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PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIESPara uma sociologia escala
individual
Bernard Lahire
Se bem que, para se constituir, deva recusar todas as formas de
biologismo, que tendemsempre a naturalizar as diferenas sociais,
reduzindo-as a invariantes antropolgicas, asociologia no pode
compreender o jogo social naquilo que ele tem de mais essencial,
se-no na condio de ter em conta algumas das caractersticas
universais da existncia cor-poral, como o facto de existir no
estado de indivduo biolgico separado, ou de estarlocalizado num
lugar e num momento dados, ou ainda o facto de se estar e de se
saberdestinado morte, tudo propriedades mais do que cientificamente
atestadas que nuncaentram na axiomtica da antropologia positivista
(Bourdieu, 1982).
Existem objectos mais sociais do que outros?
Onde e como apreender o social? Eis uma questo que, no fundo,
nunca deixoude se colocar aos investigadores das cincias sociais e
que deu lugar a uma gran-de diversidade de respostas segundo as
diversas tradies sociolgicas. Teroas cincias do mundo social, alis,
objectos de predileco no mundo? Umaepistemologia realista tenderia
a pensar que alguns objectos do mundo so so-ciais e outros no (ou
so-no menos). Assim, os movimentos colectivos, os gru-pos, as
classes, as instituies seriam com toda a evidncia objectos das
cin-cias sociais, enquanto que os comportamentos de um indivduo
singular, asnevroses, as depresses, os sonhos, as emoes ou os
objectos tcnicos que nosrodeiam seriam objectos de estudo para
psico-socilogos, psiclogos, psicana-listas, mdicos, engenheiros,
especialistas de ergonomia... Ora, sabe-se que, naprtica cientfica
efectiva, os investigadores estilhaam essas fronteiras realis-tas.
De facto, como enunciava enfaticamente Saussure, o ponto de vista
quecria o objecto e no o objecto que fica tranquilamente espera, no
real, do pontode vista cientfico que venha revel-lo.
no excluindo a priori nenhum assunto do seu campo de estudo que
as cinciassociais1 podem conseguir um progresso efectivo em direco
a uma maior autono-mia cientfica. Como para a literatura mais pura
que, para manifestar a sua rup-tura com as demandas externas,
defende a primazia do modo de representao so-bre o objecto
representado, as cincias sociais tm que mostrar que no h
nenhumlimite emprico quilo que podem estudar, isto , que no h
objectos mais
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
1 Por exemplo, a sociologia progrediria significativamente se no
se contentasse em ficar naperiferia dos lugares clssicos da
psicologia. No deveria, por exemplo, limitar-se ao estudo dapercepo
social e histrica da doena mental ou da trajectria
scio-institucional dos doentesmentais, mas sim analisar a produo
social da prpria doena.
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scio-lgicos, mais antropo-lgicos ou mais histricos do que
outros, mas que o es-sencial est no modo cientfico (sociolgico,
antropolgico, histrico) de tratamento dotema.
Mas estas extenses cognitivas daquilo que uma disciplina
cientfica suscept-vel de constituir em objecto de estudo nunca so
fceis de fazer. De facto, imposs-vel, na maior parte dos casos,
aplicar mecanicamente a novos temas ou assuntos osconceitos ou os
mtodos anteriormente testados. neste sentido que os objectos
deestudo resistem bem mais do que uma epistemologia nominalista
poderia fazercrer. A mera sobreposio de antigos esquemas
interpretativos a novas realidadespode contribuir simplesmente para
reforar a crena na incapacidade intrnseca dadisciplina para estudar
essas realidades. Um outro risco reside na utilizao pelasociologia,
sob a forma de uma importao fraudulenta e, por conseguinte,
nocontrolada, de esquemas interpretativos provindos de tradies
disciplinares es-tranhas ao seu prprio desenvolvimento
cientfico.
O social individualizado
A dificuldade de apreenso do social na sua forma individualizada
deve-se, pois, adois riscos permanentes que so, em primeiro lugar,
o facto de se acreditar ser pos-svel estudar o novo (tema de
estudo) reciclando simplesmente o antigo (conceitose mtodos) e, em
segundo lugar, o facto de se pensar ter atingido os seus fins
cient-ficos tendo cozinhado uma sociologia feita de alhos (de
origem sociolgica) e buga-lhos (de origem psicolgica).
Colocando de parte o segundo tipo de risco (que deu lugar, por
exemplo, atentativas infelizes de aproximao ao marxismo e
psicanlise nos anos 70), oqual precisaria de um desenvolvimento
demasiado longo sobre os impasses da in-ter ou
pluridisciplinaridade (Lahire, 1998: 227-229), o primeiro tipo
permaneceulargamente invisvel aos olhos dos investigadores. De
facto, a mudana de escala da anlise dos grupos, dos movimentos, das
estruturas ou das instituies, paraa dos indivduos singulares que
simultaneamente vivem em e so constitutivosde esses macro-objectos
no foi brutal a ponto de forar a viso dos investiga-dores, de lhes
provocar alguma dor de cabea e, ao mesmo tempo, de lhes fazer
ga-nhar conscincia. Este deslizamento foi insensvel, imperceptvel
e, desta forma,tornou difcil o exerccio da lucidez terica. Foi sem
se dar conta, e sem medir asconsequncias, que a sociologia se
interessou tanto pelos indivduos socializadosenquanto tais (nos
estudos de caso ou em ensaios apresentando, entre outro tipo
dedados, retratos individuais, apoiados metodologicamente na prtica
da histriade vida ou da entrevista aprofundada) como pelos grupos,
categorias, estruturas,instituies ou situaes (seja qual for a sua
amplitude ou o seu tipo). O movimentoteria sido mais visvel se os
investigadores no tivessem o hbito de reivindicar apertinncia dos
seus enunciados qualquer que seja a escala de anlise adoptada
(doespao social global ao indivduo singular) (Lahire, 1996).
Entre o conjunto de trabalhos existentes, os de Pierre Bourdieu
designaram ecaracterizaram teoricamente estas pequenas mquinas
produtoras de prticas
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(no sentido alargado do termo), essas matrizes que retm no corpo
de cada indi-vduo o produto das experincias passadas. Quando, por
exemplo, as noes (e asrealidades para as quais elas remetem) de
estruturas cognitivas, psquicas ou men-tais, de esquemas, de
disposies, de habitus, de incorporao e de interiorizaono estavam no
centro do estudo, mas serviam somente, nos relatrios finais
dasinvestigaes, de comutadores necessrios para explicar as prticas
evocandogrosseiramente a socializao passada incorporada, estes
modelos tericos po-diam parecer satisfatrios. Os termos tomados de
emprstimo psicologia (no-meadamente a piagetiana) permitiam
designar um vazio ou uma ausncia entre asestruturas objectivas do
mundo social e as prticas dos indivduos. O habitus podiaento ser
tanto de grupo como individual. Isso no colocava nenhum proble-ma
particular, pois no se lhe dava uma ateno particular e a teoria no
se propu-nha verdadeiramente estudar empiricamente essas
realidades. Isso bastava am-plamente ao ofcio de socilogo e, sem
dvida, basta ainda hoje em dia a uma gran-de parte dos
investigadores. De facto, numerosos socilogos continuam a praticara
sociologia sem mesmo ter necessidade de dar nome a essas matrizes
corporais(cognitivas, sensitivas, avaliativas, ideolgicas,
culturais, mentais, psquicas...)dos comportamentos, das aces e
reaces. Alguns chegam mesmo a pensar quese est tipicamente aqui a
lidar com caixas negras (caso das noes de socializa-o ou de
habitus), das quais a sociologia cientfica e explicativa deveria
absolu-tamente desfazer-se (Boudon, 1996).
Mas no se poderia falar de estruturas mentais, de esquemas, de
disposies,de habitus ou de incorporao, sem se correr o risco de
atrair a ateno e a interroga-o crtica dos investigadores. Devemos,
porque j estamos habituados a este voca-bulrio, pressupor que
sabemos perfeitamente o que uma disposio ou um es-quema, um sistema
de disposies ou uma frmula geradora de prticas? No nospoderamos
questionar se uma parte destes termos no nos impe modos de olharque
talvez gostssemos de requestionar? Universalizando as aquisies de
um es-tado (no totalmente ultrapassado) da psicologia do seu tempo,
Pierre Bourdieuimportou para o seu seio, sob uma forma petrificada
e quase totalmente inalteradaao longo de mais de 30 anos, conceitos
psicolgicos que no eram como qualquerconceito cientfico mais do que
uma espcie de sntese do estado das investiga-es psicolgicas, entre
as mais avanadas, sobre a questo do desenvolvimento dacriana. Ora,
mais do que supor a existncia de um processo sociocognitivo como
oda transferibilidade (ou transponibilidade) das disposies, no
seria melhortrabalhar esta questo em pesquisas empricas que
visassem comparar sistematica-mente as disposies sociais postas em
prtica segundo o contexto de aco (dom-nios de prticas, esferas de
actividade, microcontextos, tipos de interaco...) con-siderado? O
simples uso do singular em expresses como frmula geradora
ouprincpio gerador e unificador das prticas ou das condutas no
contribuir pararesolver um problema antes mesmo de o ter colocado
e, pelo menos parcialmente,antes de o ter resolvido empiricamente?
Respondendo a estas questes, abre-se ocampo de uma sociologia
escala individual, para a qual uma parte do mundo cient-fico
contribuiu, pouco a pouco, na criao das respectivas condies de
emergn-cia, e da qual procurarei aqui precisar o programa cientfico
(Lahire, 1998 e 2002).
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Estudar o social individualizado, ou seja, o social refractado
num corpo indi-vidual que tem a particularidade de atravessar
instituies, grupos, campos de for-as e de lutas ou cenas
diferentes, estudar a realidade social na sua forma incorpo-rada,
interiorizada. Como que a realidade exterior, mais ou menos
heterognea,se faz corpo? Como que as experincias socializadoras
mltiplas podem (co)habi-tar (n)o mesmo corpo? Como que tais
experincias se instalam de modo mais oumenos duradouro em cada
corpo e como que elas intervm nos diferentes mo-mentos da vida
social ou da biografia de um indivduo? Quando a sociologia secentra
na explicao dos grupos de indivduos a partir de uma prtica ou de um
do-mnio particular de prticas (os assalariados de uma empresa, os
cnjuges, os leito-res, os utilizadores de determinada instituio
cultural, os votantes...), ela podepassar sem o estudo destas
lgicas sociais individualizadas. No obstante, a partirdo momento em
que ela se interessa pelo indivduo (no como tomo e base de todaa
anlise sociolgica, mas como produto complexo de mltiplos processos
de sociali-zao), j no possvel satisfazer-se com os modelos de
actor, de aco, de cognio,implcitos ou explcitos, utilizados at a.
Foi o micro-historiador Giovanni Lviquem sublinhou, com pertinncia,
que ns no podemos (...) aplicar os mesmosprocedimentos cognitivos
aos grupos e aos indivduos (Lvi, 1989: 1335).
A vida das disposies
O desenvolvimento de uma sociologia escala individual implica
que a prprianoo de disposio seja examinada. Ora, analisando a
utilizao que lhe dadanos trabalhos sociolgicos, apercebemo-nos
rapidamente do facto de que esta noteve, at ao momento, uma
importncia considervel para a anlise do mundo so-cial. O socilogo
raramente aumentou o seu conhecimento do mundo social com osusos
rotineiros deste conceito. Por exemplo, quando Pierre Bourdieu
explica queno h prtica mais classificadora do que a frequncia de um
concerto ou a prticade um instrumento de msica nobre, devido
raridade das condies de aqui-sio das disposies correspondentes
(Bourdieu, 1979: 17), ele afirma algumacoisa sobre a funo de
distino de certas prticas culturais, sobre a sua raridade,mas no
diz nada sobre o que que so as disposies correspondentes a
essasprticas. Do mesmo modo, quando ele afirma que as obras
literrias de Malarmou de Zola tm a marca das disposies socialmente
constitudas dos seus auto-res (Bourdieu, 1979: 19), o leitor
interessado est totalmente disposto a acreditarnisso, mas nenhuma
anlise das disposies destes autores, do que se entende
pre-cisamente por disposies e da maneira como se poderiam
reconstruir tais dis-posies, nos apresentada. As disposies sociais
dos escritores, pertinentes paracompreender as suas obras, so as
disposies sociais gerais adquiridas familiar-mente? Ou so elas o
produto especfico da socializao literria (o que significariaque nem
tudo, da experincia socializadora dos autores, de reconstruo
perti-nente, no intuito de apreender os seus comportamentos
literrios)?
Passando sistematicamente em revista o conjunto dos contextos de
uso da no-o de disposio em La Distinction, somos levados a colocar
uma e outra vez
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questes como estas. O uso do termo pode ser especfico,
designando o autor tiposde disposies com a ajuda de substantivos e
adjectivos qualificativos, sem maispreciso: a disposio cultivada;
as disposies vulgares e a disposio propria-mente esttica; o
moralismo pequeno-burgus; as disposies regressivas e re-pressivas
das fraces em declnio da pequena-burguesia; a disposio pura;as
disposies constitutivas do habitus cultivado; as virtudes ascticas
e a boavontade cultural da pequena-burguesia assalariada; a
disposio a que as obrasde arte legtimas fazem apelo; as disposies
ascticas dos indivduos em ascen-so; o aristocratismo asctico das
fraces dominadas da classe dominante; ohedonismo higienista dos
mdicos e dos quadros modernos; uma disposioaustera e quase escolar;
a moral hedonstica do consumo; a moral asctica daproduo; o
progressismo optimista; o conservadorismo pessimista; umadisposio
culta, ou mesmo erudita, a disposio distante, desprendida ou
de-senvolta em relao ao mundo e aos outros; disposies e maneiras
tidas comocaractersticas dos burgueses; o hedonismo realista das
classes populares; adisposio poltica conservadora, o
conservadorismo liberal das fraces daclasse dominante; as disposies
reaccionrias; o snobismo tico; as disposi-es de executante.
Anoo pode entrar, para alm disso, na economia geral do raciocnio
terico:o modo de percepo que pe em prtica uma determinada disposio
e uma de-terminada competncia; as experincias diferenciais dos
consumidores em funodas disposies que decorrem da sua posio no
espao econmico; o habitus declasse como forma incorporada da condio
de classe e dos condicionamentos queela impe; as suas propriedades
que podem existir no estado incorporado, sobforma de disposies; a
homogeneidade das disposies associadas a uma posi-o; a dialctica
que se estabelece ao longo de uma existncia entre as disposiese as
posies; todas as propriedades incorporadas (disposies) ou
objectivadas(bens econmicos e culturais); as disposies sociais
contam mais que as compe-tncias certificadas pela escola; as
disposies do habitus especificam-se, paracada um dos grandes
domnios da prtica, realizando esta ou aquela das possibili-dades
estilsticas oferecidas por cada campo; a afinidade entre as
potencialida-des objectivamente inscritas nas prticas e as
disposies; o ajustamento s posi-es das disposies ligadas a
trajectrias; do ponto de vista das suas origens so-ciais e de todas
as disposies correlativas; as disposies socialmente inculca-das;
disposies herdadas; as disposies que esto na base da produo
deopinies.
Em qualquer dos casos, no dispomos de nenhum exemplo de construo
so-cial, de inculcao, de incorporao ou de transmisso destas
disposies. Notemos nenhuma indicao do modo como poderemos
reconstru-las, nem de quemaneira elas agem (ou seja, de que maneira
so activadas ou suspensas, segundoos domnios de prticas ou os
contextos mais restritos da vida social). Elas so sim-plesmente
deduzidas das prticas sociais (alimentares, desportivas,
culturais...)mais frequentemente observadas estatisticamente nas
pessoas objecto deinvestigao.
O nico estudo de caso um pouco mais preciso de que dispomos,
consagrado
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a Martin Heidegger, revela-se, do ponto de vista da reconstruo
das condies emodalidades da constituio do habitus filosfico deste
ltimo, bastante decepcio-nante pela sua pobreza. O habitus de
Heidegger, escreve Pierre Bourdieu, vul-gar professor de filosofia
de origem rural, vivendo na Alemanha de Weimar, inte-gra, na
unidade de um sistema de disposies geradoras, por um lado, as
proprie-dades associadas, antes de mais, a uma posio na estrutura
das relaes de classe,a do Mittelstand, classe que se vive e se quer
como fora de todas as classes, e frac-o universitria desta classe,
fraco sem par de uma classe subjectivamente foradas classes, e
depois, a uma posio na estrutura do campo universitrio, a do
fil-sofo, membro de uma disciplina ainda dominante se bem que
ameaada e, fi-nalmente, a uma posio no campo filosfico, e, por
outro lado, as propriedadescorrelativas da trajectria social
conducente a esta posio, as de universitrio daprimeira gerao, mal
inserido no campo intelectual (Bourdieu, 1975: 150). Eiscomo
definido, do contexto mais global ao contexto mais especfico, o
habitus deHeidegger: a sua pertena de classe, a fraco de classe
qual pertence, o seu ofciode filsofo, o seu lugar particular no
mundo da filosofia e a sua relao de miracu-lado social com o mundo
intelectual. Ser isto suficiente para apreender a frmulageradora
das suas prticas? Quid da socializao familiar de Martin
Heidegger?Da sua socializao escolar? religiosa? sentimental?
amical? poltica?, and so on andso forth.
Desse ponto de vista, a anlise (apesar de inacabada) de Norbert
Elias da eco-nomia psquica dos laos que ligavam Lopold Mozart e o
seu filho, Wolfgang Ama-deus Mozart, bem mais rica, embora no faa
uso de um forte aparelho conceptual.Elias descreve-nos um jovem
Wolfgang Amadeus submetido, a partir dos trs anos,a um regime de
trabalho rigoroso, a uma disciplina implacvel baseada em exerc-cios
regulares compostos pelo pai, chefe de orquestra adjunto em
Salzburgo. Elemostra como, desde muito cedo, a sua vida se vai
reduzir essencialmente msica,como o pai vai tecer laos afectivos
muito fortes com o filho, que passam pela msica:Wolfgang recebia um
prmio de amor suplementar por cada uma das suas perfor-mances
musicais (Elias, 1991: 93). Convencido de que o mais singular dos
traos deuma pessoa s se pode compreender se reconstruirmos o tecido
de imbricaes so-ciais na qual ela est inserida, e de que apreender
os comportamentos de um indiv-duo supe a reconstruo dos desejos que
ele tenta satisfazer e que no esto inscri-tos nele antes de
qualquer experincia (idem: 14), Elias d o exemplo, se bem queainda
demasiado sucinto, do que poderia ser uma sociologia escala
individual daconstituio das primeiras disposies.
A partir da constatao da fraca rentabilidade actual da noo, duas
conclu-ses opostas podem ser tiradas: uma que consiste em pensar
que podemos fazer so-ciologia sem este tipo de conceitos e que a
economia (no sentido duplo do termo)conceptual dos modelos
explicativos deve tender para uma depurao do modelo(exit pois as
noes de disposio, de esquema ou de habitus, consideradas
supr-fluas); a outra, a que eu formulo e que me conduz ao programa
de uma sociologia escala individual, leva-nos a pensar que
necessrio, daqui em diante, pr provade investigaes empricas um tal
conceito retrico para o fazer passar para um es-tatuto de conceito
cientificamente til. Se a sociologia pretende continuar a ser
uma
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sociologia disposicional, em vez de se pr ao lado das abordagens
a-histricas edes-socializantes do mundo social (reduzido a uma
gramtica ou a uma lgica deaco presente, a sistemas de aco, ordem
presente da interaco...), ela deve ul-trapassar a simples invocao
ritual do passado incorporado, tomando por objectoa constituio
social e as modalidades de actualizao desse passado.
Perguntar-nos-emos ento, por exemplo, como se formam as
disposies (ouos esquemas)? Ser que essas disposies se podem ir
apagando progressivamen-te, ou podem mesmo desaparecer
completamente, por falta de actualizao (Peircedizia que as
disposies podem cansar-se)? Ser que elas podem ser destrudaspor um
trabalho sistemtico de contra-socializao (por exemplo, todas as
vonta-des missionrias, sectrias, totalitrias ou escolares de
destruio dos hbitos exis-tentes, considerados como maus hbitos a
erradicar)? Poderemos avaliar os grausde constituio e de reforo das
disposies, segundo, nomeadamente, a frequn-cia e a intensidade do
treino seguido, distinguindo assim as disposies fracas(crenas
passageiras e friveis, hbitos efmeros ou desajeitados) das
disposiesfortes? Como que as mltiplas disposies incorporadas, que
no formam neces-sariamente um sistema coerente e harmonioso, se
organizam ou se articulam?
Podemos ver, atravs desta primeira srie de questes, que no samos
verda-deiramente das questes mais clssicas da sociologia da educao,
apesar de estasserem mais precisas e elaboradas. De facto, difcil
compreender totalmente umadisposio se no reconstruirmos a sua gnese
(isto , as condies e as modalida-des da sua formao). Apreender as
matrizes e os modos de socializao que for-maram tal ou tal tipo de
disposies sociais deveria ser parte integrante de uma so-ciologia
da educao, concebida como uma sociologia dos modos de
socializao(escolares e extra-escolares) e articulada a uma
sociologia do conhecimento. , deresto, um ponto de sociologia geral
inscrito no corao da reflexo weberiana: Namedida em que a aco
social transportada pelos homens (por de trs da acoh o homem"),
Weber considerou sempre que a anlise social devia integrar
precisa-mente a questo do homem, o que ele chama o ponto de vista
antropocntrico, co-locando a questo do tipo de homem que as relaes
sociais so capazes, a longotermo, de moldar" (Grossein, 1996:
61).2
Disposies para agir e disposies para crer
proveitoso distinguirmos as disposies para agir das disposies
para crer, squais podemos reservar o nome de crenas. Estas crenas
so mais ou menos for-temente incorporadas pelos actores
individuais, mas no podem ser sistematica-mente assimiladas a
disposies para agir. Contrariamente a uma tradio filosfi-ca que
comea com Alexander Bain (1859) e que vai at Charles Sanders
Peirce(1931), parece-me pouco judicioso fazer da crena uma disposio
para agir ou
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
2 O autor precisa que o grau de unidade e homogeneidade internas
de uma conduta de vida no pressuposto por Weber; ele s pode ser
estabelecido por anlise emprica.
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um hbito de aco. Da mesma maneira que somos portadores de uma
multipli-cidade de disposies para agir, todos ns mais ou menos
interiorizmos uma mul-tiplicidade de crenas (hbitos do esprito,
segundo a expresso de Peirce, hbi-tos discursivos e mentais) que
podemos mais ou menos verbalizar, mas que, emboa parte, esto
ligadas a normas sociais produzidas, suportadas e difundidas
porinstituies to diversas como a famlia, a escola, os mdia, as
igrejas, as institui-es mdicas, judicirias, polticas, etc.3 Quando
estas crenas esto j constitudas,elas so mais ou menos confirmadas
pela experincia corrente,4 mais ou menossustentadas pelas mltiplas
instituies (escolares, religiosas, polticas, mdi-cas), e a sua fora
varia em funo do seu grau de constituio (aprendizagem), edepois de
confirmao (sobre-aprendizagem).
Mas, se importante no pressupor logo partida que uma crena uma
dis-posio para agir, porque assim no poderamos compreender fenmenos
como ailuso, a frustrao ou a culpabilidade (ou a m conscincia), que
so igualmenteprodutos da distncia entre as crenas e as disposies
para agir, ou entre as crenase as possibilidades reais de aco.
A relao ilusria que qualquer actor pode ter em relao s suas
prpriasprticas no um tema sociologicamente muito na moda. Mas a
simples considera-o das distncias entre o que os actores dizem
sobre o que fazem e o que podemosaprender sobre o que eles fazem
atravs da observao directa dos seus comporta-mentos, permite pr em
evidncia essa iluso (que, obviamente, faz parte do mun-do social e
constitui um elemento do seu funcionamento). Numerosos trabalhos
depesquisa levam-nos a encontrar esse relacionamento ilusrio
(deformante) com aprtica.
Para alm disso, vivemos em sociedades em que os actores podem
incorporarcrenas (normas, modelos, valores, ideais...) sem ter os
meios (materiais e/ou dis-posicionais) para as respeitar,
concretizar, atingir ou cumprir. Por exemplo, viversempre imerso
num ambiente ideolgico-cultural que valoriza os benefcios doconsumo
pode levar os actores de uma sociedade a sonhar em aceder ao
consumopara se sentir bem, ser feliz ou estar em cima do
acontecimento. Mas estesmesmos actores podem estar privados de
meios econmicos que lhes permitamagir no sentido da sua crena,
vivendo essas situaes como uma frustrao tempo-rria ou permanente.
Mais fundamental ainda, os actores podem ter interiorizadonormas,
valores, ideais..., sem ainda terem podido forjar hbitos de aco que
lhespermitam atingir o seu ideal. bem conhecido, hoje em dia, o
hiato entre crenas edisposies nos estudantes que reconhecem a
legitimidade da cultura escolar ten-do, no entanto, grandes
dificuldades escolares. Percebendo-se a partir daquilo queno so, s
lhes resta autodesvalorizarem-se (sou estpido, inculto, no
inte-ligente, Lahire, 1993: 283).
Da mesma maneira, os actores podem, sob o efeito socializador
dos mdia es-critos ou audiovisuais, ter interiorizado modelos de
comportamento ou de
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3 Sobre os hbitos discursivos e mentais ver Lahire (1999a).4
Peirce diz que, entre as razes para duvidar, a experincia
surpreendente e desconcertante que
rompe mais fortemente com o desenrolar tranquilo de uma
crena-hbito.
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existncia sem adquirirem os hbitos que os levariam a
aproximarem-se, nos fac-tos, dos modelos desejados. Neste tipo de
casos, a crena impotente, pois ela noencontra as condies
disposicionais favorveis sua concretizao. Estes desfasa-mentos
entre crenas e condies objectivas de existncia, ou entre crenas e
dispo-sies para agir, conduzem muitas vezes a sentimentos de
frustrao, de culpabili-dade, de ilegitimidade ou de m
conscincia.
necessrio, por isso, fazer um esforo para distinguir os
diferentes elemen-tos constitutivos da estrutura complexa que
formam as combinaes individuaisde disposies para agir (hbitos de
aco) e de crenas (disposies para crer, hbi-tos mentais e
discursivos), elas prprias mais ou menos fracas ou fortes.
Retoman-do sem discusso a proposio filosfica de Charles Sanders
Peirce segundo a qualuma crena qualquer coisa na base da qual um
homem est pronto a agir, numapalavra, um hbito, os socilogos
estariam a ser demasiado apressados e no com-preenderiam por que
razo algumas crenas ou convices morais, culturais, edu-cativas,
ideolgicas ou polticas, embora por vezes muito fortes, no so
efectiva-mente actualizadas, a no ser verbalmente. Isso explica-se,
nomeadamente, pelofacto de aqueles que so portadores dessas crenas
terem constitudo essas convic-es e crenas independentemente dos
hbitos de aco que paralelamente incor-poravam. Existem, pois,
opinies, convices ou crenas de conversa, de dis-curso, ou de
declarao5 (o que no significa de fachada, porque isso suporiaque
existe uma verdadeira natureza escondida por baixo de um simples
vernizde superfcie) que so to profundas como os hbitos que levam a
agir, mas queno foram constitudas nas mesmas condies e no encontram
os mesmos contex-tos ou circunstncias de uso ou de actualizao.
Se retomarmos o exemplo das normas estticas, corporais e
dietticas, consta-taremos que um grande nmero de mulheres e homens
adere s normas em vigornas revistas ou nos mdia audiovisuais, sem
ter necessariamente adquirido os h-bitos alimentares, desportivos e
estticos que lhes permitiriam, na realidade quoti-diana da sua
prtica, tender para esses ideais, ou deles se aproximar. Do
mesmomodo, a armadilha domstica na qual caem frequentemente as
mulheres a queas leva a fazer coisas que, noutro registo, elas no
desejam fazer, ou que chegammesmo a criticar: as crenas e os ideais
podem estar claramente do lado da partilhaigualitria das tarefas,
enquanto hbitos contrrios, propenses para agir opostas,podem ser
postos em prtica. Se reconduzssemos as crenas aos hbitos que levama
agir num determinado sentido, no compreenderamos a ausncia ou as
dificul-dades da aco. No sentido inverso, se reduzssemos as crenas
a um simples ver-niz, no apreenderamos igualmente os fenmenos de
culpabilidade, de mal-es-tar, de vergonha, ou os complexos
provocados pela distoro entre crenas e dis-posies para agir. Estas
distores e, por vezes, estas contradies, 1) entre as dife-rentes
crenas (fortes e fracas) incorporadas por um indivduo em diferentes
con-textos, 2) entre diferentes hbitos-disposies para agir (fortes
e fracos) e 3) entre as
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
5 Algumas disposies para agir, que so hibernadas por causa da
ausncia de contexto deactualizao, podem viver tambm no estado de
sonho acordado.
-
crenas e as disposies para agir, complicam a investigao
sociolgica e obrigamo investigador a perguntar-se sempre que
efeitos precisos de que tipo de socializa-o ele realmente
mediu.
A relao com as disposies
O programa cientfico de uma sociologia escala individual deveria
preencher ovazio deixado por todas as teorias da socializao ou da
inculcao, entre as quais ateoria do habitus, que evocam
retoricamente a interiorizao da exterioridade oua incorporao de
estruturas objectivas sem nunca verdadeiramente lhes darcorpo
atravs da descrio etnogrfica (ou historiogrfica) e da anlise
terica(Bersntein, 1992). Preocupados durante muito tempo
principalmente com a ques-to da reproduo social pela famlia, a
escola e as diferentes instituies culturais esociais, os socilogos
satisfizeram-se em fazer a constatao de uma desigualdadeface s
instituies legtimas (escola e outras instituies culturais) e/ou de
umaherana cultural e social intergeracional (famlia). Resumindo,
poderamos dizerque fora de insistir no isso reproduz-se, acabou-se
por negligenciar o que que se reproduz e como, segundo que
modalidades, isso se reproduz. Resulta-do: uma teoria da reproduo
plena, mas uma teoria do conhecimento e dos mo-dos de socializao
vazia. O que precisamente a escola? Que tipos de laos
deinterdependncia se tecem especificamente na escola? O que que se
transmiteescolarmente? Como que essa transmisso6 opera? As questes
colocam-se damesma maneira no caso da famlia ou de qualquer outra
instituio cultural.
Uma parte das investigaes de sociologia da educao e da cultura
leva pro-gressivamente os investigadores a estabelecerem diferenas
entre modalidades deinteriorizao ou de incorporao de hbitos,
maneiras de fazer, de ver, de sentir.Apercebemo-nos, nomeadamente
na maneira de falar das suas prprias prticas,que os inquiridos no
tm a mesma relao com os seus mltiplos hbitos incorpo-rados. As
investigaes empricas permitem precisar as diferentes maneiras
comoos hbitos incorporados e as suas actualizaes so vividos.
Revela-se, por exem-plo, particularmente til para distinguir as
situaes, diferenciar os termos de dis-posio e de apetncia. O mais
forte do que eu que caracteriza as disposi-es (enquanto propenses,
inclinaes) pode tomar diversamente a forma indivi-dual de uma paixo
(disposio + forte apetncia), de uma simples rotina (disposi-o +
falta de apetncia ou indiferena) ou mesmo de um mau hbito ou de uma
ma-nia perversa (disposio + nojo, rejeio, resistncia em relao a
essa disposio).
De facto, nem tudo se vive no modo da necessidade feita
virtude,7 ou seja,no modo do amor do necessrio, do prazer sentido a
praticar, a consumir..., aquilo aque no se pde escapar. Esta relao
encantada com o mundo impede de ver queas coisas poderiam correr de
outra maneira, que outra escolha poderia ser feita.
20 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
6 A prpria noo de transmisso deve ser revista, se quisermos
progredir no sentido de umasociologia das modalidades concretas da
socializao (Lahire, 1995 e 1998: 206-210).
7 Pierre Bourdieu fala do habitus como necessidade feita virtude
(1979: 433).
-
Estando o constrangimento cultural inicial to bem interiorizado,
a escolha im-pe-se por si mesma e aparece como natural e evidente.
O modelo da necessidadefeita virtude o do constrangimento objectivo
exterior transformado em motorinterior, em gosto (ou em paixo)
pessoal, em necessidade vital. Por exemplo, algu-mas crianas dos
meios populares parecem ter interiorizado precocemente o su-cesso
escolar como uma necessidade interna, pessoal (Lahire, 1995:
239-269). Paraisso, necessrio uma constituio psquica particular
(ligada a uma economia s-cio-afectiva singular, que a anlise
sociolgica das relaes de interdependnciapermite reconstruir), que
no constitui sem dvida o caso mais frequente. Desteponto de vista,
parece que quanto mais a socializao (ou seja, a instalao
corporaldos hbitos) tiver sido precoce, regular e intensa, mais
temos hipteses de ver sur-gir esta lgica de segunda natureza, do
mais forte do que eu.
O mesmo modelo supe tambm que a disposio seja forte (e no fraca
oumediamente forte) e impede quase completamente a distncia em
relao ao papelsocial. Ora, as disposies distinguem-se entre elas
segundo o seu grau de fixao ede fora. Existem disposies fortes e
disposies mais fracas, e a fora e a fraquezarelativas das disposies
dependem, em parte, da recorrncia da sua actualizao.No incorporamos
um hbito durvel em apenas algumas horas, e certas disposi-es
constitudas podem enfraquecer ou apagar-se pelo facto de no
encontraremcondies para a sua actualizao, e s vezes mesmo pelo
facto de encontraremcondies de represso.
Se os socilogos no gostam de distinguir as disposies fortes das
disposi-es fracas porque eles preferem apresentar quadros claros e
ntidos das culturasou dos universos simblicos que eles descrevem,
em vez de situaes mitigadas,mdias ou de meias tintas,
intelectualmente menos satisfatrias, apesar demais prximas do
estado real das coisas. Eles participam assim numa
sobreinter-pretao da intensidade dos comportamentos, das crenas,
das adeses, das con-vices... A sobreinterpretao, escreve Paul
Veyne, consiste em fabricar falsasintensidades. Imaginamos ento que
a intensidade o regime de velocidade decruzeiro do quotidiano, ou
ento, sob o nome de conscincia colectiva, estende-mos a todos os
agentes, e a toda a durao dos fenmenos sociais, os momentos
deintensidade ou o carcter virtuoso de algumas almas de elite
(Veyne, 2000: 65). por essa razo, afirma o historiador, que na
descrio sociolgica, a apreenso dosgraus de habituao precede a
tipologia dos habitus e que os ttulos de captuloda grande histria
Uma poca de f", A identidade muulmana, O paganis-mo e a cidade
antiga so sobreinterpretaes que desconhecem o arco-ris dereaces
desiguais" (idem: 73).
No modelo da necessidade feita virtude tal a adeso prtica que
qual-quer dvida apagada. O actor no resiste, no atrado por outras
vontades, tra-balhado por outras pulses, cansado pelo investimento
na prtica... Um tal modelodesigna, de facto, uma modalidade
particular de existncia do social incorporado eda sua actualizao.
Mas o modo encantado de viver os seus hbitos no o nico,longe
disso.
Assim, os indivduos socializados podem ter interiorizado
duravelmente umcerto nmero de hbitos (culturais, intelectuais...) e
no ter, no entanto, nenhuma
PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIES 21
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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vontade particular de os pr em prtica. Ou eles os pem em prtica
por rotina, porautomatismo, por hbito, ou pior, por obrigao (fao-o,
mas porque sou obriga-do a isso ou foro-me a isso), sem paixo nem
encanto. Contrariamente ideiacomum na sociologia, que consiste em
pensar que ns s gostamos do que domina-mos bem, as pesquisas sobre
prticas culturais permitem separar duas dimensesbem distintas. Por
exemplo, a descoberta de leitores assduos ou de amantes da lei-tura
entre os alunos que tm fracas competncias em francs e, no sentido
inverso,de fracos leitores, muito pouco interessados na cultura
livresca, entre os alunosmais competentes, no ensino bsico como no
liceu, permite dissociar competnciase apetncias. Se as competncias
culturais so muitas vezes uma condio favor-vel ao surgimento de uma
prtica assdua e apaixonada pela leitura, elas no sosuficientes para
criar, de maneira sistemtica, leitores assduos ou
inflamados(Singly, 1993).
Para alm disso, alguns hbitos podem ter sido duravelmente
instalados nocorpo de um indivduo que, num novo contexto de vida
(por exemplo, um qual-quer acontecimento biogrfico: casamento,
nascimento, divrcio, morte de umprximo, novo trabalho...), deseja
ver-se livre do que considera, agora, maus hbi-tos. Passa-se tudo
como se a nova situao o levasse a sentir uma parte das
suasdisposies ou dos seus hbitos como lhe sendo estranha.
Os hbitos podem ento ser interiorizados e s ser actualizados no
modo doconstrangimento ou da obrigao; podem-no ser no modo da
paixo, do desejo ouda vontade; ou, ainda, no modo da rotina no
consciente, sem verdadeira paixonem sentimento de particular
constrangimento. Tudo isso depender da maneiracomo foram adquiridas
essas disposies ou hbitos, do momento da biografia in-dividual em
que eles foram adquiridos e, ainda, do contexto actual da sua
(even-tual) actualizao. Assim, os hbitos que foram interiorizados
precocemente, emcondies favorveis sua boa interiorizao (sem
fenmenos de injuno contra-ditria, sem interferncias na transmisso
cultural devido a dissonncias cultu-rais entre os pais ou entre o
que dizem os adultos e o que eles fazem, entre o que elesdizem e a
maneira como o dizem...) e que encontram condies positivas
(social-mente gratificantes) de concretizao, podem dar lugar quilo
que comummentedenominado por paixo.
Poderamos muito bem passar ao lado de certas matizes importantes
do pontode vista do grau de interiorizao-instalao dos hbitos, das
condies em que issose deu, das modalidades da sua aquisio e das
condies nas quais elas so levadasa funcionar, considerando, de
forma demasiado estritamente durkheimiana, que,expressos na ilusria
linguagem do amor, da rotina ou do constrangimento, os
com-portamentos individuais no so, em todos os casos, seno a
exteriorizao do pro-duto da interiorizao dos constrangimentos
sociais. Colocaramos ento do lado dosenso comum e da ideologia
qualquer discurso sobre a escolha, sobre o desejo, apaixo, a
espontaneidade..., sem nos apercebermos que negligenciaramos aqui
di-menses finas das condies, modalidades e efeitos da
socializao.
Por que razo, salvo algumas excepes, a interiorizao dos modelos
decomportamentos sexuados no vivida no modo de interiorizao de uma
obriga-o, do constrangimento? No entanto, no h nada mais
constrangedor e arbitrrio
22 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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(culturalmente, historicamente...) do que os modelos sexuados,
constituindo omundo social uma espcie de instituio total que
socializa de maneira permanen-te os indivduos em tais diferenas
(Lahire, 2001c). O mundo social continuamen-te sobressaturado de
diferenas sexuadas. Mas justamente porque essas diferen-as so
simultaneamente precoces e omnipresentes que os constrangimentos
soraramente sentidos como tais ou, em todo o caso, so-no muito
menos fortementedo que outros tipos de constrangimentos sociais. Se
os hbitos e os modelos escola-res de comportamento e de pensamento,
por exemplo, so vividos mais frequente-mente pelas crianas e
adolescentes no modo de constrangimento, porque a esco-la, qualquer
que seja o seu grau de integrao familiar, no deixa de ser muitas
ve-zes um universo relativamente estranho e constrangedor,
sobretudo quando elaexige um grau de ascese mximo, como nos perodos
de preparao de exames econcursos. Se as crianas fossem submetidas
ao duro regime da ascese escolar in-tensiva desde a escola primria,
talvez a ascese do liceu, e depois de uma parte doensino superior,
fosse vivida como normal, o que no evidentemente o caso, a noser
excepcionalmente.
Transferncia e suspenso
A teoria do habitus de Pierre Bourdieu toma tambm como garantida
a ideia datransferibilidade ou da transponibilidade e do carcter
generalizvel dos esque-mas, ou disposies, socialmente constitudos.
Ser, porm, que a noo de transfe-ribilidade aumentou a imaginao
sociolgica ou, dito de outra maneira, tornoupossvel investigaes em
cincias sociais que sem ela teriam sido impensveis?Nada menos
certo. Para verificar se houve de facto transferncia, seria
necessrioestudar de maneira precisa um modo de socializao e ver os
efeitos precisos dasua difuso. Por exemplo, a socializao escolar
produz efeitos de socializao jul-gados geralmente, no meio dos
socilogos da educao, durveis e transferveis.Mas, o que que se
transfere da situao escolar para outras situaes extra-escola-res?
Ser um sentido da legitimidade dos produtos culturais (por exemplo,
um sen-tido da pequena e da grande literatura)? Ser uma concepo
geral do conheci-mento, uma relao com o saber? Ser sobretudo um
certo nmero de gestos de es-tudo ou de hbitos intelectuais? Ser um
sentimento pessoal de importncia (deauto-estima elevada) que pode
conferir essa instituio legtima a todos aquelesque a ela se
conformam? difcil pretender que tais processos de transferncia
te-nham sido realmente estudados em pesquisas empricas.
Em contrapartida, os socilogos apoiaram-se muitas vezes nessa
noo,como na de generalizabilidade das disposies e esquemas, para
reforar umacerta preguia emprica. Se cada investigao, sobre tal ou
tal prtica, permitisseverdadeiramente apreender disposies gerais,
que se pressupem transferveispara outras situaes, ento
evitar-se-ia, com efeito, um longo e fastidioso percursode
pesquisa: aquele precisamente para cuja realizao uma sociologia
escala indi-vidual se prope contribuir.
Se a noo de disposio implica uma operao cognitiva de evidenciao
da
PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIES 23
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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coerncia dos comportamentos, opinies, prticas... diversas e por
vezes dispersas,ela no deve, no entanto, conduzir ideia segundo a
qual a disposio seria neces-sariamente geral, transcontextual e
activa em cada momento da vida dos actores. Aprocura da coerncia
tem que ser acompanhada por uma preocupao com a deli-mitao das
classes de contextos, das reas de pertinncia e de actualizao da
dis-posio reconstruda.
Tomada de emprstimo da psicologia piagetiana, a noo de
transferibilida-de suscita, hoje em dia, uma desconfiana crescente
de uma parte dos psiclogoscontemporneos (Loarer e outros, 1995;
DiMaggio, 1997),8 que explicam a relativasolidariedade entre os
esquemas e as situaes (tipos de tarefas, de actividades ou
desaberes) nas quais eles foram construdos-adquiridos (por exemplo,
se certos adul-tos so treinados para memorizar alguns tipos de
objectos, eles mostram-se melho-res que outros quando lhes pedido
para memorizar o mesmo tipo de objectos,mas no melhoram
necessariamente as suas performances mnemnicas quandolhes pedido
para memorizar outro tipo de objectos). Atranferibilidade (de um
es-quema ou de uma disposio) muito relativa, e a transferncia
opera-se tanto me-lhor quanto o contexto de mobilizao esteja
prximo, no seu contedo e na sua es-trutura, do contexto inicial de
aquisio. As disposies actualizam-se sempre sobcondio (Lahire, 1998:
63-69; 2002: 16-18). Mas sobretudo o processo de generali-zao
abusiva ou prematura que constitui o problema essencial
subentendido pelouso de uma tal noo. , de facto, a ideia segundo a
qual os esquemas ou as disposi-es seriam todos e em todas as
ocasies transferveis e generalizveis, que coloca pro-blemas.9 O
investigador curto-circuita ento o procedimento normal da
investiga-o e evita a difcil comparao das prticas de um domnio a
prticas de outro, oumesmo de uma situao a outra no interior de uma
mesma esfera de actividade,comparao que s ela permitiria dizer 1)
se a transferncia ocorreu efectivamentee 2) qual a natureza da
transferncia em questo. Deduzir apressadamente daanlise das prticas
de um indivduo, ou de um grupo social, num contexto
socialdeterminado (qualquer que seja a escala do contexto),
esquemas ou disposies ge-rais, habitus que funcionariam da mesma
maneira em qualquer lugar, em outros lu-gares e em outras
circunstncias, constitui, pois, um erro de interpretao.
As diferenas de comportamento observveis de um contexto para
outro nopoderiam ser produto da refraco de um mesmo habitus (de um
mesmo sistema dedisposies) em contextos diferentes? De facto, o
regime de transferncia generali-zada, no discutido e empiricamente
pouco posto prova, impede-nos de conce-ber (e portanto de observar)
a existncia de esquemas ou de disposies de aplica-o muito
localizada (prprios de situaes sociais ou de domnios de prticas
par-ticulares), de modos de categorizao, de percepo, de apreciao ou
de aco
24 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
8 Michel Huteau escreve tambm: Dizer que h interaco entre os
sujeitos e as situaes omesmo que dizer que, se existem disposies
internas, elas so relativas a classes de situaes.(Huteau, 1985:
64).
9 Utilizador do conceito de habitus, Max Weber no o concebia
necessariamente como um sistemade disposies gerais. Ele pde assim
escrever: Este estado podia corresponder a um habitus
ex-tra-quotidiano de carcter somente passageiro. (1996: 347).
-
senso-motora parciais, ligados a objectos ou domnios especficos.
Ele reduz umprocesso de exteriorizao da interioridade complexo a um
funcionamento ni-co e simples, a saber, o da assimilao/acomodao:
assimilao das situaes aosesquemas incorporados e acomodao (correco)
dos esquemas anteriormenteadquiridos s variaes e s mudanas de
situao.
E se, em vez de se generalizar, as disposies estivessem, por
vezes, simples-mente inibidas ou desactivadas para deixar lugar
formao ou activao de ou-tras disposies? E se elas se pudessem
limitar a no ser mais do que disposiessociais especficas, com
domnio de pertinncia bem circunscrito, aprendendo omesmo indivduo a
desenvolver disposies diferentes em contextos socais dife-rentes? E
se, em vez de um simples mecanismo de transferncia de um sistema de
dis-posies, estivssemos a lidar com um mecanismo mais complexo de
suspenso/ac-o ou de inibio/activao de disposies que supem, com toda
a evidncia, quecada indivduo singular seja portador de uma
pluralidade de disposies e atra-vesse uma pluralidade de contextos
sociais?
Como que o indivduo vive a pluralidade do mundo social, bem como
a suaprpria pluralidade interna? O que que esta pluralidade
(interior e exterior) pro-duz na economia psquica, mental dos
indivduos que a vivem? Que disposies oindivduo investe nos
diferentes universos (no sentido lato do termo) que levadoa
atravessar? Como distribui ele a sua energia e o seu tempo entre
esses mesmosuniversos? Eis uma srie de questes que uma sociologia
escala do indivduo neces-sariamente se coloca.
O singular plural
Devido a um simples efeito de escala, a apreenso do singular
enquanto tal, ou seja,do indivduo como produto complexo de diversos
processos de socializao, obri-ga a ver a pluralidade interna do
indivduo: o singular necessariamente plural. coerncia e
homogeneidade das disposies individuais pensadas pelas sociolo-gias
escala dos grupos ou das instituies, substitui-se uma viso mais
complexado indivduo, menos unificado e portador de hbitos (de
esquemas ou de disposi-es) heterogneos e, em alguns casos, opostos,
contraditrios.10
As cincias sociais (e nomeadamente a sociologia, a histria e a
antropologia)viveram durante demasiado tempo sob uma viso
homogeneizante do indivduona sociedade. Pesquisar a sua viso do
mundo, o seu relacionamento com o mundoou a frmula geradora das
suas prticas (o habitus) foi considerado, e ainda o
PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIES 25
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
10 O estudo dos casos de transfugas de classe essencial para 1)
compreender como umindivduo pode incorporar disposies
contraditrias, como vive com essa contradio(sufocando ou
suspendendo as suas antigas disposies? Fundindo-separando
muitoclaramente universos onde activar as suas disposies
contraditrias? Sofrendo a cadainstante a contradio bloqueadora das
disposies?), e 2) para avaliar em que medida apluralidade relativa
das disposies de que so portadores os indivduos d origem ou no
aconflitos psquicos ou tenses identitrias.
-
amplamente hoje em dia, como um procedimento bvio. Ora,
necessrio lutarcontra uma tendncia filosfica, e mais precisamente
fenomenolgica, que, falan-do normalmente (no singular) do
estar-no-mundo de um sujeito, da nossa rela-o ou do nosso
relacionamento com o mundo e com os outros, desenvolvemaus hbitos
discursivos (e mentais) nos socilogos que so seus depositriosmais
ou menos conscientes.
Por exemplo, na obra que defende filosoficamente a ideia de
sistema de dis-posies coerente e homogneo, Emmanuel Bourdieu usa o
exemplo do clebretrabalho de Erwin Panofsky sobre Galileu
(Panofsky, 1992), que pe em evidncia ofacto de que os mltiplos
investimentos intelectuais do grande fsico no se re-duzem a uma
justaposio de actividades separadas, formando pelo contrrio
umsistema de prticas homlogas (1998: 7). A frmula geradora das
prticas cientfi-cas do fsico assim designada por Panofsky: trata-se
de purismo crtico. E.Bourdieu conclui, pois, que atravs da ideia de
purismo crtico, Panofsky apre-ende a propriedade fundamental em
funo da qual se organiza todo o comporta-mento do grande fsico,
conferindo-lhe a sua coerncia e o seu estilo prprio.(idem: 8). No
entanto, Panofsky no diz que o estilo prprio de Galileu se
con-densa nessa frmula disposicional (o purismo critico). Ele no
fala de todo ocomportamento de Galileu, mas do comportamento
erudito de Galileu-fsico. Adiferena enorme. Sabendo que Galileu no
se reduz ao seu ser-fsico, temos algu-ma dificuldade em pensar que
o purismo crtico poderia estar na origem doscomportamentos
domsticos, amicais, amorosos, alimentares, vestimentares... domesmo
homem. Da mesma maneira, quando se evoca o habitus literrio de um
ro-mancista como Gustave Flaubert (Bourdieu, 1992) ou o habitus
filosfico de um au-tor como Martin Heidegger (Bourdieu, 1975),
podemo-nos questionar em que me-dida estes ltimos importam o mesmo
sistema de disposies para toda uma s-rie de situaes sociais
extraliterrias ou extrafilosficas. O conjunto dos seus
com-portamentos sociais qualquer que seja o domnio considerado
seria redutvela esse sistema? A observao dos comportamentos reais
mostra que um tal pres-suposto est longe de ser evidente.
Em sentido contrrio, alguns socilogos ps-modernos parecem, no
entanto,deleitar-se com a ideia de disperso, de rotura, de
fragmentao ou de dissemina-o infinitas do actor. Ora, no se trata
de resolver de uma vez por todas, a priori, aquesto (do grau) da
unicidade ou da pluralidade do actor individual, mas de colo-car a
questo de quais so as condies scio-histricas que tornam possvel a
pro-duo de um actor plural ou de um actor caracterizado por uma
profunda unicida-de. Aescolha da unicidade ou da fragmentao
constitui, na maior parte das vezes,um postulado no discutido e
funda-se, em alguns casos, mais sobre pressupostosticos do que
sobre constataes empricas. De facto, a coerncia (relativa) dos
h-bitos (dos esquemas ou disposies) que cada indivduo pode ter
interiorizado de-pender da coerncia dos princpios de socializao aos
quais ele foi submetido.Quanto mais um indivduo tiver sido
colocado, simultaneamente ou sucessiva-mente, no seio de uma
pluralidade de contextos sociais no homogneos, e por ve-zes mesmo
contraditrios, mais essa experincia ter sido vivida de maneira
preco-ce, e mais estaremos a lidar com um indivduo com um patrimnio
de disposies,
26 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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de hbitos e de capacidades no homogneo, no unificado, variando
segundo ocontexto social no qual tenha sido levado a evoluir.
O problema da natureza e da organizao do patrimnio individual de
dispo-sies deve-se ento colocar no trabalho emprico e no deve ser
resolvido antesmesmo da questo ter sido colocada, atravs da
utilizao de termos muito cons-trangedores do tipo sistema de
disposies. A ideia de patrimnio (ou destock) de disposies permite
rever em baixa as pretenses interpretativas de cer-tos socilogos
disposicionalistas. Que o indivduo no seja nem uma realidade
emmigalhas (verso ps-moderna do indivduo estilhaado, disseminado,
semunidade nem coerncia...), nem uma pura adaptao sensvel s
exigncias va-riveis dos contextos (verso empirista da experincia),
no deve conduzir a exage-rar a coerncia das experincias
socializadoras e dos traos disposicionais que elasimprimem nos
indivduos. Como que certas disposies se combinam entre sipara
explicar comportamentos em tal ou tal contexto? Tm elas existncia
relativa-mente, independente umas das outras e combinam-se entre si
de maneira diferen-te, dependendo dos contextos de aco? Como podem
elas entrar em conflito e en-travar a aco ou a deciso? Eis algumas
questes que devem, mais uma vez, en-contrar terrenos empricos para
a sua resoluo, em vez de serem tratadas na or-dem puramente terica
e retrica.
As mltiplas inscries contextuais da aco
Com excepo de uma parte das investigaes de natureza
scio-lingustica parti-cularmente sensveis s variaes contextuais
(David Efron, William Labov, JohnGumperz...), raros so os trabalhos
sociolgicos que, de facto, colocaram como ob-jectivo a comparao das
prticas de um mesmo indivduo (e no globalmente deum grupo de
indivduos) em esferas de actividades diferentes, universos
sociaisdiferentes, tipos de interaco diferentes. Estudando os
indivduos em cenriosparticulares, no quadro de um s domnio de
prticas (seguindo um recortesubdisciplinar particularmente
contestvel cientificamente: sociologia da famlia,da educao, da
cultura, da arte, do trabalho, da sade, da juventude, sociologia
re-ligiosa, poltica, jurdica...), os socilogos apressam-se muitas
vezes, de maneira er-rada, a deduzir, da anlise dos comportamentos
observados nestes cenrios, dispo-sies gerais, habitus, vises do
mundo ou relaes gerais com o mundo.
Uma parte do programa sociolgico que proponho implica exigncias
meto-dolgicas novas. Para apreender a pluralidade interna dos
indivduos e a maneiracomo ela age e se distribui segundo os
contextos sociais, necessrio dotar-mo-nos de dispositivos
metodolgicos que permitam observar directamente ou re-construir
indirectamente (atravs de diversas fontes) a variao contextual
(nosentido lato do termo) dos comportamentos individuais. S esses
dispositivos me-todolgicos permitem julgar em que medida algumas
disposies so transferveisde uma situao para outra e outras no, ver
como joga o mecanismo de inibi-o-suspenso/activao-operacionalizao
de disposies e avaliar o grau de he-terogeneidade ou de
homogeneidade do patrimnio de hbitos incorporados
PATRIMNIOS INDIVIDUAIS DE DISPOSIES 27
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pelos indivduos no decorrer das suas socializaes anteriores. Se
a observao di-recta dos comportamentos continua a ser o mtodo mais
pertinente, ela raramen-te possvel, na medida em que seguir um
indivduo nas diferentes situaes dasua vida uma tarefa pesada e
deontologicamente problemtica. Mas mesmo a en-trevista e o trabalho
de arquivo podem ser reveladores desde que sejamos sens-veis tanto
s variaes como s invariantes de mltiplas pequenas contradies,de
heterogeneidades comportamentais imperceptveis aos inquiridos que,
pelocontrrio, tentam muitas vezes manter a iluso da coerncia e da
unidade de simesmos.
Trata-se no s de comparar as prticas dos mesmos indivduos em
universossociais (mundos sociais, que podem em alguns casos, mas no
sistematicamente,organizar-se sob a forma de campos de lutas) tais
como o mundo do trabalho, a fa-mlia, a escola, a vizinhana, a
igreja, o partido poltico, o mundo dos lazeres, as ins-tituies
culturais..., mas tambm de diferenciar as situaes no interior
destes di-ferentes grandes domnios nem sempre to claramente
separados na realidadesocial , tendo em conta as diferenas
intrafamiliares, intraprofissionais...
As variaes intra-individuais das prticas e das
prefernciasculturais
De Thorstein Veben (1899) a Pierre Bourdieu (1979), passando por
Edmond Goblot(1925), uma longa tradio intelectual ps em evidncia as
funes sociais da arte eda cultura nas sociedades diferenciadas e
hierarquizadas, e nomeadamente os lu-cros sociais de distino
ligados ao domnio das formas culturais mais raras e mais le-gtimas.
Os socilogos da cultura esto assim, h muito tempo, habituados a
pen-sar a Cultura (a alta cultura ou a grande cultura) nas suas
relaes com asclasses sociais ou as fraces de classes, e a
evidenciar a constatao das desigual-dades sociais de acesso
Cultura. As classes sociais e a sua distncia, maior oumenor, em
relao cultura dominante, as hierarquias culturais que ordenam
osgrupos, as instituies, as obras e as prticas, do mais legtimo ao
menos legtimo,eis os elementos-chave da interpretao sociolgica das
prticas e preferncias cul-turais de h 40 anos a esta parte, tanto
em Frana como nos Estados Unidos (Lynes,1954); Murphy, 1988;
Levine, 1988; Beisel, 1990). A situao social global tal como traada
desde meados dos anos 60 pode ser resumida da seguinte maneira:
classesdominantes cultas, com uma relao descontrada com a cultura
entre os que be-neficiaram de uma educao cultural precoce, classes
mdias caracterizadas poruma boa vontade cultural e uma tenso
hipercorrectiva, mas oscilando entre onobre e o popular, e classes
dominadas mantidas distncia da Cultura e sen-tindo uma vergonha ou
uma indignidade cultural permanente.
este quadro que podemos muito seriamente e rigorosamente pr em
ques-to, adoptando um outro ponto de vista de conhecimento que no
aquele que es-crutina somente as distncias interclasses; um ponto
de vista que considere de ma-neira sistemtica as prticas e as
preferncias culturais sob o ngulo da variaointra-individual dos
comportamentos (Lahire, 2004).
28 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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Procedendo deste modo, trazemos tambm um outro olhar sobre a
questomuito debatida e complexa dos pblicos da cultura. A histria
cultural foi levada,desde h 20 anos a esta parte, a recolocar em
questo o uso pouco reflexivo e dema-siado automtico das categorias
de classificao dos pblicos ou das popula-es tidas por demasiado
tempo como evidentes no seio da histria estatstica.Por exemplo, em
vez de utilizar recortes sociais inquestionados (elite/povo,
domi-nantes/dominados, hierarquias socioprofissionais ou
socioculturais) para apreen-der as diferenas culturais, o
historiador Roger Chartier propunha o procedimentoinverso, que
consiste em partir dos objectos, das obras, dos cdigos, das
formas,dos dispositivos simblicos para reconstruir as comunidades
que deles se apro-priavam. Descobriram-se ento princpios plenamente
sociais de diferencia-o relativamente inditos, que uma concepo
mutilada do social (Chartier,1989: 1511) tinha acabado por fazer
esquecer: o sexo, a gerao, a situao familiar(celibato, viuvez,
casamento, etc.), a pertena religiosa, a tradio educativa ou
cor-porativa, o percurso escolar, a posio intelectual, etc. Mas em
vez de ir dos objec-tos, instituies ou prticas em direco aos
pblicos que eles atraem e que os apro-priam, podemos tambm, sem
arriscar dissolver todos os princpios de estrutura-o dos objectos
de investigao, interrogarmo-nos como os mesmos indivduospodem fazer
parte de pblicos to diversificados (pblicos da televiso, da rdio,do
teatro, do cinema, dos museus, das salas de concerto, da
literatura, etc.) e por ve-zes francamente heterogneos. Ao
concentrarmo-nos demasiado na lgica das in-terpretive communities,
no sentido de Stanley Fish (1980), podemos acabar por es-quecer que
os indivduos passam muito frequentemente de uma comunidadepara
outra, e que eles se caracterizam, desse ponto de vista, por uma
pluralidade depertenas sociais e simblicas, inscrevendo as suas
prticas (e nomeadamente assuas prticas culturais) em mltiplos
lugares e tempos.
No se trata em nenhum caso de negar a existncia de desigualdades
sociaisperante as formas culturais mais legtimas. Mas a mudana de
escala de observa-o permite esboar uma outra imagem do mundo
social. Comeando por conside-rar as diferenas internas de cada
indivduo (variaes intra-individuais: o mesmoindivduo faz isto e
aquilo, gosta disto mas gosta tambm daquilo, gosta disto masdetesta
em compensao aquilo, etc.) antes de voltar s diferenas entre
classes so-ciais (as variaes interclasses), chegamos a uma imagem
do mundo social que nonegligencia as singularidades individuais e
evita a caricatura cultural dos grupossociais. O facto central que
surge ento que a fronteira entre legitimidade cultural(a alta
cultura) e ilegitimidade cultural (a subcultura, o simples
divertimen-to) no separa somente em termos globais
(estatisticamente) as diferentes classes,mas tambm as diferentes
prticas e preferncias culturais dos mesmos indiv-duos, em todas as
classes da sociedade. Quaisquer que sejam as suas
propriedadessociais (pertena social, nvel de diploma, idade ou
sexo), uma mesma pessoa tergrandes hipteses estatsticas de ter
prticas e gostos variveis do ponto de vista dasua legitimidade
cultural, segundo os domnios (cinema, msica, literatura, televi-so,
etc.) ou as circunstncias da prtica.
escala individual, dois grandes factos impem-se, pois, ao
analista. O pri-meiro a grande frequncia estatstica dos perfis
culturais individuais compostos
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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por elementos heterogneos ou dissonantes (no sentido em que eles
pertencem aregistos culturais muito legtimos e muito pouco
legtimos): estes tipos de perfisso absolutamente ou relativamente
maioritrios em todos os grandes grupos so-ciais (se bem que mais
provveis nas classes mdias e superiores do que nas
classespopulares), em todos os nveis de escolaridade (mesmo se
muito mais provvel na-queles que terminaram o ensino secundrio do
que nos que o no fizeram) e em to-dos os grupos etrios (se bem que
cada vez menos provvel medida em que avan-amos na idade). O segundo
facto que chama a ateno a maior probabilidade deos indivduos que
compem a populao inquirida terem um perfil cultural conso-nante por
baixo (de fraca legitimidade) mais do que por alto (de forte
legitimi-dade): seguindo assim a pirmide das condies sociais,
scio-logicamente muitomais difcil manter um alto nvel de
legitimidade cultural numa srie de domniosdo que permanecer
afastado de qualquer forma de legitimidade cultural.11
A produo social do indivduo
Numerosas instituies sociais contribuem para forar a unicidade
da pessoa. E um programa cientfico por si s o de estudar as condies
sociais (prticas e dis-cursivas) de produo do indivduo moral e
ideolgico como um ser isolado, coe-rente, autnomo, singular,
fundamentalmente fechado sobre si mesmo antes dequalquer contacto
com outrem, dispondo de uma interioridade e de um eu autnti-co. Se
a sociologia se pode interessar pelo sujeito emprico (no sentido de
LouisDumont) e pelas lgicas sociais apreendidas escala desse
sujeito emprico (queno tem nenhuma parecena com o indivduo
dessocializado do individualismometodolgico), ela no pode deixar de
se interessar, tambm, pela produo dasimagens (morais, ideolgicas,
pseudocultas...) do eu individual, contra as quais elateve que se
construir para existir enquanto tal.
Um programa de investigao poderia utilmente ser constitudo no
sentidode uma sociologia histrica das formas de unificao discursiva
(nomeadamentenarrativas) do eu. A iluso de um eu unificado,
homogneo, coerente no deixade ter fundamento social. Poderamos
mesmo dizer que a celebrao da unidadedo eu uma empresa permanente
nas nossas sociedades. Acomear pelo apelidoassociado ao nome
prprio, simbolizado na assinatura manuscrita, que consa-gram a
singularidade da pessoa e acompanham alguns de ns (os homens
maisfrequentemente do que as mulheres) durante toda a vida, e
terminando por todas
30 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
11 O procedimento metodolgico complexo posto em prtica a partir
da investigao Prticasculturais dos Franceses 1997" (DEP/Ministre de
la Culture), e que permite enunciar taisresultados, longamente
explicitado em Lahire (2004: 117-207). Os perfis culturais
foramconstrudos a partir de indicadores sobre os gneros musicais
ouvidos mais frequentemente, osgneros de livros lidos mais
frequentemente, os gneros de filmes preferidos, as emisses
deteleviso preferidas, os gneros de sadas ou visitas culturais e de
lazeres-divertimentospraticados. Este procedimento estatstico foi
completado por 111 entrevistas realizadas apessoas com propriedades
sociais diversificadas (segundo a idade, sexo, nvel de
escolaridade,natureza da formao escolar, origem social e posio
socioprofissional).
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as formas discursivas de apresentao de si, da sua histria, da
sua vida (curriculumvitae, elogios fnebres, noticias necrolgicas,
panegricos, biografias e autobiogra-fias, narrativas sobre si
prprio ou outrem, bildungsromam, histria de vida do acu-sado no
mbito de um tribunal...). Em grande parte destes gneros
discursivos, opostulado da unidade do sujeito forte. O eu que se
exprime ou o ele que nar-rado garantem uma espcie de perenidade e
de permanncia de uma identidadepessoal coerente e uniforme.
Deste ponto de vista, possvel um dilogo renovado com a histria,
a prop-sito da prtica da biografia histrica. Como modificar o gnero
biogrfico que pri-vilegia, enquanto gnero discursivo, a coerncia de
um percurso, de uma vida oude um procedimento, em detrimento de
todas as incertezas, incoerncias ou mes-mo contradies de que esto
cheias as personagens histricas reais? No se trata,de modo algum,
de ceder iluso positivista de poder apreender a totalidade deuma
personalidade, em todas as facetas da sua existncia. Mas evitar o
apaga-mento ou a eliminao sistemtica dos dados heterogneos e
contraditrios, cru-zando os mltiplos dados de arquivo sobre o mesmo
indivduo, abordando-o apartir de aspectos muito diferentes da sua
actividade social, em vez de simples-mente lhe desenhar o retrato
coerente como artista, como rei, como guerreiro, comohomem de
Estado ou da Igreja sob o pretexto de que a cincia
necessariamentesimplificadora e que a reconstruo cientfica
inevitavelmente mais coerente doque a realidade, ou que a cincia pe
necessariamente ordem na desordem do mun-do emprico , uma maneira
de renovar o gnero biogrfico na histria tornan-do-o um lugar
experimental (no sentido de lugar de experincias, de tentativas)
dereflexo metodolgica. Juntar-nos-amos, deste modo, vontade
expressa porGiovanni Lvi quando apelava reconsiderao da tradio
biogrfica estabeleci-da, assim como da prpria retrica da histria,
que se baseiam em modelosque associam uma cronologia ordenada, uma
personalidade coerente e estvel,aces sem inrcia e decises sem
incertezas (Lvi, 1989: 1326).
Esta produo do indivduo como indivduo singular, autnomo muitas
ve-zes procurada no contedo dos discursos (ideolgicos,
filosficos...) (Dumont,1983; ou Taylor, 1998), mas no deveramos
negligenciar o estudo das instituies,dos dispositivos sociais ou
das configuraes de relaes de interdependncia quecontribuem para
produzir este sentimento de singularidade, de autonomia, de
in-terioridade, de identidade de si para si (Elias, 1991: 64-67).12
Podemos nomeada-mente, como nos convida a fazer Mary Douglas,
tentar estabelecer de que modo asconcepes de identidade individual,
ou do eu, dependem de maneira estreitadas instituies religiosas e
judicirias. Se a concepo do eu unitrio impregnoutanto as nossas
sociedades, porque ela foi ligada ideia de responsabilidade
in-dividual, responsabilidade perante Deus (Juiz supremo) ou
perante os homens(tribunal de justia). Mary Douglas lembra que John
Locke queria justificar a exis-tncia de um tal eu unitrio e
responsvel porque ele o achava necessrio do pon-to de vista
teolgico. Quando comparecemos perante o Juiz supremo, diz ele,
como
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
12 Aescola contribui, pela sua parte, para formar o estudante
autnomo (Lahire, 2005: 322-347).
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seria possvel responder pelos nossos actos se tivssemos
personalidades mlti-plas e fragmentrias?" (Douglas, 1999: 155).
Na mesma linha, no que se refere ligao entre julgamento,
responsabili-dade e identidade individual, podemos lembrar a
etimologia da expressoforo interior, que significa tribunal
interior ou tribunal da conscincia. Ondeestaria, de facto, a nossa
responsabilidade individual se o mundo social aceitassede maneira
oficial a ideia de uma pluralidade do(s) eu? na sua forma
patolgi-ca que as instituies aceitam a maior parte das vezes esta
ideia (desdobramento dapersonalidade, pessoa tendo perdido o
controlo sobre si prpria e que j no eraverdadeiramente ela prpria
no momento de um acto), mesmo se, na vida quoti-diana, so numerosas
as ocasies para dizer (como para se desculpar, precisa
muitojustamente Mary Douglas) que j no somos ns prprios: no era eu,
no eraeu prpria, deixei de me reconhecer, no o fiz conscientemente,
voluntaria-mente, etc. este tipo de pluralidade interna que os
estudos de casos fazem apare-cer (Lahire, 2002). Os actores no so
feitos de um s pedao, mas pelo contrrio socolagens compostas,
complexos matizados de disposies (para agir e para crer) mais ou
me-nos fortemente constitudos. Isso no significa que sejam sem
coerncia, mas simsem princpio de coerncia nico de crenas (modelos,
normas, ideais, valores...) e dedisposies para agir.
Tudo isso significa que a ideia de um si ou de um eu (de uma
personali-dade...) nico e unificado , para utilizar uma expresso de
Durkheim, uma ilusosocialmente bem fundada, e que no conseguimos
ver muito bem por que milagrea realidade das inclinaes, das
disposies e dos hbitos individuais corresponde-ria a esse modelo
social unificador de constituio do eu. Pressupondo ou postu-lando a
ideia de uma unicidade individual (estilo cognitivo ou
comportamental,princpio gerador, frmula geradora, motor de uma
personalidade...), as cinciassociais so classicamente vtimas das
mltiplas instituies que pr-formam asconcepes do que um
indivduo.
Essas categorias do senso comum no so demasiado incmodas desde
quenos dediquemos essencialmente a analisar as variaes intergrupos
ou intercate-gorias. Mas elas tornam-se, em compensao, poderosos
obstculos ao conheci-mento sociolgico quando, mudando
intencionalmente a focagem de objectivo,nos interessamos
preferencialmente pelas variaes interindividuais e, mais
ainda,pelas variaes intra-individuais, em funo dos contextos
(domnios de prticas,esferas de actividade, tipos de interaco...).
Apartir do momento em que tentamosapreender a realidade do social
incorporado (individualizado) a interrogaopodendo centra-se tanto
nos grandes nmeros como em casos particulares, tantoem casos
estatisticamente frequentes como em casos estatisticamente atpicos
oumarginais somos obrigados a redefinir os instrumentos de anlise e
nomeada-mente a concepo que temos do que so essas pequenas mquinas
produtorasde prticas, essas matrizes disposicionais
(comportamentais, cognitivas, afectivas,apreciativas...), retendo
no corpo de cada indivduo o produto das diferentes sriesde
experincias passadas.
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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A generalidade do singular
Contrariamente ao que poderamos temer numa primeira abordagem, a
sociologia escala individual no se ope, de modo algum, s abordagens
estatsticas. No sela se alimenta das constataes e das anlises da
sociologia estatisticamente fun-dada, como, depois de termos
revelado a heterogeneidade intra-individual obser-vando de perto,
podemos apreender claramente a pluralidade das disposies
in-dividuais em grandes nmeros e a partir de inquritos
quantitativos clssicos(Lahire, 2001a e 2005). Asociologia escala
individual no tem como especialidadeocupar-se de casos
excepcionais, estaticamente atpicos e improvveis, mesmo queesses
casos lhe sejam, por vezes, teis para fazer surgir alguns dos
problemas queela se prope tratar especificamente (por exemplo, o
caso dos transfugas declasse).
Como o mostra o estudo histrico de Carlo Ginzburg sobre um caso
atpico, ode um moleiro chamado Menocchio (Ginzburg, 1980), a
apreenso do singular pas-sa necessariamente por uma compreenso do
geral, e poderamos dizer que no hnada mais geral do que o singular.
Pouco a pouco conseguimos compreender como segundo que frices
especficas entre propriedades gerais, entre experinciasde formas de
vida social Menocchio se tornou no que . Para compreendermos
osocial no seu estado dobrado, individualizado, necessrio ter um
conhecimentodo social no seu estado desdobrado, alargado; ou, dito
de outra forma, para darconta da singularidade de um caso,
necessrio compreender os processos geraisde que este caso no seno
um produto complexo.
Dado que o prprio Ginzburg se refere a Conan Doyle e ao seu
heri, SherlockHolmes, para explicitar o paradigma indicirio no qual
se inscrevem as suasobras, poder-nos-amos apoiar no trabalho de
investigao deste ltimo para mos-trar que conseguir converter
detalhes insignificantes em detalhes reveladores, ouseja, em ndices
de tal ou tal trao de carcter, propriedade, prtica ou disposio,supe
um conhecimento geral (histrico, geogrfico, antropolgico,
econmico...)do mundo social e das suas tendncias histricas, quer
elas tenham sido estatistica-mente estabelecidas ou reconstrudas a
partir de bases documentais, de observa-es directas ou de
testemunhos... Assim, Sherlock Holmes s consegue levar acabo as
suas dedues na base de um conhecimento incrivelmente erudito:
eleapoia o seu raciocnio sobre o conhecimento que tem de certos
hbitos profissio-nais, culturais, nacionais... Longe de repousar
sobre conhecimentos singulares,elas supem a operao de conhecimentos
gerais mobilizados no sentido de umacompreenso dos casos
singulares.
A ideia que nos surge espontaneamente face a tudo aquilo que se
pode pare-cer com os case-studies, a da fraca representatividade
estatstica dos casos estuda-dos. Ao estudo dos casos singulares
opor-se-ia o conhecimento das tendncias ge-rais, das recorrncias do
mundo social estatisticamente apreendidas. Mas singu-lar no
significa no repetvel ou nico. Constituindo o singular como o
in-verso do geral, actualizamos uma velha oposio entre cincias
nomotticas e cin-cias ideogrficas, mtodo generalizante e mtodo
individualizante, que no temqualquer pertinncia.
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SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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Paradoxalmente, o estudo de caso, na sua singularidade e no a
ttulo de casoilustrativo relativamente a figuras ideal-tpicas ou a
tendncias ou propriedadesgerais estatisticamente associadas na
maior parte das vezes a um grupo, pode evi-denciar situaes bem mais
frequentes estatisticamente do que poderamos crer.De facto, os
investigadores em cincias sociais trabalham muitas vezes com a
ajudade dicotomias que lhes permitem ver como se distribuem os
diferentes grupos oucategorias de indivduos entre dois plos
opostos. Por exemplo, a sociologia daeducao pode opor os estudantes
segundo estes tendam mais para o plo ascticoou mais para o plo
hedonista. Poderemos assim ter em mente duas figurasideal-tpicas do
estudante: por um lado, o estudante asceta, totalmente virado parao
trabalho escolar, sacrificando tudo (sociabilidade amical,
sentimental e familiar,tempos livres e frias...) para se consagrar
aos estudos, e por outro, o estudante bo-mio, que gosta da festa,
dos tempos livres, dos amigos, dos amores e que trabalhade maneira
necessariamente descontnua, ocasional (Bourdieu e Passeron,
1964;Lahire, 1997). No entanto, se procurarmos na realidade os
estudantes que corres-pondem melhor a estes dois plos,
arriscamo-nos a ter estatisticamente muito pou-cos candidatos. A
maior parte deles estaro entre os dois, em situaes mdiasque so, de
facto, situaes mistas, ambivalentes: eles no so nem monstros de
tra-balho, nem estroinas totais, mas alternam, segundo os contextos
e, nomeadamente,as companhias do momento (e as suas presses),
tempos dedicados ao trabalho etempos de lazer, sofrendo
alternativamente o peso do seu ascetismo constrangido ea m
conscincia do estudante hedonista (Lahire, 1998: 76-79). Portadores
de dis-posies (mais ou menos fortemente constitudas) relativamente
contraditrias,eles so mais numerosos estatisticamente do que os
seus colegas exemplares (doponto de vista da oposio terica
referida). E mesmo os estudantes mais tpicosdos plos opostos podero
ser trabalhados por desejos contraditrios, pelo
menossimbolicamente.
Do mesmo modo, quando o socilogo da educao tenta compreender
osprocessos de insucesso e de sucesso escolares a partir da oposio
conceptualentre dois tipos de cdigos sociolingusticos (Bernstein,
1975) ou de dois arbitrriosculturais (Bourdieu e Passeron, 1970),
ele concentra geralmente a sua anlise nosplos em oposio, esquecendo
as situaes mistas ou ambivalentes dos estudan-tes mdios, cujas
disposies escolares no so inexistentes, mas fracas, ou, emtodo o
caso, no suficientemente fortes para se imporem sistematicamente
peranteas disposies no escolares. No por um acaso epistemolgico que
os socilogosda educao se dedicaram essencialmente a analisar os
casos de sucesso e os ca-sos de insucesso escolar, negligenciando
totalmente o caso dos estudantes m-dios. Mas mesmo nos casos de
crianas com grandes dificuldades escolares, elasnunca deixam a
escola sem passarem por mudanas, e tambm elas
desenvolvemcomportamentos escolares ambivalentes (Lahire,
1993).
No se pode, pois, recriminar o programa de sociologia escala
individualpor se reduzir ao estudo, interessante mas secundrio e
mesmo marginal, das ex-cepes estatsticas. Muito pelo contrrio.
Paradoxalmente, numerosos investiga-dores, ao comentarem os seus
quadros estatsticos, interpretam os seus dados nalgica das
aproximaes relativas de categorias ou grupos de indivduos aos
plos
34 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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da oposio considerada pertinente, e perdem, ao mesmo tempo, a
apreenso doscasos intermdios que so, muitas vezes, os mais
numerosos, os mais vulgares. Oexemplo (demasiado) perfeito, que por
vezes condensa ou acumula o conjuntodas propriedades
estatisticamente mais associadas a um grupo ou a uma categoria, sem
dvida necessrio quando queremos ilustrar uma anlise baseada em
dadosestatsticos. Ele muitas vezes utilizado para desenhar o
retrato de uma poca, deum grupo, de uma classe ou de uma categoria.
No entanto, pode tornar-se engana-dor e caricatural a partir do
momento em que j no lhe atribumos o estatuto deilustrao
(representante de uma instituio, de uma poca, de um grupo...), mas
otomamos por um caso particular do real, ou seja, como o produto
complexo e singularde experincias socializadoras mltiplas. Pois a
realidade social incarnada em cadaindivduo singular sempre menos
ch, menos simples do que isso. De resto, se oscruzamentos analticos
dos grandes inquritos nos indicam as propriedades (re-cursos,
atitudes, prticas...) estatisticamente mais associadas a tal grupo
ou tal cate-goria, impossvel deduzir da que cada indivduo que compe
o grupo ou a cate-goria (nem mesmo a maior parte deles) rene a
totalidade (nem mesmo a maioria)dessas propriedades.
Do mesmo modo, na medida em que tenta apreender combinaes
relativamen-te singulares de propriedades gerais, a sociologia
escala individual encontra algu-mas dificuldades com um certo uso
do mtodo ideal-tpico. Se o socilogo se contentaem fornecer quadros
coerentes sem dar a ler casos menos homogneos, menos claros,mais
ambivalentes, ento ele apresenta um social (e nomeadamente casos
individuais)estranhamente coerente e quase inexistente. O mtodo
ideal-tpico vai nesse caso cla-ramente no sentido de uma apreenso
do social desdobrada e homogeneizada. Adificuldade no vem tanto de
Weber, consciente do facto de que os elementos hetero-gneos so em
si mesmos compatveis (Weber, 1996: 206) e que os homens nunca
fo-ram livros burilados em todos os detalhes, como nunca foram
construes lgicasou livres de contradies psicolgicas (idem: 364),
mas dos seus utilizadores, que con-fundem, como diz Marx, a lgica
das coisas com as coisas da lgica.
As razes de uma sociologia escala individual
Centrando-se na anlise dos vincos mais singulares do social, a
sociologia escala in-dividual inscreve-se numa longa tradio
sociolgica que, de mile Durkheim aNorbert Elias, passando por
Maurice Halbwachs, tem como desgnio ligar cada vezmais intimamente
a economia psquica aos quadros da vida social. Um tal estudo
suposto dotar-se das ferramentas conceptuais e metodolgicas
adequadas.
o interesse sociolgico das variaes interindividuais e
intra-individuaisque tento pr em evidncia h alguns anos (Lahire,
1995, 1998, 1999b, 2001a, 2002),no quadro de uma teoria da aco
fundada sobre uma sociologia da pluralidadedisposicional (a
socializao passada mais ou menos heterognea e d lugar a dis-posies
para agir e para crer heterogneas e, por vezes, mesmo
contraditrias) econtextual (os contextos de actualizao das
disposies so variados). O que seabre aqui o campo de uma sociologia
que se esfora por no negligenciar as bases
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individuais do mundo social, e que estuda, assim, indivduos
atravessando cen-rios, contextos, campos de fora, etc.,
diferentes.
Mas poderamos legitimamente perguntar que razes levam o socilogo
a es-tudar o social escala individual. Escolhendo um tal ponto de
vista de conheci-mento da realidade, no estar ele a abraar ou a
acompanhar activamente o movi-mento de individualizao que atravessa
as nossas formaes sociais? Para almda dinmica prpria do campo
sociolgico, que explica que um tal interesse vai nosentido de um
progresso da autonomia cientfica da disciplina, evidente que
estasociologia responde a uma necessidade histrica de pensar o
social numa socieda-de fortemente individualizante. No momento em
que o homem pode ser cada vezmais concebido como um ser isolado,
autnomo, dotado de razo, sem ligaesnem razes, oposto sociedade,
contra a qual ele defenderia a sua autenticida-de radical, a
sociologia tem o dever (e o desafio) de pr em evidncia a
produosocial do indivduo (e das concepes que temos dele) e de
mostrar que o social nose reduz ao colectivo ou ao geral, mas que
ele se encontra tambm nos traos maissingulares de cada
indivduo.
O mundo social est em ns tanto quanto est fora de ns. Na origem
tantodas nossas tristezas como das nossas alegrias, individuais e
colectivas, ele diferen-ciou-se e complexificou-se a ponto de
produzir o sentimento que o ntimo, o singu-lar, o pessoal, se
distinguiria, por natureza, da sociedade (como dois objectos
clara-mente distintos) e chegaria mesmo a opor-se a ela. Paradoxo,
ou astcia do mundosocial, o ter, num estado de diferenciao
particularmente avanado, produzido asensao, muito difusa, de uma
vida subjectiva no social ou extra-social. Nadamais banalmente
aceite do que esta robinsonada. O indivduo, o foro interior, oua
subjectividade como lugar da nossa ltima liberdade um dos nossos
grandesmitos contemporneos. Podemos gostar de participar nos mitos
ou tentar desfa-zermo-nos deles. Ora, parece que abandonar qualquer
iluso de subjectividade,de interioridade ou de singularidade no
determinadas, de livre arbtrio ou deexistncia pessoal fora de
qualquer influncia do mundo social, para fazer apare-cer as foras e
contaforas, tanto internas (disposicionais) como externas
(contex-tuais), s quais estamos continuamente submetidos desde o
nosso nascimento, eque nos fazem sentir o que ns sentimos, pensar o
que ns pensamos e fazer o quens fazemos, um progresso precioso no
conhecimento.
Deste ponto de vista, a sociologia dever-se-ia dedicar a
produzir uma visodo homem na sociedade cientificamente mais
adequada do que as (necessrias) ca-ricaturas construdas quando se
imagina o indivduo a partir de figuras ideal-tpi-cas tiradas dos
trabalhos sobre grupos sociais, pocas histricas ou
instituies.Deveria, nomeadamente, ser capaz de responder a
interrogaes do dia-a-dia, lei-gas mas essenciais, quanto vida dos
indivduos em sociedade. Por exemplo, comocompreender que um
indivduo possa surpreender os que o rodeiam (que tm, noentanto, um
bom conhecimento prtico-intuitivo deste indivduo), ou mesmo
sur-preender-se a si prprio, pelo facto de ter sido capaz de fazer
isto ou aquilo, em talcircunstncia ou em tal momento da sua
biografia? Que concepo do determinis-mo social deveremos ter para
explicar essa indeterminao relativa do comporta-mento individual
que faz o fascnio da vida social?
36 Bernard Lahire
SOCIOLOGIA, PROBLEMAS E PRTICAS, n. 49, 2005, pp. 11-42
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, de facto, impossvel prever o aparecimento de um comportamento
socialcomo se prev a queda dos corpos a partir da lei universal da
gravidade. Esta situa-o o produto da combinao de dois elementos:
por um lado, a impossibilidadede reduzir um contexto social a uma
srie limitada de parmetros pertinentes,como no caso das experincias
fsicas ou qumicas; e, por outro, a pluralidade inter-na dos
indivduos, cujo patrimnio de hbitos (de esquemas ou de disposies)
mais ou menos heterogneo, composto de elementos mais ou menos
contradit-rios. portanto difcil prever com exactido o que, num
contexto especfico, vai jo-gar (pesar) sobre cada indivduo e o que,
dos mltiplos hbitos incorporadospor ele, vai ser desencadeado
num/por um determinado contexto. Em funo daspessoas com quem o
indivduo considerado coexiste duradouramente (cnjuge, fi-lhos) ou
temporariamente (amigos, colegas...), em funo do lugar que ele
ocupana relao com essas pessoas ou em relao actividade que
desenvolvem juntos(dominante ou dominado, lder ou seguidor,
responsvel ou simples participante,implicado ou no implicado,
competente ou no competente...), o seu patrimniode disposies e de
competncias submetido a foras de influncia diferentes. Oque
determina a activao de determinada disposio num certo contexto pode
serconcebido como o produto da interaco entre (relaes de) foras
internas e externas: re-lao de foras interna entre disposies mais
ou menos fortemente constitudasdurante a socializao passada, e que
esto associadas a uma maior ou menor ape-tncia, e relao de foras
externa entre elementos (caractersticas objectivas da si-tuao, que
podem estar associadas a pessoas diferentes) do contexto que
pesammais ou menos fortemente sobre o actor individual, no sentido
em que o constran-gem e o solicitam mais ou menos fortemente (por
exemplo, as situaes profissio-nais, escolares, familiares, de
amizade... so desigualmente constrangedoras paraos indivduos).
A constatao sociolgica que somos obrigados a tirar do nosso
conhecimen-to actual do mundo social que o indivduo
multissocializado e demasiado multide-terminado para que possa
estar consciente dos seus determinismos. Deste ponto devista,
(socio)lgico ver os indivduos resistir tanto ideia de um
determinismo so-cial. porque tem grandes hipteses de ser plural e
porque se exercem sobre eleforas diferentes dependendo das situaes
sociais nas quais se encontra, que oindivduo pode ter o sentimento
de uma liberdade de comportamento.
Esta ideia complexa e subtil do determinismo social sobre os
comportamen-tos individuais foi, de uma certa maneira, j abordada
por uma parte da literatura,e nomeadamente por Marcel Proust. J
quase um terico da pluralidade dos euem cada indivduo (Lahire,
1998, Le modle proustien de lacteur pluriel: 43-46, e2002: 398-400)
no seu Contre Sainte-Beuve, o romancista desenvolveu uma escrita
li-terria que, no somente pe em cena essa pluralidade das heranas e
das identida-des individuais, como d o exemplo de uma sociologia
individual subtilmentedeterminista (Dubois, 1997: 130).
Finalmente, 1) porque cada um de ns pode ser portador de uma
multiplici-dade de disposies que no encontram sempre os contextos
da sua actualizao(pluralidade interna insatisfeita), 2) porque
podemos ser desprovidos de boas dispo-sies permitindo fazer face a
certas situaes mais ou menos inevitveis no nosso
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mundo social multidiferenciado (pluralidade externa
problemtica), e 3) porque osnossos mltiplos investimentos sociais
(familiares, profissionais, amicais...),objectivamente possveis,
podem tornar-se, ao fim e ao cabo, incompatveis (plura-lidade de
investimentos ou de envolvimentos problemtica), que podemos viver
inquie-taes, crises ou desencontros pessoais com o mundo social.
Antes de tudo, senti-mentos de solido, de incompreenso, de
frustrao, de