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ARTUR LUCMAN NOGUEIRA BRAGA
A SUPERAO DA METAFSICA E A QUESTO DO NADA EM HEIDEGGER EM
ECKHART E NA ESCOLA DE KYOTO DILOGO S
Monografia apresentada perante o Departamento de Filosofia da
Universidade de Braslia como requisito parcial para obteno do Ttulo
de Bacharelado e Licenciatura em Filosofia
Orientador: Prof Dr. Marcos Aurlio Fernandes
BRASLIA
2015
2
Monografia de autoria de Artur Lucman Nogueira Braga, intitulada
SUPERAO DA
METAFSICA E A QUESTO DO NADA EM HEIDEGGER EM ECKHART E NA
ESCOLA DE KYOTO DILOGOS apresentada como requisito parcial para
obteno
do grau de Bacharel e Licenciatura em Filosofia da Universidade
de Braslia, em 03 de
Dezembro de 2015, defendida e aprovada pela banca examinadora
abaixo assinada:
______________________________________________________________________
Prof Dr. Marcos Aurlio Fernandes
Orientador
Filosofia UnB
______________________________________________________________________
Prof Dr. Erick Calheiros de Lima
Filosofia UnB
Braslia
2015
3
DEDICATRIA
minha famlia,
Ao meu pai Gilson Martins Braga e minha me
Margarete Nogueira da Costa,
Ao Ezequiel Nogueira Braga, Maya Bellomo
Johnson, Cora Johnson Braga e pequena que
est por vir,
s minhas amigas, amigos e professores.
Taynara.
4
AGRADECIMENTOS
Aos Professores Marcos Aurlio Fernandes e Erick Calheiros de
Lima
Agradeo pelas colaboraes do professor Marcos, por sua constante
disponibilidade e
dedicao, por suas indicaes, observaes e acuidade ao trabalho e
que sem as quais
no seria possvel concretiz-lo. Agradeo ao professor Erick que
foi, em grande
medida, responsvel por minha formao em filosofia, acompanho suas
reflexes em
sala de aula desde o incio do curso, por sua constante dedicao
aos estudos que tanto
nos motiva, por sua disponibilidade e companheirismo.
Obrigado!
Famlia
Agradeo aos meus queridos familiares, sempre dispostos a me
apoiar e ajudar. Ao meu
pai Gilson que sempre incentivou o dilogo, a escuta, por seu
carinho e cuidado;
minha me Margarete por sua confiana, presena e ateno, fora e
cuidado. Ao meu
irmo Ezequiel por sua amizade. Maya em sua disposio em ajudar,
querida Cora e
j querida que est por vir. Obrigado, sem o apoio de vocs eu no
conseguiria.
Aos Amigos
Agradeo s minhas amigas e amigos e aos companheiros de curso,
pela fidelidade,
confiana e apoio. Pelo contubrnio de todos os dias, por
proporcionarem sempre novas
perspectivas mesmo em momentos aparentemente encerrados. Agradeo
a todos que me
acompanham desde o incio do curso, em especial grande amiga
Tahiza. Obrigado!
5
Ser humano sem ttulo:
aquele que est na casa e, contudo, no se arreda
da estrada, aquele que est na estrada e, todavia,
no se afasta da casa. um homem comum ou um
grande sbio? Ningum poder diz-lo. Nem o
diabo sabe localiz-lo. Nem o Buda consegue
sujeit-lo como talvez gostasse de faz-lo. Quando
tentamos mostr-lo, j no est l, est do outro
lado da montanha. Rinzai (? - 867)
6
SUPERAO DA METAFSICA E A QUESTO DO NADA EM HEIDEGGER EM
ECKHART E NA ESCOLA DE KYOTO DILOGOS
RESUMO
Este trabalho procura compreender em seus contornos gerais a noo
de superao da
metafsica em Martin Heidegger e desta forma, identificar
possveis antecipaes de tal
noo no pensamento do Mestre Eckhart. O pensamento ps-metafsico
procura pensar
o impensado da tradio, o que seja, o Nada. Este se faz central
no pensamento de
Heidegger, mas foi objeto de meditao do Eckhart j no sculo XIII.
A questo do
Nada de extrema importncia para o pensamento oriental e um dos
temas pelo qual o
dilogo entre Ocidente/Oriente pode ser estabelecido. O
pensamento de Heidegger
funciona, em grande medida, como apoio na trilha deste dilogo de
tradies
radicalmente distintas. Assim, filsofos japoneses, com destaque
Escola de Kyoto,
comearam a compreender melhor a metafsica ocidental e sua
histria.
Acompanharemos, neste sentido, reflexes de Shizuteru Ueda,
filsofo japons da
Escola de Kyoto, sobre a concepo do Nada absoluto no
Zen-budismo, em Eckhart e
em Nietzsche, tendo em vista o tema da superao da metafsica, bem
como da
superao do niilismo.
PALAVRAS-CHAVE: SUPERAO DA METAFSICA; SERENIDADE;
DEIDADE; NO-MENTE; NADA ABSOLUTO.
7
ABSTRACT
The aim of this paper was to weave a broad understanding of the
overcoming of
the metaphysical in Martin Heidegger's work and thus identify
possible anticipations of
this notion in the work of Master Eckhart. Metaphysical thought
seeks to reflect on that
which is not reflected upon, i.e., Nothingness. This concept is
central to Heidegger, but
was an object of meditation for Eckhart since the 13th century.
The issue of
Nothingness is extremely important in Eastern thinking and one
of the themes through
which the West/East dialogue can be established. To a great
extent, Heidegger's
thought functions as a support for such dialogue between
radically different traditions.
Thus, this is how Japanese philosophers, especially those from
the School of Kyoto,
began improve their understanding on Western metaphysics and its
history. In this
sense, we will explore the reflections of Shizuteru Ueda, a
Japanese philosopher from
the School of Kyoto, about the conception of absolute
Nothingness in Zen-Buddhism,
Eckhart and Nietzsche, considering the theme of the overcoming
of the metaphysical, as
well as the overcoming of nihilism.
KEY WORDS: OVERCOMING OF THE METAPHYSICAL; SERENITY; DEITY;
NO MIND; ABSOLUTE NOTHINGNESS.
8
SUMRIO
1 INTRODUO
....................................................................................................9
2 HEIDEGGER E A SUPERAO DA METAFSICA: UM OUTRO
PENSAR QUE
AGRADECE............................................................................14
3 MESTRE ECKHART: O NADA DA DEIDADE E A VIDA SEM
PORQU............................................................................................................31
4 ZEN BUDISMO: O ESTADO DA NO-MENTE
.........................................43
4.1 ALGUMAS CONVERGNCIAS E DIVERGNCIAS ENTRE ZEN-
BUDISMO E MESTRE
ECKHART.................................................................
59
5 A DIALTICA ENTRE O NADA DA DEIDADE E A MORTE DE DE US:
A SUPERAO DO NIILISMO
.....................................................................65
6
CONCLUSO....................................................................................................75
7 REFERNCIA BIBLIOGRFICA
.................................................................77
9
1 INTRODUO
O tema heideggeriano da superao da metafsica nada se assemelha a
uma
pretenso de abandonar, destruir ou aniquilar a metafsica, isso
seria justamente se
enredar no pensar da metafsica, qual seja, do clculo, da negao e
afirmao, da
imanncia e transcendncia, das dualidades enrijecidas. Superar no
significa deixar
para traz em um passado que se esquece, como um antes que no
volta, mas sim
preservar, radicalizar. A superao no ocorre por fora da prpria
metafsica, mas por
meio dela, pela sua prpria essncia. Martin Heidegger (1889 -
1976) procura indicar
com tal superao a diferena ontolgica que resgata o tema
fundamental, qual seja, o
Nada. Ou seja, perdemos a sensibilidade para perceber a diferena
entre os entes, as
coisas, e aquilo que fundamenta todo ente, o fundamente sem
fundamento, o Nada. O
Nada se faz mais originrio que a lgica ou a negao. O ser humano
se mantm de
alguma forma ligado ao Nada, pois, sempre est diante e alm dos
entes. O ser humano
est dependurado no Nada. Sem a original revelao do Nada, o ser
humano no capaz
sequer de se relacionar consigo mesmo.
A questo do Nada de extrema importncia para o pensamento
oriental e um
dos temas pelo qual o dilogo entre Ocidente/Oriente pode ser e
foi estabelecido
efetivamente. O pensamento de Heidegger funciona, em grande
medida, como apoio na
trilha deste dilogo de tradies radicalmente distintas. Assim,
filsofos japoneses, com
destaque Escola de Kyoto, comearam a compreender melhor a
histria do
pensamento ocidental e sua metafsica. Os pensadores japoneses
estabeleceram dilogo
com pensamento filosfico contemporneo, com nfase em Heidegger,
Nietzsche,
Hegel, Leibniz e Schopenhauer.
A Escola de Kyoto surgiu, no comeo do sculo XX, em torno da
figura e
obra de Kitaro Nishida, que tentava dizer na linguagem da
filosofia ocidental,
traduzida para o japons, a experincia do mundo e do si-mesmo
depositada
na tradio Zen-budista. A Escola inclui o seu contemporneo mais
jovem,
Hajime Tanabe, os primeiros alunos, os mais conhecidos dos quais
so
Shinichi Hisamatus e Keiji Nishitani, uma terceira gerao de
alunos, na qual
se destacam Koichi Tsujimura, Shizuteru Ueda e Yoshinori
Takeuchi, bem
como a quarta gerao, representada por Ryosuke Ohashi. (LOPARIC,
2008,
p. 7)
10
A Escola parece ter chegado ao fim. Contudo, ela permanece
atual. O
pensamento filosfico do Japo contemporneo exerceu influncia
significativa sobre a
cultura japonesa da sua poca e continua sendo objeto de
interesse crescente incluindo
aqueles que na comunidade filosfica internacional esto
empenhados em continuar e
desenvolver o dilogo entre o pensamento oriental e o
ocidental.
Nishitani afirma:
Ns japoneses somos herdeiros de duas culturas completamente
diferentes...
Este um grande privilgio o qual os ocidentais no compartilham...
mas, ao
mesmo tempo, imputa uma grande responsabilidade em nossos
ombros: a de
lanar as bases do pensamento para um mundo por fazer, para um
novo
mundo unido alm das diferenas entre Oriente e Ocidente.
(NISHITANI
apud PARKES in FLORENTINO; GIACOIA (Orgs), 2013)
Graham Parkes, pesquisador de referncia no dilogo
Ocidente/Oriente em
ambiente filosfico, chama ateno para o fato dos pensadores
asiticos possurem certa
distncia hermenutica e isso lhes proporcionam alguma vantagem
crtica. Afinal,
parece que o interesse de Nietzsche, por exemplo, em pensar
culturas no-europias se
deu por um desejo de conquistar perspectiva distanciada para
compreender melhor as
condies do Ocidente. Outro motivo que chama ateno sobre as
perspectivas leste-
asiticas se refere linguagem, pois possuem funes gramaticais
bastantes distintas
comparadas s lnguas ocidentais e, portanto, possuem diferentes
modos de acesso ao
mundo e a si mesmos. Vale lembrar o aforismo 20 de Alm do bem e
do mal no qual
Nietzsche afirma: filsofos do domnio das lnguas uralo-altaicas
(onde o conceito de
sujeito menos desenvolvido) iro provavelmente olhar para dentro
do mundo de
forma distinta, achando caminhos diferentes dos indo-germnicos
(NIETZSCHE apud
PARKES, in FLORENTINO; GIACOIA (Orgs.), 2013, p. 192). O mesmo
raciocnio
vale para os pensadores de lngua japonesa, que pertencem famlia
uralo-altaica, iro
olhar para dentro dos mundos dos textos de modo peculiar e
diferente quando
comparado com suas contrapartes.
Vrios membros da Escola conheceram Heidegger pessoalmente ou
foram seus
alunos. Estes contatos resultaram em sucessivas tentativas de
estabelecer uma relao
entre a desconstruo da metafsica ocidental que se relaciona
intrinsecamente
superao da metafsica com seu outro modo de pensar e o pensamento
Zen-budista.
O pensamento ps-metafsico de Heidegger se vincula penosa tarefa
de
enfrentar e assumir, at onde for possvel, questes como o
niilismo, a crise da razo e
11
inumerveis aporias e contradies que assolam nossos tempo, crise
que abate e atinge
vrios mbitos e instncias, nas cincias, nas religies, na poltica,
nas artes.
H uma grande esperana depositada no poder prometutico das
tecno-cincias
para nos retirar do atoleiro que nos encontramos. Para Heidegger
a tcnica uma grande
questo, pois, o desenvolvimento desta de forma compulsria ao
invs de solucionar
nossos impasses nos impele a cada dia e cada vez mais beira do
abismo: das
catstrofes ecolgicas, espirituais, cindindo e esfacelando mundos
da vida, colocando
em risco condies mnimas de uma vida autntica na Terra. Tais
riscos ameaam todo
o globo, tanto no ocidente quanto no oriente. Giacoia, comenta:
E por isso que seu
pensamento exige, impe, que hoje pensemos com Heidegger, ainda
que seja contra
Heidegger, como este pensou com Nietzsche, sobretudo contra
Nietzsche.(2012, p. 8)
A linguagem, a cultura, as tradies, as perspectivas e os
pensamentos do oriente
e do ocidente so radicalmente distintos. Isso se faz como
reconhecido desafio por
ambos os lados. Afirma Nishitani:
Com o encontro do Ocidente e Oriente prosseguindo em todos os
campos de
atividade humana em um ritmo surpreendente rpido, a mtua
compreenso, no preciso dizer, uma das mais importantes tarefas
que a
humanidade encara hoje. Entre as muitas dificuldades que se
ocultam ao
longo desta tarefa, a maior aparece quando, tentando penetrar em
algum grau,
os sentimentos e propsitos interiores de nossos parceiros, ns
encontramos
palavras e conceitos, os inevitveis veculos de comunicao,
surgindo a todo
momento barrando o caminho.(NISHITANI in PARKES, 1987,
p.145)
H inumerveis barreiras que obscurecem o dilogo entre as duas
tradies, e
Heidegger, apesar de ser um ponto de apoio no trilhar do dilogo
com o oriente, nos
lembra que filosofia algo por definio ocidental:
A palavra philosophia diz-no que a filosofia algo que pela
primeira vez e
antes de tudo vinca a existncia do mundo grego. No s isto a
palavra
philosopha determina tambm a linha mestra de nossa histria
ocidental-
europeia. A batida expresso filosofia ocidental , na verdade
uma
tautologia. Por que? Porque a filosofia grega em sua essncia e
grego
significa aqui: a filosofia nas origens de sua essncia de tal
natureza que ela
primeira se apoderou do mundo grego e s dele usando-o para
se
desenvolver. (2006b, p. 17)
Porm, isso no impossibilita o intercmbio, principalmente tendo
em vista a
ideia de Nada, de superao da metafsica. Um ponto central em que
o dilogo entre
Ocidente e Oriente se faz frtil pode ser apontado pelo prprio
Heidegger em um texto
12
dedicado linguagem onde contm uma conversa intitulada: De uma
Conversa sobre a
Linguagem entre um Japons e um Pensador, Heidegger assumindo o
papel de
pensador e estabelece um dilogo com um japons, segue um trecho
da conversa:
P No com um s pulo que se pula para fora do ciclo das
representaes
vigentes. Sobretudo quando se trata de pistas de h muito
consolidadas na
tradio e que correm imperceptveis. Alm disso, a vontade
aparentemente
revolucionria tenta, sobretudo recuperar de maneira ainda mais
originria o
passado vigente e, com isso limita a tentativa de separar-se da
tradio. do
propsito que as primeiras pginas de Ser e Tempo falam de repetio
ou
de retomada. Re-petir, re-tomar diz: ir buscar, trazer e
recolher o que o
passado guarda e protege.
J Nossos professores e meus amigos no Japo entenderam assim
seus
esforos. O professor Tanabe retornava muitas vezes pergunta que
o senhor
certa vez lhe dirigiu: por que ns japoneses no refletimos sobre
os princpios
de nosso prprio pensamento, ao invs de, sempre com mais
sofreguido,
correr atrs da ltima novidade da filosofia europeia. o que ainda
hoje
acontece.
P muito difcil agir contra isso. Esses processos se desfazem com
o
tempo, na prpria esterilidade. O que, porm, requer de ns
participao
outra coisa.
J o que ?
P Considerar os vestgios que apontam para as fontes do
pensamento.
J O senhor encontra esses vestgios em seu esforo de pensar?
P Eu os encontro porque no provm de mim e s muito raramente
se
deixam perceber. como o eco de um apelo distante que esmorece.
(1994, p.
103)
Heidegger indica no re-torno, no re-petir, uma tarefa paradoxal
em um esforo
de recuperar o passado vigente de maneira radical e originria.
Trata-se de dar um passo
de volta e na mesma medida dar um passo para frente. Heidegger
se ope atitude
revolucionria de saltar para fora da tradio, preferindo a
atitude de recolher e trazer de
volta o passado naquilo que ele encerra e protege. Isso traz
condies de pensar o no-
pensado da tradio. Talvez seja neste retorno que se conserva a
possibilidade de
dilogo com o pensamento oriental. Da o tema da superao da
metafsica se fazer
importante neste contexto, pois se trata de dar um passo de
volta que se vincula
internamente ao passo para frente. Ora, isto vale para o
pensamento ocidental, mas
tambm para o pensamento oriental como indicou Heidegger Tanabe.
Afirma
Heidegger: Ora, o passo de volta da metafsica para dentro de sua
essncia exige uma
13
durao e perseverana cuja medida ns no conhecemos. (2006b, p. 60)
Neste re-
torno se conserva algo que est alm da filosofia, ou seja, alm do
ocidente. Pode-se
dizer, colocando o pensamento ocidental diante de seu outro.
Afirma Heidegger:
Dedicar-se a pensar este no pensado significa: perseguir
mais
originariamente o que os gregos pensaram, visualiz-lo na
provenincia de
sua essncia. Esta viso grega em seu modo de ser, mas quanto ao
que
visualizado j no nem nunca poder ser grega. (1994, p. 105)
A questo diretriz e que vigora neste trabalho pode ser indicada
a partir desta
afirmao de Heidegger, afinal, por mais que a filosofia em suas
origens seja
estritamente grega ela visualiza algo que no exclusivamente
grega. A questo que se
levanta se o no-pensado da tradio, que se ergue a partir da
superao da
metafsica, da noo do Nada, no proporciona uma vinculao com o
pensamento
oriental, com destaque na Escola de Kyoto. Porm, no s, pois se
questiona se este
impensado da tradio no nos aproxima tambm de Mestre Eckhart.
Este trabalho lida
em especial com autores como Martin Heidegger, Mestre Eckhart e
Shizuteru Ueda,
alm de T. D. Suzuki, procura-se, assim, verificar algumas
semelhanas no pensamento
de tais autores sem desconsiderar suas dessemelhanas. O tema da
superao da
metafsica um ponto que proporciona uma possvel interlocuo entre
estes autores.
Da parte de M. Eckhart (1260 - 1327?), pois, tal pensador
medieval antecipa vrias
questes no que se refere a este tema heideggeriano e ganha posio
de destaque no
dilogo com pensadores japoneses. Eckhart chama ateno de
Heidegger e dos filsofos
japoneses por ser autor pouco afeito metafsica, ou melhor, mantm
uma relao tensa
com esta e desenvolve interpretaes e reinterpretaes
surpreendentes do pensamento
filosfico e religioso. No que se refere Escola de Kyoto o tema
da superao da
metafsica se apresenta como central no complexo intercmbio com o
pensamento
ocidental, que se apresenta como desafio incontornvel para ambos
os lados.
14
2 HEIDEGGER E A SUPERAO DA METAFSICA: UM OUTRO PENSAR
QUE AGRADECE
Um ponto fundamental para se compreender o tema da superao da
metafsica
se d pela seguinte afirmao de Heidegger: A superao da metafsica
pensada na
dimenso da histria do ser. (2006a, p. 68) Nesta afirmao temos
dois temas
fundamentais que so relacionados superao da metafsica, quais
sejam, ser e
histria, que para Heidegger so intrnsecos um a outro.
Heidegger em seu livro Ser e Tempo (2000) busca recolocar a
questo do ser,
pressupondo que o ser foi esquecido, isso significa que houve na
filosofia ocidental uma
entificao1. Tal entificao se deu justamente pela tradio no ter
percebido a
distino entre ser e ente, ou seja, ela no foi sensvel diferena
ontolgica. Afirma
Heidegger: Limitado, assim ao metafsico, o homem permanece atado
diferena
desapercebida entre ser e ente (2006a, p. 63). A entificao ou o
esquecimento do ser
ocorreu de forma paulatina remontando metafsica desde Plato at
Descartes, neste
ltimo, acontecendo como uma metafsica da subjetividade.
Heidegger afirma: A
teoria do conhecimento [caracterstica marcante da modernidade] e
o que assim se
considera , no fundo metafsica e ontologia, fundadas sobre a
verdade assumida como
certeza pela re-presentao asseguradora. (2006a, p. 65)
Noutras palavras, para Heidegger, a metafsica atentou-se apenas
para os entes,
para aquilo que aprendido, esquecendo-se do nada. No se trata
pois, do nada como
privao ou negao ou aniquilao do ente ou do ser, mas do nada
criativo, como no-
ente e no-entidade, como o prprio ser em sua diferena, em seu
retraimento e
velamento, enfim, em seu mistrio. O nada enquanto no dito ou o
impensado da
tradio. Esta por sua vez visou e permaneceu no ente
esquecendo-se da diferena,
esquecendo-se do ser. Afirma Heidegger:
Costuma-se pensar ser como a objetividade, num esforo de se
apreender a
partir da o ente em si e assim esquecer de se perguntar e dizer
o que se
entende por ente e pelo em si.
1 Apesar de Heidegger no usar este termo, entificao, se refere
ao processo, que se apresenta por
vrias vias, de reificao, de tornar tudo objeto de conhecimento.
Tudo ao redor se torna passvel de
apreenso, est tudo no modo da disposio. A histria reduzida a
historiografia, ou seja, uma
maneira de encarar a histria desde fora dela mesma. A natureza
se torna o principal reservatrio das
reservas de energia (2006.p. 24). Desta forma, as florestas so
madeiras, o vento vento nas velas, a
gua energia hidrulica, assim por diante.
15
O que ser? Devemos perguntar ao ser o que ele ? Ser fica fora
de
questo, autoevidente e, portanto, impensado. Mantm-se numa
verdade, de
h muito esquecida e infundamentada. (2006a, p. 73)
No 40 de Ser e Tempo (2000) Heidegger se refere angstia como
sendo
Grundstimmung (disposio fundamenta) do Dasein (ser-a) ou do ser
humano tomado
em sua referncia de ser ao ser. Tal disposio fundamental de
abertura para o ser o
lugar sem lugar ou um lugar do nada, abismo (Ab-Grund).
Heidegger quer evitar
justamente a tendncia ocasionada pela metafsica de entificar o
homem e o mundo,
tornando tudo objeto de teorizao.
A superao da metafsica nada tem a ver com o abandono desta, pelo
contrrio,
se d pela radicalizao dela mesma, pois este o locus no qual
podemos partir e nos
mover, portanto, promove-se, assim, uma tenso entre a metafsica
e o alm dela
mesmo. Afirma Heidegger:
O passado no exclui, mas, ao contrrio, inclui que somente agora
a
metafsica surge num domnio incondicional do prprio ente e, como
tal, na
configurao desprovida de verdade do real e dos objetos.
Experienciada,
porm, na perspectiva da aurora do comeo, a metafsica passado
tambm
no sentido de estar em seu acabamento. (2006a, p. 61)
Neste sentido, percebe-se melhor como o ser possui carter
incontornavelmente
histrico, pois, este nosso horizonte pelo qual podemos nos
mover, interpretar e
compreender o mundo. Com Heidegger, a tradio, enquanto
horizontes manifestos e
vivos, se d neste processo de esquecimento do ser e acabamento
da metafsica que
tambm na mesma medida a aurora do comeo. Todavia, este comeo s
pode ser
acessado mediante a tradio. Vale notar, Heidegger est
interessado em perceber no
pensado que a tradio promoveu o no pensado dela mesma. Aqui
entra o tema do
nada. Em outras palavras, Heidegger identifica a superao da
tradio na prpria
metafsica e s por ela possvel super-la.
Em todo caso, ao falarmos de superao da metafsica, estamos
falando de seu
acabamento. O acabamento da metafsica tem incio com a metafsica
hegeliana do
saber absoluto enquanto vontade do esprito. (2006a, p. 65)
Heidegger em uma
conferncia em 1958 discursa sobre Hegel e os gregos e afirma
logo no incio: O ttulo
da conferncia pode ser transformado em uma pergunta. Seu teor
seria: como que
Hegel apresenta no horizonte de sua filosofia a filosofia dos
gregos? (2008, p. 436)
16
Heidegger entende que se os gregos so considerados por Hegel
como o incio da
filosofia, Hegel seria sua consumao.
Hegel, assim como Heidegger, resgata a ontologia, e desta forma
comenta o
autor de Ser e Tempo: Ser e pensar so para Hegel o mesmo, e, na
verdade, no sentido
de que tudo recebido de volta no pensamento e determinado a ser
o que Hegel
simplesmente designa o pensamento pensado. (2008, p. 439)
Heidegger percebe a
seguinte dinmica em Hegel em sua concepo de histria e mtodo
dialtico. Os
gregos, por um lado, podem ser identificados em uma ontologia
tradicional onde o
sujeito, enquanto conscincia, se refere imediatamente aos seus
objetos.
(HEIDEGGER, 2008, p. 439). Neste sentido, h um acesso direto,
imediato, absoluto ao
objeto, s coisas, s essncias. Por outro lado, a modernidade,
enquanto a filosofia da
conscincia e da certeza de si dar primazia epistemologia e desta
forma, somente
por meio desta retro-referncia que a reflexo, o objeto
representado enquanto objeto
para o sujeito e esse para si mesmo, e isto quer dizer, enquanto
se referindo ao objeto
(HEDEGGER, 2008, p. 439) Portanto, h dois elementos que, como
indicado acima por
Heidegger, Hegel entende articular, quais sejam, ser e pensar ou
objeto e sujeito. Ou
seja, Hegel procura honrar a metafsica tradicional na medida em
que esta determina o
mundo em seu acesso imediato, contudo, no perde de vista a
conquista da
modernidade, qual seja, a conscincia de si, pois com esta, os
objetos no possuem
acesso imediato se no que so para ns desta ou daquela maneira.
Da que a dialtica
se d em uma ontologia que toma conscincia de si, como se o
esprito (um ns que
um eu e um eu que um ns) tomasse conscincia de si e no mais um
sujeito abstrato,
metafsico, cindido com o contedo. Hegel na Fenomenologia do
Esprito afirma:
Exige-se da vaidade [do raciocnio abstrato] o esforo de
abandonar tal
liberdade [em vista do contedo]; e, em vez de ser o princpio
motor
arbitrrio do contedo, mergulhar essa liberdade nele, fazer que
se mova
conforme sua prpria natureza, isto , atravs do Si como seu
prprio
contedo; e contemplar esse movimento. (2012, p. 61)
Portanto, a conscincia de si, no mais em sua abstrao e vaidade
de si, mas
enquanto um ns que toma conscincia de si, tendo em vista a
mediao incontornvel
da histria. Heidegger chama ateno que em Hegel a meta da
filosofia sua oposio
ao abstrato e reflexo do entendimento enquanto desconectada da
histria, do mundo.
De acordo com Hegel, o impulso interno, ou seja, a necessidade
do esprito, de
17
desligar-se do abstrato, enquanto se ab-solve para dentro do
concreto da subjetividade
absoluta, libertando-se, assim, para si mesmo. (HEIDEGGER, 2008,
p. 447)
Heidegger percebe a importncia da histria enquanto marcha do
esprito e
neste sentido que se deve entender a dialtica de Hegel enquanto
especulativa, ou seja,
pensar significa estar sensvel histria, aos pr-conceitos e s
determinaes que se
fazem no presente, no h acesso imediato realidade, porm, sempre
mediado, seja
pela histria, seja pela linguagem, em suma pelo esprito. Afirma
Heidegger:
Agora torna-se claro em que medida a histria da filosofia o mais
ntimo
movimento na marcha do esprito, quer dizer, da subjetividade
absoluta em
direo a si mesmo. Ponto de partida, avano, passagem, retorno
dessa
marcha: tudo determinado especulativo-dialeticamente. (2008, p.
441)
Heidegger chama ateno que Hegel percebe os gregos como um ainda
no,
na medida em que s com Hegel h a consumao. Hegel determina como
meta da
filosofia: a verdade. Essa s atingida no momento da consumao. O
momento da
filosofia grega permanece no ainda no. ( HEIDEGGER, 2008, p.
447) Os gregos
estariam ainda em mbito abstrato e s com Hegel conquistaria a
verdade enquanto
concretude. Tal concretude se d na medida em que o contedo ou o
esprito toma
conscincia de si. Nas palavras de Heidegger: Verdade para Hegel
a certeza absoluta
do sujeito que se sabe a si mesmo. (2008, p. 447)
A superao da metafsica se d pela prpria metafsica mediante
seu
acabamento. Heidegger chama ateno que o acabamento tem incio com
Hegel, pois
foi este, enquanto porta voz do ser, que falou a marcha da
histria da metafsica
interpretando os gregos como o incio da filosofia e da metafsica
e a consolidao na
certeza absoluta consciente de si como verdade. Desta forma, com
Hegel o incio segue
necessariamente um curso para o acabamento. Neste ponto
Heidegger procura estar
sensvel a outra noo de verdade que procura resgatar. Verdade
como desvelamento ou
desocultamento, como A (Alethia). A A o impensado digno de
ser
pensado, a coisa do pensamento. (2008, p. 452) Ou seja,
identificar os gregos como o
ainda no, como fez Hegel, ter como parmetro a consumao.
Heidegger, por outro
lado, quer escutar na tradio o no pensado nesta histria da
metafsica e identifica nos
gregos um ainda no, porm no mais como insuficiente como fez
Hegel, mas como
abertura, abismo e infinitas possibilidades. Afirma
Heidegger:
Ora, se atentarmos para o enigmtico da A, que impera sobre o
comeo da filosofia grega e sobre a marcha de toda a filosofia,
ento a
18
filosofia grega tambm se mostrar para o nosso pensamento em um
ainda
no. Esse, porm, o ainda no do impensado, no um ainda no que
no
nos satisfaz, mas um ainda no para quem ns no bastamos e que no
somos
capazes de satisfazer. (2008, p. 453)
Neste sentido, vale notar, o que Heidegger identifica como
consumao no
significa o fim da filosofia. Pelo contrrio, abre-se para
mltiplas novas formas de
manifestao de horizontes de compreenso filosfica, para uma outra
forma de pensar.
A consumao somente como marcha total da histria da filosofia,
marcha na qual o
comeo permanece to essencial quanto a consumao: Hegel e os
gregos. (2008, p.
441) Heidegger no compreende Hegel como simplesmente um filsofo
que abarca tudo
em um sistema idealista, nem como o responsvel pelo fim da
filosofia, aqueles que o
reduzem a tais interpretaes so hegelianos, at contra sua
vontade. Para Heidegger, o
incio da filosofia se d com os gregos em uma exploso de
horizontes que se abriram,
inclusive sua prpria consumao que permanece to essencial quanto
o incio e,
portanto, abrindo-se para o que Heidegger denominou superao da
metafsica. Ou
seja, tal superao de certa forma acompanha j no incio mesmo da
metafsica.
Como mencionado acima, Hegel d incio ao acabamento. Contudo,
quem
termina este acabamento se Hegel apenas inicia? Para Heidegger
Nietzsche o pensador
que encaminha a metafsica ao seu fim. Afirma Heidegger:
Com a metafsica de Nietzsche, a filosofia acaba. Isso quer
dizer; ela j
percorreu todo o mbito das possibilidades que lhe foram
presignadas. O
acabamento da metafsica, que constitui o fundamento do modo
planetrio de
pensar, fornece a armao para uma ordem da terra, provavelmente
bastante
duradoura. Esta ordem j no mais precisa da filosofia porque de h
muito a
ela j sucumbiu. Com o fim da filosofia, porm o pensamento no est
no
fim, mas na ultrapassagem para um outro comeo. (2006a, p.
72)
Esta citao pode ser relacionada com a seguinte afirmao de
Heidegger j
mencionada, qual seja, a superao da metafsica pensada na dimenso
da histria do
ser. (2006a, p. 68) Esta frase contm um pressuposto fundamental
que acompanha
Heidegger em sua reflexo sobre a metafsica e seu acabamento. Tal
pressuposto o
elemento histrico que, como vemos, envolve dos gregos a Hegel e
finalmente a
Nietzsche, compreende que dos gregos a Hegel houve uma
interpretao da verdade
(Altheia) que foi na direo de uma certeza do sujeito absoluta,
ou seja, do ns
enquanto histria tomando conscincia de si. Hegel experimentou a
essncia da
histria a partir da essncia do ser no sentido da subjetividade
absoluta (HEIDEGGER,
19
2008, p. 449) Heidegger tambm visa o ns enquanto histria,
enquanto ser, porm um
ns que permanece aberto, indeterminado, sem sucumbir a uma
subjetivao. Hegel ou
Nietzsche so porta-vozes enquanto pensadores do ser que falam
mediados pela histria
e interpretam o incio da filosofia seguindo este acabamento da
metafsica. Vale
lembrar, para Hegel, ser e pensar coincidem e nesta afirmao
contm o pressuposto de
que pensar e falar possuem correspondncia com o ser. Na
conferncia de Hegel e os
Gregos Heidegger afirma:
O homem aquele que diz. Dizer, no alemo arcaico sagan,
significa:
mostrar, fazer aparecer e ver. O homem o ser que pelo dizer faz
surgir o
presente em sua presena e, assim, percebe o reside-defronte. O
homem
apenas sabe falar na medida em que aquele que diz. (2008, p.
451)
Nesta direo, Nietzsche, o responsvel pelo acabamento da
metafsica,
interpretado por Heidegger como um pensador do ser, portanto, no
Nietzsche enquanto
indivduo, porm enquanto porta-voz que atravs de Zaratustra fala
o ser. Afirma
Heidegger: Assim falava Zaratustra. Zaratustra fala. Ele um
falador (Sprecher). De
que espcie? Um orador ou talvez um pregador? No. O falador
Zaratustra um porta-
voz (Frsprecher). (2006a, p. 87) Nietzsche , assim como Hegel,
um daqueles
autnticos pensadores que dialogam intensamente e diretamente com
a tradio, tendo
em vista os gregos. Heidegger interpreta Nietzsche como de
alguma forma um
continuador do platonismo, mesmo sendo conhecidamente crtico do
platonismo, bem
como do cristianismo. Afirma Heidegger:
Falar de superao da metafsica pode ainda tambm significar
que
metafsica mantm-se como nome do platonismo que, no mundo
moderno,
se expe nas interpretaes de Schopenhauer e Nietzsche. A revirada
do
platonismo, no sentido conferido por Nietzsche, de que o sensvel
passa a
constituir o mundo verdadeiro e o suprassensvel o no
verdadeiro,
permanece teimosamento no interior da metafsica. Essa espcie de
superao
da metafsica, que Nietzsche tem em vista e bem no sentido do
positivismo
do sculo XIX, no obstante numa transformao mais elevada, no
passa de
um desenvolvimento definitivo com a metafsica. (2006a .pp.
68,69)
Nesta direo, Heidegger identifica uma tendncia moderna de
planificao e
reducionismo no modo de se apropriar do mundo. Tudo sendo
acarretado por aquilo que
positivo, verificvel, diante do sujeito. Nietzsche para
Heidegger estaria como o
pensador que de uma vez por todas disponibilizou a realidade
enquanto jogos de vetores
perceptveis como vontade de poderes. A vida, assim como todo o
real so nada mais
20
que vontade de poder na leitura que Heidegger faz de Nietzsche.
Na lngua de
Nietzsche, vida significa: a vontade de poder como trao
fundamental de tudo que e
no s do homem. (2006a, p. 88)
O acabamento da metafsica coincide com o que Heidegger denomina
mundo
da tcnica, que o modo de abertura do ser de nossa poca, nosso
horizonte de
compreenso, nossa pr-compreenso incontornvel. Vale notar, a
tcnica no
significa aqui os setores isolados da fabricao e aparelhamento
de mquinas.
(HEIDEGGER, 2006a, p. 69) Tcnica neste sentido comum de fabricao
e que nos
remete revoluo industrial dos sculos XVIII e XIX apenas um
sintoma. Heidegger
tem em vista a histria e nossa forma de se apropriar do mundo
mediado pelo ser, por
aquilo que se tem como pressuposto sempre oculto, porm nos
determinando mais do
que tudo, por ser sempre oculto. A tcnica como horizonte de
compreenso do mundo.
Afirma Heidegger:
Compreende-se aqui o nome tcnica de modo to essencial que, em
seu
significado, chega a coincidir com a expresso acabamento da
metafsica.
Esse nome guarda a lembrana da , que constitui uma condio
fundamental do desdobramento essencial da metafsica. (2006a. pp.
69,70)
Nietzsche possui papel fundamental na medida em que a tcnica
enquanto
forma de manifestao e compreenso do mundo se d mediada pela
vontade de poder.
Afirma Heidegger:
Pode-se chamar, numa nica palavra, de tcnica a forma fundamental
de
manifestao em que a vontade de querer se institucionaliza e
calcula no
mundo no histrico da metafsica acabada. Esse nome engloba todos
os
setores dos entes que equipam a totalidade dos entes: natureza
objetivada,
cultura ativada, poltica produzida, superestrutura dos ideais.
(2006a, p. 69)
Identifica-se, neste sentido, um modo de abertura para o mundo
sem histria,
matematizado, onde no h sagrado ou oculto. O tempo se torna
espacializado e
quantificvel. Vale notar, Nietzsche anuncia que a cultura
ocidental, da metafsica, do
cristianismo no passa de uma cultura de ressentimento. O
ressentimento, nota
Heidegger, a vingana contra o passado, contra aquilo que no pode
mais mudar, o
sustentar da culpa enquanto criao de subjetividade. Isso se
direciona para a tendncia
viso que exclui a histria, a temporalidade, a finitude no qual o
ser humano se
encontra de forma inevitvel. Neste sentido, a tcnica se
apresenta como decadncia, ou
seja, a linguagem tratada como mero instrumento, tudo se torna
mero objeto de
21
conhecimento de um sujeito que fora a realidade sua vontade e a
compreenso do
mundo se torna unidimensional. Percebe-se que Heidegger, ao
contrrio da tendncia de
privilegiar o passado como referncia vida como faz o ressentido,
nos lembra do
futuro, o que seja, a morte, a abertura, a angstia, o permanecer
no dilogo.
A cincia exata da natureza se funda na tcnica na tcnica como um
ocular,
isto , uma tica, um modo de encarar a realidade do real, a
saber, como funcionalidade
da relao sujeito-objeto, como horizonte pelo qual a cincia se
move. Heidegger tem
em vista uma tendncia do mundo da tcnica em tornar tudo
disponvel ao sujeito
promovendo assim uma ciso entre ser humano e mundo, entre
sujeito e objeto, entre
universal e particular, entre ser humano e natureza. A essncia
da tcnica moderna pe
o homem a caminho do desencobrimento que sempre conduz o real,
de maneira mais ou
menos perceptvel, dis-ponibilidade. (2006a, p 27) Alm disso,
vale notar a distino
entre histria e historiografia. A histria esquecida, justamente
por haver um
encobrimento da essncia da tcnica, aliais, afirma Heidegger:
Tudo que essencial,
no apenas a essncia da tcnica moderna, se mantm, por toda parte,
o maior tempo
possvel, encoberto. (2006a, p. 25) Sobra a historiografia que
justamente um olhar
para o passado desde fora, guiando-se por explicaes cronolgicas
. Cronologicamente
a tcnica surgiria com o desenvolvimento das mquinas na metade do
sculo XVIII,
enquanto que as cincias modernas da natureza localizariam no
sculo XVII. Porm, se
levarmos em conta a histria, exatamente o contrrio, as cincias
so historicamente
anteriores no tocante essncia que a rege.
No mundo da tcnica a histria tratada como se pudesse ser objeto
de estudo,
analisada e esquadrinhada por um sujeito fora dela mesma. Nesta
direo, percebe-se
tambm a tendncia a tornar a linguagem um instrumento, pois a
mesma forma neutra
e distanciada de usar a linguagem como instrumento ou
ferramenta, sem levar em conta
que no h mbito fora da linguagem ou extralingustico. A linguagem
o horizonte do
ser, sua morada, assim como e se d pela histria.
Nota-se que o mundo da tcnica se constitui em uma srie de cises
e
fragmentaes onde tudo so entes distintos um do outro. Neste
contexto h o imprio
do sujeito, que sempre de fora analisa e domina. O pensar se
confunde com o desejar,
com o querer, provocando, assim, nesta medida a subjetividade, o
sujeito. De todos os
lados h lutas pelo poder. Afirma Heidegger: S a vontade de poder
consegue
apoderar-se dessas lutas. O poder, entretanto, apodera-se de tal
forma da humanidade
22
que desapropria o homem da possibilidade de dispor de um caminho
para sair do
esquecimento do ser. (2006a. pp.78, 79)
Em todo caso, Heidegger identifica a essncia da tcnica como
sendo a com-
posio, algo que fundamenta a tcnica e no nada de tcnico.
Heidegger afirma:
Com-posio Gestell, significa a fora de reunio daquele pr que pe,
ou
seja, que desafia o homem a des-encobrir o real no modo da
dis-posio,
como dis-ponibilidade. Com-posio (Gestell) denomina, portanto, o
tipo de
desencobrimento que rege a tcnica moderna mas que, em si mesma,
no
nada tcnico. (2006a, p. 24)
A tcnica funciona enquanto armao de tudo, onde as coisas se
apresentam de
formas disponveis e diante de um sujeito. A natureza se
transforma em mero recurso de
energia. Tudo calculvel e manipulvel. O diagnstico de Heidegger
vai alm
dizendo: A ameaa propriamente dita, j atingiu a essncia do homem
(2006a, p. 30)
Heidegger se refere ao perigo que anuncia com a tcnica, com a
com-posio ou
armao que atinge justamente o homem em sua relao com o mundo
enquanto
abertura para o mundo, o levando a um modo rgido e inflexvel de
ser.
Apesar de Heidegger identificar a tcnica como o maior dos
perigos em grau
extremo, nos lembra da frase do poeta Hlderlin, que diz: Ora,
onde mora o perigo l
que tambm cresce o que salva (HLDERLIN apud HEIDEGGER, 2006a, p.
31) O
perigo adverte, chama ateno e neste sentido um clamor que faz
surgir o que salva, o
que reconduz ao vigor essencial. Quanto mais nos avizinharmos do
perigo, com maior
clareza comearo a brilhar os caminhos para o que salva, tanto
mais questes
haveremos de questionar. Pois questionar a piedade do
pensamento. (HEIDEGGER,
2006a, p. 38) Heidegger aponta para um movimento de questionar,
no de dar alguma
resposta.
A tcnica e o acabamento da metafsica se coincidem. Se o salvar
da tcnica
vem com a radicalizao do perigo que ela proporciona, a superao
da metafsica vem,
justamente, com a radicalizao dela mesma.
Heidegger apontou para a atitude de questionar, de abertura, de
estar diante do
perigo. No que se refere superao da metafsica Heidegger tambm
nos direciona
para abertura, para o perguntar, afinal, tanto Hegel quanto
Nietzsche foram os
pensadores que vieram com as respostas, neste sentido. Heidegger
ento visa um passo
de volta e no um passo para frente enquanto resposta. Afirma
Heidegger: Ora, o passo
de volta da metafsica para dentro de sua essncia exige uma durao
e perseverana
23
cuja medida ns no conhecemos. (2006b, p. 60) Na comparao entre
Hegel e
Heidegger, aquele promove o movimento de pro-gresso (Fort-gang)
enquanto passo
para frente, j este procura dar o passo de volta como re-gresso
(Rck-gang). Ernildo
Stein em nota faz o seguinte comentrio em forma de questo sobre
este ponto da
relao entre Hegel e Heidegger: A grande questo que fica aberta :
pode-se realizar o
passo de volta sem a mediao, elemento axial do passo para
diante, exigido por
Hegel? (2006b, p. 59) Ao que tudo indica, Heidegger ao dar este
passo de volta quer na
mesma medida dar o passo adiante, isto significaria a superao da
metafsica, pois
supera as dualidades desde dentro delas, o passo adiante e o
passo de volta se
constituem mutualmente como identidade, sem perder suas
diferenas, mas em todo
caso em um comum pertencimento. Vale o comentrio de Leo:
Para se compreender o itinerrio do pensamento de Heidegger de
suma
importncia o significado dialtico desse exrdio da metafsica.
Uma
profunda ambiguidade penetra todos os passos da questo sobre o
Sentido do
Ser, forando-lhe a investigao numa marcha, cujo movimento , a
um
tempo, projetivo e re-gressivo. pro-jetivo, enquanto, procurando
superar a
metafsica, pros-pectivo pensar a Verdade do Ser na sua
configurao epocal
de esquecimento. Nesse sentido parte e retira o primeiro impulso
de uma
experincia prvia do termo de seu movimento. re-gressivo,
enquanto volta
sobre esse ponto de partida para dilucidar a dimenso originria e
a
provenincia de seu vigor na vicissitude da Verdade do Ser. Na
marcha desse
duplo movimento o projeto determinado pelo re-gresso, porquanto
o
retorno Verdade do Ser, a nica maneira de fazer a experincia
da
metafsica por sua prpria essencializao esquecida. A ambiguidade
aqui
reinante se prende necessidade de mover-se sempre no horizonte
da
metafsica. (1978, p. 20)
Heidegger direciona-se para as origens do pensamento ocidental,
procurando
identificar j nela a superao deste pensar tradicional ou
metafsico que nos direcionou
para o acabamento e o fim da filosofia. A origem que Heidegger
procura desvelar se d
como um novo comeo e superao da metafsica. No mais uma origem j
determinada
a algum fim especfico, mas a uma origem que leve pergunta ou,
ainda, para o nada.
Em outras palavras, Heidegger se interessa pelo nada
identificando a um aspecto oculto
pelo pensar da tradio. Heidegger afirma:
Nossa interrogao pelo nada tem por meta apresentar-nos a
prpria
metafsica. O nome metafsica vem do greto: . Esta
24
expresso surpreendente foi mais tarde interpretada como designao
da
interrogao que vai - trans alm do ente enquanto tal.
Metafsica o questionamento que se lana para alm do ente, a fim
de
recuper-lo, enquanto tal e na totalidade, para a compreenso.
(2008, p. 129)
Quando Heidegger procura resgatar e dar ouvidos ao nada, tem em
vista a
diferena ontolgica, esquecida pela tradio, entre o ente e o ser.
Como mencionado
acima, a tradio teve a forte tendncia a reduzir tudo a ente. A
tcnica justamente a
lida com o mundo dilacerado e cindido entre muitos entes. Houve,
portanto, o
esquecimento do ser, que pode ser confundido com o que Heidegger
est chamando de
nada. Se a tradio interpreta o nada como a falta, como a ausncia
de algo, ou o no-
ser, Heidegger o identifica como o ser. Tal diferena radical e
fundamental, no pode
ser atravessada. Isso no significa que nesta diferena o ser
negue o ente, pelo contrrio,
o ser deixa o ente ser ente. O nada se d no deixar ser, a
diferena se faz tambm
identidade em uma dinmica, que permite o ente ser.
O originrio s se mostra ao homem por ltimo. (2006a.p. 25) Tal
afirmao
de Heidegger indica a necessidade intrnseca entre histria e ser.
A superao da
metafsica, neste sentido uma espcie de recuperao originria do
esquecimento do
ser que se d dentro e atravs da histria. Da que a superao da
metafsica no deve
ser encarada como um se despedir da tradio. Pelo contrario, tal
superao no se trata
de negar a tradio, mas de escut-la. Leo afirma:
Essa superao no uma negao. No pretende destruir e aniquilar
a
metafsica. Pretend-lo no seria apenas uma pretenso infantil, mas
um
esforo Mnchhauseneano, que se atropelaria em seu prprio tropel.
Pois,
ignorar a Histria do Ser, esquecer-se-ia do que mais digno de
ser pensado.
(1978, p. 19)
Heidegger pela histria do ser identifica o mundo da tcnica e
nesta medida o
grande perigo, percebe tambm o que salva, o que seja, justamente
aquilo que na
tradio ficou no pensado. O mundo da tcnica enquanto aquilo que
move nossa
existncia histrica hoje no pode ser tratada como algo de ruim
nem tampouco de algo
bom, nem mesmo como algo neutro onde o ser humano faz uso ou
para o bem ou para o
mal. No o caso, para Heidegger, de se avaliar os pontos
positivos e negativos da
tcnica. A questo que a tcnica nos coloca em grande perigo, no
maior perigo. Por
colocar tudo em risco de aniquilao ou seja, no risco estarmos
distantes de nossas
essncias, em uma nadificao do sentido do ser, onde a vida fica
sem vida e a morte
25
sem morte. Contudo, na medida em que h o perigo nasce o que
salva. Tal salvar no
significa retirar do perigo, mas sim resgatar e se direcionar
para o essencial, para as
crises que nos direciona para os fundamentos, para a serenidade
(Gelassenheit), para o
nada.
Heidegger nota que na tradio houve algumas questes clssicas
que
envolvem o nada e que, portanto, o nada de alguma forma sempre
esteve vigente na
metafsica, mesmo que de forma ausente e, por isso mesmo,
determinando a tradio
ocidental de alguma forma. Por exemplo, a sentena: ex nihilo
nihil fit, do nada nada
vem a ser. Ou ainda: Por que existe afinal o ente e no antes o
Nada? So questes
presentes e trazem o tema do nada. Afirma Heidegger:
A metafsica expressa-se desde a Antiguidade sobre o nada em uma
sentena
sem dvida multvoca: ex nihilo nihil fit, do nada nada vem a ser.
Ainda que,
na discusso da sentena, o nada mesmo nunca se torne problema, a
sentena
expressa, contudo, a partir do respectivo ponto de vista sobre o
nada a
concepo fundamental do ente que a condutora. (2008, p. 129)
Heidegger em Introduo Metafsica (1978) medita sobre a questo Por
que
h simplesmente o ente e no antes o Nada?. No que se refere
primeira parte da
questo, qual seja, Por que h simplesmente o ente est na esteira
das questes
tradicionais que trata das coisas verificveis de alguma forma.
Pode-se dizer que a
cincia se ocupa de questes neste mbito sem acessar questes que
se refere ao nada.
Em todo caso, Heidegger se questiona se a segunda parte da
questo, qual seja, e no
antes o Nada? seria simplesmente um anexo dispensvel. Pelo
contrrio, afirma
Heidegger: O fato de introduzirmos a locuo do Nada, no desleixo
e redundncia
de estilo, como no uma inveno nossa, mas apenas o respeito
rigoroso pela tradio
originria do sentido da questo fundamental. (1978, p. 53)
Portanto, a questo sobre o
nada no algo desnecessria ou contingente. Sendo que a questo Por
que h
simplesmente o ente e no antes o Nada possui em sua ltima parte
o nada como
questo e justamente esta parte que , em verdade, para Heidegger
a questo
fundamental.
Heidegger chama ateno que a cincia um modo do ser humano lidar
com os
entes. Vale lembrar que o mundo da cincia se assemelha ao mundo
da tcnica de forma
radical e eles perfazem um modo em que tudo o que est vigente se
mostra como
disponvel. Afirma Heidegger: O homem um ente entre outros faz
cincia. Neste
fazer no acontece nada menos do que a irrupo de um ente chamado
homem na
26
totalidade do ente (2008, p. 115). O ser humano se dirige e se
referencia pelos entes;
adota posturas e recebe orientao dos entes; confronta e
investiga entes. O ser humano
um ente que lida constantemente com entes e nada mais, vivendo
assim em um mundo
cindido em uma variedade de entes, porm, nada alm disso. Afirma
Heidegger:
Pesquisado deve ser apenas o ente e mais nada; somente o ente e
alm dele nada;
unicamente o ente e para alm disto nada. (2008, p. 115) Em
outras palavras, o nada
no objeto da cincia, justamente por no ser um ente. O nada que
outra coisa
poder ser para a cincia que horror e fantasmagoria? (HEIDEGGER,
2008, p. 116)
Contudo, o nada tambm no o contrrio do ente.
O nada no significa a negao do ente, no um operador lgico, o
nada
mais originrio que o no e a negao. (2008, p.118), afirma
Heidegger. O autor de
Ser e Tempo quer evitar tornar o nada uma coisa, como a tendncia
da tradio,
transformar tudo em objeto de conhecimento, em algo apreensivo.
De fato no
possvel falar do Nada e dele tratar, como se fosse uma coisa,
como chuva l fora ou
uma montanha ou simplesmente um objeto qualquer. (HEIDEGGER,
1978, p. 54) Por
isso afirma Heidegger:
A filosofia nunca nasce da cincia nem pela cincia. Tambm jamais
se
poder equipar-la as cincias. E-lhes antes anteposta e no
apenas
logicamente ou num quadro do sistema das cincias. A filosofia
situa-se
num domnio e num plano das existncias espiritual inteiramente
diverso. Na
mesma dimenso da filosofia e de seu modo de pensar situa-se
apenas a
poesia. Entretanto, pensar e poetar no so por sua v coisas
iguais. Falar do
Nada constituir sempre para a cincia um tormento e uma
insensatez. Alm
do filsofo pode faz-lo ainda o poeta, no certamente por haver na
poesia,
como cr o entendimento vulgar, menos rigor e sim por imperar
nela (pensa-
se somente na poesia autntica e de valor), em oposio a toda
simples
cincia, uma superioridade de esprito e vigorosa. (...) No poetar
do poeta,
como no pensar do filsofo de tal sorte se instaura um mundo, que
qualquer
coisa, seja uma rvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um
pssaro,
perde toda monotonia e vulgaridade. (1978, pp. 54,55)
No posfcio de o que a metafsica? de 1943, Heidegger (2008)
explicita
que h trs interpretaes correntes sobre sua preleo que trata do
nada. Vale lembrar
que tais interpretaes equivocadas geralmente so ocasionadas pelo
pensar que calcula,
pelo pensar cientfico. A primeira de no se tratar assumir algum
tipo de niilismo. A
segunda que no se defende algum tipo de quietismo ou a ausncia
de ao. A terceira
27
que no h algo contra a lgica e o pensamento calculista. Trata-se
de um outro
pensar. Esta renovada meditao da qual Heidegger se prope pode
ser encaminhada
em sua afirmao:
Ela deve examinar se o nada, que afina a angstia em sua essncia,
se esgota
em uma vazia negao de tudo o que ou se aquilo que jamais e em
parte
alguma um ente se desvela como aquilo que se distingue de todo
ente e que
ns chamamos ser. Qualquer que seja o lugar em que a amplitude
com a qual
toda pesquisa explora o ente, em parte alguma ela encontra o
ser. (2008.
pp.317, 318)
Fica evidente que o ser ou o nada no abarcado como em uma
experincia
cientfica, ou seja, no tratado como um objeto para um sujeito. O
nada requer um tipo
de experincia mais ampla, que no parta da ciso sujeito e objeto,
mas sim partindo da
plenitude do abismo onde j sempre nos encontramos, tal plenitude
se d em uma
copertena entre ente e ser. Falar verdadeiramente do Nada ficar
sempre algo de
estranho. Nunca se deixar vulgarizar. (1978, p. 55) Afinal com o
Nada h de fato
alguma coisa de especial. (1978, p. 55)
A superao da metafsica enquanto resgata o no dito da tradio,
procura
trazer um outro pensar, que parece um absurdo para a lgica, bem
como para a cincia
que procura se pautar em entes apenas. Vale frisar que no se
fala de um novo pensar,
mas sim de um outro pensar, isto se d pois no se trata de saltar
para fora da
metafsica, mas sim de se manter pela tenso com a prpria
metafsica, pois o outro traz
referncia ao mesmo.
Heidegger buscando meditar sobre o nada de forma a no trat-lo
como um
ente se recorre tonalidade afetiva fundamental que a angstia,
pois nesta que o
nada se revela. O nada se revela na angstia mas no enquanto
ente. Tampouco nos
dado como objeto. A angstia no uma apreenso do nada (2008, p.
123) E mais,
com a determinao da tonalidade afetiva fundamental da angstia
atingimos o
acontecer do ser-a, no qual o nada est manifesto e a partir do
qual deve ser
questionado. (HEIDEGGER, 2008, p. 123)
A angstia no significa um conceito oposto ao ente, pelo
contrrio, sem o
nada no qual se ambienta a angstia no h a manifestabilidade do
ente enquanto tal
para o ser humano. No ser do ente acontece o nadificar do nada.
No ser do ente que se
manifesta o nada enquanto acontecimento. A metafsica se
apresenta pelo nada, no
28
sentido em que est em seu prprio conceito possuir um ir alm do
ente pelo ente, como
meta, alm, em direo ao ser.
A angstia pensada por Heidegger como revelao do abismo
(Abgrund),
fundo sem fundo. Ou seja, na angstia no h qualquer tipo de apoio
em algum ente.
No h um fundamento ltimo pelo qual se constitui uma cincia ou
uma filosofia. A
prontido para a angstia o sim insistncia para realizar a mais
elevada requisio, a
nica a atingir a essncia do homem. (HEIDEGGER, 2008, p. 319)
Trata-se de uma
experincia fundamental e radical que no pressupe algum tipo de
ciso ou dualidade,
mas sim um acontecimento. Tal acontecimento no possui uma causa
que o determine,
no efeito de algo, no se trata de um sujeito que manipula tal
acontecimento, no
algo passivo nem ativo. Ele se d neste mbito do outro pensa. Tal
pensar aquele que
se iguala ao agradecer. Afirma Heidegger: O pensamento inicial o
eco do favor do
ser pelo qual se ilumina e pode acontecer apropriativamente o
elemento nico: o fato de
que o ente . Este eco a resposta humana palavra da voz
silenciosa do ser. (2008, p.
322)
O acontecer que prprio, que apropriativo se manifesta no cerne
do
agradecer, da abertura real. A provenincia do agradecer se d
justamente no fundo
essencial do homem histrico. No haveria o agradecer se no
houvesse doao. Ora, a
questo que Heidegger pensa o retraimento do ser, portanto, a
recusa do ser, como
fonte de doao do ente e da histria da entidade do ente. Pensar
como agradecer quer
dizer acolher de modo grato a recusa como retraimento, que no
destri ou aniquila,
mas, antes, deixa-ser, faz aparecer cada ente e todo o ente no
seu prprio. Em outras
palavras, o retraimento do ser tambm seu presente, na medida em
que nos
proporciona o agradecer. Nesta direo, o agradecer existe no
pensar que remonta o
incio da verdade do ser no cerne da histria, que no significa,
de modo algum, fazer
resurgir o pensamento pr-socrtico. O entrelaamento j sempre
existente entre homem
e histria se d na copertena entre ser e ente e isso significa
uma relao incontornvel
com a histria do ser, onde j sempre nos encontramos. O agradecer
significa escutar a
voz silenciosa do ser e que permite, assim, um verdadeiro falar
e manifestar. No mais
um falatrio onde o falar no se estabelece em um cuidado e acaba
por se apresentar em
imediatismos onde o falar s reproduz o mesmo que se d de
imediato a todos enquanto
preconceitos, j que a linguagem sem cuidado a perda das razes e
tratada como
instrumento de comunicao. Contudo, afirma Heidegger: O
pensamento, dcil voz
29
do ser, procura encontrar para ele a palavra por meio da qual a
verdade do ser chega
linguagem. Apenas quando a linguagem do homem histrico emana da
palavra, est ela
inserida no destino que lhe foi traado. (2008.p. 324) Pode-se
dizer que o ser humano
realmente se encontra na medida em que se torna dcil voz do ser,
pois neste mbito
tudo se torna prprio a ele mesmo. Caso contrrio, h apenas a
reproduo das falas
prontas.
Na medida em que o ser humano trata a linguagem enquanto
instrumento,
portanto, tratando-a em uma postura cindida, na medida em que se
v como sujeito que
apreende e manipula a linguagem , em verdade, o ser humano que
acaba por ser
possudo pela prpria linguagem, perdendo sua autonomia por falar,
permanecendo,
assim, no modo da impropriedade (Uneigentlichkeit), ou seja, no
sendo em sua
probidade, no sendo o que se . Isto se d justamente por no se
notar que ser possudo
pela linguagem dado fundamental da essncia humana, ou seja,
quando h este trato
cindido e instrumental com a linguagem o ser humano se constitui
em uma co-pertena
com a linguagem em que h perda de sentido. No agradecer, porm, h
um modo de co-
apropriao e co-pertena entre linguagem e ser humano, porm em
outro modo, um
modo dialtico com a linguagem, no tratando-a como instrumento,
mas em um fluir e
serenidade, onde no se pretende estar fora da linguagem, pois se
reconhece justamente
que ela j a morada. Neste mbito o ser humano se direciona para o
que prprio
(Eigentlichkeit). Ou seja, no agradecer se reconhece que j
estamos na histria, na
linguagem e o ser humano entrelaado desde sempre se encaminha,
assim, para o que
prprio.
O pensar do ser acolhe a palavra. Este o cuidado com o uso da
linguagem. O
dizer do pensador vem do silncio longamente guardado e da
cuidadosa clarificao do
mbito nele aberto. (HEIDEGGER, 2008, p. 324) Afirma
Heidegger:
O pensamento do ser no procura apoio no ente. O pensamento
essencial
presta ateno nos lentos sinais do que no pode ser calculado e
nele
reconhece o advento do inelutvel, que no pode ser antecipado
pelo
pensamento. Esse pensamento est atento verdade para que ele
encontre os
seus stios na humanidade histrica. (2008, p. 323)
A superao da metafsica e este pensar verdadeiro nos remete
gratido,
pobreza, serenidade. Tais elementos se constituem
intrinsecamente com o que
Heidegger denomina acontecimento apropriativo (Ereignis) e no
podem ser
30
confundidos com o pensar da metafsica, ou seja, no se trata de
clculos e tentativas de
conquistar os acontecimentos a partir destas tonalidades
afetivas fundamentais.
Em uma fala de Heidegger em 1945 a um crculo restrito de pessoas
com o
ttulo A pobreza teve o seguinte mote: concentra-se-nos tudo no
espiritual, ficmos
pobres para chegar a ser ricos. Tal frase citada por Heidegger
de Hrderlin. Em todo
caso, Heidegger interpreta a pobreza afirmando: Ser pobre quer
dizer: no-estar-
privado de nada, excepto do no-necessrio no-estar-privado de
nada seno do livre-
que-libera [das Freie-Freiende]. (2004, p. 6) Em outras
palavras, pobreza
interpretada como desprender de tudo exceto daquilo que nos d
liberdade. O mbito da
pobreza o outro do ente.
Agradecer est associado intrinsecamente em escutar a voz
silenciosa do ser e
da sua histria, se manter na serenidade, na pobreza. No o pensar
apenas calculante,
mas um pensar ponderante. Chamaremos de pensamento essencial
aquele cujos
pensamentos no apenas calculam, mas so determinados pelo outro
do ente. (2008,
p.321). Ora, o outro do ente justamente o nada, a serenidade, a
renuncia, o
desprendimento, a pobreza e postura serena (Gelassenheit).
Temas como serenidade, pobreza, e gratido so comuns no
pensamento de
Mestre Eckhart. Uma caracterstica marcante do pensamento de
Eckhart que se
sustenta que h um ultrapassar a relao entre ser humano e Deus
apontando para a
deidade, para o nada. Ou seja, Eckhart rejeita qualquer tipo de
representao de Deus ou
relao com a criatura dentro do mbito das imagens e se encaminha
para algo alm de
qualquer imagem, o nada. Imagem ou tambm figura ou forma (Bild,
Bilden) so
palavras que aparecem como termos tcnicos dentro da obra de
Eckhart e geralmente
indicam algum tipo de ente, contudo enquanto concrescido a
partir da gerao divina. O
ponto em questo que Heidegger na medida em que procura se
distanciar do carter
objetificante da metafsica colocando-se nos limites do pensar e
nesta medida
dialogando com o impensado da tradio filosfica ocidental se
coloca aberto a
influncias de tradies pouco afins com a metafsica, sendo o caso
da poesia de
Hlderlin e da teologia e mstica de Eckhart, alm da mstica
oriental como o taosmo e
o budismo Zen2.
2 Jos Carlos Michelazzo (2012) em nota em seu artigo As habitaes
do humano como expresses do
tempo: dilogo entre Heidegger e Dgen, afirma: Acreditamos ser
esse o motivo pelo qual o pensamento de Heidegger especialmente o
da segunda etapa do seu itinerrio tem sido ligado ao misticismo,
sobretudo por seus crticos at mesmo pertencentes a perspectivas
antagnicas. Assim, existem aqueles
31
3 MESTRE ECKHART: O NADA DA DEIDADE E A VIDA SEM PORQU
So algumas caractersticas do pensamento de Eckhart que
gostaramos de
enfatizar aqui tendo em vista aproximar tal pensador de
Heidegger e do pensamento que
pode ser abstrado do budismo zen. Quais sejam, a noo de
desprendimento, de
serenidade, de agradecer, da co-pertena entre criatura e criador
e do nada. Todas estas
noes esto intrinsecamente conectadas no cerne do pensamento de
Eckhart.
O neologismo criado por Mestre Eckhart abegescheidenheit uma
palavra de
estrutura negativa. Ab tem sentido de distanciamento e o verbo
scheiden exprime ideias
como deixar, partir, separar-se. A traduo mais corrente seria
desprendimento,
palavra esta, contudo, que induz a associ-la uma acepo
asctico-moral. Mesmo
partindo de dentro de tal acepo moral, que acaba por nos levar
para uma renncia,
desapego e abnegao, deve-se preservar um sentido mais profundo
indicado por Mestre
Eckhart: um sentido ontolgico. Em Eckhart desprendimento diz a
essncia, o ser de
Deus, portanto, tem um sentido ontolgico (GIACHINI, 2006. p.
338). Desta forma,
trata-se muito mais de liberdade plena do ser do que de algum
tipo de privao e
carncia de algo. Portanto, termos usados por Eckhart como
renncia, abnegao,
desapego, limite, finitude indicam menos privao e lacuna e muito
mais um
preenchimento de possibilidades livres de modos do ser, como um
despojamento livre
de tudo que no ela mesma. Sendo assim, mais correto dizer que a
partir da
liberdade plena do ser que se interpreta as categorias
ascticas-morais e no o contrrio.
Segundo Gwendoline Jarczyk e Pierre-Jean Labarrire, na introduo
do livro
Sobre o Desprendimento de Mestre Eckhart (2004), o Dicionrio de
Conceitos
Filosficos do linguista Hoffmeister afirma: Abgeschiedenheit,
alemo mdio-alto
abegescheidenheit, termo forjado por Mestre Eckhart para o
perfeito repouso-em-si, o
ser-uno-consigo-mesmo da alma, retirado em relao ao homem e ao
mundo.
(HOFFMEISTER apud ECKHART, 2004. p. 13) Mestre Eckhart estaria
ento
indicando um deixar-ser-si-mesmo, um ser o que se sem acrscimos
ou subtraes,
extremamente racionalistas, antipatizantes do misticismo, que vm
no emprego que Heidegger faz de palavras oriundas do mbito da
mstica, as provas do seu fracasso como filsofo, colocando toda sua
obra sob suspeio de irracionalismo. Mas h tambm aqueles que
criticam Heidegger justamente por serem simpatizantes do
misticismo, acusando o filsofo de apropriao indbita de termos
expresses de cunho mstico, interpretando as obras tardias do
filsofo como arrogantes e pretensiosas, medida que mostram um
desejo explcito de filiarem-se grande tradio espiritual do
misticismo. (In FLORENTINO; GIACOIA (Orgs.), 2012, p. 193)
32
como um todo originrio. Portanto, apesar da estrutura negativa
da palavra h algo de
positivo e de forma radical de tornar-se o que j se .
Tal tema do desprendimento ocorre em Eckhart de forma incansvel
em seus
sermes. Um ponto central que tal tema apenas ocorre de maneira
autntica no cerne
do todo, do um, do nada.
No sermo 21, Mestre Eckhart explicita que Deus Um, um negar do
negar
(2006. p.149). Quer evitar justamente um acrscimo quilo que j .
Define o Um como
aquilo a que nada se ajunta. (2006.p.149) Desta forma, se afirmo
que Deus bom,
estaremos definindo e, portanto negando aquilo que ele no . Como
afirma Spinoza:
Omni determinatio negatio est. Contudo, Deus engloba tudo, por
isso Mestre Eckhart
(2006) afirma: Um anjo nega que seja um outro . Deus, porm, tem
um negar
do negar; ele Um e nega tudo o mais, pois nada fora de Deus. (p.
149) Da Eckhart
compreender Deus como Abgeschiedenheit, como deidade (Gottheit)
em detrimento de
Deus (Gott) enquanto ente. Esta ltima estaria no mbito das
determinaes excludente,
ou seja, negando aquilo que no seja Deus, enquanto que aquela
estaria relacionada
ao ser de Deus, desprendido de tudo aquilo que no ele mesmo,
sem, por isso, deixar
de ser em plenitude, sem necessitar que haja algum acrscimo ou
decrscimo, como o
Um Nada Ser Todo. Parece que Mestre Eckhart no est preocupado em
adequar
Deus ao homem, como objeto de conhecimento, passvel de apreenso,
como um ente,
uma coisa. Muito mais est interessado na identificao de si com o
ser de Deus,
estando no mesmo fundo, no j , ou seja, penetrando onde j sempre
estamos, onde h
at a superao entre criatura e Deus ou entre atesmo e tesmo, no
desprendimento.
Desta forma, o todo o nico capaz de desprendimento. Ou seja, o
negar do
negar, remete ao absoluto em perspectiva radical e prpria, pois
to absoluto que se
nega a fim de abarcar o que relativo.
Heinrich Rombach, filsofo-fenomenolgico, contribui para o dilogo
entre o
pensamento o ocidental e o oriental era tambm estudioso de
Eckhart e questiona:
Como deveria, pois, o Absoluto, que tudo, poder excluir uma
parte do mundo, e uma
parte da humanidade de si? Isto no conduz a uma concepo mudada
de Deus e
mundo, a uma nova estrutura total? (1977.p. 159)
Segundo Rombach, na poca gtica da Idade Mdia, tempo em que vive
e pensa
Eckhart, irrompe na vida do esprito (arte religio filosofia) um
realismo sagrado.
Isto quer dizer que ao homem, atravs de uma nova experincia do
sagrado, foi
33
possibilitada uma nova virada para a realidade. O Deus
absolutamente individualizado,
absolutamente realizado, humanizado at dor mais mortal, d ao
real, ao individual,
finitude, um sentido absoluto. Em tudo o que humano o homem toca
tambm o
divino (1977, p. 163). No entanto, preciso observar que, nisso,
Deus no perde a sua
transcendncia. A mstica tambm e ao mesmo tempo uma teologia
natural que
apresenta a afirmao da absoluta transcendncia de Deus. A mstica
espiritualiza a
interpretao da Bblia e tambm do universo criado. Afirma
Rombach:
A mstica entra no lugar da interpretao da Bblia, sim, est ainda
acima
dela. Ela haure o sentido da letra em uma interpretao
espiritualizada da
Sagrada Escritura, e ela haure o sentido da coisa em uma
interpretao
espiritualizada de todo o criado. O gtico, que no mais toma a
Bblia to
literalmente, transpe o sentido da histria da salvao para uma
dimenso,
na qual ela se une de um modo universal e perfeito com o sentido
do todo do
mundo (1977, p. 163).
preciso, pois, compor e no opor imanncia e transcendncia de Deus
em
relao ao mundo. J se usou a palavra transmanncia para esta
unidade de imanncia
e transcendncia de Deus em relao ao mundo. Trata-se da negao de
tudo que nos
leva para uma grande afirmao sagrada, de superao da falta de
fundamento (grund)
para um fundo sem fundo.
O desprendimento o lugar prprio de Deus enquanto deidade,
enquanto o
nada, que o outro do ente, assim como em Heidegger. Ou seja,
trata-se de um nada, de
um fundo sem fundo, que abarca o todo, justamente por no se
diferenciar de nada, pois
ele nega o negar, nega que haja dualismos. Remete ao que j .
No sermo 22, Eckhart (2006) conta uma estria que ilustra bem o
que se afirma
aqui por Deus se negar e ainda sobre a co-pertena entre criatura
e Deus:
Era uma vez um homem rico e uma mulher aflita. Aproximando-se
dela, o
marido disse: Mulher, por que ests to aflita? No te aflijas
tanto por ter
perdido um olho. Ele falou: Mulher, eu te amo. Logo depois, ele
furou o
prprio olho e aproximando-se da mulher disse: Para que creias
que te amo,
fiz-me igual a ti; tambm eu tenho ainda s um olho. Assim o
homem:
Como o homem mal podia acreditar que Deus o amasse tanto, Deus
furou
um olho seu e assumiu a natureza humana. Isso significa:
Tornou-se carne
(Jo 1, 14). Nossa Senhora disse: Como pode isso suceder? Ento o
anjo
falou: O Esprito Santo vir a ti, descendo (Lc 1,34-35; Sb 18,
15; Tg 1,
17) (p. 153.)
34
Destaca-se que Deus se apresenta como paradoxo, como algo
inabarcvel para
uma conscincia cindida, pois, enquanto absoluto, assume a
natureza do que relativo e
finito. Deus est invertido e contaminado pela vulgaridade, pelo
finito, pelo cotidiano.
Deus no se encontra mais em coisas elevadas e inalcanveis, mas
entremeado no
mundo, sendo que, se h transcendncia, ela se d pela imanncia. No
sermo 23
comenta sobre o arrebatamento de So Paulo, afirma Eckhart
(2006): Se algum
tivesse tocado So Paulo com a ponta de uma agulha durante seu
arrebatamento, ele o
teria percebido, pois sua alma permanecia em seu corpo como a
forma em sua matria
(p. 161.) Nesta outra imagem percebesse-se novamente a indicao
da articulao
intrnseca do absoluto e do relativo, do transcendente e do
imanente. Rombach
interpreta esta interseco radical dos opostos no simbolismo da
Cruz irlandesa onde se
articula a cruz e o crculo e comenta:
Cruz e Crculo so sinais, os mais antigos e elementares. Ambos
em
contraposio: a Cruz, dura, reta e contraditria; o Crculo,
redondo, tenro e
oscilante. A antiga Cruz irlandesa de pedra liga ambos os sinais
em
compenetrao mtua: o Crculo se cruza com crculos. A Cruz abraa
um
movimento circular. O que dizem esses sinais? Crculo significa
plenitude,
riqueza, dom, como tambm, alegria, estima, valor. O que nos
importante,
ns o marcamos com crculos; o que nos caro, o rodeamos em crculo.
Anel
e aro so smbolos da Vida e da Unidade. Tambm do sol. Cruz
diz
diferena, significa oposio, contradio, tambm risco. Serve para
a
marcao, para sinalizar, para estigmatizar. Ela diz evento, ao,
quebra, dor
e morte. Crculo e Cruz, se unidos, podem s ser lidos como:
irrupo para
plenitude, evento da unidade atravs de uma nica ao singular; em
suma:
superao (1977, p. 140).
O ser humano indicado por sua aflio e incompletude, na estria
mencionada
acima representada por uma cegueira adquirida, por uma falta.
Ora, o ser humano
um ser incompleto por si mesmo, portanto, aberto, um
ser-para-morte. Porm o ser
humano, em sua abertura e serenidade, na deidade, acolhe o
sofrer em outra perspectiva,
enquanto oportunidade, enquanto criao, enquanto sofrer divino.
Rombach comenta
sobre o homem sofredor:
Atravs da experincia da Cruz o Homem aprendeu a ver o sofrimento
de
outra maneira. Sempre houve o sofrimento, mas ele no era
sofrido. Somente
no sofrer divino aprendeu o Homem a captar isso como uma
configurao
fundamental do ser-Homem: o Homem que sofre tem um direito
infinito, sua
figura intocvel; em face dele no tem validade nem a repreenso e
a
35
acusao de culpa, nem boas palavras e admoestaes, nem louvor
e
recompensa nem mera ajuda tcnica. O sofredor perdeu algo
irrecupervel, a
terra natal, os seus, o sentido. Se nele a dor se transforma em
sofrimento,
ento ele se torna um indivduo infinito, que no pode mais ser
acusado de
nada. O sofredor tem um direito absoluto; nenhum caminho lhe
passa ao
largo; nele se apresentam em ato a essncia de ser Homem e a
essncia do
que o Humano. Nisso reside o seu servio, sua oferta, sua
incumbncia:
sofrer enquanto uma experincia da infinitude e ajudar a esta
enquanto um
com-padecer. Na figura do sofrer e do com-padecer, que se
pertencem
mutuamente, crescem existncias individuais que ultrapassam a si
mesmas
(1977, p. 146).
A preocupao da mulher na estria de Eckhart se revela em sua viso
agora
limitada e ela sofre e fica aflita. Aflita por suspeitar de
perder o amor da infinitude e
completude. Portanto, no simples dor, mas sim sofrimento, como
indica Rombach
em seu trecho mencionado logo acima. O sofrer enquanto se
colocar diante do abismo,
do vcuo, da morte. Afinal, afirma Eckhart: Cegos e paralticos,
invlidos e doentes.
Em verdade, nenhum outro, jamais, provar da minha ceia. (2006,
p. 141) Quem se
alimenta de tal ceia, diz Eckhart, depois dela no segue mais
nenhuma refeio.
(2006, p. 137)
Contudo, Deus furou seu prprio olho, na estria que estamos nos
guiando.
Portanto, olhando como a criatura olha e no s, Deus de certa
forma se revela tambm
como aberto, como incompleto, necessitando da criatura para se
completar. No sermo
12, Eckhart (2006), afirma: O olho com que vejo Deus o mesmo
olho com que Deus
me v; meu olho e o olho de Deus so um olho e um ver e um
conhecer e um amar.3 O
olhar de Deus se d quando a criatura percebe sua finitude, no de
forma informativa ou
em sentido epistemolgico, mas acordando para saber da prpria
morte em sentido
radical e ontolgico. Rombach afirma:
Deus morreu adentrando-se no Homem. Primeiramente, o vitorioso
supra-
terrestre; depois, a hstia santa; por fim, o humano sofrer e a
humana morte.
Brilho e aurola cedem lugar coroa de espinhos. A sublimidade
divina se
encolhe para dentro do Homem. Isso significa estar morto para
todas as
coisas criadas, incluindo a si mesmo. (1977, p. 144)
3 Sobre tal frase de Eckhart vale mencionar que Hegel a cita em
Vorlesungen ber die Philosophie der
Religion, na Parte I. Der Begriff der Religion. Em alemo a frase
citada: Das Auge, mit dem mich Gott
sieht, ist das Auge, mit dem ich ihn sehe; mein Auge und sein
Auge ist ein (O olho com o qual Deus me
v o olho com o qual eu o vejo; meu olho e seu olho um).
36
O ser humano em sofrimento divino, olhando com os olhos de Deus,
h uma
articulao entre a imanncia e transcendncia. Deus tambm se faz
humano em certo
sentido, e o homem envolve-se na transcendncia. Todavia, O homem
que assim se
encontra no amor de Deus, deve estar morto para si mesmo e para
todas as coisas
criadas (ECKHART, 2006. p.105). Em outras palavras, para se
olhar com o olho de
Deus necessrio ser para a morte. Porm, Deus furou seu olho,
Rombach de maneira
radical, diante do tema da interseco da imanncia-transcendncia
anuncia a morte de
Deus: Deus morreu adentrando-se no homem (1977, p. 144) Neste
mesmo contexto
comenta sobre o simbolismo dos crucifixos gticos:
O sinal da salvao se torna o smbolo da finitude. Somente agora
Deus se
tornou Homem total e absolutamente. Nudus Christus, in nudo
ligno
Cristo nu, no madeiro nu. medida que Deus morre para dentro do
Homem,
o humano cresce se elevando para Deus. No sofrimento o Homem
toca Deus;
toca-O, uma vez que Ele, Deus, o toca (1977, p. 144).
Segundo Rombach, a Cruz indica a experincia em que h proximidade
entre ser
humano e Deus. Nesta direo, sofrimento e com-paixo humano e
dinivo ao
mesmo tempo. (1977, p. 148) Assim, surge e faz sentido Esprito
segundo Rombach,
pois, o sofrimento, a aflio, a indigncia, a co-miserao,
constituem o Esprito
perfazendo a finitude e a infinitude havendo, assim, uma
Re-(con)-duo ao
singelamente humano. (1977, p. 148) Desde ento existe a essncia
de ser humano;
desde ento o ser-Humano para todos; e existe a ligao de todos os
homens com
todos os homens. (ROMBACH, 1977, p. 148)
Em todo caso, no se pode confundir com pantesmo a relao de
co-
pertencimento entre ser humano e Deus, apesar de Deus se fazer
experincia humana,
acontecimento, evento. A correlao e co-pertencimento entre
criatura e Deus se d na
medida em que o ser humano se direciona para aquilo que j , na
deidade, no
fundamento que sem fundamento. Trata-se de um fundo sem fundo,
justamente por
haver o desprendimento de tudo, inclusive de si mesmo. No h um
ponto fixo a se
apoiar cabalmente, no h nem a noo de eu ou alma ou de mundo ou
mesmo de
Deus, s h um vazio, um nada. Nada, aqui, no deve ser entendido
como no-ser ou
a negao do ser, antes algo que fundamenta o no-ser ou o ser.
Afirma Harada (1999):
Portanto, no que eu saia de mim e Deus entra. Mas sim, quando
volto a me
desenrolar e me torno o que era antes de ser algo, isto , nada,
esse nada igual a
Deus. (p. 37) No se trata, portanto, de afirmar que tudo Deus,
inclusive o relativo,
37
porm de radicalizar o nada, a deidade e que a relao entre Deus e
criatura se dissolve
e transcende neste nada. Principalmente por no se objetificar
Deus, nem, pode-se dizer,
este outro de qualquer ente ou criatura.
Tal relao de co-pertena entre ser humano e Deus pode ser
ilustrado por
linguagem paulina no Novo Testamento ao encontrarmos o tema da
morte. Deus de
forma gratuita, por meio do amor, nos oferece a salvao como um
dom e graa.
Contudo, isso no significa que no haja responsabilidade por
parte do ser-humano em
seu destino, como se tudo j estivesse dado na salvao doada por
Deus. A liberdade e
responsabilidade do ser humano em seu destino esto justamente na
resposta salvao
divina, que se d por meio da f. F significando um deixar-se no
salvar de Deus,
abandonando-se na vontade de Deus. Tal atitude em verdade
bastante exigente.
Afirma Jesus: Quem quiser salvar a sua vida a perder, mas quem
perder sua vida, por
causa de mim, a ganhar. (Mt 16, 25). So Gregrio afirma: Ningum
recebe tanto de
Deus quanto o homem que est inteiramente morto. (GREGRIO apud
ZUSUKI
1976. p. 24) Kierkegaard parece ter compreendido tal mensagem ao
falar da passagem
do estdio tico ao estdio religioso da existncia. Eckhart quando
anuncia o
desprendimento (Abgeschiedenheit) e a serenidade ou abandono
(Gelassenheit)
demonstra estar de acordo com a atitude de abandono e deixar
ser. Eckhart, afirma: O
homem que deixa e foi deixado, sem nunca mais olhar, nem por um
instante sequer, o
que deixou, permanecendo constante, imvel em si mesmo e imutvel
, s ele o
homem sereno. (2006. p. 105) A palavra sereno no alemo utilizada
por Eckhart
como gelassen, que vem de lassen que pode ser traduzido por
deixar ser. Harada (1999)
comenta sobre tal palavra:
Lassen significa deixar, no sentido de abandonar, largar,
afastar-se de. Mas, o
que deixo ou largo fica, por assim dizer, entregue a si mesmo,
desligado de
mim. deixado ser ele nele mesmo. Por isso, a forma participial
passiva de
lassen gelassen significa solto, livre, vontade, na identidade
de si mesmo. E
esse estado de se ser a prpria identidade de si mesmo ser reto,
justo ou
estar bem. E o que est bem consigo mesmo sereno. Por isso
gelassen quer
dizer tambm sereno, e Gelassenheit, serenidade. (p. 36)
Portanto, quem permanece em serenidade (Gelassenheit) est de
acordo com a
vontade do Deus, est re-conduzido em seu ser. E desta forma
feita a experincia, do
mundo, de Deus, do homem, de ns mesmos e dos outros. Nesta
experincia est a raiz
do pensamento de Eckhart onde reina o desprendimento em sua
radicalidade, bem como
38
o deixar ser e o nada. Segundo Leo (2004), h trs nveis de
densidade, no que se
refere experincia da serenidade, quais sejam, o ntico, o
ontolgico e o mstico.
O primeiro nvel, o ntico, Eckhart trata das coisas, e estas so
simplesmente
abandonadas no desprendimento sereno. Isso no significa o
desprezo ou rejeio ou a
atitude de destrutividade com as coisas, trata-se de perceber o
vazio das coisas, de
abandonar as pretenses e esperanas de estabelecer algum ente
como fundamento. Na
vivncia do desprendimento real h o desprendimento do prprio
desprendimento e,
neste sentido, a experincia com as coisas se d em seu cerne
beirando o silncio, o
privilgio da escuta, em olhar atento s sutilezas, em dinmica e
em metabolismo. A
experincia na relao com as coisas leva ao segundo nvel, ou seja,
remete ao mbito
ontolgico que se abre no prprio ceio ntico das coisas.
O nvel ontolgico aponta para o fundo sem fundo, para o
fundamento das
coisas. Sto. Toms tinha dito antes de Eckhart: Deus est ipsum
esse: Deus o prprio
ser. Eckhart inverteu a frase, que, invertida, trai e revela
toda a profundidade
ontolgica do ntico. Tu que no Deus no . (LEO, 2004, p.113) Com
Eckhart, s
conhecemos verdadeiramente algo na medida em que se junto. Ou
seja, conhecer
ser. Desta forma, Eckhart um grande reformador, em vrios
sentidos. No perodo que
vai de 1303 a 1310 Eckhart administra 47 conventos masculinos e
9 femininos, com
poderes de reformador. Sua misso inclua examinar, corrigir e dar
indulto (de castigos).
Todavia, seu lema na poca de reformador era: para reformar
necessrio transformar
o esprito a fim de no deformar! (2006, p. 12)
No se trata de ao extrnseca, porm a verdadeira mudana e reforma
se d na
lida desde dentro. Afirma Eckhart: Todas as criaturas so puro
nada. No digo que
sejam insignificantes, pequenas, nulas, ou qualquer outra coisa
assim. Elas so um puro
nada (ECKHART apud LEO, 20004, p. 113) Todo criado no possui
fundamento
prprio, um sendo em limites ontolgicos. Apenas Deus possui ser e
as coisas sendo
nutre-se do ser de Deus. As relaes com o outro acontece pelo
perdoar e esquecer, isso
significa estar no ser, ou seja, perdoar ser em serenidade e
permitir o deixar-ser, no
interferir, mas agir no prprio devir com as coisas.
O terceiro nvel da experincia da serenidade acontece na unidade
com o ser, na
deidade. Trata-se da integrao de tudo que est sendo na deidade.
A unidade como a
deidade, mais fundamental do que o ser e seus transcendentais.
(LEO, 2004, p. 114)
Afirma Eckhart: Deus est todo inteiro em tudo, no bem e no mal,
no ser e no no-ser
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(ECKHART apud LEO, 2004, p. 114) Na deidade as dualidades se
dissolvem e o
devir e as aes se do em suas plenitudes em uma modo sem modo, na
vida sem
porqu. Comenta Leo:
A vida retira do profundo de seu prprio ser vida o ser de todo
viver. Por isso
no preciso ir procura o fundo da vida. Toda sua profundidade
somente
viver. a experincia do viver a vida que levou Nietzsche
ambiguidade de
dizer num jogo de palavras em alemo: Wer den Grund sucht, geht
zu
Grunde. A partir da serenidade mstica, poder-se-ia talvez jogar
em
portugus: quem