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1. Biobibliografia
Ana Miranda nasceu em 1951, em Fortaleza, Cear. Atriz, poetisa e
romancista, recebeu duas vezes o prmio Jabuti, por seus romances
Boca do inferno (sobre o poe-ta barroco Gregrio de Matos e o
sermonista barroco pa-dre Antnio Vieira) e Dias & Dias (sobre o
poeta romnti-co Gonalves Dias).
PRINCIPAIS OBRASAnjos e demnios (poesia), 1978; Celebraes do
outro
(poesia), 1983; Boca do inferno (romance), 1989; O retrato do
rei (romance), 1991; Sem pecado (romance), 1993; A l-tima quimera
(romance), 1995; Clarice (novela) 1996; Des-mundo (romance) 1996;
Amrik (romance), 1997; Que seja em segredo (antologia potica),
1998; Noturnos (contos), 1999; Caderno de sonhos (dirio), 2000;
Dias & Dias (ro-mance), 2002; Deus-dar (crnicas), 2003; Prece a
uma al-deia perdida (poesias), 2004.
2. A literatura contempornea no Brasil
A POCAA dcada de 1960 foi marcada por grandes mudan-
as na poltica nacional. Aps sete meses no governo, Jnio Quadros
renuncia, e Joo Goulart, seu vice, assu-me a Presidncia;
entretanto, logo derrubado por um golpe de Estado. Dava-se incio
ditadura militar, que s teria fim em 1985, com a eleio indireta de
Tancre-do Neves.
Nos anos 1960, os conceitos artsticos brasileiros
con-sagraram-se, agora com fortes rasgos polticos, flores-cendo
artistas comprometidos com causas sociais a chamada arte engajada.
Na stima arte, surge o chama-do cinema novo, com amplo destaque
para o baiano Gluber Rocha. O teatro solidificava sua participao no
contexto social, e importantes grupos manifestavam-se no pas: o
Arena e o Oficina, em So Paulo, e o Teatro Opinio, no Rio de
Janeiro. A televiso facilitou a popu-larizao da msica, e nomes
importantes como Chi-co Buarque de Holanda, Caetano Veloso e
Gilberto Gil tornaram-se exemplos para a juventude, notadamente
politizada. O Tropicalismo aparece como um movimen-to de resgate
aos valores culturais brasileiros, baseados na miscigenao cultural.
A poesia ganha contornos musicais, e seus autores destacam-se como
composito-res e cantores ou mesmo como poetas. O regime militar
imposto desde 1964 barra o mpeto artstico nacional, principalmente
a partir de 1968, quando foi decretado o AI-5, que impunha a
censura aos meios de comunica-o brasileiros. O cerceamento
liberdade criadora im-pediu a evoluo artstica iniciada nos anos
1940 e 1950. Os artistas que ainda se mantinham em seus ideais eram
obrigados a se ajustar aos limites impostos. A represso e os
autoritrios atos inconstitucionais fizeram com que poetas, msicos e
demais artistas se revoltassem e, por meio da palavra, mostrassem
todo o seu descontenta-mento contra as perseguies, torturas e
exlios.
3. Principais movimentos e os seus autores
Nesse perodo, h a continuao da prosa intimis-ta (Lygia Fagundes
Telles) e os chamados movimentos de vanguarda: a poesia social
(Ferreira Gullar, Thiago de Melo e Affonso Romano de SantAnna), o
Concretismo (Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Dcio
Pig-natari), o poema-processo (Wlademir Dias Pino e Ronal-do
Azeredo), a poesia prxis (Mrio Chamie), a poesia marginal (Paulo
Leminski, Ktia Bento, Cacaso, Chacal e Ana Cristina Csar), dentre
outros.
O poema a seguir, de Ferreira Gullar, exemplo de poema
social:
Como dois e dois so quatroSei que a Vida vale a penaEmbora o po
seja caroE a liberdade, pequenaComo teus olhos so clarosE a tua
pele, morenaComo azul o oceanoE a lagoa, serenaComo um tempo de
alegriaPor trs do terror me acenaE a noite carrega o diaNo seu colo
de aucena
Ana MirandaA LTIMA QUIMERA
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Sei que dois e dois so quatroSei que a Vida vale a penaMesmo que
o po seja caroE a liberdade pequena.
4. A ltima quimera
A ltima quimera um romance narrado em 1 pes-soa
(narrador-personagem), sobre a vida e obra do poeta pr-modernista
Augusto dos Anjos, autor da obra Eu e outras poesias. Nele, a
autora retrata tam-bm outras personalidades literrias da poca, como
o poeta parnasiano Olavo Bilac, o intelectual Rui Barbosa, o
romancista Raul Pompeia. O ttulo, A ltima quimera, refere-se a um
verso de um dos sonetos mais popula-res do poeta, Versos ntimos
(leia na integra o sone-to adiante). Nascido no engenho Pau-darco,
na Para-ba, Augusto dos Anjos era descendente de uma famlia
patriarcal decadente. Formou-se em direito no Recife, porm sem
nunca ter exercido a profisso. Mudou-se, juntamente com a mulher
Esther, para a cidade do Rio de Janeiro, onde, passando por
dificuldades financei-ras, foi professor de aulas particulares. Sua
nica obra, Eu, foi publicada sob as expensas do irmo Odilon dos
Anjos, sem nenhuma repercusso na poca (a ti-ragem acabou mofada no
poro de sua casa em Leo-poldina). Devido a uma poesia escatolgica,
bizarra e original (Augusto dos Anjos foi o primeiro poeta
brasi-leiro a usar palavras da biologia, da qumica e fsica na
poesia), com termos que causavam asco e nojo nos lei-tores (como
escarro, podrido, putrefao, carnificina etc.), o poeta foi acusado,
principalmente pelos parna-sianos, de manchar o soneto (o diamante
lapidado para os parnasianos). A um convite do concunhado,
mudou--se para Leopoldina, cidade do interior mineiro, onde, trs
meses depois veio a falecer, vtima de uma conges-to pulmonar
(pneumonia). Aps a sua morte, sua obra foi reavaliada e o poeta
passou a figurar como um dos grandes poetas da literatura
brasileira.
TEMAO narrador-personagem encontra na rua o poeta
Olavo Bilac na madrugada da morte do poeta Augusto dos Anjos.
Como era de costume, Olavo Bilac quis saber se a morte do jovem
poeta fora causada pela tuberculo-se, doena tpica em poetas
bomios.
O narrador, amigo de Augusto dos Anjos, ainda teve a esperana de
ouvir de Olavo Bilac um comentrio a respeito do poeta morto,
entretanto, nunca ouvira falar em Augusto dos Anjos. O narrador
quis recitar para Bilac
um dos poemas de Augusto dos Anjos, mas no conse-guiria imit-lo
em sua frieza e paixo simultneas. Ainda assim inicia a declamao de
Versos ntimos (que ser-viu de inspirao para o ttulo deste
romance):
Vs?! Ningum assistiu ao formidvelEnterro de tua ltima
quimera.Somente a ingratido esta pantera Foi tua companheira
inseparvel!
Acostuma-te lama que te espera!O homem que, nesta terra
miservel,Mora entre feras, sente inevitvelNecessidade de tambm ser
fera.
Toma um fsforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, a vspera do
escarro,A mo que afaga a mesma que apedreja.
Se a algum causa ainda pena a tua chaga,Apedreja essa mo vil que
te afaga,Escarra nesta boca que te beija!
Aps a declamao do narrador, Olavo Bilac diz: Pois se quem morreu
o poeta que escreveu esses versos, ento no se perdeu grande
coisa.
Augusto dos Anjos morrera em Leopoldina, interior de Minas
Gerais, para onde fora dirigir um colgio, indi-cado pelo seu
cunhado. O narrador fica imaginando Au-gusto dos Anjos estendido
numa cama e sua mulher, Es-ther, chorando sobre o seu peito.
Antes de ir para Leopoldina, Augusto dos Anjos, que nascera em
um engenho na Paraba, fora, juntamente com sua mulher, Esther, para
o Rio de Janeiro, onde o ca-sal, sem condies financeiras, ficava
mudando de en-dereos constantemente, sempre em lugares pobres e
decadentes.
Usando do recurso do flash-back, o narrador comen-ta sobre os
encontros com Augusto dos Anjos:
Naquela tarde em que o visitei no sobrado, Augusto me pareceu um
homem mais sofrido, mais velho do que os vinte e alguns anos que
tinha na realidade. Vestia roupas ordinrias, embora elegantes;
conservava o ar de algum que vivia nas alturas e estava nesta terra
apenas descan-sando de suas viagens espirituais e das anormalidades
de seu pensamento (p. 17).
Quando longe de sua me, Augusto dos Anjos espe-rava por suas
notcias familiares sempre inquieto, com receio de que numa dessas
cartas viesse a notcia da
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morte de sua adorada me. Uma das caractersticas do poeta era
estar sempre voltado para o seu passado. Vale ressaltar que o
narrador e Augusto dos Anjos eram ami-gos desde crianas.
Augusto confidencia ao amigo a sua preocupao com a esposa Esther
(que abortara o primeiro filho do casal). Num desabafo, o poeta diz
ao narrador:
H em mim, no sei por que sortilgio de divindades malvadas, uma
tara negativa irremedivel para o desem-penho de umas tantas funes
especficas da ladinagem humana. O que eu encontro dentro de mim uma
coisa sem fundo, uma espcie aberratria de buraco na alma, e uma
noite muito grande e muito horrvel em que ando, a todo instante, a
topar comigo mesmo, espantado dos n-gulos de meu corpo e da
pertincia perseguidora de minha sombra.
Na verdade, o narrador amava Esther e no queria que ela tivesse
um filho mesmo que fosse de Augusto, o seu grande amigo.
A poesia de Augusto era marcada por um vocabul-rio bizarro, como
se pode observar no trecho a seguir:
[...] Ao contrrio do que pensam dele, era um homem
surpreendentemente bem-humorado, em sua essncia mais ntima. Ele
mesmo se tornava um demnio para es-crever seus versos e os tmulos,
os vermes, os esqueletos mrbidos, a noite funda, o poo, os lrios
secos, os sba-dos de infmias, os defuntos no cho frio, a mosca
debo-chada, as mos magras, a energmena grei dos brios da urbe, a
esttica fatal das paixes cegas, o rugir dos neur-nios, a
promiscuidade das adegas, as substncias txicas, a mandbula inchada
de um morftico de orelhas de um tamanho aberratrio, um sonho
inchado, podre, todos es-tes elementos da imaginao de Augusto no
passavam de gracejos infernais. E, de certa forma, juvenis (p.
26).
Neste romance, Ana Miranda relata fatos curiosos na vida de
grandes escritores da poca, como, por exem-plo, o duelo (que no
houve) entre Olavo Bilac, o poeta das estrelas, e Raul Pompeia, o
romancista de O Ateneu. Por questes polticas Bilac era prudentista
e Pom-peia era florianista , os dois, amigos pessoais, acabam se
desentendendo, chegando ao ponto de um possvel:
Bilac parecia ignorar os debates, mantendo-se acima das
ocorrncias fazia-se espantado e at ria dos comen-trios. Mas, uma
tarde, no Cailteau, estava a uma mesa bebendo com Pardal Mallet,
Paula Ney, Coelho Neto, Azevedo, Patrocnio e outros amigos quando
entrou Raul
Pompeia. Houve discusses, safanes, murros. Mais forte, Bilac
acertou o rosto de Raul que, sagrando, humilhado at o mais fundo de
seu ser, desafiou o adversrio para um duelo. Foi embora, e os
amigos tomaram o incidente como algo que seria brevemente
esquecido, pois sabiam que Raul era desfavorvel a essa maneira de
se limpar a honra (p. 63).
O duelo no se realizou, pois algum avisou a polcia. Raul Pompeia
queria outro encontro. A questo ultra-passava as razes pessoais,
invadindo o campo poltico. No havendo o duelo, Bilac no se
importou, ao contr-rio de Pompeia, que ficou cada vez mais
atormentado. Com a morte do marechal Floriano Peixoto, Pompeia
prestou-lhe uma homenagem em seu funeral. O jorna-lista, amigo de
Bilac, Lus Murat, que cobria jornalistica-mente o enterro, escreveu
no jornal A Notcia um arti-go, intitulado Um louco no cemitrio, em
que chamava Pompeia de covarde por no ter duelado com Bilac.
Tal-vez esse fato tenha contribudo para o seu suicdio, em 25 de
dezembro de 1895, com um tiro no corao, dei-xando escrito o
seguinte bilhete: Notcia e ao Brasil, declaro que sou um homem de
honra.
No captulo intitulado A triste dama das camlias, o narrador
comenta sobre Camila, sua comprovincia-na, que, em tratamento no
hospital no Rio de Janeiro, foge para a casa do narrador, sem dar
notcia nenhuma famlia, que, sem conseguir localiz-la, aps
percor-rer numerosos lugares, como hospitais, conventos,
ne-crotrios, desiste, julgando-a morta. Camila, ao saber da morte
de Augusto dos Anjos e da inteno do narrador encontrar-se com
Esther, no enterro do amigo, toma-da de grande cime, pois era
apaixonada por ele. Sobre a moa, assim descreve o narrador:
Camila delicada, introvertida, reflexiva; tem traos suaves; seu
corpo se arruna como se fosse uma casa aban-donada. Quando a
conheci, na Paraba, era uma menina excitvel, que vivia sob os
cuidados de pessoas por demais condescendentes. Sua introspeco
levava a um desenvol-vimento anormal de sua mente sensvel num corpo
fr-gil. Aos dezoito anos idade cuspiu sangue e descobriu-se que
estava tsica. A doena lhe afetou os ossos e as arti-culaes, tinha
dores persistentes e inchao; suas cordas vocais tambm foram
contaminadas e ela passou a falar com essa voz rouca. Emagreceu
mais de dez quilos em poucas semanas. Veio para o Rio de Janeiro;
internou-se num sanatrio para tsicos, sendo tratada com descanso
absoluto e regime de leite, ovos, frutas e verduras, exposi-o luz
solar e respirao de ar puro, quando escrevia um melanclico dirio
onde citava o Paraso a cada pgina.
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morre poucos meses depois de chegar cidade. O nar-rador,
seguindo para os funerais de Augusto, encontra a irm do poeta,
Francisca, indo para Leopoldina, sem sa-ber que o irmo havia
morrido. O narrador resolve no contar a ela a triste notcia,
deixando que os tios o fizes-sem quando ela desembarcasse.
Francisca era muito li-gada ao irmo, de tal maneira exagerada, que
causava certa admirao em certas pessoas, nem sempre posi-tiva:
Augusto me mandou muitas cartas do Rio de Janeiro, diz
Francisca, tambm de Leopoldina, at cair doente. Po-bre do meu irmo.
Eu bem lhe disse para no deixar a Pa-raba, se na provncia as coisas
so difceis, na metrpole ainda mais. (p. 140).
Espero que ele esteja me esperando na estao, com as faces
coradas, cheio de sade. Sim, ser dessa manei-ra. Voc sabe o quanto
ele gosta de mim. Ele sempre me perguntava, nas cartas, quando
estars aqui em minha companhia? Voc sabe que Augusto no pode viver
sem sua famlia. Ele escreveu: o humlimo lar em que estamos
absolutamente teu e de todos de nossa famlia. Escrevi para ele este
poema. Ser que meu irmo vai gostar?
Leio o papel que ela me estende, de linho, perfumado, com o
manuscrito de um poema ardente, um rondel de difcil lavor, dirigido
a um homem soberbamente sensvel com quem ela conversa nas noites de
insnia (p. 141).
Francisca e Augusto dormiam juntos, numa rede, abra-ados, s
escondidas dos pais. Apesar de saber disso, e dos longos passeios a
cavalo do casal de irmos, e dos ba-nhos que tomavam juntos, jamais
suspeitei de sentimen-tos incestuosos entre eles. Porm alguns anos
mais tarde encontrei casualmente na rua o doutor Ca, que me disse
ter srias suspeitas de que Augusto engravidara sua irm, quando
ainda moravam no engenho. Francisca teria feito um aborto (p.
142).
Na estao, os tios Bernardino e Alice recepcionam a sobrinha, com
a triste notcia da morte de Augusto, en-to ela acena negativamente
com a cabea, d um grito de dor, agarra os prprios cabelos, cai no
cho, desmaia-da. J sabe da morte de Augusto.
Apesar de estar h pouco tempo na cidade, Augus-to dos Anjos tem
um funeral digno de uma celebridade:
As janelas das casas e as portas das lojas se fecham, os
moradores e os comerciantes se juntam ao cortejo. H senhores de
sobrecasacas de l inglesa acompanhados de damas vestidas de seda ou
veludo, assim como famlias
Fez uma operao de pneumotrax. Em pouco tempo es-tava recuperada
e pde voltar vida normal, vindo pas-sar alguns dias comigo antes de
voltar para sua casa na Paraba (p. 87).
No entanto, Camila j estava em companhia do nar-rador h cerca de
dois anos. Apesar de ter-se recuperado da doena, Camila volta a
sentir os sintomas da tubercu-lose. Cada vez mais o narrador
sente-se angustiado com relao ao estado da moa e por,
principalmente, no poder retribuir o amor que ela nutria por
ele.
O narrador volta-se novamente para o passado de Augusto dos
Anjos. O poeta raqutico, como viria a ser conhecido, no consegue
licena de professor interino no Liceu da Paraba, vai para o Rio de
Janeiro, prometen-do nunca mais voltar a sua terra natal. As vrias
promes-sas de emprego no Rio de Janeiro no se concretizam e Augusto
no entendia por que isso acontecia com ele:
[...] Quase um ano depois de lutar, finalmente Augusto foi
nomeado professor de uma das turmas suplementares do Ginsio
Nacional; mas em carter interino, esperando outros empregos nos
estabelecimentos de ensino da cida-de, de acordo com as suas
modestas aspiraes.
Logo ficou desempregado novamente. Enquanto isso, peregrinava de
casa em casa dos alunos, ganhando um miservel pagamento; e tentava
vender aplices de segu-ro para o espanhol da Sul-Amrica, algo to
contrrio a seu temperamento que em poucas semanas desistiu. [...] A
morte era algo muito srio e intenso para que ele a mis-turasse com
o comrcio (p. 106).
Todos tratavam Augusto dos Anjos com indiferena, ningum lhe
estendia a mo, nem mesmo o narrador, que era o seu amigo.
Orgulhoso, Augusto dos Anjos no permitia que Esther trabalhasse,
preferindo, at mesmo, passar fome.
Talvez o aspecto de Augusto, excessivamente magro e escuro, seu
ar de morcego tsico, seu jeito diferente, sua fama de poeta
macabro, de comedor de sombras, seus apelidos de Doutor Tristeza e
Poeta Raqutico, sua imate-rialidade vivia decididamente em outras
esferas fosse a causa da desconfiana que sofria (p. 113).
Aps viver de maneira precria na cidade do Rio de Janeiro, dando
aulas particulares, mudando-se frequen-temente de casa, com sua
mulher e seus dois filhos, Au-gusto dos Anjos, tendo recebido um
convite do cunha-do para dirigir uma escola no interior mineiro,
muda-se com a famlia para Leopoldina. Entretanto, Augusto
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os olhos e o nariz deixando descoberta a boca plida , a cintura
fina, as mos alvssimas pousadas inertes nos braos da poltrona,
calma, aptica como se estivesse sob efeito de morfina, est Esther
(p. 183).
A edio de Eu, livro de Augusto dos Anjos, que fora custeada por
seu irmo, Odilon dos Anjos, acaba estoca-da no poro da casa, j
deteriorada pela umidade, no tendo como ser vendida, nem mesmo a
preo mdico, para a populao de Leopoldina.
O narrador, que permanecera na casa de Augusto, encontra Esther,
vestindo uma camisola nacarada, pare-cendo uma sonmbula, aps ter
sido medicada, pois ha-via passado por convulses:
[...] Fico esperando Esther voltar. Pressinto, todavia, que no
estou mais sozinho, algum sentou-se ao meu lado sem que eu
percebesse. Viro o rosto e vejo Augusto (p. 194).
Exausto da viagem, o narrador acaba adormecen-do numa poltrona e
tem um pesadelo com Augusto, no qual o poeta lhe pergunta se ele
estava apaixonado por Esther, mas no responde nada. Camila tambm
apare-ce no sonho e lhe esbofeteia o rosto, fazendo com que
desperte.
O narrador, numa praa de Leopoldina, encontra-se com o padre
Fiorentini, o mesmo que fizera o sermo no enterro de Augusto:
Sabe, meu filho, esta cidade est de luto, h um gran-de pranto em
Leopoldina, como se lhe tivessem saqueado toda a prata e ouro e os
vasos preciosos e os tesouros es-condidos. Os prncipes e os ancios
gemem, as virgens e os jovens perderam as foras, a formosura das
mulheres desapareceu. Como no luto de Israel, no Primeiro Livro dos
Macabeus. Os homens se entregam ao pranto e as mulhe-res,
assentadas sobre seu leito, derramam lgrimas. Esta-mos perplexos.
Aqui, todos nos sentimos culpados pela morte do poeta.
Ah, mas que tolice.Sim, uma tolice, mas os coraes so tolos. O
povo no
deixa a casa da viva, todos querem dar-lhe afeto, querem ter a
iluso de que o poeta no morreu. (p. 209-210).
Mesmo em Leopoldina, o narrador no consegue deixar de pensar em
Camila, a mancha de sangue se es-palhando na bacia se repete
continuamente em minha lembrana.
Em uma visita a Esther, o narrador se diz arrependi-do de no ter
feito uma visita a Augusto to logo ficou sabendo de sua doena.
Esther, mesmo dizendo que
descalas, gente com roupas remendadas; velhos, jovens, meninos e
meninas, em uniformes escolares, carregando pesadas pastas de
material nas mos, guiados por pro-fessores. H policiais fardados,
operrios das fbricas com marmitas nas mos, o barbeiro em seu
avental, um alei-jado sendo empurrado num carrinho. No final do
cortejo, seges com cavalos negros e cocheiros de cartola levam a
gente mais prspera da cidade; devem ser milionrios do leite,
fazendeiros, donos de engenho, de escolas, de plan-taes, de gado. A
reboque, carroas transportam campo-neses com suas enxadas e foices.
Pessoas choram (p. 163-164).
At mesmo, a uma certa distncia, as prostitutas da cidade
acompanharam o funeral. Talvez nem mesmo saibam que Augusto
escreveu um longo e belo poema para as meretrizes.
[...] Especulo se nas madrugadas frias de insnia ele foi ao
rendez-vous de Leopoldina, se essas mulheres o conhe-ciam, se o
ouviram recitar seus versos macabros, se para ele ganiam
instintivamente de luxria, se ele as excitava com o aoite do
incndio que lhes inflama a lngua espria, se ele se entregou aos
tcitos apelos das carnes e dos cabelos, a toda a sensualidade
tempestuosa dos apetites brbaros do sexo. O sexo no combina com
ele, apenas o sexo te-rico pode ser relacionado a sua maneira de
ser. Imagino--o na cama com uma prostituta. Diante do esplendoroso
corpo alvo, nu, ele declama seus Versos a um coveiro. A mulher o
adora (p. 165).
Augusto dos Anjos foi enterrado e, na lpide de n-mero 149, os
seguintes dizeres: Augusto dos Anjos, poeta paraibano.
O narrador, em Leopoldina, cidade onde Augusto fora enterrado,
recorda-se da grande amizade que tra-vara com o poeta:
Seus alunos sempre aprendiam a matria e melhora-vam na escola.
Augusto tinha o mais perfeito dom para professor que jamais vi em
minha vida. Foi ele quem, quando ainda era um menino de seis anos,
me ensinou a ler e escrever um monte de palavras, usando figuras de
ja-vali, tatupeba, gavio-de-penacho (p. 181).
Ao encontrar Esther, a viva de Augusto dos Anjos, o narrador
assim a descreve:
Sentada numa poltrona, toda de negro, uma roupa sem rendas ou
drapeados, sem franzidos ou recortes, abotoada at o queixo, com um
vu que desce do chapu e sombreia
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sentimentos, e sua poesia dotada de uma subjetividade filosfica
(p. 234).
Ainda sobre a poesia de Augusto dos Anjos, o nar-rador comenta
sobre o ideal parnasiano, isto , a arte pela arte:
No existe parnasianismo, insisto, para implicar com o professor,
embora concorde com ele, odiando sua erudi-o, sua eloquncia e ao
mesmo tempo querendo me livrar dele a fim de ir para o lado de
Esther. O que h uma fe-bre de perfeio, a sagrada batalha da forma a
servio da ideia e da concepo. (p. 235).
Mas a verdade que o poeta inclassificvel, como se pode notar
neste trecho, espcie de resumo da origi-nal produo potica de
Augusto dos Anjos:
Augusto partia do real e mergulhava no ideal. Nessa as-censo,
tinha seu negror, sua sinfonia, sua alma tocada de luz. A poesia de
Augusto no simbolista, nem cientificis-ta, nem parnasiana; feita de
carne, de sangue, de ossos, de sopros da morte; ele, integralmente,
na nudez de sua sinceridade existencial, no clamor de suas vibraes
nervo-sas, na apoteose de seu sentir, nos alentos e desalentos de
seu espirito. Seus poemas so lminas de ao polido que refletem seu
rosto descarnado.
Os que se filiam a escolas so mentirosos, e Augusto ja-mais
mentiu. Quanto mais conflagrados os tempos, mais ele era sincero.
Revelou seu tormento cruciante, sua amar-gura, seu horror, seus
suplcios, seus cancros, seus venenos, sua sofreguido intelectual,
sem temer despertar piedade ou repulsa. Professava a f de um
monista, vasculhava as maravilhas da vida, os enigmas do universo,
a origem das espcies, sentia em si as dores do mundo, o nascimento
e o desvanecimento da matria. Que escola esta? (p. 237).
O narrador impressiona Esther, que era uma mulher que dava mais
importncia inteligncia do que ao di-nheiro, apesar de o narrador
ser um homem de posses.
[...] Certa vez Camila me disse que amo Esther apenas porque foi
a mulher escolhida por Augusto, numa espcie de amor vicrio. Talvez
seja verdade, sempre h algum mo-tivo que nos leva a amar esta e no
aquela mulher (p. 252).
O narrador retorna ao Rio de Janeiro, decidido a pe-dir perdo a
Camila e fazer tudo o que ela lhe pedisse. Queria cur-la da doena,
esperando que essa fosse a sua redeno.
todos os recursos da medicina foram usados para os cui-dados com
Augusto, diz que no foi possvel livr-lo da congesto pulmonar que
degenerou em uma pneumo-nia, mas nada tinha de tuberculose.
[...] Um dia antes, o Augusto chamou-me ao quarto e despediu-se
de mim, dizendo que mandasse suas lgrimas para Dona Mocinha. Pediu
que mandasse lembranas a seus amigos do Rio. Disse-me para tratar
bem dos nossos filhos, para dar lembranas s meninas do Grupo.
Pediu--me que no ficasse aqui, seno a Glria e o Guilherme morriam
de pneumonia. Mandou que eu voltasse para o Norte. Recomendou-me
que guardasse com cuidado to-dos os versos e os enviasse para serem
editados no Rio.
H muitos versos?Sim, creio que so muitos, ainda no tive coragem
para
olhar o ba com os manuscritos. Augusto permaneceu consciente at
vinte minutos antes de... Tinha uma calma e uma resignao que
admirava. Pediu um espelho. Olhou seu rosto magro e disse: esta
centelha nunca se apagar. Recebeu a extrema-uno. E morreu. Quando
pediu o espe-lho, no queria ver seu rosto, mas o da Morte (p.
223-224).
Em mais uma visita do narrador a Esther, encontra na casa o
professor do Ginsio Leopoldinense, que tam-bm era poeta, e viera do
Amazonas. Sou o maior ad-mirador da poesia de Augusto dos Anjos,
ele diz. E olha para Esther, com reverncia.
Sentindo cimes, o narrador sente o cho desapare-cer sob os ps e
cai de quatro feito um cachorro. Quan-do consegue se levantar,
percebe que sua mo san-grava. Esther cuida de sua ferida, quando o
professor, tambm com ar enciumado, se aproxima e Esther, apon-tando
para o narrador, diz ser ele como um irmo de Au-gusto.
O narrador, ao ser indagado pelo professor sobre a poesia de
Augusto dos Anjos, irrita-se, mas, ao mesmo tempo, d uma aula sobre
o ecletismo do amigo poeta:
[...] falo sobre minha teoria de que Augusto jamais re-presentou
alguma escola literria. Como poderia ser sim-bolista, se era adepto
da racionalidade? Como poderia ser romntico, se era to realista? O
professor diz que os temas de Augusto so romnticos, huguianos; digo
que nem to-dos, na verdade apenas alguns, o que no suficiente para
enquadr-lo no Romantismo. Seus decasslabos so cons-trudos da
maneira parnasiana, ele diz. Mas sua morbidez egostica exatamente
oposta salutar impessoalidade parnasiana. Tampouco a palavra
cientificista suficiente para explicar Augusto, uma vez que ele
insinua todos os
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casamento de Esther. Camila se recupera da tuberculo-se, apesar
de viver sob cuidados especiais. Vive com o narrador, fazendo tudo
para lhe agradar. Sobre Augusto dos Anjos, a surpresa do narrador
quando ele abre uma folha do jornal:
Hoje abro o Jornal do Commercio e leio que o livro de Augusto
foi reeditado e para surpresa de todos a tiragem de trs mil
exemplares esgotou-se em quatro dias. Trata-ram de imprimir mais
trs mil que foram comprados em um par de dias. Em pouco tempo o Eu
chega a vender cin-quenta mil exemplares. Torna-se o mais espantoso
suces-so de livraria dos ltimos tempos! Impossvel no admirar certas
composies! Um talento superior! A obra de um ourives louco! Mdicos,
advogados, tilbureiros, cantantes, coveiros, alunas dos cursos de
declamao, putas, poe-tas, gente de diversas classes corre aos
balces para ten-tar compreender a poesia insondvel de Augusto.
Jogam sobre ele as lantejoulas efmeras que brilham nas culmi-nncias
das glrias, que ele disse desprezar. De nada mais adianta. Augusto
venceu, mas no pde saber disso, tar-de demais (p. 284).
[...] Espero um gesto de raiva, uma palavra de ressen-timento,
mas ao me ver seu rosto se ilumina, ela me olha com doura e
sorri.
No se aproxime mais, diz.Seguro sua mo. Camila retira.No sei
como pude deixar voc aqui, sozinha. Quem
o mdico que est tratando de voc?No h nenhum mdico.Por que no
mandou chamarem um mdico?Deixe-me morrer, ela diz.Voc vai ficar
boa, como da outra vez. Vou lev-la para
o sanatrio.Tarde demais.No me deixe, Camila.Tenho vontade de
chorar, todavia penso que choraria
mais por mim mesmo, por minha miservel alma, e me controlo.
Camila adormece (p. 266).
Camila se restabelece, depois de passar uns tempos num sanatrio.
Esther se casa com o professor do Gin-sio Leopoldinense, mudando-se
o casal para Ub, pois, apesar de nove anos decorridos, muitos
condenavam o
1 1-Leia o trecho a seguir, retirado de A ltima quime-ra: A
tribo dos trarsas, entre Talifet eTungubutu, obriga as raparigas a
engolirem imensas panelas de manteiga, para que fiquem gordas. No
trecho, fica evidente a figu-ra de linguagem conhecida como:a)
metfora.b) hiprbole.c) metonmia.d) catacrese.e) hiprbato.
2 Segundo o narrador, Augusto dos Anjos era um po-eta
inclassificvel. Explique.
3 Todos os temas abaixo pertencem poesia de Au-gusto dos Anjos,
presentes no romance A ltima quime-ra, exceto:a) pessimismo.b)
hipocrisia.c) decomposio da matria.d) idealizao do amor.e)
melancolia.
4 Leia o soneto Versos ntimos, de Augusto dos An-jos, e
responda:
Vs?! Ningum assistiu ao formidvelEnterro de tua ltima
quimera.Somente a ingratido esta pantera Foi tua companheira
inseparvel!
Acostuma-te lama que te espera!O homem que, nesta terra
miservel,Mora entre feras, sente inevitvelNecessidade de tambm ser
fera.
Toma um fsforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, a vspera do
escarro,A mo que afaga a mesma que apedreja.
Se a algum causa ainda pena a tua chaga,Apedreja essa mo vil que
te afaga,Escarra nesta boca que te beija!
a) Qual o tema central do poema?b) Faa a metrificao do ltimo
verso e d a medida do
soneto.
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6 Augusto dos Anjos ficou conhecido como:a) Poeta Raqutico ou
Doutor Tristeza.b) Poeta Esquizofrnico ou Doutor Loucura.c) Poeta
Solitrio ou Doutor Melancolia.d) Poeta Bizarro ou Doutor Bactria.e)
Poeta dos Vermes ou Doutor Escatolgico.
c) Qual o esquema de rimas do soneto?d) Qual a concluso do
eulrico?
5 Segundo a autora, em A ltima quimera, os envolvi-dos no duelo
(que acabou no acontecendo), por ques-tes ideolgicas, foram:a) Lus
Murat e Alberto de Oliveira.b) Olavo Bilac e Raul Pompeia.c) Alusio
Azevedo e Rui Barbosa.d) Raimundo Correia e Arthur Azevedo.e) Emlio
de Meneses e Castro Alves.
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1. c
2. Augusto dos Anjos dono de uma poesia original. Considerado um
poeta ecltico, recebeu influncia do Realis-mo, do Naturalismo, do
Parnasianismo, do Simbolismo, apresentando, at mesmo,
caractersticas modernistas.
3. d
4. a) A hipocrisia do homem.b)
Es-ca-rra-nes-ta-bo-ca-que-te-bei(ja) decasslabo.c) ABBA BAAB CCD
EED.d) Segundo o eulrico o homem no deve confiar em seu
semelhante.
5. b
6. a