Rev. Direito Práx., Rio de Janeiro, Vol. 9, N. 2, 2018, p. 810-831. Paula Dürks Cassol, Maria Beatriz Oliveira da Silva e Priscila Valduga Dinarte DOI: 10.1590/2179-8966/2017/25503 | ISSN: 2179-8966 810 “A vida mera das obscuras”: sobre a vitimização e a criminalização da mulher “The mere life of obscures”: about women's victimization and criminalization Paula Dürks Cassol Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: [email protected]Maria Beatriz Oliveira da Silva Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]Priscila Valduga Dinarte Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: [email protected]Artigo recebido em 11/09/2016 e aceito em 24/04/2017. This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License
22
Embed
“A vida mera das obscuras”: sobre a vitimização e a … · Palavras-chaves: Criminologia feminista; Vitimização da mulher; Criminalização da mulher. Abstract This paper
This document is posted to help you gain knowledge. Please leave a comment to let me know what you think about it! Share it to your friends and learn new things together.
dupla violência sofrida por ela. Primeiro pelo agressor, que ocupando o papel de
provedor e chefe do lar, responde através da agressão à insubordinação da
companheira, pois a sociedade assim lhe permite; e depois, pelo sistema de justiça
criminal, que, fazendo parte das estruturas do direito, reproduz amisoginia presente
nesse.
1Otítuloéumareferênciaaopoema“Todasasvidas”,deautoriadeCoraCoralina.2 Harding define o paradigma do gênero através de três afirmações: 1. As formas de pensamento, delinguagemeas instituiçõesdacivilizaçãoocidental (assimcomode todasasoutrasconhecidas),possuemumaimplicaçãoestruturalcomogênero,ouseja,comadicotomia“masculino-feminino”.2.Osgênerosnãosãonaturais,nãodependemdosexobiológico,mas,sim,constituemoresultadodeumaconstruçãosocial.3.Osparesdequalidadecontrapostasatribuídasaosdoissexossãoinstrumentossimbólicosdadistribuiçãoderecursosentrehomensemulheresedasrelaçõesdepoderexistenteentreeles.(BARATTA,1999,p.22-23).3Avitimizaçãoaqualsereferenãoé“sefazerdevítima”,ouresponsabilizaramulherpelocrimedoqualfoivítima,mascompreender,apartirdoparadigmadogênero,queainferiorizaçãoesubjugaçãodamulheratorna mais vulnerável a ser vítima de certos delitos, bem como quando a mulher se opõe ao papel degêneroeohomemcomoqualconvivenãoaceitaasuainsubordinaçãoerespondecomviolência.
O sistema de controle dirigido exclusivamente àmulher (no seu papel degênero)éoinformal,aquelequeserealizanafamília.Essemesmosistemavemexercitadoatravésdodomíniopatriarcalnaesferaprivadaevêa suaúltimagarantianaviolênciafísicacontraasmulheres(BARATTA,1999:46).
Nessa linha, o controle informal infligido à mulher materializa-se na família,
através da figura do pai, padrasto ou marido, bem como na escola, na religião e na
moral (ANDRADE, 2012: 145). Percebe-se mais claramente esse controle na infância,
[...]setratadeumsubsistemadecontrolesocial,seletivoedesigual,tantode homens como de mulheres e porque é, ele próprio um sistema deviolência institucional,queexerce seupodere seu impacto tambémsobreasvítimas.E,aoincidirsobreavítimamulherasuacomplexafenomenologiade controle social (Lei, Polícia, Ministério Público, Justiça, prisão) querepresenta, por sua vez, a culminação de um processo de controle quecertamenteinicianafamília,osistemapenalduplica,aoinvésdeproteger,avitimizaçãofeminina[...](ANDRADE,1997).
4 Necessário destacar que empoderamento aqui “compreende la alteración radical de los procesos yestructurasquereproducenlaposicionasubordinadadelasmujerescomogénero”(YOUNG,1997).Saffiotiaindacomplementa,afirmandoqueempoderamento,do inglêsempowerment,“significaatribuirpoderàsmulheres, elevando, por exemplo, sua autoestima. Também se empoderammulheres pormeiode açõesafirmativasestatais”(SAFFIOTI,2015,p.99–notaderodapé).
[...] podem ser compreendidas como mais um passo no processo deempoderamentodessasmulheres,umavezquesemostraramdeterminadasa cumprir suas vontades e enfrentar de alguma maneira a situação desubordinaçãoqueseusmaridosimpõem(MATOS,2012).
No entanto, o “homem, ainda amplamente informado pelo poder socialmente
legitimado que exerce sobre a mulher e pela experiência de impunidade quando
ultrapassa os limites do tolerável, lida de forma violenta com esta nova situação”
[...] desde 2010 venho lutando, porque meu ex-marido me agrediu, euconvivi com ele 16 anos, me agredia sempre, [...] já me violentou váriasvezes,eaídenuncieiele[...]paraaDEAM,chegandolá,adelegada[...]elafalou:‘Olhe,X,volteparaele,porqueeleteamamuitoainda,eledissequenãofeznadacomvocênão’.Eessaqueixaqueeudei?Eoqueeufuifazercorpo delito, fica aonde? [...] veio a medida protetiva, corri muito atrástambém, [...] da 1ª Vara para cá, de hoje que estou lutando, tive trêsaudiências, ele já foi intimado e nunca compareceu, [...] tem três prisõespreventivas dele, nunca foi preso [...]. Dra. A.: ‘Eu já mandei a prisãopreventiva dele, ele vai ser preso’. Esperei, aguardei e nada. Retornei lá.‘Nadaainda?’Eu:‘Não’.Quementregaintimação?Nooficialdejustiça,nãoachei oficial de justiça nenhum. Ninguém sabia se entregou ou não aintimação para ele [...]. E assim eu acho que precisa melhorar bastante,sabe?A1ªVaradaJustiça,porqueestáhorrível(Amora)(TAVARES,2015).
Nesse relato, fica evidente a falta de preparo dos agentes que cuidam dos
processos de violência doméstica. Quando a delegada sugere que a vítima volte a
Apesardacrescente feminizaçãodoJudiciário,asdesigualdadesdegêneropersistemnamagistratura,quepermaneceumespaçogendrado,masculino,oqueinterferenaposturadejuízas,delegadasepromotoras,cujaaceitaçãoentre os pares parece estar condicionada à negação de sua identidadefeminina.Assim,natentativadeimprimiremracionalidadeeobjetividadeàssentenças formuladas, adotam uma posturamais rígida, que associam aosexomasculino(TAVARES,2015).
[...]asmulheresenquantointérpretesdepapéisfemininos,nãovêmsendoconsideradasnasuaqualidadedeautorasdecrime,massim,nadevítimasdas formas de violência masculina não previstas pelas normas penais, ouprevistas, não sob a forma de ofensas à incolumidade física e à suaautonomia,mas comoofensaaoutros valores “objetivos”,ouainda comocrimesemlargaescala,justificadostantopelosistemadajustiçapenalcomopelosendocomum(BARATTA,1999:54).
Por isso, amulher autora de delitos quebra com o paradigma do gênero ao inserir a
5Sabe-sequeasmulheres,emborapossuamamesmaqualificaçãoqueoshomens,sãomenosvalorizadasfinanceiramenteeatédiscriminadasnomercadodetrabalho.Estaafirmaçãofoicorroboradaporpesquisadesenvolvida pela Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), indicando que, noBrasil,“arendamédiadeumamulhercomeducaçãosuperiorrepresentaapenas62%darendamédiadeumhomemcomomesmoníveldeescolaridade”(2015,p.3).
It isdifficult forawomanwhohassufferedabusetoachieveameaningfuldegreeof insightandhealing in theprisonenvironment.Conditionswithinthe institution continually reinvokememories of violence and oppression,oftenwithindevastatingresults.Unlikeotherincarceratedbatteredwomenwhohavecomeforwardtorevealtheir impressionsofprison, Idonotfeel“safer” here because “the abuse has stopped.” It has not stopped. It hasshiftershapeandpaceditselfdifferently,butitisasinsidiousandpervasiveinprisonaseveritwasintheworldIknewoutsidethesefences.Whathasceased ismy ignoranceofthefactsconcerningabuse–andmywillingnesstotolerateitinsilence(BURNEYinCOOK,1991:30).6
É imprescindível destacar, dentrodo contextodamulher autoradedelitos, os
sistema penitenciário reifica o papel de gênero e as violenta profundamente. A
educação e a formação profissional recebida pela população carcerária feminina
reproduzem a sua subordinação, também nas relações de produção (BARATTA in
CAMPOS, 1999: 50). Elas não recebem uma educação, não tem acesso a um
conhecimento que lhes possibilite uma vida autônoma, ficando restritas a uma lógica
que reproduz e reafirma seu papel enquanto esposas e proletárias, reproduzindo os
papéis femininos socialmente construídos (BARATTA in CAMPOS, 1999: 50). Desse
modo, elas permanecem dependentes dos maridos, emocional e economicamente, e 6Traduçãolivre:Édifícilparaumamulherquesofreuabusoalcançarumgrausignificativodeintrospecçãoecura no ambiente prisional. As condições dentro da instituição continuamente reinvocam memórias deviolência e opressão, muitas vezes com resultados devastadores. Ao contrário de outras mulheresviolentadas encarceradas que se apresentaram para revelar suas impressões de prisão, eu nãome sinto"maissegura"aquiporque"oabusoparou”.Elenãoparou.Elemudadeformaemove-sediferente,masétãotraiçoeiraegeneralizadonaprisãocomosempreforanomundoqueeuconheciforadessesmuros.Oque cessou foi a minha ignorância dos fatos relativos ao abuso – e a minha vontade de tolerá-los emsilêncio.
[...]asmulheresemsituaçãodeprisãotêmdemandasenecessidadesmuitoespecíficas,oquenãoraroéagravadoporhistóricosdeviolênciafamiliar,econdições como a maternidade, a nacionalidade estrangeira, perdafinanceira,ouousodedrogas(MINISTÉRIODAJUSTIÇA,2015).
ANDRADE,VeraReginade.Pelasmãosdacriminologia:Ocontrolepenalparaalémda(de)ilusão.RiodeJaneiro:Revan;ICC,2012.__________,VeraReginaPereirade.Criminologiaefeminismo:damulhercomovítimaà mulher como sujeito de construção da cidadania.Seqüência: Estudos Jurídicos ePolíticos, Florianópolis, p. 42-49, jan. 1997. ISSN 2177-7055. Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/view/15645/14173>. Acessoem:27mar.2015.BARATTA,Alessandro.Oparadigmadogênero:Daquestãocriminalàquestãohumana.In: CAMPOS, Carmen Hein de (org.). Criminologia e Feminismo. Porto Alegre: Sulina,1999.BOBBIO,Norberto.Elogio da serenidade e outros escritosmorais. São Paulo: EditoraUnesp,2011.BURNEY, Marcia. One Life in Prision: Perception, Reflection, and Empowerment. In:COOK, Sandy; DAVIES, Susanne (Ed.)Harsh punishment: International experiences ofwomen’simprisonment.Boston:NortheasternUniversity,1991.FERREIRA, FernandaMacedo;et. al. Opressão e transgressão:O paradoxo da atuaçãofeminina no tráfico de drogas. In: SÁ, Priscilla Plach (Org.) Dossiê: as mulheres e osistema penal. Curitiba: OABPR, 2015, p. 160. Disponível em:<http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>.Acessoem:10jun.2015
FOLHADESÃOPAULO.MaridoagressivoficasemsexoemcomunidadeemCampinas(SP). Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2014/04/1437916-maridos-agressivos-ficam-sem-sexo-e-bilhar-em-comunidade-em-campinas-sp.shtml>.Acessoem:08nov.2015.GOMES,MayaraDeSouza.Existeoutrocaminho?Umaleiturasobrediscurso,feminismoe punição da Lei 11.340/2006.Revista Liberdades,Rio de janeiro,n. 17,set./dez.2014.Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br/revista_liberdades_artigo/211-artigos>.Acessoem:08nov.2015.MATOS, Raquel; MACHADO, Carla. Criminalidade feminina e construção do género:Emergência e consolidação das perspectivas feministas na Criminologia.Aná.Psicológica, Lisboa , v. 30,n. 1-2,jan. 2012. Disponível em:<http://www.scielo.mec.pt/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0870-82312012000100005&lng=pt&nrm=iso>.Acessoem:08out.2015MENDES,SoraiadaRosa.Criminologiafeminista:novosparadigmas.SãoPaulo:Saraiva,2014.MINISTÉRIODAJUSTIÇA.DepartamentoPenitenciárioNacional.LevantamentoNacionalde InformaçõesPenitenciárias– INFOPENMULHERES JUNHODE2014.Brasília,2015.Disponível em: <https://www.justica.gov.br/noticias/estudo-traca perfil-da-populacao-penitenciaria-feminina-no-brasil/relatorio-mulheres_05-11.pdf>. Acesso em 5 nov.2015.O GLOBO.Parto na prisão. Disponível em:<http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/parto-na-prisao.html>. Acesso em: 07nov.2015.ORGANIZAÇÃODECOOPERAÇÃOEDESENVOLVIMENTOECONÔMICO.Educationattheglance 2015: country note. OCDE, 2015. Disponível em:<http://www.oecd.org/brazil/Education-at-a-glance-2015-Brazil-in-Portuguese.pdf>.Acessoem:04out.2015.PEREIRA, Luísa Winter; SILVA, Tayla de Souza. Por uma criminologia feminista: Dosilêncioaoempoderamentodamulhernopensamentojurídicocriminal.In:SÁ,PriscillaPlach (Org.)Dossiê: asmulheres e o sistemapenal. Curitiba:OABPR, 2015.Disponívelem: <http://www.oabpr.org.br/downloads/dossiecompleto.pdf>. Acesso em: 10 jun.2015.SAFFIOTI, Heleieth I. B.. Violência de Gênero no Brasil Atual. Estudos Feministas,Florianópolis, p. 443, jan. 1994. ISSN 0104-026X. Disponível em:<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/16177/14728>. Acesso em: 06nov.2015.TAVARES,MárciaSantana.RODADECONVERSAENTREMULHERES:DENÚNCIASSOBREALEIMARIADAPENHAEDESCRENÇANAJUSTIÇA.EstudosFeministas,Florianópolis,v.23, n. 2, maio 2015. ISSN 0104-026X. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/38875/29354>. Acesso em: 1ºnov.2015.YOUNG,Kate.ElPotencialtransformadorenlasnecesidadesprácticas:empoderamientocolectivoyelprocesodeplanificación.In:LEÓN,M.(comp.).Poderyempoderamientode las mujeres. Bogotá: TM Editores; U.N.: Facultad de Ciencias Humanas, 1997.Disponível em:<http://biblioteca.hegoa.ehu.es/system/ebooks/15813/original/Antolog__a_preparada_para_el_1___curso_en_desarrollo_humano_local.pdf#page=111>.Acessoem:08ago.2015ZEROHORA.Metadedasdetentasdamadrepelletiernãorecebevisitadosfilhos,dizestudo. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/09/metade-das-detentas-da-madre-pelletier-nao-recebe-visita-dos-filhos-diz-estudo-4844027.html>.Acessoem:08nov.2015.SobreasautorasPaulaDürksCassolMestrandaemTeoriasJurídicasContemporâneaspeloProgramadePós-GraduaçãoemDireitodaUniversidadeFederaldoRiode Janeiro (UFRJ).PesquisadoradoLaboratóriodeDireitosHumanos(LADIH)daUFRJ.BacharelemDireitopelaUniversidadeFederaldeSantaMaria(UFSM).E-mail:[email protected]
MariaBeatrizOliveiradaSilvaProfessoradoProgramadePós-GraduaçãoemDireitodaUniversidadeFederaldeSantaMaria(UFSM).DoutoraemDireitopelaUniversidadedeLimoges-França.MestradoemDireitos Sociais e Políticas Públicas pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC);graduação em Direito e Letras. Pesquisadora do CNPq e coordenadora do grupo depesquisaDireito,MarxismoeMeioAmbiente.CoordenadoradosprojetosdeextensãoODireitoAchadonaRuaeDireitoemCanto&VersoedoprojetodeensinoOreferencialteóricomarxistaatravésdeleiturasfrancesas.E-mail:[email protected]
PriscilaValdugaDinarteMestrepeloProgramadePós-graduaçãoemDireitodaUniversidadeFederaldeSantaMaria(UFSM)-áreadeconcentraçãoDireitosEmergentesdaSociedadeGlobal,nalinhade pesquisa Direitos na Sociedade em Rede. Formada em Direito pela UniversidadeFederal de SantaMaria. Participa do Projeto: O uso das tecnologias da informação ecomunicaçãopeloPoderJudiciáriobrasileiro:ossiteseportaiscomoinstrumentosparaimplementar a Lei nº 12.527/11, orientado pela Profª. Drª. Rosane Leal da Silva.Integrante do Núcleo de Direito Informacional (NUDI) da UFSM, inscrito no CNPq. E-mail:[email protected]íramigualmenteparaaredaçãodoartigo.