciados, e cada

    um tem seu estilo, h um certo modo de falar, andam juntos, no bar, por exemplo, h

    amigos, e h uma certa maneira de falar com os amigos, cada bar tem seu estilo. Digo bar,

    mas vale para qualquer coisa. Um agenciamento comporta estados de coisas e enunciados,

    estilos de enunciao. interessante, a Histria feita disto, quando aparece um novo tipode enunciado? Por exemplo, na revoluo russa, os enunciados do tipo leninista, quando

    eles aparecem, como, em que forma? Em 68, quando apareceram os primeiros enunciados

    ditos de 68? bem complexo. Todo agenciamento implica estilos de enunciao. Implica

    territrios, cada um com seu territrio, h territrios. Mesmo numa sala, escolhemos um

    territrio. Entro numa sala que no conheo, procuro o territrio, lugar onde me sentirei

    melhor. E h processos que devemos chamar de desterritorializao, o modo como samos

    do territrio. Um agenciamento tem quatro dimenses: estados de coisas, enunciaes,

    territrios, movimentos de desterritorializao. E a que o desejo corre...

    CP: Voc no se sente responsvel pelas pessoas que tomaram drogas? Ou, lendo muito ao

    p da letra O anti-dipo, no como Cato, que incita os jovens a fazer bobagens?

    GD: Sentimo-nos responsveis por tudo, se algo d errado.

    CP: E os efeitos de O anti-dipo?

    GD: Sempre me esforcei para que desse certo. Em todo caso, nunca, acho, minha nica

    honra, nunca me fiz de esperto com essas coisas, nunca disse a um estudante: isso,

    drogue-se voc tem razo. Sempre fiz o que pude para que ele sasse dessa, porque sou

    muito sensvel coisa minscula que de repente faz com que tudo vire trapo. Que ele beba,

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    muito bem... Ao mesmo tempo, nunca pude criticar as pessoas, no gosto de critic-las.

    Acho que se deve ficar atento para o ponto em que a coisa no funciona mais. Que bebam,

    se droguem, o que quiserem, no somos policiais, nem pais, no sou eu quem deve impedi-los ou ... mas fazer tudo para que no virem trapos. No momento em que h risco, eu no

    suporto. Suporto bem algum que se droga, mas algum que se droga de tal modo que, no

    sei, de modo selvagem, de modo que digo para mim: pronto, ele vai se ferrar, no suporto.

    Sobretudo o caso de um jovem, no suporto um jovem que se ferra, no suportvel. Um

    velho que se ferra, que se suicida, ele teve sua vida, mas um jovem que se ferra por

    besteira, por imprudncia, porque bebeu demais... Sempre fiquei dividido entre a

    impossibilidade de criticar algum e o desejo absoluto, a recusa absoluta de que ele vire

    trapo. um desfiladeiro estreito, no posso dizer que h princpios, a gente sai fora como

    pode, a cada vez. verdade que o papel das pessoas, nesse momento, de tentar salvar os

    garotos, o quanto se pode. E salv-los no significa fazer com que sigam o caminho certo,

    mas impedi-los de virar trapo. s o que quero.

    CP: Mas sobre os efeitos de O anti-dipo, houve efeitos?

    GD: Foi impedir que eles virassem trapos, que naquele momento... que um cara que

    desenvolvia... um incio de esquizofrenia fosse colocado em boas condies, no fosse

    jogado num hospital repressivo, tudo isso... Ou ento que algum que no suportava mais,

    um alcolatra, onde ia mal, fazer com que ele parasse...

    CP: Porque era um livro revolucionrio, na medida em que parecia, para os inimigos desselivro, e para os psicanalistas, uma apologia da permissividade, e dizer que tudo era desejo...

    GD: De forma alguma... Esse livro, ou seja, quando se l esse livro, ele sempre teve uma

    prudncia, me parece, extrema. A lio era: no se tornem trapos. Quando nos

    opnhamos..., no paramos de nos opor ao processo esquizofrnico como o que ocorre num

    hospital, e para ns, o terror era produzir uma criatura de hospital. Tudo, menos isso! E

    quase diria que louvar o aspecto de valor da viagem, daquilo que, naquele momento, os

    anti-psiquiatras chamavam de viagem ou processo esquizofrnico, era um modo de evitar,

    de conjurar a produo de trapos de hospital, a produo dos esquizofrnicos, a fabricao

    de esquizofrnicos.

    CP: Voc acha, para terminar com O anti-dipo, que h ainda efeitos desse livro, 16 anos

    depois?

    GD: Sim, pois um bom livro, pois h uma concepo do inconsciente. o nico caso em

    que houve uma concepo do inconsciente desse tipo, sobre os dois ou trs pontos: as

    multiplicidades do inconsciente, o delrio como delrio-mundo, e no delrio-famlia, o

    delrio csmico, das raas, das tribos, isso bom. O inconsciente como mquina, como

    fbrica e no como teatro. No tenho nada a mudar nesses trs pontos, que continuam

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    mais, mas no importa. E ento, houve a guerra. Quando digo que era uma famlia de

    direita... Eu me lembro muito bem, eles no se recuperaram e por isso que entendo melhor

    alguns patres de hoje. O pavor que eles tinham da Frente Popular era uma coisainacreditvel. Talvez muitos patres no tenham vivido isso, mas deve restar alguns que

    conheceram esta fase. Para eles, a Frente Popular ficou marcada como a imagem do caos,

    pior do que Maio de 68. E me lembro de que toda esta burguesia de direita percebia o

    sintoma. Todos eram anti-semitas e Leon Blum foi uma coisa impressionante. O dio que

    Mends-France carregou nas costas no foi nada perto do que Blum carregou. Pois ele foi

    de fato o primeiro. A reao causada pelas frias remuneradas foi impressionante!

    CP: O primeiro judeu de esquerda conhecido?

    GD: Sim, eu diria que Blum foi pior do que o diabo. No possvel entender como Ptain

    tomou o poder daquela forma sem conhecer o nvel de anti-semitismo da Frana e da

    burguesia francesa naquele momento. O dio das medidas sociais tomadas pelo governo de

    Leon Blum. Foi impressionante! Imagine meu pai, que era meio Cruz de Fogo... Isso era

    comum naquela poca! Portanto, era uma famlia de direita inculta. Havia uma burguesia

    culta, mas a minha era inculta. Completamente inculta. Mas meu pai era, como se

    costumava chamar, um homem muito distinto, afvel, distinto e encantador. Eu ficava

    espantado com esta violncia contra Blum. Ele vinha da guerra de 1914. Tudo se encaixa.

    um mundo fcil de ser entendido em geral, mas que no se pode imaginar em detalhes. Os

    combatentes da Guerra de 1914, o anti-semitismo, o regime da crise, a prpria crise... Quecrise era essa que ningum entendia?

    CP: Qual era a profisso dele?

    GD: Era engenheiro. Mas era um engenheiro muito especial. Tenho a lembrana de duas

    atividades dele. No sei se foi criao dele ou se trabalhava com isso, mas era um produto

    para impermeabilizar os tetos. Impermeabilizao dos tetos. Mas com a crise, ele ficou com

    apenas um operrio, um italiano. Ainda mais um estrangeiro... As coisas iam muito mal. O

    negcio acabou falindo e ele foi parar em uma indstria mais sria que fabricava bales.

    Aqueles bales... Aquelas coisas... As aeronaves. Entende, no ? Mas foi num momento

    em que no serviam mais para nada. Tanto que, em 1939, voavam pelos cus de Paris para

    frear avies alemes. Eram como pombos voadores. Quando os alemes se apoderaram da

    fbrica em que meu pai trabalhava, eles foram bem mais sensatos e a transformaram em

    fbrica de botes inflveis, que teriam mais serventia. Mas no fizeram bales, nem zepelins.

    Ento, eu vi o nascimento da guerra. Eu devia ter uns 14 anos e me lembro muito bem das

    pessoas... elas sabiam muito bem que tinham ganho um ano com Munique; um ano e alguns

    meses, mas a guerra estava a. A guerra se sucedeu crise. Era uma atmosfera muito tensa

    em que as pessoas mais velhas do que eu devem ter vivido momentos terrveis. Quando os

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    alemes chegaram de fato, devastaram a Blgica, entraram na Frana e tudo o mais. Eu

    estava em Deauville, porque era o lugar em que meus pais sempre passavam as frias de

    vero. Eles j tinham voltado. Foram e nos deixaram l, o que era impensvel, poistnhamos uma me que nunca havia nos deixado, etc...

    Ficamos em uma penso; nossa me tinha nos deixado com uma senhora que era a dona

    desta penso. E eu fui escola durante um ano em Deauville, em um hotel que foi

    transformado em liceu. E os alemes estavam chegando. No, estou confundindo tudo. Isso

    foi no incio da guerra. De qualquer forma, eu estava em Deauville. Quando, h pouco, falei

    das frias remuneradas, eu me lembro que a chegada das frias remuneradas praia de

    Deauville foi uma coisa! Para um cineasta, isso poderia virar uma obra-prima, pois era

    prodigioso ver aquela gente vendo o mar pela primeira vez! Eu vi uma pessoa vendo o mar

    pela primeira vez na vida e esplndido! Era uma menina da regio de Limousin que

    estava conosco e que viu o mar pela primeira vez. Se existe alguma coisa inimaginvel

    quando nunca se o viu, esta coisa o mar. A gente pode imaginar que seja grandioso,

    infinito, mas tudo isso perde a fora quando se v o mar. Aquela menina ficou umas quatro

    ou cinco horas diante do mar, completamente abobalhada, e no se cansava de ver um

    espetculo to sublime, to grandioso! Ento, na praia de Deauville, que sempre tinha sido

    exclusiva dos burgueses, como se fosse propriedade deles, de repente, chega o povo das

    frias remuneradas... Pessoas que nunca tinham visto o mar. E foi fantstico. Se o dio

    entre as classes tem algum sentido so palavras como as que dizia a minha me que, noentanto, era uma mulher fabulosa , sobre a impossibilidade de se freqentar uma praia

    em que havia gente como aquela. Foi muito duro. Acho que eles, os burgueses, nunca

    esqueceram. Maio de 68 no foi nada perto disso.

    CP: Fale mais do medo que eles tinham.

    GD: O medo de que isso nunca fosse parar. Se davam frias remuneradas aos operrios,

    todos os privilgios burgueses estavam ameaados. Os locais freqentados eram como

    questes de territrio. Se as empregadas vinham para as praias de Deauville era como se, de

    repente, voltssemos era dos dinossauros. Era uma agresso. Pior do que os alemes. Pior

    do que os tanques alemes chegando na praia! Voc entende? Era indescritvel!

    CP: Era gente de outro mundo.

    GD: E isso era apenas um detalhe, mas quanto ao que estava acontecendo nas fbricas?

    Nunca esqueceram isso. Acho at que este medo hereditrio. No quero dizer que Maio

    de 68 no foi nada. outra histria. Mas tambm no se esqueceram de 68. Enfim... Eu

    estava l em Deauville sem meus pais, e com meu irmo. Quando os alemes realmente

    invadiram, foi a que deixei de ser bobo. Eu era um rapaz extremamente medocre na

    escola, no tinha interesse por nada, a no ser por uma coleo de selos, que era a minha

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    maior atividade e eu era um pssimo aluno. At que aconteceu comigo o que acontece com

    muita gente. As pessoas que despertam sempre o so por causa de algum em algum

    momento. E no meu caso, neste hotel que virou escola, havia um cara jovem que mepareceu extraordinrio porque falava muito bem. Para mim, foi um despertar absoluto. Eu

    tive a sorte de encontrar este cara que, mais tarde, ficou relativamente conhecido. Primeiro,

    porque ele tinha um pai famoso e, depois, porque ele foi muito ativo na esquerda, s que

    bem mais tarde. Ele se chamava Halbwachs. Pierre Halbwachs, filho do socilogo. Naquela

    poca, ele era muito jovem e tinha uma cara estranha. Era muito magro, muito alto... Na

    minha lembrana, ele era alto. E ele s tinha um olho. Um olho aberto e o outro fechado.

    No tinha nascido assim, mas era assim, como um cclope. Tinha cabelos muito cacheados,

    como uma cabra... Alis, mais do que um carneiro. Quando fazia frio, ele ficava verde,

    roxo, tinha uma sade extremamente frgil, tanto que ele foi reformado no exrcito e

    colocado como professor durante a guerra para preencher as vagas. Para mim, foi uma

    revelao. Ele era cheio de entusiasmo. No sei mais em que ano eu estava, talvez 3 ou 4

    ano ginasial, mas ele comunicava aos alunos, ou pelo menos a mim, algo que foi uma

    reviravolta para mim. Eu estava descobrindo alguma coisa. Ele nos falava de Baudelaire e

    lia muito bem. E ns nos aproximamos. Claro, ele tinha percebido que me impressionava

    muito. Eu me lembro que, no inverno, ele me levava para a praia de Deauville. E eu o

    seguia, colava nele, literalmente. Eu era seu discpulo. Tinha encontrado um mestre. Ns

    nos sentvamos nas dunas e, em meio ao vento, ao mar, era fantstico, ele me lia Lesnourritures terrestres. Ele gritava, pois no havia ningum na praia no inverno. Ele gritava:

    Les nourritures terrestres, e eu estava sentado ao lado dele, com medo de algum

    aparecer. Eu achava tudo aquilo estranho. E ele lia muitas coisas, era muito variado. Ele me

    fez descobrir Anatole France, Baudelaire, Gide... Acho que estes eram os principais. Eram

    as suas grandes paixes. E eu fui transformado, absolutamente transformado. Mas logo

    comearam os comentrios sobre aquele homem com aquela figura, aquele seu olho e o

    menino que estava sempre atrs dele. Iam sempre juntos praia, etc. A senhora que me

    hospedava ficou logo preocupada, me chamou, disse que era responsvel por mim na falta

    de meus pais e que queria me alertar sobre certas relaes. Eu no entendi nada. No

    entendi, pois, se havia uma relao pura, incontestvel e aberta, era justamente a nossa. S

    depois, eu percebi que consideravam Pierre Halbwachs um pederasta perigoso. Ento, eu

    disse a ele: Estou chateado, pois a senhora que me hospeda disse... Eu o chamava de

    senhor e ele me chamava de voc. Ela disse que no devo v-lo, que no normal,

    nem correto. E ele me disse: No se preocupe, nenhuma senhora resiste a mim. Vou falar

    com ela, explicar tudo e ela ficar tranqila. Ele tinha me tornado esperto o bastante para

    me deixar em dvidas. Eu no estava tranqilo. Tinha um pressentimento ruim. Achava que

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    a velha senhora no se convenceria. E, de fato, foi um desastre. Ele foi ver a senhora que

    escreveu imediatamente para meus pais pedindo que me tirassem de l rpido porque ele

    era algum extremamente suspeito. A tentativa dele foi um fracasso total. Mas eis que osalemes chegaram. A guerra estava comeando. Os alemes chegaram e meu irmo e eu

    samos de bicicleta ao encontro de meus pais que tinham ido para Rochefort. A fbrica

    tinha se mudado para l, fugindo-se dos alemes. Fomos de Deauville a Rochefort de

    bicicleta e ainda me lembro de ter ouvido o famoso discurso infame de Ptain no albergue

    de uma aldeia. Meu irmo e eu estvamos de bicicleta e, em um cruzamento, quem

    encontramos? Parecia desenho animado: em um carro, estavam o velho Halbwachs, o filho

    e um esteta que se chamava Bayer. Eles estavam indo para perto de La Rochelle. Era o

    destino. Mas estou contando isso s para dizer que, depois de ter reencontrado Halbwachs,

    eu o conheci bem melhor e no tinha mais admirao por ele. Mas isso me mostrou que foi

    no momento em que eu o admirei com 14, 15 anos que eu tive razo.

    CP: Depois, voltou a Paris, ao Liceu Carnot, com um certo pesar, j que as frias haviam

    acabado. Neste liceu, teve aulas de Filosofia. Foi nesta poca que Merleau-Ponty era

    professor l, mas voc entrou numa turma em que no havia Merleau-Ponty. Seu professor

    chamava-se Sr. Viale. Acho que era este o nome, no?

    GD: Sim, o Sr. Viale. Tenho dele uma lembrana comovida. Foi por acaso. Houve a

    distribuio dos alunos... Eu poderia ter tentado passar para a turma de Merleau-Ponty, mas

    no tentei, no sei por qu. Viale foi... curioso, porque Halbwachs me fez sentir algumacoisa do que era a Literatura, mas, desde as primeiras aulas de Filosofia, eu soube que era

    isso que eu faria. Eu me lembro de coisas esparsas, aqui e ali. Em Filosofia, eu me lembro

    de quando soubemos da chacina de Oradour. Tinha acontecido naquela poca. bom

    lembrar que eu estava em uma turma de pessoas um pouco politizadas, sensveis s

    questes nazistas. Eu estava na turma de Guy Moquet. Eu me lembro disso. Havia uma

    atmosfera estranha nesta turma. De qualquer forma, lembro da forma como foi anunciado

    Oradour. Foi um fato marcante entre os rapazes de 17 anos... No sei com que idade se

    passava a prova final. Talvez, 17, 18 anos ou 16, 17 anos.

    CP: Normalmente, 18 anos.

    GD: Sim, me lembro bem. Quanto a Viale, era um professor que falava baixo, j era velho.

    Eu gostava imensamente dele. De Merleau-Ponty, tenho a lembrana da melancolia. Carnot

    era um grande liceu no qual havia uma balaustrada ao longo de todo o primeiro andar. E

    havia o olhar melanclico de Merleau-Ponty que observava as crianas brincando e

    gritando. Uma grande melancolia. Era como se ele dissesse: O que estou fazendo aqui?

    Enquanto que Viale, de quem eu gostava muito, estava no fim de sua carreira. Eu tambm

    me liguei muito a ele. Ficamos muito ligados e, como morvamos perto um do outro,

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    voltvamos sempre juntos. Ns falvamos sem parar. Sabia que eu faria Filosofia ou no

    faria nada.

    CP: Logo nas primeiras aulas?GD: Sim, sim! Foi como quando eu soube que existiam coisas to estranhas quanto o que

    chamavam de conceitos. Para mim, teve o mesmo efeito do que para outros a descoberta de

    um personagem de fico. Como fiquei emocionado ao descobrir Monsieur de Charlus! Ou

    um grande personagem de romance, ou Vautrin. Ou ainda Eugnie Grandet. Quando eu

    aprendi o que Plato chamava de idia, me parecia ter vida! Era animado! Eu sabia que

    era isso; que, para mim, era isso.

    CP: E voc logo se tornou bom aluno? O melhor?

    GD: Sim. A, eu no tinha mais problemas escolares. Desde Halbwachs, tornei-me bom

    aluno! Era bom em Letras. At mesmo em Latim, eu era bom. Eu era um bom aluno. Em

    Filosofia, um timo aluno.

    CP: Queria que voltssemos a uma coisa. As turmas no eram politizadas naquela poca?

    Voc disse que a sua turma era especial, pois havia Guy Moquet, etc.

    GD: No era possvel ser politizado durante a guerra. Certamente havia rapazes de 17, 18

    anos que estavam na Resistncia. Mas quem estava na Resistncia se calava, a menos que

    fosse um cretino. No se pode falar em politizao. Havia pessoas indiferentes e as

    favorveis ao governo de Vichy.

    CP: Havia a Ao Francesa?GD: No era a Ao Francesa, era muito pior. Eram os Vichyssois. No h comparao

    com a politizao em pocas de paz, j que os elementos realmente ativos eram os

    resistentes ou jovens com alguma relao com a Resistncia. No tinha nada a ver com

    politizao; era mais secreto.

    CP: Mas, em sua turma, havia pessoas simpatizantes? Jovens que simpatizavam com a

    Resistncia?

    GD: Sim, posso citar Guy Moquet, que foi morto. Acabou sendo assassinado pelos nazistas

    um ano depois.

    CP: Mas vocs falavam a esse respeito?

    GD: Sim, claro. Como eu disse, o aviso, a comunicao imediata de Oradour tinha a ver

    com comunicao secreta, com o telgrafo, pois a notcia se espalhou e, no mesmo dia,

    todas as escolas parisienses j sabiam. Saber imediatamente do ocorrido em Oradour foi

    uma das coisas mais emocionantes para mim.

    CP: Para fechar a infncia, seno no terminamos nunca, a sua parece ter tido pouca

    importncia para voc. Voc no fala dela e nem uma referncia. Temos a impresso de

    que a infncia no importante para voc.

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    GD: Sim, claro. quase em funo de tudo o que acabo de dizer. Acho que a atividade de

    escrever no tem nada a ver com o problema pessoal de cada um. No disse que no se

    deve investir toda a sua alma. A literatura e o ato de escrever tm a ver com a vida. Mas avida algo mais do que pessoal. Na literatura, tudo o que traz algo da vida pessoal do

    escritor por natureza desagradvel. lamentvel, pois o impede de ver, sempre o remete

    para seu pequeno caso particular. Minha infncia nunca foi isso. No que eu tenha horror

    a ela! Mas o que me importa, na verdade, como j dizamos: H o devir-animal que

    envolve o homem e o devir-criana. Acho que escrever um devir alguma coisa. Mas

    tambm no se escreve pelo simples ato de escrever. Acho que se escreve porque algo da

    vida passa em ns. Qualquer coisa. Escreve-se para a vida. isso. Ns nos tornamos

    alguma coisa. Escrever devir. devir o que bem entender, menos escritor. fazer tudo o

    que quiser, menos arquivo. Respeito o arquivo em si. Neste caso, sim, quando arquivo.

    Mas ele tem interesse em relao a outra coisa. Se o arquivo existe justamente porque h

    uma outra coisa. E, atravs do arquivo, pode se entender alguma coisinha desta outra coisa.

    Mas a simples idia de falar da minha infncia no s porque ela no tem interesse

    algum me parece o contrrio de toda a Literatura. Se me permite, vou ler uma coisa que

    j li mil vezes e que todos os escritores j disseram. Mas vi este livro ontem, eu no o

    conhecia. de um grande poeta russo, Mandelstam. Eu o estava lendo ontem.

    CP: Ele tem um nome lindo, poderia diz-lo.

    GD: Sim, Ossip. Nesta frase, ele diz... o tipo de frase que me transtorna. E o papel doprofessor este: comunicar e fazer com que crianas apreciem um texto. Foi o que

    Halbwachs fez por mim. Ele diz que no entende que algum como Tolstoi se apaixone por

    arquivos familiares. Ele continua. Eu repito: a minha memria no amor, mas

    hostilidade. Ela trabalha no para reproduzir, mas para afastar o passado. Para um

    intelectual de origem medocre, a memria intil. Basta-lhe falar dos livros que leu e sua

    biografia est feita. Dentre as geraes felizes, onde a epopia fala atravs de hexmetros e

    crnicas, para mim, parece um sinal de pasmaceira. Entre mim e o sculo, h um abismo,

    um fosso repleto de tempo fremente. O que queria dizer a minha famlia? Eu no sei. Era

    gaga de nascena e, no entanto, tinha algo a dizer. Sobre mim e muitos dos meus

    contemporneos, pesa a gagueira de nascimento. Aprendemos no a falar, mas a balbuciar.

    Foi s quando demos ouvidos ao barulho crescente do sculo e fomos embranquecidos pela

    espuma de sua crista que adquirimos uma linguagem. Para mim, isso quer dizer que...

    Quer dizer de fato que escrever mostrar a vida. testemunhar em favor da vida, dos

    idiotas que esto morrendo. gaguejar na lngua. Fazer literatura apelando para a infncia

    tornar a Literatura parte de seu caso particular. fazer literatura barata, so os best-sellers.

    realmente uma porcaria. Se no se leva a linguagem at o ponto em que se gagueja o

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    que no fcil, pois no basta gaguejar assim , se no se vai at este ponto. Na

    Literatura, de tanto forar a linguagem at o limite, h um devir animal da prpria

    linguagem e do escritor e tambm h um devir criana, mas que no a infncia dele. Elese torna criana, mas no a infncia dele, nem de mais ningum. a infncia do mundo.

    Os que se interessam pela sua prpria infncia que se danem e que continuem a fazer a

    Literatura que eles merecem. Se h algum que no se interessa por sua prpria infncia,

    este algum Proust. A tarefa do escritor no vasculhar os arquivos familiares, no se

    interessar por sua prpria infncia. Ningum se interessa por isso. Ningum digno de

    alguma coisa se interessa por sua infncia. A tarefa outra: devir criana atravs do ato de

    escrever, ir em direo infncia do mundo e restaurar esta infncia. Eis as tarefas da

    Literatura.

    CP: E a criana nietzschiana?

    GD: Nietzsche, entre outros, sabia disso, assim como Mandelstam sabia. Todos os

    escritores sabem disso. Mas eu insisto. No consigo pensar em outra frmula alm desta:

    escrever devir, mas no tornar-se escritor, nem um memorialista. Nada disso. No

    porque vivi uma histria de amor que vou escrever um romance. horrvel pensar assim.

    No apenas medocre, horrvel!

    CP: H uma exceo regra: Nathalie Sarraute, uma escritora fabulosa, escreveu um livro

    chamadoInfncia. Um momento de fraqueza?

    GD: Absolutamente! Nathalie Sarraute uma escritora fabulosa, mas no um livro sobrea infncia dela. um livro no qual ela testemunha, reinventa...

    CP: Banquei o advogado do diabo.

    GD: Eu sei, mas um papel muito perigoso. Ela inventa a infncia do mundo. O que

    interessa a N. Sarraute de sua infncia? So algumas frmulas estereotipadas das quais ela

    vai tirar maravilhas. Pode ser o que ela fez com as ltimas palavras de ... De quem mesmo?

    CP: Tchekov.

    GD: As ltimas palavras de Tchekov. Ela tirou da. Depois, ela pega de novo uma menina

    que ouviu algum dizer: Como vai? e vai criar um mundo de linguagem, fazer proliferar

    a linguagem. Claro que Nathalie Sarraute no se interessa por sua prpria infncia!

    CP: Tudo bem, mas mesmo assim...

    GD: Claude Sarraute talvez se interesse, mas Nathalie Sarraute, no.

    CP: Claro, claro. Aceito tudo isso. Mas, de alguma forma, foi um treinamento precoce que

    o levou Literatura? Voc reprimiu a infncia e a rejeitou como uma inimiga. Isso foi a

    partir de que idade? um treinamento? Por outro lado, a infncia sempre volta, mesmo que

    seja de uma forma revoltante. preciso treinar quase diariamente? Precisa ter uma

    disciplina cotidiana?

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    GD: Isso simplesmente acontece, eu acho. A infncia, a infncia... Como tudo, preciso

    saber separar a infncia ruim da boa. O que interessante? A relao com o pai, a me e as

    lembranas da infncia no me parecem interessantes. interessante e rico para si prprio,mas no para escrever. H outros aspectos da infncia. Falamos h pouco do cavalo que

    morreu na rua, antes do surgimento do carro. Encontrar a emoo da criana... Na verdade,

    uma criana. A criana que eu fui no quer dizer nada. Mas eu no sou apenas a

    criana que fui, eu fui uma criana entre muitas outras. Eu fui uma criana qualquer. E

    foi assim que eu vi o que era interessante e no como eu era a tal criana. Eu vi um

    cavalo morrer na rua antes que surgissem os carros. No estou falando por mim, mas por

    aqueles que viram. Muito bem, muito bem... Perfeito. uma tarefa do tornar-se escritor.

    Algum fator fez com que Dostoivski o visse. H uma pgina inteira em Crime e castigo,

    eu acho, sobre o cavalo que morre na rua. Nijinski, o danarino, o viu. Nietzsche tambm

    viu. J estava velho quando o viu em Turim, eu acho. Muito bem!

    CP: E voc viu as manifestaes da Frente Popular.

    GD: Sim, eu vi estas manifestaes, vi meu pai dividido entre sua honestidade e seu anti-

    semitismo. Eu fui uma criana. Eu sempre insisti no fato de que no se entende o sentido

    do artigo indefinido. Uma criana espancada, um cavalo chicoteado. No quer dizer

    eu. O artigo indefinido de uma extrema riqueza.

    CP: So as multiplicidades. Falaremos disso.

    GD: Sim, a multiplicidade.

    F de Fidelidade

    CP: F de Fidelidade. Fidelidade no gera amizade. Tudo isso vem de um mistrio muito

    maior. Com o Gordo e o Magro, e Bouvard e Pecuchet. Vamos passar para a letra F.

    GD: Vamos ao F.

    CP: Escolhi a palavra Fidelidade. Fidelidade para falar de amizade, j que h 30 anos,

    amigo de Jean-Pierre Braunberger. E todos os dias, vocs se telefonam ou se vem. como

    um casal. Voc fiel s suas amizades, fiel a Flix Guattari, a Jerme Lindon, a Elie, aJean-Paul Manganaro, Pierre Chevalier... Seus amigos so muito importantes para voc.

    Franois Chtelet e Michel Foucault eram seus amigos e voc os homenageou como

    amigos com grande fidelidade. Queria saber se a impresso de a fidelidade estar

    obrigatoriamente ligada amizade correta? Ou ser o contrrio?

    GD: No h Fidelidade. s uma questo de convenincia, j que comea com F.

    CP: Sim, e o A j foi preenchido.

    GD: outra coisa. A amizade. Por que se amigo de algum? Para mim, uma questo de

    percepo. o fato de... No o fato de ter idias em comum. O que quer dizer ter coisas

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    gestos de madeira seca. Eram gestos estranhos, fascinantes. Muito bonitos. As pessoas s

    tm charme em sua loucura, eis o que difcil de ser entendido. O verdadeiro charme das

    pessoas aquele em que elas perdem as estribeiras, quando elas no sabem muito bem emque ponto esto. No que elas desmoronem, pois so pessoas que no desmoronam. Mas, se

    no captar aquela pequena raiz, o pequeno gro de loucura da pessoa, no se pode am-la.

    No pode am-la. aquele lado em que a pessoa est completamente... Alis, todos ns

    somos um pouco dementes. Se no se captar o ponto de demncia de algum... Ele pode

    assusta