5/10/2018 AtragdiaGrega-Romilly-slidepdf.com http://slidepdf.com/reader/full/a-tragedia-grega-romilly 1/33 Terinventado a tragedfa e um glorioso :'esse rnetno pertenee aos gregos. Ha, de fato, algo de fascinante no _, ...... '"....... :onheceu esse genero, pois screvemos tragedfas, passados Ja 25 rragedias sao eseritas por toda parte, no 'odo. Mais alnda" continuamos, de fcmn.. .... M :empos, a tam ar emprestado dos grE'go:5l!iI! :emas e s eus p er sonag ens : a inda iteare: e Antigonas. . Nao se trata slmplesmente de fidj"'I/(1afJ~ )assado.brilhante. E evidente que a Irr~AI:lIIII-; Ta ged ia grega se prende a 5lgnificado, a riqueza de pensamento que M8II"_ ' wt or es s ou ber am i mp ri mi r- Ihe. A 1"r", .... """~... " ~presentava, par melo da linguagem ,.-finADII~,oiP: ~cessfvel da emocao, uma r efl ex ao ~omem. Sem duvida, e por /550 que, ~e crise e de renovac;ao como a nossa, ~~cessidade de um retorno aque/a forma ~eneJo. Se 05gregos inventaram a tragedia, n fato de que, entre uma tragedia de L.:;JlJUII1I' ~agediade Racine, as diferenr;as sao r..rl"',fiI••,rl» tontexto das representac;6es Ja nao e 0 rem ea mesma a estrutura das per;as; Dublieopode ser competeve'. Mor1Jr/1COlJ-Si~. fe tudo, a es pi ri to i nt er ior - c ada eo oc » OU Da{sdeo uma interpretac;ao diferente ao ragico)niCial. Mas e nas obras gregas que rraduz com metot vigor, visto que nelas ele :,m a n uaez or rgl nal ~.- - -- - BlbllotKll C en tr al • Un. II I t EDfTORA BE1 UnB " JACQUELINE DE ROMILLY -, ,
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munho nao apenas daquilo que foi a tragedia grega, mas tambern
da sua historia e sua evolucao. Uma nesga de sombra permanece,
em ambos os lados das fronteiras que encerram a vida do genero,
no seu grau mais elevado: essas fronteiras formam uma especie de
limiar, que nao pode ser transposto sem cairmos naquilo que ainda
nao e, ou naquilo que j a nao e mais, a tragedia em si, digna desse
nome. Entre as dois lirn ites, a "ainda nao" e 0 '~j nao mais", ur n
impulso poderoso arrebata a tragedia num movirnento de renova-
~ao que vai se definindo ana a ana. Sob muitos aspectos, e mais
ampla e mais profunda a diferenca entre Esquilo e Euripides do
que a que existe entre Euripides e Racine.
Essa renovacao interna apresenta dois aspectos complernenta-
res: na verdade, 0 genero literario evolui, seus meios se enrique-
cern, suas form as de expressao variam, e e possivel escrever uma
historia da tragedia que se apresente como alga continuo, aparen-
temente desvinculado da vida cia cidade e do temperamento dosseus autores; por outro lado, no entanto, ocorre que esses oitenta
anos, que vao da vit6ria de Salamina ate a derrota de 404, assina-
lam em todos as dornfnios uma pujanca intelectual e uma evolucao
moral absolutamente inigualaveis .
.A vitoria de Salamina tinha sido conquistada par uma demo-
cracra nova, e par homens ainda completamente imbuidos do ensi-
namento pia e altamente virtuoso de S610n . Depois disso, a
democracia conheceu rapida evolucao. Atenas assistiu a chegada
dos sofistas, mestres do pensamento que eram, antes de mais nada
mestres da ret6ric~, e que colocavam tudo em questao, lancando,
no lugar das doutrinas antigas, mil ideias novas. Por tim, depois doorgulho de haver afirmado gloriosamente seu herofsmo, Atenas
conheceu as sofrin.lent~s de uma guerra prolongada, de uma guerra
entre gregos. 0 clima intelectual e moral dos iiltimos anos do se-
culo e tao feeundo em obras e reflexoes como em seu infcio, mas e ,ao ,mesmo tempo, profundamente diferente. A tragedia reflete, ano
apos ana, esta transformacao; vive dela; dela se nutre, e expande-se
em obras-primas de outra ordem,
Existe, . evidentemente, uma relacao entre a evolucao pura-
mente exterior das formas Iiterarias e a renovacao das ideias e dos
senti.m~ntos. A flexibilidade dos meios explica-se pelo desejo de
expnrrur a1go mais, e 0 deslocarnento continuo dos interesses acur-
re ta um a evo l uciio iguul: 1 1 (: 1 1le co ntin ua n as f (\rn 1< i~ d e e x p re s< :io .
E m (Jutras pala vrus, a aven tura refletida pela Iii~ ('J[ia lb tr "g:~di<t
em Ar ena s e a m esm a que po de se r o bscrvada n o n Ive l das estru tu -
ras 1 i te r ar i a s ou no do s significados e d a i n sp ir ac ii o filosofica.
Somente ap6s te rm o s aco m pan hado essa evo l u~iio dupla, n o
seu impulse interior, e qu e podemos te r a esperanca de cornpreen -de r aquila q ue c o ns ti tu i 0 s eu p ri n ci pi o cornum, e e nq ua dra r d es sa
forma - para alem do genera tragico e seus autores - aquila que
encarna a real espfrito das suas o bras, islO e . aquila que, depo is
delas. jamais deixou de ser chamado 0 tragico.
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se celebrava na primavera; mas havia tarnbern concursos de trage-
dia na festa das leneanas, que ocorria no final de dezernbro. A pro-
pria representacilo inseria-se, portanto, num contexte
eminentemente religioso, sendo acompanhada de procissoes e sa-
crificios.~or outro lado, 0 teatro em que ela acontecia, cujas ruinas
ainda hoje sao visitadas, foi reconstruido mais de urna vez, mas foi
sempre charnado 0 "teatro de Dioniso"; com urn magnifico trono
de pedra para 0 sacerdote de Dioniso e urn altar para essa divinda-
de no centro, onde se apresentava 0 cora. Este coro, par si s6, evo-
cava 0 lirismo religioso, E as mascaras que coristas e atores
portavarn levam-nos facilmente a pensar nas festas rituais do tipo
arcaico.l
T u d o isso revela uma origem ligada ao culto, e pode perfeita-
mente conciliar-se com 0 que diz, [Arist6teles (EQe t jca ,_ .1_:1:49~) : .
segundo eie, a tragedia teria nascido de imp[QyiSi!~es_,_Elateria se
Qri-£;Lnadoe formas liricas, como 0 ditirambo (canto coral em lou-
vor a Dj_~l_!_iso).s~ri_~~.~?~~_a_~<?_~~dil:!_,~_~Q1_Q_liasftod e u m Iit'?J
[:
Desse modo, a inspiracao fortemente religiosa dos grandes
autores de tragedias apresenta-se como a extensao de urn impulso
nicial. De fato, nao encontramos em suas obras mencao especial a
Dioniso, 0deus do vinho e das procissoes er6ticas, nem mesmo ao
deusque rnorre e renasce com a vegetacao; porern, deparamos-nos
sempre com uma certa presenca do sagrado, que se reflete no pr6-
prio jogo de vida e morte.
Todavia, quando falamos de uma festa religiosa em Atenas, e
preciso cuidado para nao imaginar uma separacao freqtiente nosnossos Estados modemos. A festa de Dioniso era tambem umafesta nacional.
Ir ao teatro, para os gregos, era muito diferente daquilo que fa-zernos hoje em dia - escolhendo 0 dia e 0 espetaculo de preferen-cia, e assistindo a uma representacao que se repete todos os dias,
durante 0 ano todo{!lavia duas festas anuais onde se encenavam, tragedias, Cada festa contava com urn concurso, que durava tresdias, e a cada dia urn autor selecionado com muita antecedenciaapresentava, sucessivamente, tres tragedias, A representacao eraprevista e organizada sob 0 patrocfnio do Estado, pois era urn dosaltos magistrados da cidade quem se incumbia de escolher o~
poetas e de selecionar as cidadaos ricos, encarregados de cobrirJ
A tragedia grega 15
ftadas as despesas. Finalmente, no dia da representacao, todo 0
povo era convidado a comparecer ao espetaculo: a partir da epocade Pericles, os cidadaos pobres podiam ate receber urn pequenoabono, para esse fim.
Consequentemente, esse espetaculo adquiriu as caracterfsticas
de uma manifestacao nacional. 0 fato explica com clareza certosaspectos da inspiracao dos autores de tragedia, Eles se dirigiam
sempre a urn grande publico, reunido numa ocasiao solene: e nor-
mal que eles quisessem atingi-Io e interessa-Io. Portanto, eles es-
creviam na qualidade de cidadaos que se dirigem a cidadaos.
Esse aspecto da representacao tambem tern a ver com as ori-
gens da tragedia: e muito provavel que a tragedia so tenha podido
nascer quando aquelas improvisacoes religiosas das quais ela surgi-
ria foram reorganizadas sob 0 comando _deUIp.aautoridade polftica,
com apoio do povo.~uma caractenstica realmente notavel, 0 nas-
cimento da tragedia esta bastante ligado a existencia da tirania - ou
melhor, de urn regime forte sustentado pelo povo, contra a aristo-cracia. Os raros textos sabre os quais podemos basear-nos, na bus-
ca das orig_ens anteriores _ _ tragedia _atic_!l,conduzem sempre a
ti~aEosJUina Ienda, atribufdaa Sol6n, con~a que a prim,eira repre-
sentacao tragica seria de autoria do.poeta Arion.lOra, Arion vivia
em Corinto, sob 0 reinado do tirano Periandro (do final do seculo
VII ao comeco do seculo VI a.C.). 0 primeiro caso em que Hero-
doto cita os coros "tragicos" e 0 de__icione, onde coros cantavam
as desgracas de Adrasto que foram ''festitufdas a Dioniso";2 ora,
quem as restituiu a Dioniso foi Clfstenes, tirano dessa cidade (inf-
cio do seculo VI). Sem diivida, temos ai somente urn esboco detragedia, Mas e dessa forma que nasceu a verdadeira tragedia. De-
pois dessas tentati vas hesitantes, em diversos pontos do Pelopone-
so, urn bela dia surge a tragedia na Atica: devem ter existido
alguns primeiros ensaios anteriores, mas houve urn infcio oficial,
que e 0 ate do nascimento da tragedia~lre 536 e - 5 : 3 3 ~ T~spioproduziu, pela primeira vez, uma tragedia para a grande festa dio-
I
cr. Jean Diacre, texto citado em Rhe , ( ( !! . sches Museum, 1908. p. 150, e aSouda.
2 cr. Her6doto, V, 67.
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nisia~3Ora, tratava-se da epoca em 'We reinava em Atenas 0 tirano
Pisistrato, 0unico que ela conheceu.J
Essa data tern para nos algo de ernocionante: nenhum genero
literario possui urn registro civil Hioprecise. E nao se conhece ou-
tra forma de expressao que teoha permitido cerimenias como as
que aconteceram na Grecia, M alguns anos, por ocasiao da cele-bra~ao dos 2.500 anos da tragedia,
Ao mesmo tempo, alem da precisao destas origens, a data des-
perta, por si 56 , algum interesse.
Tendo ingressado na vida ateniense em virtude de uma decisao
ficial , e inserindo-se em uma polfti .ca de expansao popular, a tra-
& l i a apresenta-se, desde 0priocipio,assOciada a atividade cfvica.
ste la~o s6 podia estreitar-se ainda mais no momento em que 0
povo, reunido no teatro, se tomava arbitro dos seus proprios desti-
nos. Ele explica a liga~ao do genero tragico com a expansao polfti-
ca. Explica tambem 0 lugar ocupado, nas tragedias gregas, pelos
grandes problemas nacionais da guerra e da paz, da justica e docivismo. Pela importancia que os grandes poetas conferem a esses
problemas, eles se coiocam, mais urna vez, como a extensao de urn
impulse inieial.
Entre estes dois aspectos da tragedia existe, ademais, urna re-
ferencia a sua origem. Pisfstrato e , em certo seotido, Dioniso - °tirano ateniense havia desenvolvido 0 culto a essa divindade, Ele
ergueu, aos pes da Acr6pole, urn templo a Dioniso de Eleuterio, e
instituiu em sua honra as fest as dionisias urbanas, que seriam
aquelas da tragedia, 0 fato de que, sob seu reioado, a tragedia te-
nha integrado a ceria do culto a esse deus simboliza, portanto, auniao dos dois grandes patrocinadores daquele nascimento: Dioni-
so e Atena.
Surgern assim dais pontos de partida gerninados, cuja combi-
na~ao parece ter side essencial para 0 nascimento da tragedia, In-
felizmente, isto nao signifiea que nos sejam c1aramente revelados
nem a parte que coube a urn e a outro nessa combinacao, nem a
forma em que eta ocorreu. Alem disso, entre as improvisacoes reli-
giosas iniciais e a representacao oficial, a unica que conhecernos,
faltam-nos os elos de transicao; devemos limitar-nos as hipoteses, e
as modaIidades envolvem-se no rnisterio.
Tracos do culto e da epopeia
p_m1amOl i jnjcialroente desta paJavra' a traghlia, qlle signjfiQ!_
"0 canto do bode" como interpretar esse nome? E0qne Cazer com?
r: A hip6tese majs djfundjda consjste em jrlen1ificar esse bode
:' com os satir~s. nonnalmente assodados ao cuho de Dioniso, e
aceitar as duas.indicaIJOes. fejtas par Arist6teles, que jnjcjalmeme,
na Pq! ( i ca . . . ( 1 449 . a~parece atribuir a tragedja aos autores de<iitjrambos (obms corals execl!tadas. sobretudp, em han Ta a Diooi-
jQ); e Que. mais ad.iante, em 1449 a 20 espeeifica: "A tragedia to-
mau aleoto, abaudonando as f;ibulas curtas e a liniya~ero diyertida~t.~u~, origem saurica. e aos pcmcos revediu-se de majesta-
de". Teriamos entjio para a tragMia !lma origem muito pr6xjmti
da eom¢dja' handos de fiejs a Djoo;so represenrando sa.tiros, cJijg
aspecto Quroupagem lembrariam Qbode
Essa hipotese e coerente e. sob certos aspectos, simpatica. Noentanto, ela apresenta duas dificuldades. A primeira e de ordemtecnica: 0 fato de que os satiros jamais foram identificados CQmos
bodes. Logo, torna-se necessario encontrar uma explicacao. E se
apelarmos para a lascfvia, comum a uns e a outros, livramo-nos da
primeira dificuldade para agravar a segunda - a de que uma geneseassim concebida valeria mais para 0drama satfrico que para a tra-
gedia, Nada nos permite irnagioar que essas cantorias de satires,
mais au menos lascivas, poderiam dar origem a tragedia, visto queesta nao era absolutamente lasciva e nao comportava qualquer tra-
co dos satires.
E essa a razao pela qual, desde a Antiguidade, alguns preferi-
ram interpretar de outra maneira a palavra tragedi~dmi.tiarn..QW!....
o bode era.~~CQmpensa oferec;da 30 melbor partlclpan1e,4 QlJ en-
,7}/ ./
Cf. marmore de Paros: I G XU, 5, I. 444 e Charon de Lampsaque, em
Jean Diacre, cf, acima,
4 Cf. marmore de Paros, a propos ito de Tespio e Eusebio, Chronique,
Olympiade 47.2; tambem Horacio, Ars Poetica, 220.
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tantQpara a~t[agedia Quanta para d'drama,.sJl!!ric:o:,6qlle~ao,g~!1_e;r9S
paraleloi, mas de jnspiradio inteiramente d~~_tm_~l!1~~santerpreta-.
~Q _~ui 0 grande menta de resptilar ..!l 4if~r~a entre os dais
gffieros, e de G9Awair diretamente aqui lo . _QJ, I econs ti tu i a originali-
dade intrinseca ao g~nero tragico. EntretantQ,J!'.1>Qnaosignifica que
se resoJyem tOOasas ditk,d<:l~Q~s.Uma delas, evidentemente, e 0
tato de esta interpreta~aG ignorar:.uma. pgme_~o testemunho de
Arist6teles mlma area nnde os testemunhos j a _ n s i i _ Q _ ~ DlJmemJ:ao.
rednzido antra dificllJdade e que a itttelJlret~S'_i!()~_.a_pQiajnteira~mente no sentjdo atribuido 30 sacrificio do .QQde. ._Qm, apesar de
alguns exemplos bastaote notaveis. 0 culto~Dioniso aparece ~~ii~"Jl\ais ligado aos cahritos e a s co~as que ao nossomrerriJii(Ie~-
Qualquer que seja a solucao, de todo modo, permanece
abrupta a passagem entre esses ritos primitivos e a forma literaria
na qual desembocaram. Em urn caso, e preciso imaginar uma mu-
danca profunda de tom e de orientacao; no outro, a evolucao e me-
nos ilogica, mas 0 caminho a ser percorrido e estranhamente longo.
o fato e que essas festas rituais, independentemente do cami-
nbo tornado, derivam mais ou menos da sociologia, enquanto 0
nascimento da tragedia permanece urn acontecimento iinico, sem
equivalente em nenhum outro pais e em nenhuma outra epoca, Ecerto que os improvisos de pastores ocorrem na cultura de muitos
povos, e podem ter sido feitas cornparacoes sugestivas com a tra-
gedia. Mas os pastores, padres e camponeses nao inventaram a tra-
5 Cf. Les etudes classiques, 1964, pp. 97-129.
6 Pratinas de Phlionte teria trazido 0 drama satfricopara Arenas, no infciodo seculoV.
7 0 autor cita quatro exemplos e insiste principalmente em dois epftetosdeDioniso: DionysosAigobolos (que bate nas cabras) e Dionysos Melanai-gis (da cabra negra). Ficartamos evidentemente bern mais satisfeitos se apalavra empregada fosse tragos.
A tragedia grega 19
gedia, Nenhuma das hip6teses levantadas sobre a origem da trage-
dia - das piores a s melhores, mesmo que se provem veridic as - nos
fornece a chave do misterio .
. N a verdade, 0 genero liter.irio chamado tragedia nao vode s~
sxplicado a nao ser em termos literarios.8Uma vez que as tragedias
que foram cQllSIDad~...!l~o falam nem de bodes nem de satires epreciso entao adrnitir que ~eu~-aii~~-~t~-~~~nci~T~'i~procede n ~ mdesse culto, nem desses divertimentos. Estes podem ter proporcio-
Dado a ocasiao; podem ter inspirado essa mistura de cantos e dialo-
gos entre personagens fantasiados, representando uma aifao rnftica
situada fora do tempo; podem ilustrar uma fase mais religiosa, mas
nada alern diSSO.~ tragMia, como ~enero_jjterario, surgiu somente
mente a procurar a subsmncia das suas representac5es Dum espaifo
estranho ao domfnjo.dessa diriru!ade.:J_
A passagem em que Her6dot~-fara de Arion evoca representa-
~oes que ilustram as desgracas de Adrasto, urn dos her6is ligados
ao cicIo de Tebas. Clistenes, diz Her6doto, restituiu os coros em
louvor a Dioniso. Isto quer dizer que ele fizera de Dioniso 0 her6i
da representacao em si? Permitimo-nos duvidar disso. Clfstenes
pode sirnplesmente ter associado 0 conjunto da festa ao culto a Di-
oniso. Uma coisa, em todo caso, e certaG tragedia somente adqui-
riu existencia literaria a partir do momento em que ela se inspirou,
e de maneira ampla e direta, nos fatos de que ja se ocupava a epo-
peia.lfrata-se aqui de urn terceiro elemento, como urn corpo estra-
nho ao culto a Dioniso. Urn conhecido proverbio dizia, em tom decrit ica ou espanto: "Af nao ha nada que diga respeito a Dioniso"."
[ A epopeia e a tragedia tratam, na verdade, dos mesmos as-
suntos)Existiram, por certo, algumas pecas relativas aos mitos de
Dioniso (As bacantes, de Euripides, sao 0 tinico exemplo); ha tam-
bern algumas pecas relativas a fatos marcantes da hist6ria contem-
iII
8 cr. G. F.Else, The origin and early form of Greek tragedy, Martin Clas-sical Lectures, XX. 1965, p. 31.
9 cr. Plutarco, Questoes de banquetes, 615 a, Zenobio, V, 40, e a Souda.Esta cens~ra e dirigida a diversos autores de tragedias, entre os quaisTespio e Esquilo,
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BIBL IOTECAtragedia grega 2726 Jacqueline de Romilly
Ocoro
Esse hahjto deriya do fata de que jnjcialmente Q..cO[Q detinha
urn papel prepooderante no desenyolvimento da Iragedjj!. Ele re-
_mesentava pessoas estreitamente interessadas na a}ao em cu~o_:_E_
QS seus CiAtOi OCllpayam11mDlimem consideni.vel de versos.
Assim, 0 futuro dos ancioes que cornpoem a coro de Os per-
sas, de Esquilo, depende diretamente do sucesso ou da rufna do seusoberano. E por eles mesrnos que eles temem, e sobre seu pr6priofuturo que eles se perguntarn, pais 0 destino do seu pais depende
do destino do exercito, Da mesma forma, em Os sere contra Tebas,
a coro e cornposto de mulheres da cidade, que temem todo 0 tempo
urn desastre para sua patria, e incessantemente evocam a atmosfera
de uma cidade pilhada e saqueada; elas tern__! 1 _~~~~o__pe)1s,ar_o que
as espe_ra,nQ[uturo reservado asjnulheres - "viiivas de defensores,
af, jovens e ve lhas it o mesmo tempo - arrastadas pelos cabelos,
como eguas ..." (326-329). Eteocles, seu rei, repreende-as e exorta-
as a calma, mas etas nao conseguem controlar-se:
ficavam, a novas curiosidades que surgiam. De 472 a 405, ele so-
freu a efeito de impulsos multiples que, combinados, resultararn
numa evolucao quase contfnua.
[
Em particular, a importancia relativa dos dois elementos da
tragedia - a~ao dramatica e cora Ifrico - modificou-se aos poueos,
a ponto de inverter-se. Esta alteracao, que acarretou conseqtienciasdiversas, acabou par traduzir-se numa renovacao completa: das
pecas arcaicas do infcio chegou-se, em menos de urn seculo, a urn
teatro bastante proximo do nosso,
r Qriginalmente, a coro era 0 elemento mais importaDie da tra-
E assirn bern evidente que, em tragedias desse tipo, 0 coro es-
teja, mais do que ninguern, interessado no desfecho dos aconteci-
mentos, sendo, no entanto, incapaz de influir nele por meio de
qualquer a~ao. Ele e, par definicao, impotente. Alias, na maioria
das vezes, 0 coro e formado por mulheres ou velhos, velhos demais
para irem it batalha, velhos demais para se defenderem: os ancioesde Os persas, e os de Agamemnon, constituem exemplos nftidos,
Os de Agamemnon lamentam-se desde 0 infcio da peca,
Para que 0 coro pudesse conciliar tao importante funcao com
essa incapacidade de agir, era necessaria que a a~ao da tragedia
fosse pouco desenvolvida.la partir do momento em que eIa adqui-
riu maior irnportancia, 0 coro deixou de desempenhar 0 papel cen-
tral que ate entdo detinha, !e i nas ultimas~~_?:~~E~g!li19~m_P _ ! _ C !_ _ " !_ e t eua c o _ !_ r e n tq _ d o _ ~ _ _na O r e s t i a --emgeral), a coro e apenas
_s~~~atizante; P O " C O tempo depois, comecarn a aparece-i c o r D S - q u evmam a tornar-se classicos, compostos par mulheres do pals, par
confidentes, por testemunhas. Sem diivida, permanece uma relacao
essencial entre 0 her6i e 0 grupo que dele depende, mas esse elo
tende tomar-se frouxo. Na obra de Euripides, ele se desfaz quase
completamente.
Basta urn exemplo para ilustrar essa evolucao, Em Os sete
contra Tebas, de Esquilo, 0 coro era composto par mulheres ater-
radas, temendo pela cidade e pelas pr6prias vidas, Ora, Euripides
retornou 0 rnesrno tema em sua peca intitulada As fenicias. Desta
vez 0 coro era composto par jovens fenfcias a caminho de Delfos:
elas se encontram em Tebas apenas como familiares em trans ito
cheias de simpatia, porem estrangeiras. As jovens conferem a tra-gedia uma nota exotica, que chegou a seduzir Euripides; todavia,
man tern com a a9ao somente urn laco indireto e tenue. Podemos
imaginar urn passo a mais - urn passo jamais dado pela tragedia
grega, mas alcancado por outros -, e teremos entao uma tragedia
sem coro, pois - isso e 6bvio - a duracao dos cantos do coro e par-cialmente ditada e,? fun'iao da atencao dada aquilo que ele expri-
me. Nas pe~as de Esquilo_,os c a n to s . do _ _ore Si!Q1onlOs, ampl_9§_e
co~plexQs. Como escreveu Maurice Croiset: "E_aLa_.squilo., ~ tra-
gec;haera 0 ~to de urn coro, intercalado aqui e ali por dialogos",
Certas tragedies comport am conjuntas liricos de mais de duzentos
: > ~ ~ _/ '
_ , . u I . -_ [ ' _
A tragedia grega 29
versos. Numa tragedia em que a a~ao se diversificava, ao contrario,
tais conjuntos, durante os quais nada acontecia, s6 podiam parecer
tediosos; assim, as partes cantadas passaram a ser cada vez mais
curtas. Arist6fanes nos traz urn testemunho dessa mudanca de pre-
ferencia, ao introduzir no seu As riis 0 personagem de Euripides
crit icando a obra de Esquilo, Ao falar dos personagens intennina-velmente mudos da tragedia de Esquilo, ele faz 0 seu Euripides
exclamar, it guisa de critica: "0 coro dernorava-se sucessivamente
em quatro series de cantos, sem interrupcao. E eles ficavam cala-
dos!" (As riis, 914-915). Esse lirismo tao extenso, portanto, nlio era
mais compreendido, nem apreciado.
Eis aqui mais urn exemplo, para ilustrar essa evolucao, Em_f\s
coeforas, de Esquilo, rnais de quatrocentos versos sao dedicados . 1 0cora, de urn total de 1.076, ou seja, bern mais de urn terce, Em
Electra, de S6foc1es, que trata do mesmo tema (a mudanca do tf-
tulo ja e par si s6 reveladora), a coro intervern com cerca de du-
zentos versos, do total de 1.510, ou seja, menos de urn sexto. Da
mesma forma, em Electra, de EUripides, ha urn pouco mais de du-
zentos, dos 1.360 que compoem a peca, tambem uma sexta parte.
Uma tal evolucao deveria, naturalmente, retletir-se sabre a
forma da tragedia, Nao h!L_Qt_1yidade_gue a importancia do coro
con feria a s tragedias de Esquilograndeue majestade;:ij~ quais,
todavia, nao tardaram a reduzir-se com selis~~reS imediatos.
Tal duracao e, antes de mais nada, formal. Os coros tragicos
podiam ser arrebatados pela angustia, tomar-se ofegantes e trans-
tornados, mas seus cantos e evolucoes obedeciam sempre a uma
estrutura de conjunto cuidadosamente elaborada e control ada.. , y o Sobre este aspecto, nenhuma traducao pode ser esclarecedora,
e poucas sao as representacoes que compreendem seu princfpio,
_.) A versificacao antiga baseia-se no comprimento das sflabas, e
as ordena segundo ritmos definidos. Ora, 0 principia essencial do
lirismo coral requer que a_~s_!rafeseja respondida por uma anties-
trofe, e que as figuras rftmicas se repitam de uma para outra, metra
par metro,sOaba p O r s l J i E a J Por outro lado, alern desses duetos,
organizarn-se, ocasionalmente, conjuntos mais complexos, sempre
rigorosamente disciplinados. Os cantos do coro, na obra de Esqui-
1 0, contam muitas vezes com duas, tres, mesmo quatro duplas de
estrofes. 0 canto de entrada do cora, em A g a m e m n o n , comport a
ate uma triade (estrofe, antiestrofe, epodo), ap6s versos recitados
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l4 0 Jac qu eli ne d e R om illy A tragedia grega l4 l
entre as pessoas amigas fossern produzidos os dramas - por
exemplo, quando urn irmao mata seu proprio irmao, ou urn filho
o seu pai, ou uma mae 0 seu tilho, ou urn filho a sua mae. ou
quando se dispoem a isso, ou cornetern outros atos desse genero
iPoetica, 1453 b).
Mas estava af a ocasiao de abrir as portas a uma certa inter-
pretacao literaria que, nos espfritos conhecedores da doutrina freu-
diana. mas a s vezes menos familiarizados com as obras gregas em
geral, corria 0 risco de provocar urn mal-entendido,
Este risco aumentava, na medida em que a sobriedade das ex-
plicacoes psicol6gicas fomecidas pela tragedia, principalrnente nos
seus comecos , deixava bastante campo para interpretacoes, Os si -
lencios tragicos podem encobrir muitas coisas.
Se tratamos de esmiucar 0 significado de uma obra, a despeito
do seu autor, as tragedias gregas sao, seguramente, urn exemplo
que vale tanto, au mais, que outros. Mas nao se pode dizer que a
silencio dos autores seja uma forma de aquiescencia, e pareca co-
brir os sentidos que eles perceberam, de modo mais ou menos con-
fuso. A tragedia, com efeito, nao e 0 mito. Ela e a obra de poeta s,que deliberadamente transpuseram 0 mito, para nele inserir ur n
sentido pessoal. Fizeram-no em funcao de determinados esquemas
e interesses, os quais nao eram de ordem psicologica. Alem disso.aquila que a psicologia modema acredita ler naquelas obras e, asvezes, mais distante do espfrito que as animava do que 0 seria, no
caso de obras mais modemas. E e pelo menos justo manter em
mente a n~ao dessa diferenca.
Nao ha duvida de que 0 &lipo concebido por Sofocles so-
mente mata 0 seu pai e casa-se com sua mae por causa de urn cruel
equfvoco, e que ele nao 0deseja de forma alguma. Quanta ao mais,
nao existe na lenda qualquer recordacao da sua tenra infancia; ele
nao conhece os seus pais, jamais os viu, nada sabe. Foi preciso urn
Cocteau para inventar urn Edipo bern diferente, e tingir essa uniao,ocorrida por engano, de urn carater incestuoso, Assim tambern a
Clitemnestra, concebida por Esquilo, por S6focles e por Eurfpides,
age por razoes que nada tern a ver com 0 6dio Intimo que pode
nascer entre urn casal. E foi necessaria urn Giraudoux para em-
prestar-lhe essa hostilidade que teria brotado desde 0 primeiro
momento contra seu esposo.
Mesmo quando 0 tema da peca grega possa estar diretamente
relacionado com os problemas apresentados pela psicologia 010-
derna, e com os temas aos quais ela se dedica, na realidade parece
que os interpretes, no intuito de formular-lhe 0 conteddo, tenham
sido fatalmente levados a ultrapassar as intencoes do autor do se-
culo V a. C. E verdade que Hipolito e exageradamente devotado a
tanto quanto fria, t inha-o em mente, quando recomendava aos auto-
res tragicos temas onde
E sem entrarmos aqui no problema do "expurgo das paixoes",
de que fala 0pr6prio Aristoteles, pode-se ao menos pensar que essa
catarse era mais eficaz, na medida em que aquelas ernocoes, na-
quele momenta. se baseavam em casos nascidos do imaginario,
sendo, porem, particularmente chocantes e excepcionais,
De qualquer maneira, e perfeitamente cornpreensfvel que a
evocacao dessas desgracas e emoc o e s repercuta no Amago da sen-
sibilidade humana. E a tragedia grega extrai disso uma forca que s6a ela pertence. Em particular, el a se distingue, sob esse aspecto, da
nossa tragedia classica, mais reservada e mais recatada, que sempre
se manteve a distancia das lendas mais brutais , ou que diluiu a sua
aspereza mediante retoques detalhados.'
Mas, assim sendo, compreende-se tambem que essa mesma
aspereza tenha estimulado a psicanalise a reconhecer, naqueles da-
dos tao diretos e naquelas e rnocoe s tao fundamentais, urn campo
que lhe pertence. Conhecemos a importancia que, ;Iepois de Freud,
adquiriu aquilo que ele cha rnou de complexo de Edipo. Freud, se-
gundo parece, estava convencido de que a constanc ia das tendenci-
as que levavam a este complexo teve grande peso no sucesso
litenirio de Edipo rei.
1Em relacao a isso, vale a pena observar que 0 tema de Edipo, tao em
moda na epoca modema, niio inspirou absolutamente 0 seculo XVII. De
outro lado, em uma tragedia como Andromaca, a herofna raciniana tern
por certo urn filho, mas niio e mais 0 de Pirro; e as razoes pelas quais se
arrisca a mata-lo sao de natureza puramente polft ica : a nudez do conflito
entre as duas mulheres foi dissimulada, Da mesma forma, Hipolito, em
Racine. ja nlio encama mais a castidade, As nuances de seruimentos
ocuparam 0 lugar de problemas mais essenciais.
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sua castidade, e que a sua morte, na peca de Euripides, mostra 0
quanta ele estava errado, ao opor-se tao drasticamente a deusa doamor, Mas se falarmos de rancores reca1cados, ou se mencionar-
mos, sob quaJquer forma, a atividade sexual e suas exigencias, 0
conflito muda de figura, e nso sera rnais 0 contlito entre urn ho-
mem e uma divindade. E sendo apresentado em outra linguagem,
ele assume imediatamente urn outre sentido.' Sem duvida, essas
observacoes de cunho modem a podern, aqui ou ali, Iancar urna
nova luz sobre detenninado aspecto de uma tragedia, acrescentar
uma nuance, urna sombra, urna sugestao, Mas a partir do momenta
em que se acrescenta alga na leitura de urn texto, corre-se facil-
mente 0 risco de acrescentar demais.
Em outras palavras, as tragedias gregas tratam de temas que
envolvem emocoes essenciais do hornem; podem ate utilizar-se
disso para afetar, de modo certeiro, tanto os espectadores quanto os
leitores. Mas elas tratam dessas emocoes dentro de urn certo espf-
rito, que nao e necessariamente 0 00550. Podem buscar nos grandestemas mfticos uma capacidade maior de comover; mas elas trans-
puseram esses temas, modifiearam-nos , elaboraram-nos, em fun'Tao
de problemas outros que nao os da psicologia modema.
Em particular, acontecia freqtlentemente que aqueles temas s6
serviam como moldura a uma irnaginacao total mente voltada para
a atualidade - e isso nos leva a fonte de urn segundo provavel mal-
entendido.
dispornos somente de urn exemplo - 0 da peca Os persas, de Es-
quilo.
Em contrapartida, os temas tragic os sao frequentemente des-
envolvidos de maneira que a peca, no seu conjunto, ou pelo menos
em certas passagens, con vide 0 espectador a urna aproximacao com
o presente. 0 carater nacional e coletivo da representacao favoreciaessa tendencia, AMm do mais, a importancia primordial da cidade
na vida dos atenienses do seculo V tomava praticamente impossl-
vel que isto se passasse de forma diversa. Com efeito, os atenienses
participavam da vida publica muito mais do que podemos imagi-
nar. Eles pr6prios se encarregavam de certas tarefas, eram respon-
saveis, conheciam uns aos outros, acompanhavam suas acoes, E
num Estado tao reduzido, os sucessos e fracassos piiblicos reper-
cutiam imediatamente na vida de cada urn. Dessa forma, e perfei-tamente normal que a tragedia grega tenha exercido, quase sempre,
algum impacto coletivo e nacional.
De fato, e raro que 0 autor se detenha a este micleo familiar ao
qual se referia, essencialmente, 0 mito. Acima de tudo, Aga-
memnon e Edipo eram reis, e esse fato influencia tanto seu destino
quanto seus sentimentos. Edipo seria tao como vente, e agiria da
forma como agiu, se nao carregasse, em todos os momentos, a res-
ponsabilidade pela cidade? A primeira palavra que ele pronuncia e"filhos'', mas essa palavra nao e dirigida a sua monstruosa familia.
Esses "filhos" sao as suplicantes, que representam 0 povo de Te-
bas: "Todo 0 restante do povo, fervorosamente a postos, esta ou de
joelhos, ou nas pracas, ou diante dos dois templos consagrados a
Palas, ou ainda junto a s cinzas profeticas de Ismeno", E no intuitode salvar Tebas do flagelo que Edipo comeca a agir. E em nome da
salvacso de Tebas que eIe, do comeco ao fim, insistira em saber a
verdade. Essa nobreza cfvica toma seu desastre ainda mais como-
vente.
Da mesma forma, Agamemnon e responsavel par Argos. Masele nao cuida 0 bastante, ou suficientemente bern. E se 0 coro Jhe
pennanece fiel, sabendo que a sorte da cidade esta Jigada aquela do
soberano, ele sabe tambern que os atos de Agamemnon nem sem-
pre trouxeram a felicidade dos cidadaos: "pesada e a reputacao
atribuida pela indignacao de todo urn pafs: e necessario que ele
pague a sua dfvida pela maldicao de urn povo".
Atualidade e engajamento
E raro encontrannos, na vida modema, 0 tema de urna tragedia
grega; ou mais exatamente, entre as tragedias que se conservaram,
2 Mesmo detalhes verdadeiros correm a risco, nessecaso, de adquirir urndestaque exagerado. Por exemplo, e bern verdade que a animal que ser-ve para matar Hipolito e urn touro (M, Delcourt, em Euripide de la Plei-ade, pp, 206-207); mas esse touro e enviado po r Poseidon. E nasuposicao de que ele jamais tenha tido urn significado simbolico, Euri-pides nao revelou nem sugeriu em memento algum; ele insiste muito
mais sobre 0 papel desempenhadopelos cavalos, tao caros a Hip6lito.
t o~ , ." ,
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Esse eco provocado pela a9ao dos prfncipes, para 0 bern ou 0
mal do pais. evidencia ainda mais a dirnensao tragica dos seus atos.
Ao rnesmo tempo. tal a9ao imprirne, consequentemente, uma signi-
ficacao tambem polftica a obra.
Agamemnon, alern de marido de Clitemnestra, e tambem 0 rei
imprudente, que empreendeu a guerra por "urna mulher que foi de
mais de urn homem". E tambem 0 homem que levou a guerra ao
extrema e ao sacrilegio: permitiu que se incendiassem os santuari-
os dos deuses. Por tudo isso, 0 seu exemplo equivale ao do jovem
Xerxes. E compreende-se que, em certos casos, essa condenacao
pelos excessos da guerra venha a ser uma condenacao pela guerra
em si. Em Os persas, em Os sete contra Tebas, em Agamemnon,
Esquilo exprimiu com forea os horrores da guerra, da pilhagem e
da morte. Euripides, em plena Guerra do Peloponeso, empenhou-se
em reiterar as desgracas dos veneidos, nas tragedias Andr6maca,
Hecuba e As troianas.
Alem do mais, a prop6sito de qualquer terna, os poetas tragi-cos encontrarn, oportunamente, ideias ou problemas que evocam
imediatamente 0 presente. A Orestia termina com comentarios so-
bre 0 papel do Areopago e sobre 0 perigo da guerra eivil; de outro
lado, Orestes promete a Atenas urna alianca com 0 pais de Argos.
Todos estes eram assuntos atuais. Edipo em Colona chega a mos-
trar que 0 corpo de Edipo resguardaria para sempre Atenas de urna
invasao dos tebanos. Ora, quando a peca foi escrita, a cavalaria
be6eia, sob 0 comando do rei de Esparta, acabava de ten t ar uma
expedicao na Atica, justamente pelo lado de Colona. Da rnesma
forma,As suplicantes
de Euripides abordam urna recusa de sepuJtar
os mortos, depois de uma batalha. Ora, quando a peca foi escrita,
os be6cios acabavam de negar aos atenienses 0 direito de recolher
os corpos dos soldados mortos em Delion, enquanto Atenas ocu-
passe seu santuario; a batalha havia durado dezessete dias, e abala-
do profundamente a opiniao publica ateniense. Em todos os casos,
consequentemente, 0milo era evocado de uma forma e em termos
diretarnente relacionados com as emocoes e com os problemas domomento.
E . portanto, natural que se tenha procurado discernir, na obra
dos tres grandes tragicos, particularmente naquela de Euripides
!
~
A tragedla grega 145
(que escrevera num teatro, sob esse aspecto, mais livre), toda uma
serie de alusoes, transposicoes, intencoes polemicas ou apologias
que conferissem ao texto urn eco, ou uma dimensao, que urn lei tor
talvez a custo percebesse. E e natural tambem que 0 teatro grego
tenha sido urn exemplo para aqueles que esperam da literatura mais
que urn prazer puramente artfstico, e desejam que 0poeta seja tam-
bern urn cidadao, engajado na realidade polltica, tomando partido e
servindo a urna causa.
De fato, na verdade, a tragedia grega apresentava, sob esse as-
pecto, urna dirnensao a mais - urna dimensao que nao conheceria,
por exernplo, a tragedia francesa do perfodo classico,
Todavia, devemos, mais uma vez, fazer algumas reservas, se
quisermos evitar confusao, Antes de mais nada, e preeiso evitar aexpectativa de que 0 poeta diga mais do que diz. A caca a s alusoese perigosa, porque facilmente faz referencias excessivas. E urn
convite a engenhosidade. correndo 0 risco de dar ao detalhe urna
importancia exagerada. Ela parece fomecer chaves de interpreta-9ao, quando muitas vezes, na realidade, existe apenas uma seme-
lhanca distante, que despertou 0 interesse do autor, sem inspirar-
lhe, no entanto, 0desejo de provar 0 que quer que seja.
E, sobretudo, referir-se a literatura engajada, a prop6sito da
tragedia grega, e evocar urn movimento de espfrito muito diferente
daquele que animava os poetas do seculo V.
Aqueles poetas eram, efetivamente, cidadaos. Viviam engaja-
dos, porque 0 pr6prio estatuto da cidade irnplicava urna partieipa-
9aO constante e profunda. Mas sua obra como poetas consistia, 0
mais das vezes, em transcender esses interesses irnediatos, e em
transpo-los ate 0 nfvel dos interesses humanos. Trata-se da rnesrna
atitude adotada por Tucfdides, quando deseja fazer da sua hist6ria
urna "conquista para sempre", descartando desta hist6ria todas as
indicacoes de detalhe, ligadas aos debates diaries. Com mais razao
ainda, encontramos essa atitude nas transposicoes tragicas,
A tragedia Os persas da 0 tom, ja que essa peea de atualidade
se cala com relacao aos indivfduos, as responsabilidades, falhas e
sucessos, para ater-se exclusivamente aos grandes temas atempo-
rais, como a insolencia punida, ou os horrores da guerra. Ora, as
tragedias gregas seguirarn, em geraJ, este exemplo. Certamente nao
seria razoavel procurar em Creonte caricatura de Pericles, mesmoque, neste ou naquele detalhe, 0 pensamento de Sofocles tenha se
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do mundo. Nesse sentido, eles poderiam tambern ter sido nossos. E
eles inspiram, alern da compaixao por suas vftimas, a compaixao
por eles mesmos e pelo proprio homem.
E essa a razao pela qual, ao escrever sobre a tragedia grega,
somos obrigados a lancar-nos em consideracoes sobre a filosofia
dos autores, ou a falar dos deuses e dos hornens. Tal modo de ex-
posi~ao nao seria adequado para qualquer forma teatral. Mas e im-possfvel evita-Io quando se trata da tragedia grega, com aquele
coro que diz a cada instante: "Vede 0 destino do homem", "Vede 0
poder dos deuses", au "Decididamente, a condicao humana apre-
senta tal ou tal carater", A tragedia grega sempre da urn testemu-
nho sabre 0homem em geral, e, gra'fas ao coro, esse testemunho 6
constantemente chamado a aten~ao dos espectadores.E pode ser exatamente esse trace, tao caractenstico da tragedia
grega, aquila que as tragedias de outras epocas tiveram grande di-
ficuldade em conservar. Isto se aplica tanto a tragedia latina quanto
a tragedia francesa, pois, se Fedra alcanca 0 seu porte e sua riquezapor representar, segundo urna formula celebre, urna crista a qualfaltou a graca, nao e cecto que os lrmdos inimigos tenham atingido
a grandeza de Os sete contra Tebas. Estes her6is, mais ocupados
com 0 arnor e com a politica, nao podiarn apresentar facilrnente
problemas tao essenciais ao homern; e a cora ja nao estava mais Ia
para ajuda-los,
Seja como for, essa nocao dos limites inerentes a condicao
humana estava sempre presente na tragedia grega. Manifestava-se
sob formas diferentes, mas 0 espfrito era 0 mesmo. Isto explica,
sern diivida, 0 fato de se ter muitas vezes traduzido esse sentirnentopor meio da palavra fatalidade.
Em certo sentido, isso se justifica, pais e verdade que a trage-
dia greg a nao se cansa de apontar, alem do homern, forcas divinas
ou abstratas que decidem sabre seu destino, e decidem sem apela-
'fao. Pode tratar-se de Zeus soberano, ou dos deuses, ou ainda, ern-
pregando urn termo bela, neutro e misterioso, do daimon, au
divino. Pode ser tambern 0 destino, a Moira, ou entao a necessida-
de. E 0 coro menciona, incansavel a cada instante, a arrao dessas
forcas sobre-humanas,
':~..
A tragedla grega
A obra de Esquilo trata, quase sempre, dos deuses. Desta for-
ma, Zeus e quem provocou a queda de Tr6ia (Agamemnon, 367), e
sao os deuses que incitam os excessos de Agamemnon (461). Mas.
ao decidir sacrificar a sua filha, 0mesmo Agamemnon "curva sua
fronte ao jugo do destino" (218). E quando ele rnorre, 0 coro reco-
nhece que foi urna acao do destino: "Genie (daimon), que te abatessobre a cabeca das duas criancas de Tantalo, tu te serves de rnulhe-
res de almas iguais para triunfar, dilacerando as nossos coracoes ..."
(1468-1471), A palavra daimon e repetida na cena em diversas
oportunidades, tanto por Clitemnestra como pelo cora: 0 assassi-
nato de Agamemnon nao tern a caracterfstica do melodrama, por-
que ele e obra do daimon.'Encontramos esta mesma n~ao na obra de S6focles. 0 desti-
no, embora menos ligado a ideia de justica, nao deixa, nem por
iS5O, de ser soberano. Pode-se ate dizer que 0 lema de Edipo rei esomente 0 triunfo de urn destino que os deuses haviam anunciado,
e que 0 homem nao conseguiu evitar, Nao precisamos de muitos
comentarios para que se revele, aos olhos de todos, essa ostensiva
vit6ria do destino. Tanto 0 com quanto as personagens, no pouco
que dizern ao evocar a vida de Edipo, falam sempre do seu "desti-
no", ou do seu "quinhao". E quando 0 coro comenta a desastrosa
notfcia, dec1ara que nao pode mais considerar nenhurn hornem feliz
diante do exemplo de Edipo, do daimon de E;ctipo (1194). Ele pro-
prio exclama entao: "6 meu destine (daimon), onde foste precipi-
tar-te?' (1311).
Isso j a nao e mais tao evidente no teatro de Euripides, ou tal-
vez a ideia de necessidade tenha se interiorizado. Nenhurn destinoirnpele Medeia a matar os seus filhos, mas tantas sao as forcas que
pesam sabre ela! Primeiro, a longa sequencia de acontecimentos
que a conduziram ao impasse em que se encontra; e a ama que abre
a peca 0 faz com urna lamentacao caracterfstica: "Quis a Ceu que a
nau Argos, em seu v60 a terra de Colquida, nao tivesse transpostoas Simplegades com sua sombra azul...", pois entao nada teria
acontecido. Depois, existe a paixao em si mesma, da qual Medeia
5 0 tenno encontra-se no singular, mais de uinta vezes, na obra de E s -quilo, sem contar uns quarenta exemplos em que esta no plural, tendo
entao urn sentido mais pessoal.
r
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se confessa escrava (1078-1080). E urna vez dado 0 primeiro pas-
so, a herofna torna-se prisioneira da sua propria iniciativa: "Va-
mos! encouraca-te, coracao meu! Par que tardamos em executar a
perversidade terrfvel e necessaria?" Medeia forja seu pr6prio des-
tino; mas isso nao quer dizer que ela possa fugir-lhe.
Se e verdade que, mesmo num caso desse genero, paira sobre
todo 0 conjunto a ide ia de uma necessidade, e que dessa f o rma a
destino de Medeia ilustra a fraqueza do homem e a fragilidade da
sua condicao (como de fato 0 cora 0 afirma), pode-se compreender
que a s d es gr ac as dos he ro i s tragicos possam revest ir -se de urna
dirnensao aterradora para todos. E compreende-se tambern par que
se instalou 0uso generalizado da palavra fatalidade.
Entretanto, aqui uma vez mais, 0 termo corre 0 risco de ocasi-
onar confusoes, e requer ao menos algumas reservas. Em primeiro
lugar, existem tragedias, particularmente nas pecas de Euripides,
onde nada indica a fatalidade: 0 acaso dos encontros e 0 sobres-
salto dos golpes teatrais dao, muito mais, a impressao de uma ayaoprovocada por si mesma, livremente. A propria Medeia hesita, au
seja, ela poderia ter agido de outra forma, E nao e nenhuma fatalida-de que decide a tomada de Tr6ia, a vinganca de Hecuba, ou a sorte
de Andromaca, A fatalidade, portanto, nao e essencial ao tragico.De resto, mesmo quando os acontecimentos sao apresentados
como decorrentes de urna decisiio divina, irrevogavel e soberana,
falar de fatalidade equivaleria ainda a simplificar as coisas ou, ao
menos, caracterizaria 0 termo de maneira impr6pria, se ele sugerir
a negacao da responsabilidade. Urn dos traces mais marc antes do
pensamento gregoe ,com efeito, a possihilidade de explicar todo
acontecimento em dois pianos simultaneos, e por meio de uma du-
pla causalidade, que se combina ou se sobrepoe, Presente ja desde
Homero, essa dupla causalidade existe em quase toda a tragedia, A
condenacao de Agamemnon resulta de urn veredito divino; mas a
sua concretizacao atravessa urna serie de vontades humanas: Cli-
6 Evoca-se aqui, inclusive. a lernbranca dos crimes passados: "Pesa sobreos mortals a purificacao do sangue familiar; a medida do crime. ela des-perta, contra os assassinatos da sua pr6pria ra\a, sofrimentos que a maodos deuses faz criar sobre as suas casas" (1268-1270).
A tragedia grega 151
temnestra e 0 agente do assassinato, mas ela age por rancor, vin-
ganca e ciume, pelo efeito de urn Odio inteiramente pessoal, e de-
vera responder por isso. Quanto ao proprio Agamemnon, ele s6 econdenado a morrer sob o s golpes dela porque, deliberadamente,
ofendeu as leis dfvinas e humanas, tanto ao sacrificar sua filha,
como ao cometer crimes varies que marcaram a tomada de Tr6ia.
Levantar 0 problema da liberdade human a, a proposito de tais
eventos, constitui uma atitude modema. Para urn antigo grego, as
duas causalidades coexistem sem contradicao. Como diz Esquilo,
"quando ur n mortal se empenha na sua ru fna , os deuses vern ajuda-
10 " ( O s p e rs a s, 742), Nada acontece sem a vontade de urn deus;
mas nada tampoueo aeontece sem que a hornem participe e se en-
gaje, 0 divino eo humane combinam-se, sobrepoem-se . E por issoque, em ultima instancia, se pode dizer que a morte de Hip6lito se
deveu ao arnor ou a Afrodite; que Heracles sueumbe a urn mo-
menta de loueura au a ar;ao da raiva, enviada por Hera; au ainda
explicar a morte de Penteu por se recusar a admitir certas tendenciasnaturais au a reconhecer 0 deus Dioniso.
Par certo, as coisas nao sao sempre lao simples. Mas, de modo
geral, a fatalidade grega nao elimina a responsabilidade humana,
como 0 sentido da palavra poderia sugerir.
Par outro lado, mesmo onde 0 destino parece reinar absoluto,
ele nao envolve qualquer especie de abdicacao par parte do ho-
memo Dizer que uma coisa foi determinada pelo destino significa
dizer que ela esta ai, pura e simples mente. Signifiea constatar 0
fracasso do homem. Signifiea mostrar que ele se debate contra urn
universo que nao pode comandar. Mas nao significa tamar partido
sobre como e regido esse universe, nem renuneiar ao exercicio de
urn detenninado papel dentro dele. Mesmo urn homem avisado
pelos oraculos, como Edipo, procura lutar. Ese, de outra parte, ele
se lorna presa do impasse do t rag ico, permanece sempre 0 senbor
da sua pr6pria rea~ao. A tragedia Ajax comeca quando 0 destino ja
havia cumprido a sua parte; e 0 heroi, acuado pelo impasse, res-
ponde com uma morte voluntaria,
Portanto, em vez de fatalidade, seria preciso usar urna palavra
recentemente proposta por urn fil6sofo - transcendencia.' Pois a
7 cr. H. Gouhier, "Tragico e transcendencia", Le theatre tragique, coleta-
nea de exposicdes publicada em Paris, em 1962.
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Na tragedia, estarnos tranqtli los. Antes de tudo, estarnos entre
iguais, Enfim, somas todos inocentes.
ofensa que sofreu como mae. Sua ira toma-se engrandecida. por
identificar-se, de fato, com a coleta divina,
Na obra de Sofocles, a n~ao de heroisrno e ainda mais acen-tuada. POT certo, 0 her6i pode enganar-se; ele pode, depois de urn
momenta de orgulho, ver-se ridicularizado pelos deuses, como
Ajax. Ete pode, levado pelas elrcunstancias, a~n:sentar-se muit~
severo e duro, como Heracles, Ele pode, como EdlPO, ser excessi-
vamente seguro de si. Ele pode, como Neopt6lemo, hesitar por urn
momento entre dais deveres. Mas S6focles nao deixa jamais a es-
pectador com a impressao de que essas imperfeicoes diminu~ .a
grandeza dos personagens, au que, de alguma forma, possam jusu-
ficar a desgraca que os atinge. Ajax, Heracles, Edipo. Neopt6~emo
sao, da mesma forma como Antigona, as porta-vozes de urn Ideal
de honra e as vftimas de urn destino injusto.
Poderfamos pensar, por outro Iado, que as coisas nao sao ma~s
assim no teatro de Euripides. pois os homens ja nao agem exclusi-
vamente em funciio do seu ideal. e infligem-se 0mal entre si, deli-beradamente. E isso sem mencionar que, no teatro de Euripides,
existem a s vezes personagens que beiram 0 ridfculo, tamanha a sua
mediocridade. E, no entanto, no seu conjunto, poderfamos chamar
de mesquinho 0mundo de Euripides? Nao seria antes que os per-
sonagens mesquinhos se destacam precisamente porque as outros
nao 0 sao?Como nao lembrar aquelas figuras ideais e comoventes que
permeiam tantas pecas, reavivando-lhes 0 brilho? Alceste, a Maca-
ria de Os herdclidas, Hip6lito, Andromaca, Polixena em Hecuba,
ion, 0 Meneceu de As fenicias, Ifigenia? Todos eles morrem, ou
estao dispostos a morrer, pela honra; todos eles sao personagens
imaculados.As suas figuras junta-se 0 ideal encarnado por salvadores e
protetores, como esses reis de Atenas, soberanos constantemente a
service dos outros, intervindo com generosidade, mesmo onde apa-
renternente nao seria necessar io ,E, sobretudo, nao podemos deixar de reconhecer que ate os
personagens mais engajados na tragedia, os rnais envolvidos na
ar;lio, mesmo na a~ao horrfvel, conservam, apesar de, tU?O, ~ma
grandeza que encanta e encoraja. A pr6pria Fedra, a propna Hecu-
ba, a pr6pria Medeia,
A tragedia grega, tanto pela sua otica quanto pelas proprias
condicoes de suas representacoes, dava as costas ao realismo. Con-
ferindo-lhe a dimensao mais ampla, ela desenhava destinos exem-
plares , atingindo herois fora do comum. E isso que os autores do
seculo XX tendem a exprimir, ao usarem a palavra inocencia, e que
os antigos gregos teriam, anterionnente, definido por herofsmo.
Mesmo quando urn homem e abatido pela vontade de um deus,
no decorrer de uma tragedia, 0 autor reserva-lhe uma certa maneira
de ser abatido que encerre grandeza. Preserva-Ihe urna parte da
mais elevada honra. Eteocles e abatido dessa forma, segundo Es-
quilo. Mas ele se mostrara, em toda a primeira parte da peca, urn
chefe fervoroso, energico, liicido, apaixonadamente dedicado a suapatria, E se ele parte para combater 0 irmao, 0 faz somente por
obedecer a urn decreto dos deuses, obediencia decorrente de suapropria coragem. Eteocles e urn heroi. Ajax tambern recebe de So-foeles urn tal tim. Mas ele reage a sua desgraca como urn homem
que nada poderia deter: ele s6 pensa em sua honra e, com plena
conhecimento de causa, se entrega a morte, esperando que, na se-
gunda metade da peca, seus proprios inimigos reconhecam os seus
direitos e a sua valentia, Tambem 0Heracles de Euripides e vftimade uma visao divina, que 0 leva a matar seus filhos: arras ado pela
dor, encontra, entretanto, a coragem de suportar a provacao. Mor-
rer parece-lhe covarde: "Quero enfrentar a tentacao da morte", diz.
Ajax e Heracles sao verdadeirarnerue herois; e existe urn pouco de
triunfo humane na sua rufna,
Pode tambern haver uma certa grandeza na forma como os he-
r6is agem, mesmo quando nao estao compietamente isentos de
erro. Agamemnon podia, aos olhos da justica divina, ter merecido a
sua sorte. Mas ele era urn rei nobre e capaz, que realizou grandes
feitos, que fala com ponderacao, e que acredita poder orgulhar-se
de tudo 0 que fez; 0 remorse dos seus filhos, nesse sentido, ira fa-
zer-Ihe justica, A pr6pria Cliternnestra, a esposa culpada, e uma
mulher corajosa, hicida, superior; e sua c61era e proporcional a
. . . .
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Essas tr@smulheres podem servir de exemplo. Criminosas as
tres, sao, no entanto, levadas ao crime pela pressao da desgraca: no
principio, elas aparecem simplesmente abandonadas em seus ge -
midos; depois, a sua desgraca, bruscamente engrandecida, provoca
urn sobressa1to de defesa, de vinganca , Hecuba foi ferida no seu
arnor maternal, Fedra e Medeia na sua honra de mulheres. E a suavontade subitamente se afirma: 0 ate pelo qua1 elas se vingam nao
significa para elas nada alem da destruicao daquilo que as destruia.
E isso , po r vezes, a custo de toda a esperanca , pois Fedra vinga-se
morrendo, e Medeia executando urn crime que, ela bern 0 sabe, vai
leva-la ao desespero. A rainha de Tr6ia, a filha de Minos, a neta do
Sol nada trazern em si de mesquinho. Pelo contrario, seus pr6prios
crimes tornam-se uma forma de herolsmo; e quaJquer coisa, em
Medeia, proclama a forca terrfvel de que pode revestir-se a vontade
humana,quando se trata d e seres de certa tempera.
Sem diivida, e nesse sentido que se explica uma outra observa-~ao de Arist6teles sobre os personagens tragicos, observacao que, aprirneira vista, poderia parecer i n genua e desconcertante. Trata-se
da passagem em que diz que 0 primeiro ponto a ser analisado, no
tocante aos personagens, e que eles "devem ser bons" (Poetica,
1454 a). Nao se poderia exprimir com maior modestia a irradiacao
do herofsmo, pois esta e a questao fundamental. Com efeito, 0he-
roismo suscita a simpatia, portadora da compaixao e do terror; ele
transforma 0 espetaculo tragico, que infunde a compaixao e 0 ter-
ror, em algo tonica, estimulante, enobrecedor.
Esta f e no hornem, que ilumina, a partir do interior, todas as
tragedias, mesmo as mais sombrias, corresponde perfeitamente aoespfrito grego do seculo V a.C. Citamos aqui, a respeito de S6fo-
des, 0 admiravel canto de Antigona, que fala das belezas da civili-
za~ao criada pelo homem: "Existem tantas maravilhas neste
mundo, nenhuma delas porem maior do que 0 homem ..." M as po-
demos acrescentar que essa elegia ao progresso ea civilizacao hu-
mana, que normalmente nada teria a ver com a trage?ia, se
encontra na obra de todos os tres grandes tragieos gregos. Esquilo
dedicou-lhe uma cena do Prometeu, e Euripides uma passagem
bastante extensa de As suplicantes. 0 seculo V tinha f e no homem.
A tragedla grega
IsIO explica por que, desde sempre, as desgracas representadas
na tragedia apareciam envolvidas numa determinada luz, que lhes
resgatava a horror e a tristeza. 0 exemplo de Antigona e a provamais brilhante. Assistindo a ~a de Sofocles, ninguem se prende,
em momenta algum, ao aspecto desolador do drama: guarda-se
muito mais no coraeao a admiracr30 pela heroina. E em todos os
momentos da hist6ria houve homens que se sentiram estimulados e
encorajados por ela.
Giraudoux, que se havia embriagado das letras gregas, parece
haver reconhecido perfeitamente essa dupla face do tragico, E po-
demos ilustra-lo citando as betas palavras que eJe coloca no f ina l
da sua Elec t ra :
Como se chama aquilo, quando 0 dia desponta, como hoje, e
que:tudo esta em desordem, tudo exaurido, e no entanto 0 ar se
respire; e quando se perdeu tudo, e a cidade esta em c.hamas, e
os inocentes se matam entre si, mas os culpados agomzam, em
algum canto do dia que se levanta? - Pergunte ao mendigo, ele
o sabe. - Isso tern urn belo nome. dona Narses, Isso se chama